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Page 1: Monteiro Lobato - Recicla Leitores...Preparação de texto: Página Ímpar Revisão: Margô Negro e Márcio Guimarães de Araújo Ilustração de J. U. Campos: Arquivo Família Monteiro
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Monteiro LobatoNegrinha

[conto]

São Paulo, 2012

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© Editora Globo, 2012© Monteiro Lobato sob licença da Monteiro LobatoLicenciamentos, 2012 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocadaem sistema de banco de dados ou processo similar, emqualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia,gravação etc. sem a permissão dos detentores doscopyrights. Publicado originalmente no livro "Negrinha" (Globo, 2008),de Monteiro Lobato. Edição: Luciane Ortiz de CastroEdição de Arte: Adriana Bertolla SilveiraEdição Digital: Erick Santos Cardoso Consultoria e pesquisa: Marcia Camargos e VladimirSacchettaPreparação de texto: Página ÍmparRevisão: Margô Negro e Márcio Guimarães de Araújo

Ilustração de J. U. Campos: Arquivo Família MonteiroLobato

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Editora Globo S.A.Av. Jaguaré, 1.485 – JaguaréSão Paulo – SP – 05346-902 – Brasilwww.globolivros.com.br

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ÍndiceCapaFolha de RostoCréditosMonteiro LobatoNegrinha 1920

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Monteiro Lobato

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Monteiro Lobato, por J.U. Campos.

Homem de múltiplas

facetas, José Bento MonteiroLobato passou a vida engajadoem campanhas para colocar o

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país no caminho damodernidade. Nascido emTaubaté, interior paulista, noano de 1882, celebrizou-secomo o criador do Sítio doPicapau Amarelo, mas suaatuação extrapola o universoda literatura infantojuvenil,gênero em que foi pioneiro.

Apesar da sua inclinação para asartes plásticas, cursou a Faculdade doLargo São Francisco, em São Paulo,por imposição do avô, o Visconde deTremembé, mas seguiu carreira porpouco tempo. Logo trocaria o Direito

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pelo mundo das letras, sem deixar delado a pintura nem a fotografia, outrade suas paixões.

Colaborador da imprensa paulistae carioca, Lobato não demoraria asuscitar polêmica com o artigo “Velhapraga”, publicado em 1914 em OEstado de S. Paulo. Um protestocontra as queimadas no Vale doParaíba, o texto seria seguido de“Urupês”, no mesmo jornal, títulodado também ao livro que, trazendo oJeca Tatu, seu personagem símbolo,esgotou 30 mil exemplares entre 1918 e1925. Seria, porém, na Revista doBrasil, adquirida em 1918, que elelançaria as bases da indústria editorial

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no país. Aliando qualidade gráfica auma agressiva rede de distribuição,com vendedores autônomos econsignatários, ele revoluciona omercado livreiro. E não para por aí.Lança, em 1920, A menina donarizinho arrebitado, a primeirada série de histórias que formariamgerações sucessivas de leitores. Ainfância ganha um sabor tropical,temperado com pitadas de folclore,cultura popular e, principalmente,muita fantasia.

Em 1926, meses antes de partirpara uma estada como adido comercialjunto ao consulado brasileiro em NovaYork, Lobato escreve O presidente

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negro. Neste seu único romanceprevê, através das lentes do“porviroscópio”, um futuro interligadopela rede de computadores.

De regresso dos Estados Unidosapós a Revolução de 30, investe noferro e no petróleo. Funda empresas deprospecção, mas contraria poderososinteresses multinacionais queculminam na sua prisão, em 1941.Indultado por Vargas, continuouperseguido pela ditadura do EstadoNovo, que mandou apreender equeimar seus livros infantis.

Depois de um período residindoem Buenos Aires, onde chegou a fundarduas editoras, Monteiro Lobato morreuem 4 de julho de 1948, na cidade de

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São Paulo, aos 66 anos de idade.Deixou, como legado, o exemplo deindependência intelectual ecriatividade na obra que continuapresente no imaginário de crianças,jovens e adultos.

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Negrinha

Negrinha era uma pobre órfã de 7anos. Preta? Não; fusca, mulatinhaescura, de cabelos ruços e olhosassustados.

Nascera na senzala, de mãeescrava, e seus primeiros anos vivera-ospelos cantos escuros da cozinha, sobrevelha esteira e trapos imundos. Sempreescondida, que a patroa não gostava decrianças.

Excelente senhora, a patroa. Gorda,rica, dona do mundo, amimada dospadres, com lugar certo na igreja e

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camarote de luxo reservado no céu.Entaladas as banhas no trono (umacadeira de balanço na sala de jantar), alibordava, recebia as amigas e o vigário,dando audiências, discutindo o tempo.Uma virtuosa senhora, em suma – “damade grandes virtudes apostólicas, esteioda religião e da moral”, dizia oreverendo.

Ótima, a Dona Inácia.Mas não admitia choro de criança.

Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva.Viúva sem filhos, não a calejara o choroda carne de sua carne, e por isso nãosuportava o choro da carne alheia.Assim, mal vagia, longe, na cozinha, atriste criança, gritava logo nervosa:

– Quem é a peste que está chorando

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aí?Quem havia de ser? A pia de lavar

pratos? O pilão? O forno? A mãe dacriminosa abafava a boquinha da filha eafastava-se com ela para os fundos doquintal, torcendo-lhe em caminhobeliscões de desespero.

– Cale a boca, diabo!No entanto, aquele choro nunca

vinha sem razão. Fome quase sempre, oufrio, desses que entanguem pés e mãos efazem-nos doer...

Assim cresceu Negrinha – magra,atrofiada, com os olhos eternamenteassustados. Órfã aos 4 anos, por alificou feito gato sem dono, levada apontapés. Não compreendia a ideia dosgrandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou

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omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, amesma palavra provocava ora risadas,ora castigos. Aprendeu a andar, masquase não andava. Com pretexto de queàs soltas reinaria no quintal, estragandoas plantas, a boa senhora punha-a nasala, ao pé de si, num desvão da porta.

– Sentadinha aí, e bico, hein?Negrinha imobilizava-se no canto,

horas e horas.– Braços cruzados, já, diabo!Cruzava os bracinhos a tremer,

sempre com o susto nos olhos. E otempo corria. E o relógio batia uma,duas, três, quatro, cinco horas – um cucotão engraçadinho! Era seu divertimentovê-lo abrir a janela e cantar as horascom a bocarra vermelha, arrufando as

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asas. Sorria-se então por dentro, felizum instante.

Puseram-na depois a fazer crochê,e as horas se lhe iam a espichartrancinhas sem fim.

Que ideia faria de si essa criançaque nunca ouvira uma palavra decarinho? Pestinha, diabo, coruja, baratadescascada, bruxa, pata-choca, pintogorado, mosca-morta, sujeira, bisca,trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo –não tinha conta o número de apelidoscom que a mimoseavam. Tempo houveem que foi bubônica. A epidemia andavana berra, como a grande novidade, eNegrinha viu-se logo apelidada assim –por sinal que achou linda a palavra.Perceberam-no e suprimiram-na da lista.

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Estava escrito que não teria um gostinhosó na vida – nem esse de personalizar apeste...

O corpo de Negrinha era tatuado desinais, cicatrizes, vergões. Batiam neleos da casa todos os dias, houvesse ounão houvesse motivo. Sua pobre carneexercia para os cascudos, cocres ebeliscões a mesma atração que o ímãexerce para o aço. Mão em cujos nós dededos comichasse um cocre, era mãoque se descarregaria dos fluidos em suacabeça. De passagem. Coisa de rir e vera careta...

A excelente Dona Inácia era mestrana arte de judiar de crianças. Vinha daescravidão, fora senhora de escravos – edaquelas ferozes, amigas de ouvir cantar

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o bolo e estalar o bacalhau. Nunca seafizera ao regime novo – essaindecência de negro igual a branco equalquer coisinha: a polícia! “Qualquercoisinha”: uma mucama assada ao fornoporque se engraçou dela o senhor; umanovena de relho[1] porque disse: “Comoé ruim a sinhá!”...

O 13 de Maio tirou-lhe das mãos oazorrague, mas não lhe tirou da alma agana. Conservava Negrinha em casacomo remédio para os frenesis. Inocentederivativo.

– Ai! Como alivia a gente uma boaroda de cocres bem fincados!...

Tinha de contentar-se com isso,judiaria miúda, os níqueis da crueldade.Cocres: mão fechada com raiva e nós de

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dedos que cantam no coco do paciente.Puxões de orelha: o torcido, de despegara concha (bom! bom! bom! gostoso dedar!) e o a duas mãos, o sacudido. Agama inteira dos beliscões: domiudinho, com a ponta da unha, à torcidado umbigo, equivalente ao puxão deorelha. A esfregadela: roda de tapas,cascudos, pontapés e safanões à uma –divertidíssimo! A vara de marmelo,flexível, cortante: para “doer fino” nadamelhor!

Era pouco, mas antes isso do quenada. Lá de quando em quando vinha umcastigo maior para desobstruir o fígadoe matar as saudades do bom tempo. Foiassim com aquela história do ovoquente.

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Não sabem? Ora! Uma criada novafurtara do prato de Negrinha – coisa derir – um pedacinho de carne que elavinha guardando para o fim. A criançanão sofreou a revolta – atirou-lhe umdos nomes com que a mimoseavamtodos os dias.

– “Peste?” Espere aí! Você vai verquem é peste – e foi contar o caso àpatroa.

Dona Inácia estava azeda,necessitadíssima de derivativos. Suacara iluminou-se.

– Eu curo ela! – disse – edesentalando do trono as banhas foi paraa cozinha, qual perua choca, a rufar assaias.

– Traga um ovo.

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Veio o ovo. Dona Inácia mesmapô-lo na água a ferver; e de mãos àcinta, gozando-se na prelibação datortura, ficou de pé uns minutos, àespera. Seus olhos contentes envolviama mísera criança que, encolhidinha a umcanto, aguardava trêmula alguma coisade nunca visto. Quando o ovo chegou aponto, a boa senhora chamou:

– Venha cá!Negrinha aproximou-se.– Abra a boca!Negrinha abriu a boca, como o

cuco, e fechou os olhos. A patroa, então,com uma colher, tirou da água “pulando”o ovo e zás! na boca da pequena. E antesque o urro de dor saísse, suas mãosamordaçaram-na até que o ovo

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arrefecesse. Negrinha urrou surdamente,pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem osvizinhos chegaram a perceber aquilo.Depois:

– Diga nomes feios aos mais velhosoutra vez, ouviu, peste?

E a virtuosa dama voltou contenteda vida para o trono, a fim de receber ovigário que chegava.

– Ah, monsenhor! Não se pode serboa nesta vida... Estou criando aquelapobre órfã, filha da Cesária – mas quetrabalheira me dá!

– A caridade é a mais bela dasvirtudes cristãs, minha senhora –murmurou o padre.

– Sim, mas cansa...– Quem dá aos pobres empresta a

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Deus.A boa senhora suspirou

resignadamente.– Inda é o que vale... Certo dezembro vieram passar as

férias com Santa Inácia duas sobrinhassuas, pequenotas, lindas meninas louras,ricas, nascidas e criadas em ninho deplumas.

Do seu canto na sala do tronoNegrinha viu-as irromperem pela casacomo dois anjos do céu – alegres,pulando e rindo com a vivacidade decachorrinhos novos. Negrinha olhouimediatamente para a senhora, certa devê-la armada para desferir contra osanjos invasores o raio dum castigo

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tremendo.Mas abriu a boca: a sinhá ria-se

também... Quê? Pois não era crimebrincar? Estaria tudo mudado – e findo oseu inferno – e aberto o céu? No enlevoda doce ilusão, Negrinha levantou-se eveio para a festa infantil, fascinada pelaalegria dos anjos.

Mas a dura lição da desigualdadehumana lhe chicoteou a alma. Beliscãono umbigo, e nos ouvidos o som cruel detodos os dias: “Já para o seu lugar,pestinha! Não se enxerga?”

Com lágrimas dolorosas, menos dedor física que de angústia moral –sofrimento novo que se vinha acresceraos já conhecidos –, a triste criançaencorujou-se no cantinho de sempre.

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– Quem é, titia? – perguntou umadas meninas, curiosa.

– Quem há de ser? – disse a tia numsuspiro de vítima. – Uma caridademinha. Não me corrijo, vivo criandoessas pobres de Deus... Uma órfã. Masbrinquem, filhinhas, a casa é grande,brinquem por aí afora.

“Brinquem!” Brincar! Como seriabom brincar! – refletiu com suaslágrimas, no canto, a dolorosamartirzinha, que até ali só brincara emimaginação com o cuco.

Chegaram as malas e logo:– Meus brinquedos! – reclamaram

as duas meninas.Uma criada abriu-as e tirou os

brinquedos.

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Que maravilha! Um cavalo depau!... Negrinha arregalava os olhos.Nunca imaginara coisa assim tãogalante. Um cavalinho! E mais... Que éaquilo? Uma criancinha de cabelosamarelos... que falava “mamã”... quedormia...

Era de êxtase o olhar de Negrinha.Nunca vira uma boneca e nem sequersabia o nome desse brinquedo. Mascompreendeu que era uma criançaartificial.

– É feita?... – perguntou extasiada.E, dominada pelo enlevo, num

momento em que a senhora saiu da salaa providenciar sobre a arrumação dasmeninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da

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criaturinha de louça. Olhou-a comassombrado encanto, sem jeito, semânimo de pegá-la.

As meninas admiraram-se daquilo.– Nunca viu boneca?– Boneca? – repetiu Negrinha. –

Chama-se Boneca?Riram-se as fidalgas de tanta

ingenuidade.– Como é boba! – disseram. – E

você, como se chama?– Negrinha.As meninas novamente torceram-se

de riso; mas, vendo que o êxtase dabobinha perdurava, disseram,apresentando-lhe a boneca:

– Pegue!Negrinha olhou para os lados,

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ressabiada, com o coração aos pinotes.Que aventura, santo Deus! Seriapossível? Depois, pegou a boneca. E,muito sem jeito, como quem pega oSenhor Menino, sorria para ela e para asmeninas, com assustados relanços deolhos para a porta. Fora de si,literalmente... Era como se penetrara nocéu e os anjos a rodeassem, e umfilhinho de anjo lhe tivesse vindoadormecer ao colo. Tamanho foi o seuenlevo que não viu chegar a patroa, jáde volta. Dona Inácia entreparou, feroz,e esteve uns instantes assim,presenciando a cena.

Mas era tal a alegria das hóspedasante a surpresa estática de Negrinha, etão grande a força irradiante da

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felicidade desta, que o seu duro coraçãoafinal bambeou. E pela primeira vez navida foi mulher. Apiedou-se.

Ao percebê-la na sala Negrinhahavia tremido, passando-lhe num relancepela cabeça a imagem do ovo quente ehipóteses de castigos ainda piores. Eincoercíveis lágrimas de pavorassomaram-lhe aos olhos.

Falhou tudo isso, porém. O quesobreveio foi a coisa mais inesperadado mundo – estas palavras, as primeirasque ela ouviu, doces, na vida:

– Vão todas brincar no jardim, e vávocê também, mas veja lá, hein?

Negrinha ergueu os olhos para apatroa, olhos ainda de susto e terror.Mas não viu mais a fera antiga.

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Compreendeu vagamente e sorriu.Se alguma vez a gratidão sorriu na

vida, foi naquela surrada carinha... Varia a pele, a condição, mas a

alma da criança é a mesma – naprincesinha e na mendiga. E para ambasé a boneca o supremo enlevo. Dá anatureza dois momentos divinos à vidada mulher: o momento da boneca –preparatório, e o momento dos filhos –definitivo. Depois disso, está extinta amulher.

Negrinha, coisa humana, percebeunesse dia da boneca que tinha uma alma.Divina eclosão! Surpresa maravilhosado mundo que trazia em si e quedesabrochava, afinal, como fulgurante

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flor de luz. Sentiu-se elevada à altura deente humano. Cessara de ser coisa – edoravante ser-lhe-ia impossível viver avida de coisa. Se não era coisa! Sesentia! Se vibrava!

Assim foi – e essa consciência a

matou. Terminadas as férias, partiram as

meninas levando consigo a boneca, e acasa voltou ao ramerrão habitual. Só nãovoltou a si Negrinha. Sentia-se outra,inteiramente transformada.

Dona Inácia, pensativa, já a nãoatenazava tanto, e na cozinha uma criadanova, boa de coração, amenizava-lhe avida.

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Negrinha, não obstante, caíra numatristeza infinita. Mal comia e perdera aexpressão de susto que tinha nos olhos.Trazia-os agora nostálgicos,cismarentos.

Aquele dezembro de férias,luminosa rajada de céu trevas adentrodo seu doloroso inferno, envenenara-a.

Brincara ao sol, no jardim.Brincara!... Acalentara, dias seguidos, alinda boneca loura, tão boa, tão quieta, adizer “mamã”, a cerrar os olhos paradormir. Vivera realizando sonhos daimaginação. Desabrochara-se de alma.

Morreu na esteirinha rota,

abandonada de todos, como um gato semdono. Jamais, entretanto, ninguém

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morreu com maior beleza. O delíriorodeou-a de bonecas, todas louras, deolhos azuis. E de anjos... E bonecas eanjos remoinhavam-lhe em torno, numafarândola do céu. Sentia-se agarrada poraquelas mãozinhas de louça – abraçada,rodopiada.

Veio a tontura; uma névoa envolveutudo. E tudo regirou em seguida,confusamente, num disco. Ressoaramvozes apagadas, longe, e pela última vezo cuco lhe apareceu de boca aberta.

Mas, imóvel, sem rufar as asas.Foi-se apagando. O vermelho da

goela desmaiou... E tudo se esvaiu em trevas.Depois, vala comum. A terra papou

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com indiferença aquela carnezinha deterceira – uma miséria, trinta quilos malpesados...

E de Negrinha ficaram no mundoapenas duas impressões. Uma cômica,na memória das meninas ricas.

– “Lembras-te daquela bobinha datitia, que nunca vira boneca?”

Outra de saudade, no nó dos dedosde Dona Inácia.

“– Como era boa para um cocre!...”

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[1] Surra de chicote durante nove dias. Nota da edição de1946.