monte o debate e os debates abordagens feministas para as ri

22
Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 424, janeiro-abril/2013 59 O debate e os debates: O debate e os debates: O debate e os debates: O debate e os debates: O debate e os debates: abordagens feministas para as abordagens feministas para as abordagens feministas para as abordagens feministas para as abordagens feministas para as relações internacionais relações internacionais relações internacionais relações internacionais relações internacionais Resumo Resumo Resumo Resumo Resumo: O artigo reúne e discute as abordagens feministas para as Relações Internacionais. O encontro entre os campos dos Estudos de Gênero e Relações Internacionais data de pouco mais de duas décadas, e representa um movimento simultâneo ao do surgimento do chamado “terceiro debate” em RI. Dessa forma, pretende-se, além de discutir a aplicação do gênero como categoria de análise para as relações internacionais, argumentar que essa aplicação está intimamente ligada às críticas às teorias convencionais de RI que surgem no contexto do terceiro debate. Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave: gênero; relações internacionais; teoria de Relações Internacionais; pós- positivismo. Copyright © 2013 by Revista Estudos Feministas. Izadora Xavier do Monte École des Hautes Études en Sciences Sociales Introdução Introdução Introdução Introdução Introdução A aproximação entre os Estudos de Gênero e as Rela- ções Internacionais 1 acontece no contexto do chamado “terceiro debate” em RI. Este artigo tratará da trajetória desse encontro a partir da perspectiva das RI. O objetivo será, além de construir um panorama das diversas abordagens feministas para as relações internacionais, demonstrar a forma pela qual o surgimento da reflexão pós-positivista em RI será responsável por abrir o espaço, na disciplina, necessário à aplicação do gênero como categoria de análise. Inicialmente, para construir essa trajetória, é preciso esclarecer quais são os termos do terceiro debate em RI, e como um dos seus polos, o pós-positivismo, representa uma ruptura com as formas anteriores de construção de conhecimento na área. De fato, esta é a principal característica do pós-positivismo: a crítica aos esforços teóricos anteriores em RI, desinteressados em incluir em suas análises as variáveis relativas à dimensão social dos fenômenos internacionais. 1 O uso de maiúsculas e minúsculas serve para diferenciar “relações internacionais“, gama de fenô- menos, de “Relações Internacio- nais“, disciplina ou campo de estudos.

Upload: joaororiz1257

Post on 08-Feb-2016

33 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 424, janeiro-abril/2013 59

O debate e os debates:O debate e os debates:O debate e os debates:O debate e os debates:O debate e os debates:abordagens feministas para asabordagens feministas para asabordagens feministas para asabordagens feministas para asabordagens feministas para as

relações internacionaisrelações internacionaisrelações internacionaisrelações internacionaisrelações internacionais

ResumoResumoResumoResumoResumo: O artigo reúne e discute as abordagens feministas para as Relações Internacionais. Oencontro entre os campos dos Estudos de Gênero e Relações Internacionais data de poucomais de duas décadas, e representa um movimento simultâneo ao do surgimento do chamado“terceiro debate” em RI. Dessa forma, pretende-se, além de discutir a aplicação do gênerocomo categoria de análise para as relações internacionais, argumentar que essa aplicaçãoestá intimamente ligada às críticas às teorias convencionais de RI que surgem no contexto doterceiro debate.Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave: gênero; relações internacionais; teoria de Relações Internacionais; pós-positivismo.

Copyright © 2013 by RevistaEstudos Feministas.

Izadora Xavier do MonteÉcole des Hautes Études en Sciences Sociales

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

A aproximação entre os Estudos de Gênero e as Rela-ções Internacionais1 acontece no contexto do chamado“terceiro debate” em RI. Este artigo tratará da trajetória desseencontro a partir da perspectiva das RI. O objetivo será, alémde construir um panorama das diversas abordagens feministaspara as relações internacionais, demonstrar a forma pelaqual o surgimento da reflexão pós-positivista em RI seráresponsável por abrir o espaço, na disciplina, necessário àaplicação do gênero como categoria de análise.

Inicialmente, para construir essa trajetória, é precisoesclarecer quais são os termos do terceiro debate em RI, ecomo um dos seus polos, o pós-positivismo, representa umaruptura com as formas anteriores de construção deconhecimento na área. De fato, esta é a principalcaracterística do pós-positivismo: a crítica aos esforços teóricosanteriores em RI, desinteressados em incluir em suas análisesas variáveis relativas à dimensão social dos fenômenosinternacionais.

1 O uso de maiúsculas e minúsculasserve para diferenciar “relaçõesinternacionais“, gama de fenô-menos, de “Relações Internacio-nais“, disciplina ou campo deestudos.

Page 2: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

60 Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013

IZADORA XAVIER DO MONTE

Assim sendo, o terceiro debate representa um desafioà hegemonia do pensamento chamado positivista, que seprolongou da década de 50 até meados dos anos 80 e,pode-se dizer, ainda compõe o centro da disciplina.Caracteriza o positivismo, em RI, a utilização de métodos epressupostos retirados do liberalismo clássico e da ciênciaeconômica para estabelecer leis gerais da políticainternacional. São duas as principais correntes positivistas:realistas e liberais. Ambas partem da consideração básicade que o sistema internacional se organiza anarquicamente,isto é, não há autoridade acima dos Estados. A soberania, anorma que garante aos Estados a autoridade última sobreseu próprio território, é a origem dessa forma de organização.Em consequência, realistas defendem que a anarquiainternacional, a necessidade de cada ator estatal garantir asua própria segurança na ausência de uma autoridadesuperior e central, resume as possibilidade de relacionamentoentre Estados, relegando-os a uma competição constantepor poder, medido em termos de quantidade de recursosmilitares e/ou econômicos, e controle territorial. Liberaisargumentam que, partindo dos mesmos pressupostos deracionalidade dos decisores e interesse na garantia desegurança da comunidade política, e mantendo a mesmapreocupação com questão de custos e benefícios da ação,ainda assim, em condições particulares e específicas,2 sãopossíveis certos laços de cooperação entre os países.

Desde o fim da Guerra Fria, no entanto, uma “viradaconstrutivista” responde pelo surgimento de abordagens quepropõem uma maior preocupação com a “construção socialda política mundial”. Os teóricos dessa virada construtivistacriticam, principalmente, o entendimento de correntes liberaise realistas do sistema internacional como um sistema quepode ser explicado a-histórica e a-socialmente, definido pelacompetição por recursos materiais e pela racionalidade dosdecisores estatais. Teóricos pós-positivistas, em RI, serãoaqueles que buscam entender as normas e instituições apartir das quais agem os Estados. Pós-positivistas cogitammesmo a existência de “identidades estatais”, construídasentre atores domésticos e externos, e que impactam astomadas de decisão em política externa.

Dessa forma, o terceiro debate, essencial para a com-preensão da forma pela qual gênero passa a ser uma categoriarelevante no pensamento em Relações Internacionais, é adiscussão entre positivistas e pós-positivistas, entre os defensoresde uma abordagem mais economicista e os de uma abor-dagem mais sociológica para a explicação dos fenômenosinternacionais.3

O artigo organiza-se da seguinte forma. Primeiro,sondaremos as discussões sobre a dimensão social do

3 Convencionalmente, dois outrosdebates marcariam a evolução dadisciplina. O primeiro seria entre

2 Nomes importantes do libera-lismo, Robert Keohane e JosephNye, criticam a visão realista porqueacreditam que ela não considerauma condição importante e espe-cífica do momento contemporâ-neo do relacionamento entre osEstados, que eles chamam de“interdependência complexa” – oaprofundamento e multiplicaçãode laços que conectam países,significando a diminuição emimportância dos assuntos militares,ou, pelo menos, uma hierarqui-zação mais difícil entre assuntosmilitares, econômicos, técnicos emesmo culturais. Ver KEOHANE eNYE, 1997.

Page 3: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013 61

O DEBATE E OS DEBATES: ABORDAGENS FEMINISTAS PARA AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

internacional e, a partir da demonstração das interconexõesentre dinâmicas da política internacional e uma “vida socialinternacional”, passaremos à análise das formas como ogênero é parte dessas dinâmicas, ao mesmo tempo sociais epolíticas. Ou seja, após a discussão das correntes pós-positivistas em RI, partiremos para o debate das formas pelasquais as normas de gênero estão presentes nas relações davida social internacional – as múltiplas abordagens feministasem RI. Esse é, propriamente, o ponto de encontro entre asRelações Internacionais e os Estudos de Gênero. O encontroreflete em si a complexidade dos dois campos e, veremos, énaturalmente impactado pelo momento no qual se encontramos Estudos de Gênero, aquilo que usualmente conhecemoscomo terceira onda feminista.

Finalmente, teremos um panorama teórico de apoioà afirmação de que o gênero é uma categoria de análisede grande valor para a disciplina de RI.

1 O social, o linguístico e as “viradas”1 O social, o linguístico e as “viradas”1 O social, o linguístico e as “viradas”1 O social, o linguístico e as “viradas”1 O social, o linguístico e as “viradas”na teoria de Relações Internacionais –na teoria de Relações Internacionais –na teoria de Relações Internacionais –na teoria de Relações Internacionais –na teoria de Relações Internacionais –o terceiro debateo terceiro debateo terceiro debateo terceiro debateo terceiro debate

Nas Relações Internacionais, convencionou-sechamar “construtivistas” os primeiros autores que seidentificavam como teóricos da construção social da políticamundial. Os principais nomes desse primeiro momento doterceiro debate são Alexander Wendt, Nicholas Onuf eFriederich Kratochwil. No entanto, a partir da publicação dotrabalho desses autores, as críticas aos pressupostos dopositivismo em RI multiplicam-se. O pós-positivismo emRelações Internacionais se torna mais complexo e o termo“construtivista”, disputado.

Analisar as obras de Wendt, Onuf e Kratochwil servetanto para esclarecer o que é construtivismo, quanto paraentendermos os limites entre positivismo e pós-positivismo.Partimos desses três autores, em adição, para desenharmosos contornos que distinguem as diferentes abordagens pósentre si e superar a identificação entre pós-positivismo econstrutivismo, comum na literatura de RI.

Para fugir à tendência geral, entre cientistas de RI, deestabelecer o construtivismo como “rubrica geral” para umavariedade de abordagens pós, recorremos a Maja Zehfuss.4

Zehfus rejeita essa tendência. Em sua análise dos principaisnome do construtivismo, a autora tenta esclarecer de queforma o construtivismo não seria a epítome da reflexão pós-positivista, mas um meio-termo entre as abordagensracionalistas e posições ainda mais radicais – pós-modernos,teoria crítica, pós-colonialistas e mesmo feministas.

“idealistas“ (ou institucionalistas) erealistas, no pós-Primeira Guerra.O maior exemplo da primeiracorrente seria o presidenteestadunidense Woodrow Wilson.Diante dos efeitos devastadores daGrande Guerra, Wilson defendiauma versão do federalismokantiano, defendendo que, peloprimado da racionalidade,organizando os líderes mundiaisem uma instituição como a Ligadas Nações, chegaríamos ao fimdos grandes conflitos entreEstados. E.H. Carr, junto com HansMorgenthau, seriam nomes-chavedo realismo. Em oposição a Wilson,estes argumentavam que a buscapor poder e o autointeresse, ascaracterísticas básicas da políticainternacional, tornam fútil atentativa de pôr um fim definitivoaos conflitos internacionais. Oimportante seria o gerenciamentodesses conflitos a partir de umaanálise informada pelo reconheci-mento dessas característicasbásicas. Definir o segundo debateé mais controverso. Ele pode serentendido como a controvérsiametodológica entre defensores demétodos quantitativos e os defen-sores da historiografia comométodo próprio das RI. Estesúltimos são comumente identifi-cados entre os membros da EscolaInglesa de RI, cujos vértices sãoHedley Bull e Martin Wight. Noentanto, o segundo debate é maiscomumente caracterizado comoa disputa entre neoliberais e neor-realistas, que atinge seu ápice nosanos 1980. Seus principais nomessão o do neorrealista KennethWaltz e o do neoliberal RobertKeohane. São estas duas últimascorrentes que as feministasidentificam como atualmentehegemônicas na disciplina. Apesarde, como dito, terem divergidosobre os resultados da interaçãoentre Estados e sobre o significadode instituições e da cooperaçãointernacional, o fato de que asduas correntes compartilhampressupostos faz com o que osegundo debate seja frequente-mente descrito como “síntese“ –não propriamente um debate,mas uma convivência entre duas

Page 4: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

62 Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013

IZADORA XAVIER DO MONTE

Ainda que a posição de Zehfuss, explicitamenteinfluenciada pelo pensamento de Jacques Derrida, sejapouco comum entre os teóricos de RI, ela tem a vantagemde esclarecer como o terceiro debate é amplo, estandonessa amplitude incluídas as feministas, e não está restritoao pensamento daqueles primeiros autores construtivistascitados. Logo, seguindo a lógica de Zehfuss, a explicaçãodo pensamento dos construtivistas é apenas plataforma paraa compreensão de outros temas e abordagens pós-positivistas, sempre em perspectiva com a compreensão finalque queremos formar sobre gênero e relações internacionais.

Alexander Wendt inaugura o construtivismo com aelaboração do conceito de identidades estatais. Estas seriampensadas a partir de duas premissas do interacionismosimbólico: a) atores agem com base nos significados queobjetos e outros atores oferecem a eles; b) esses significadosnão são inerentes, mas resultado do processo de interação.Dessa forma, a anarquia internacional não seria umaconsequência necessária do sistema de autoajuda, mas umainstituição desenvolvida e sustentada pelo processo dorelacionamento entre Estados. A partir da construção deidentidades, Estados definem o tipo de anarquia e o ambientede segurança que vão prevalecer nas relações internacio-nais. O neorrealismo defende que o principal componenteda soberania é a autoajuda: devido à ausência de autori-dade central, o sistema internacional assemelha-se ao estadode natureza hobbesiano, em que cada unidade deve buscarautossuficiência e acúmulo de poder, a fim de garantir suaprópria sobrevivência. No entanto, Wendt defende que, naformação da soberania, mais variáveis estão incluídas doque apenas o cálculo racional cru da sobrevivência e autos-suficiência. O processo histórico de relacionamento entreEstados permite que interesses estatais e relacionamentosinterestatais se sofistiquem. Outros níveis de anarquia sãopossíveis, além do hobbesiano. Uma das possibilidades é a“anarquia kantiana”, algo como o relacionamento EUA-Canadá: corresponde a uma identificação coletiva, na qualinteresses são calculados com base em sentimentos de solida-riedade, comunidade, lealdade e maior nível de agregação.“Identidades autointeressadas não vão ser necessariamentesubstituídas por identidades coletivas, mas a cooperaçãopode modificar a identidade dos atores, além da estruturade ‘recompensas’, e, em consequência, o ambiente de segu-rança prevalecente”.5 Algumas abordagens que veremos napróxima seção defendem que o gênero influencia a formaçãoda identidade estatal, de maneira análoga ao que acontececom os indivíduos, servindo à explicação de determinadasformas de relacionamento entre os Estados.

explicações que podem serharmonizadas.4 ZEHFUSS, 2002.

5 WENDT apud ZEHFUSS, 2002, p.15.

Page 5: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013 63

O DEBATE E OS DEBATES: ABORDAGENS FEMINISTAS PARA AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Outro importante autor, um dos primeiros a subscreverao projeto de elaboração de uma “teoria social de RelaçõesInternacionais”, é Nicholas Onuf. Para Onuf,6 entender aconstrução social da política mundial passa pela aplicaçãode uma metodologia genealógica. De acordo com ospreceitos de Michel Foucault, seria preciso uma análise daformação histórica do discurso, do conhecimento e do poderno campo das RI, o que Onuf busca fazer em seu livro Worldof Our Making. O principal problema para o autor é explicaro funcionamento da realidade social das relações interna-cionais sem uma ordem centralizada. Para isso, Onuf sepropõe à análise das regras que constituem o sistema interna-cional, baseando-se no trabalho de Ludwig Wittgenstein sobrejogos de linguagem e a relação entre linguagem e teoriasocial. Para Onuf, existem três tipos de regras sociais, a quecorrespondem três tipos de atos de fala: instrução, direção ecompromisso; a que correspondem atos de fala assertivos,diretivos e de compromisso, respectivamente. Os primeirostratam de informações sobre como são as coisas: a mesa éde madeira, o carro está parado. Os segundos são comandose ordens: suba na mesa, dirija o carro. As últimas falam depromessas e recompensas: você ganhará sobremesa se tirara mesa, ou será multado, caso vá com o carro acima dolimite de velocidade estabelecido.

Para dar sentido às relações internacionais, é precisopensar que os atos de fala, e as regras que dele decorrem,são usados para estruturar nossas relações e agir na soluçãode problemas de ordem política. Dessa forma, o funciona-mento descentralizado do sistema internacional é explicadopor três possibilidades de organização, que seguem ascategorias anteriormente expostas: hegemonia, heteronomiae hierarquia. A hegemonia é um caso de instrução, no qualprincípios são promulgados e manipulados por alguns atores,monopolizando o significado das regras, subsequentementeimpostas aos atores subordinados; a hierarquia é uma formade organização derivada de regras diretivas, associadas aum sistema jurídico, formal, de normas internacionais.Heteronomia trata de um tipo de organização baseada empromessas e compromissos. A heteronomia é particularmenteinteressante para Onuf. Formalmente, oferece uma aparênciadialógica igualitária para o relacionamento, mas, de fato,encobre a distância entre a suposta autonomia dos atores nocenário internacional – todos são igualmente soberanos – ea subordinação e superordinação que organiza o sistema –os recursos a que cada Estado tem acesso são distintos. Olharas relações de promessas e compromissos entre os Estadospermitira o estudo dessa distinção. Para Onuf, a políticamundial é exatamente o estudo das formas pelas quaispotências mantêm seu poder pelo recurso não apenas à

6 ONUF, 1989.

Page 6: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

64 Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013

IZADORA XAVIER DO MONTE

violência, mas também a símbolos – é essa relação entrematerialidade e imaterialidade do poder a base daheteronomia das relações internacionais. Mais uma vez,retomaremos a importância dos símbolos e sua relação como exercício do poder quando falarmos dos feminismos em RI.

Finalmente, Frederich Von Kratochwil. Kratochwil éparticularmente crítico à adoção da noção de racionalidadeinstrumental por neoliberais e neorrealistas. Tentativas deeliminar elementos de valoração e interpretação, para tornaras análises mais objetivas, levariam a uma má conceituaçãoda práxis humana, o que exclui das análises questõesinteressantes sobre os fins que se buscam na própriarealização dessas análises.

Kratochwil defende, em linha com a teoria da açãocomunicativa, de Jürgen Habermas, um critério pararacionalidade a partir de seu uso comum, em oposição aoconceito econômico. Uma ação poderia ser dita racionalquando fosse possível justificar agir de certa maneira, comocomumente justificamos algo ao dizer que tal ação “fazsentido”; incluindo, nessas possíveis justificativas,considerações normativas. Definir algo como racional seriaendossá-lo em termos normativos, reconhecer a existênciade um sentimento moral que o permite. Kratochwil buscacriticar o objetivismo das abordagens positivistas de RI aocompreender a política como ação significativa, em vez depuramente instrumental.

Contudo, para que a ação seja significativa,justificável, ela precisa acontecer em um contexto intersubjetivocompartilhado, mediado por regras e normas. Estas sãoessenciais na abordagem de Kratochwil. No caso deproblemas sociais, não há soluções logicamente necessárias;todas as soluções são afirmações de validade construídaspor meio do discurso. A questão principal é entender comoregras e normas são convincentes, como elas conseguemreunir apoio – para isso, Kratochwil explora formas jurídicasde arrazoamento. Sua conclusão é de que, não por cálculoquase matemático, mas apenas quando aproximados deum ponto de vista moral, argumentos de fato são acordadose transformados em soluções, caso da prática política.

Narrativas, como justificativas para certos cursos deação, são importantes para entender a política, sob esseponto de vista. De acordo com Kratochwil, narrativaslocalizam os temas em questão, no que diz respeito aossignificados compartilhados, oferecendo as ligações para aargumentação. “Um fato supostamente objetivo não é algosendo descrito, é antes a validade intersubjetiva de umacaracterização com a qual pessoas razoáveis podemconcordar”.7 Problemas políticos não têm apenas umasolução possível, ainda que sejamos capazes de reconhecer

7 ZEHFUSS, 2002, p. 17.

Page 7: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013 65

O DEBATE E OS DEBATES: ABORDAGENS FEMINISTAS PARA AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

argumentos mais ou menos persuasivos – a escolha entre unse outros tampouco é apenas dependente de cálculos deutilidade individual. Normas e regras, organizadasnarrativamente, estão sempre presentes, condicionamestratégias e definem o critério de racionalidade, porqueestabelecem os significados intersubjetivos que permitem queatores dirijam suas ações uns aos outros, comuniquem-se,critiquem e justifiquem-se. A crítica feminista em RI, comoveremos, está em linha com o pensamento de Kratochwil etrabalha exatamente sobre o ponto de interação entre o usodo conceito de racionalidade em RI e narrativas sobre arelação entre política, masculinidade e feminilidade.

Não obstante o peso oferecido por esses autores àdimensão social do internacional, como afirmado inicial-mente, Zehfuss critica-os porque, para ela, eles comprome-tem a posição de ruptura que dizem ter em relação à teoriaconvencional de RI na medida em que ainda aceitam apremissa de uma realidade material que interage com ossistemas de significado. A aceitação de uma realidadeanterior atenuaria a crítica construtivista e abriria espaço àreafirmação de posições tipicamente positivistas sobre oautointeresse e os cálculos racionais dos decisores comodados materiais da realidade, realidade resistente asignificados construídos e que as teorias de RI devem analisarisenta e objetivamente.

Baseada em Derrida, a autora afirma que o que faltaao pensamento construtivista, em relação às demais aborda-gens pós, é voltar-se à critica do próprio conceito de realida-de, dessa realidade material e anterior, impermeável àconstrução social. Afirmações sobre o que define a realidadeserviriam apenas para naturalizar aquilo que é construídosocialmente. As próprias discussões, em RI, sobre o que temprioridade – a cooperação ou o conflito, o cálculo racionalou normas internacionais – seriam uma demonstração daimpossibilidade de declarações absolutas sobre o conteúdoda realidade.

Contudo, o que Zehfuss pretende como rupturaprincipal entre positivismo e pós-positivismo não é a negaçãoda realidade, mas a compreensão de que mesmo afirmaçõesmais básicas sobre ela estão imersas em poder.Representações não são mais importantes que o real e o realnão pode ser construído a partir do que desejamos. Porque ocontexto, no entanto, é ilimitado, ele não pode ser controlado.Esses são os termos do debate para aqueles que, segundoZehfuss, constituem o polo oposto ao racionalismo.

Afirmações sobre “levar em conta” a realidade, nessecaso, são problemáticas, porque obscurecem nossoenvolvimento com sua construção, permite que se atribuaresponsabilidade às circunstâncias. Quando a realidade é

Page 8: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

66 Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013

IZADORA XAVIER DO MONTE

tratada como dado, a questão se torna aplicar conhecimento.Em Derrida, o que está em jogo, quando se tomam decisõessobre o que é a realidade, é a responsabilidade. Sem o apeloà realidade, toda escolha é uma situação que não ofereceuma única resposta, racional e satisfatória. A questão daresponsabilidade surge quando experimentamos o limite danossa habilidade de controle, o limite do nosso conhecimen-to, o limite da nossa capacidade de satisfazer demandaséticas contraditórias. Em defesa do pós-modernismo, Zehfussafirma que indivíduos têm dificuldade de tratar com essasabordagens porque elas interferem com padrões arraigadosde pensamento, não oferecem regras claras para ocomportamento, nem segurança suficiente. Para Derrida, ainsegurança é positiva e torna a responsabilidade possível.Os pós-modernos, na linha derrideana, são os antagonistasdos racionalistas ao antagonizarem a segurança oferecidapor padrões racionais – segui-los, ou declarar estar agindocientificamente, é fugir da responsabilidade que temos, comoconstrutores da realidade.

Em RI, são importantes teóricos pós-modernos RichardAshley, R.B.J Walker e David Campbell,8 cujos projetos teóricosestão na avaliação das teorias de RI “como discursos depoder ou modos de interpretação sem os quais o poder nãopode ser exercido, e não como representações de um mundoreal, externo a esses discursos”.9 As distinções teóricasconstruídas entre o doméstico e o internacional, entre aanarquia e o Estado são vistas não apenas como descrições,mas como meios de legitimação das práticas de guerra,hegemonia, balança de poder, entre outros, distanciando-nos de quaisquer ações efetivas no sentido de construçãode diferentes relações entre Estados: por exemplo,fortalecendo o direito internacional.

Ashley questiona as dicotomias às quais recorremosem nossas explicações sobre as RI, baseadas em polos deoposição hierárquicos usados para justificar a ação. Aquestão das dicotomias hierarquizantes é muito cara tambémàs feministas, que acreditam que o pensamento modernoocidental, fundamentado nessas oposições, constróisignificados e justifica-se racionalmente pelas interrelaçõesestabelecidas entre diferentes pares de opostos. A distinçãomasculino/feminino tomaria parte, com frequência, dessasconstruções de significado. As implicações dessas relaçõessão discutidas na próxima seção.

Outra crítica pós-moderna que também permite aaplicação do gênero é a discussão sobre a “prática heroicado Estado”. Segundo Ashley, os opostos binários tornam-seexplicações racionais apresentadas como lógicas e naturaisa partir da sua localização dentro de estruturas narrativas. Aprincipal, no caso das RI, seria a diferenciação anarquia/

8 Outro importante nome, nãocitado aqui, porque se posicionaum pouco mais distante das teoriasque têm pontos de contato como feminismo, é James Der Derian.Der Derian segue bem de perto alinha derrideana de estudo dasrepresentações – para ele, as RIacontecem, cada vez mais, emespaços virtuais. A relação entrerealidade e simulação tem setornado mais complexa, principal-mente nos campos da guerra eda violência. As guerras do Golfoe demais intervenções internacio-nais em andamento, operadas àdistância, seriam as principaisinstâncias dessas dinâmicas. VerJames DER DERIAN, 1992.9 Nizan MESSARI e João PontesNOGUEIRA, 2005, p. 196.

Page 9: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013 67

O DEBATE E OS DEBATES: ABORDAGENS FEMINISTAS PARA AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

soberania pela afirmação da soberania estatal como espaçode segurança e sobrevivência, em contraste com o perigo eviolência do extraestatal, anárquico. O Estado constrói a ideiade segurança dentro do seu espaço doméstico por essamanobra discursiva, essa narrativa “heroica”, que servetambém para negar as diversas violências estruturais queexistem no âmbito do Estado e do qual ele é com frequênciaprotagonista. De maneira semelhante, Campbell se preocupacomo o Estado estabelece sua identidade pelo produçãoda diferença em relação ao outro a partir do estabelecimentode fronteiras. A “produção” do outro como tal seria parteintegrante da política externa dos Estados nacionais.

Outra corrente pós-positivista, na linha da rupturaradical que propõe Zehfuss, mas com suas própriascaracterísticas, é a corrente tributária do pensamento críticoda Escola de Frankfurt. Atualização do pensamento marxista,buscando fugir das dimensões mais deterministas eeconomicistas dessas análises, a teoria crítica em RI vê orealismo como uma teoria tradicional de solução deproblemas. Os principais nomes da teoria crítica em RI sãoRobert Cox e Richard Linklater, para quem “a falta de interessedo realismo por processos de mudança reflete seuconservadorismo e sua preferência por uma ordem mundialdominada por um pequeno número de Estados poderosos”.10

Como outras teorias pós-positivistas, teóricos críticos em RIafirmam que esse posicionamento histórico e político dorealismo é negado por ele mesmo no momento de definiçãode seus pressupostos de racionalidade e análise objetivada natureza do internacional. Em oposição, teóricos críticosestariam preocupados em estudar os processos de mudançae produzir análises que ajudem revisões do sistemapromotoras de relacionamentos mais justos e igualitários.Os teóricos críticos em RI procedem, dessa forma, àaplicação do conceito de hegemonia, de Antonio Gramsci,às RI; ao foco nas dinâmicas da globalização, datransnacionalidade da produção; ao pensamento sobreas formas de estabelecer princípios éticos universais quepossam guiar a ação dos Estados. Pensar a mudança, oestabelecimento de princípios éticos para o relacionamentoentre Estados e as dinâmicas transnacionais são temas quevoltaremos a discutir, porque estarão presentes também nasdiscussões sobre gênero e RI.

Concluindo a análise das principais abordagens pós-positivistas em RI, vimos que o posicionamento de Zehfussesclarece muito a respeito do pensamento dos principaisnomes do construtivismo em RI. Contudo, discordarei daautora. Não considero, da mesma forma que ela, a posiçãode autores como Onuf, Wendt e Kratochwil como uma áreacinzenta entre o positivismo e o pós-positivismo. O compro-

10 MESSARI e NOGUEIRA, 2005, p.141.

Page 10: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

68 Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013

IZADORA XAVIER DO MONTE

misso, em alguma medida, com uma realidade a priori torna-se ponto de fratura inegociável sob o prisma derrideano deZehfuss. Para mim, no entanto, a quebra com o racionalismoestrito de neoliberais e neorrealistas não requer, necessaria-mente, o alinhamento com o contextualismo radical deDerrida, a partir do qual Zehfuss constrói sua crítica eestabelece sua classificação. Do ponto de vista mais amploda disciplina, as “viradas” que inauguram o terceiro debatesão tributárias do pensamento de construtivistas que,inevitavelmente, estão junto às demais correntes “pós” doterceiro debate. Se alguma concessão a uma realidadematerial indisputável é feita, marcando uma distinçãoimportante entre construtivistas, pós-modernos e críticos, poroutro lado, a crítica ao racionalismo e ao economicismo reúnede novo todos esses autores na mesma linha de preocupa-ções. É importante entender que nem todos os pós-positivistassão construtivistas. Para isso, no entanto, não é necessárioprivar os construtivistas do seu espaço no lado “pós” doterceiro debate.

Estabelecida a importância dos pós-positivistas emRI, seu lugar na disciplina e sua relação com as correntesmais convencionais, cabe sondar as principais abordagensfeministas em RI. Estas buscam, em desenvolvimento paraleloao dos pós-positivistas, relacionar o gênero às relaçõesinternacionais. A próxima seção procura mostrar como a teoriafeminista vai fazer parte das viradas sociológica e linguísticadas RI. Feministas acabam inevitavelmente do lado pós-positivista do debate por priorizarem, da mesma forma queconstrutivistas, pós-modernos e teóricos críticos, as relaçõesentre poder e conhecimento e a importância da linguagem,regras e identidades para as relações internacionais. A tudoisso acima discutido, adicionaremos agora umaespecificidade – a aplicação do gênero como categoria deanálise, incluindo no campo das RI uma miríade de temasaté recentemente ignorados.

2 Feminismos e RI2 Feminismos e RI2 Feminismos e RI2 Feminismos e RI2 Feminismos e RI

Abordagens que usam o gênero como categoria deanálise no estudo das relações internacionais procuram, nasinstituições e normas do sistema internacional, explicaçõespara a assimetria nas relações entre os gêneros e instânciasde constituição de identidades de homens e mulheres. Emadição, as abordagens feministas têm em comum o fato deincluir no seu projeto científico uma dimensão política – nãoapenas de superação da opressão feminina, mas tambémde construção de uma ordem internacional mais justa, naqual hierarquias, de gênero, classe ou raça, não estejampresentes. Métodos e foco das análises variam – o uso do

Page 11: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013 69

O DEBATE E OS DEBATES: ABORDAGENS FEMINISTAS PARA AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

gênero como categoria de análise continua sendo o fio deligação entre elas.

V. Spike Peterson e Anne S. Runyan11 identificam duaspossibilidades de trabalhar o gênero como categoria deanálise nas RI. A primeira é chamada posição das mulheres;a segunda, poder do gênero. A primeira é própria dasfeministas que primeiro se engajaram na reflexão sobre asmulheres em RI, ou melhor, na reflexão sobre a ausência emarginalização das mulheres nos espaços consideradospelas teorias tradicionais como próprios da disciplina. Essasforam as feministas que passaram a buscar as mulheres,indivíduos, nas margens e nos espaços anteriormente impen-sados e impensáveis como parte das relações internacionais.Segundo Peterson e Runyan, essas seriam as feministas deponto de vista.

As autoras, contudo, apontam que a maior parte dasfeministas emprega o pós-positivismo para não apenaslocalizar as mulheres em suas posições marginais e/ousubordinadas, mas também para demonstrar como essasposições estão ligadas ao poder do gênero – gênero comoum sistema de símbolos, empregados para interpretar arealidade e fixar significados, servindo, consequentemente,não apenas como uma categoria de classificação e formade diferenciação de indivíduos, mas também como um guiapara as nossas ações. Essa conceituação de gênero invertea visão tradicional sobre a relação entre indivíduos e suasidentidades de gênero. O senso comum compreende queindivíduos agem de determinadas formas como resultado desuas características biológicas e anatômicas. No entanto,quando pensamos na diferenciação entre masculino efeminino não como resultado da biologia, mas como umsistema de símbolos sociais definidores do masculino oufeminino, passamos a entender que são estes símbolos,socialmente interpretados como decorrentes dos sexosbiológicos, que impelem os indivíduos a se comportarem demaneira socialmente entendida como condizente com suaanatomia. Quando compreendemos que a diferenciaçãoentre masculino e feminino não é apenas uma característicaindividual, mas um conjunto de normas e significados queperpassa os indivíduos, ao mesmo tempo que oferece a esseselementos para a construção de suas identidades, podemosentender o gênero como categoria também presente emdiscursos e instituições, e em diferentes níveis da vida social –inclusive no nível internacional. É exatamente o gênero comocategoria para além do individual o foco das feministaspreocupadas com o poder do gênero, ou, como dizemPeterson e Runyan, “com a construção política dos gêneros”.12

Essas feministas estarão interessadas nos movimentos dapolítica internacional que contribuem na construção e

11 PETERSON e RUNYAN, 1999.

12 PETERSON e RUNYAN, 1999, p.26-27.

Page 12: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

70 Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013

IZADORA XAVIER DO MONTE

manutenção de formas de pensamento marcadas peladicotomização masculino/feminino e nas normas e instituiçõesque se estruturam a partir dessa dicotomização, servindo debase para a organização da atividade social e modelo parainterpretação da realidade, além de guia paracomportamentos individuais.

A construção política dos gêneros implica umavalorização superior do masculino e das atividadesmasculinas e resulta em uma organização da atividadesocial e política hierarquizada, fazendo com queidentidades e atividades que são concebidas comopróprias dos homens, ou de características masculinas,tenham maior prestígio, diante de identidades e atividadesassociadas às mulheres ou a características tidas comofemininas. Essa hierarquização é uma construção política,na medida em que distribui poder, autoridade e recursos deforma a privilegiar os homens (ou indivíduos associados àmasculinidade) – o acesso das mulheres aos recursos, aopoder e à autoridade é, por isso, desigual e desprivilegiado.

Dessa forma, vemos que, apesar da diferenciaçãodidática feita por Peterson e Runyan, o poder do gêneroestá intimamente ligado à posição das mulheres. Esse seriao caso com a exclusão tradicional das mulheres da altapolítica, espaço entendido como loci por excelência dasrelações internacionais. A construção dessa esfera comoesferas de alto prestígio estaria intimamente ligada à suaconstrução como uma esfera tipicamente masculina. A difícilinclusão das mulheres nessa esfera, fato ainda expressivonas RI, seria resultado dessas dinâmicas.13

As diferenças de gênero no acesso a recursos, podere autoridade afetam a posição das mulheres na sociedade;por outro lado, o poder do gênero se relaciona às maneiras,pouco comuns em RI, de pensar como nossas formas de vere interpretar o mundo estão delimitadas pelo gênero. Certasnormas e instituições são responsáveis pelas formas comosomos socializados nas hierarquias de gênero, comointernalizamos pressupostos culturais e os definimos comoparte de nossas identidades. O controle social que garanteessa internalização é feito pela família, pelas leis, pelomercado, pela coerção física e, também, pela organizaçãodo sistema internacional. Estereótipos naturalizam e justificamestruturas sociais hierarquizadas e são políticos na medidaem que significam a reprodução de relações de poder.Gênero é importante não apenas porque define as relaçõesde poder entre homens e mulheres, mas porque tambémcondiciona o nosso pensamento a funcionar a partir dedicotomias hierarquizadas que legitimam formas múltiplasde dominação em diversas esferas sociais. É a ideia depoder do gênero, afinal, que fará a ligação entre os Estudos

13 As mulheres representam hoje,aproximadamente, 7,3% doschefes de Estado, de acordo comrelatório de 2010 das NaçõesUnidas – The World’s Women 2010:Trends and Statistics, diponível em:h t tp : / /uns ta t s .un .o rg /unsd /e m o g r a p h i c / p r o d u c t s /Worldswomen/WW2010pub.htm,acesso em: 21 abr. 2011.

Page 13: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013 71

O DEBATE E OS DEBATES: ABORDAGENS FEMINISTAS PARA AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

de Gênero e as Relações Internacionais, como veremosagora. Categorias pós-positivistas já trabalhadas na seçãoanterior serão agora vistas pelo prisma das abordagensfeministas para as RI: abordagens que adaptam aaplicação do gênero como categoria de análise às identi-dades estatais, normas do sistema internacional e críticasda construção teórica e elaboração de conceitos.

Segundo J. Ann Tickner, normas de masculinidadeestão presente na definição das identidades e, consequente-mente, dos comportamentos estatais. Para ela, o conceito demasculinidade hegemônica, referente a certas “ideologiasde virilidade”, tem muito a explicar sobre decisões em políticaexterna. A masculinidade hegemônica é “um tipo ideal demasculinidade, repleto das características tidas comomasculinas, mas às quais poucos homens de fato se confor-mam”.14 Estamos falando das características do modeloocidental de masculinidade baseado na agressão, competi-tividade, afirmação da autonomia. Curiosamente, todas essascaracterísticas se alinham com alguns conceitos centrais paraa explicação do comportamento estatal das abordagenspositivistas: o conflito como resultado da busca autointeres-sada por segurança, o equilíbrio de poder como resultadoda competição entre Estados, a definição de anarquia comoa característica central do sistema baseado na soberania(autonomia dos Estados em relação a uma autoridade central).

Tickner justifica essa identificação a partir dapresença historicamente majoritária de homens nas altasesferas decisórias. De fato, sua sugestão para modificar asdinâmicas conflitivas das RI está na busca pela inclusãode um ponto de vista distinto na produção de teoria e naformulação política, o que seria diferente da defesa dainclusão de mulheres individuais.

A progressiva, ainda que tímida, inclusão de mulheresnas altas esferas decisórias, nas últimas décadas, demonstraque a presença delas nesses espaços não implicanecessariamente uma alteração dos comportamentosestatais. Como apontam Peterson e Runyan, é comum quemulheres em posições de poder adotem uma atitudemasculinizada para se adaptar melhor às demandas docontexto da alta política, o que apenas reforça a ideia deque gênero não é apenas um atributo pessoal, mas tambémde instituições. Logo, a questão seria incluir um diferente pontode vista, e não apenas mulheres. Apesar de reconhecer essadistinção, ela será, em Tickner, bastante frágil. Na esteira datradição maternalista de Sara Ruddick,15 Tickner defende que,historicamente, a socialização feminina faz com que mulheresestejam mais ligadas ao comunitário, à cooperação, à nãohierarquização. Tickner coloca tanto peso sobre asocialização que a relação entre ponto de vista feminino e

14 TICKNER, 2001, p. 15.

15 Ver Sarah RUDDICK, 1992.

Page 14: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

72 Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013

IZADORA XAVIER DO MONTE

indivíduos mulheres se torna praticamente inexistente –ignorando a dinâmica de inclusão “generificada” descritapor Peterson e Runyan.

Em adição, afirmar como feminino aquilo que écooperativo e não hierárquico pretende valorizar o femininosocialmente, mas também serve para reificar estereótiposfemininos tradicionais, invisibilizando todas as experiênciasfemininas (e mesma as masculinas) que não correspondemao ponto de vista que foi estabelecido como “próprio”daquele gênero. A crítica que a autora sofre das própriasfeministas em RI vai ao encontro do pensamento, impactadopelo pós-estruturalismo, da terceira onda feminista. Emadição, essa crítica demonstra que, apesar de terem sidoimportantes como ponto de partida para a reflexão sobregênero em RI, as abordagens de posições das mulheres, ouponto de vista, precisam ser acompanhadas por reflexões arespeito do poder do gênero.

Um outro grupo de feministas também acompanha oinício do pensamento sobre gênero em RI. Feministas liberaistêm um foco na reversão das desigualdades e hierarquiasmuito mais prático que teórico. De acordo com essa corrente,a opressão das mulheres é função das barreiras legais doEstado, que impedem a realização de direitos individuais.O surgimento das demandas de feministas liberais, fora deRI, é ligado às revoluções burguesas do século XVIII,buscando, porém, estender às mulheres os direitos políticose civis restritos apenas aos homens. Essa busca por extensãodos direitos masculinos às mulheres faz com que liberaisvejam o Estado como agente potencial de promoção daigualdade. Apesar de ele se engajar em práticasdiscriminatórias, seria a autoridade mais apropriada paragarantir os direitos das mulheres.

O contexto histórico de seu surgimento responde peloscompromissos epistemológicos positivistas que as feministasliberais assumem. Com efeito, elas perturbam a classificaçãoaqui proposta, pois compartilham uma série de pressupostospositivistas e creem que a constituição das RI como ciênciatem sido enviesada, mas que a crítica à teorica convencionalnão precisa ser tão aprofundada quanto propõem os pós-positivistas: a adição das mulheres ao quadro epistemológicodo pensamento convencional seria suficiente como “correçãode rumo” das RI.

Feministas radicais vão se opor às liberais e suasafirmações de que as únicas barreiras presentes àemancipação feminina são as legais. Ao defenderem que aopressão feminina seria uma das primeiras, mais profundas edifundidas formas de opressão, as radicais veem opatriarcado como um sistema de opressão que permeia asinstituições da sociedade para muito além da esfera legal.

Page 15: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013 73

O DEBATE E OS DEBATES: ABORDAGENS FEMINISTAS PARA AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Radicais e liberais também se diferenciam pelo fato de,enquanto as últimas afirmam a igualdade entre os gêneros,a ênfase das primeiras está na diferença, e na necessidadede valorização das características e experiências femininas,tradicionalmente inferiorizadas em sociedades patriarcais –argumento próximo ao já comentado “ponto de vista” deTickner. Enquanto feministas liberais buscam oportunidadesiguais para mulheres ascenderem a situações de privilégiodefinidos pela masculinidade, feministas radicais priorizama autonomia e a liberação das mulheres em relação a normasmasculinistas e heteronormativas – ou seja, desafiam o poderdo gênero dentro do Estado e do sistema interestatal. A seuver, no controle dos homens sobre o corpo das mulheres estáa raiz da situação de opressão e desprivilégio. Tanto o controleideológico (por meio de leis, como as que organizam ocasamento) quanto prático (pela violência doméstica esexual) sobre as mulheres seriam expressões de princípiosmasculinistas que dependem da e sustentam a inferiorizaçãodo feminino, enquanto valorizam o masculino e garantemaos homens melhores lugares na sociedade.

Radicais dedicam-se, logo, à investigação sobrecomo as experiências e atividades associadas às mulherese ao corpo feminino são desvalorizadas e como a violênciasexual é uma forma de controle das mulheres. Fenômenospróprios das RI também estão envolvidos nesse processo.Cynthia Enloe,16 por exemplo, constrói uma taxonomia doscasos de estupro militar e analisa as formas pelas quais oestupro se liga aos conflitos étnicos, a fim de ressaltar asrelações existentes entre a violência sexual e a internacional.

O projeto político das radicais está na defesa dasuperioridade cultural dos valores femininos. Radicais afirmamque essa valorização carrega em si um potencialtransformador da própria sociedade. “Elas argumentam emfavor das ‘formas femininas de conhecer’. Enquanto opensamento patriarcal é caracterizado por divisões eoposições, as formas femininas de conhecer têm procuradoconstruir uma visão de mundo baseada em relações econexões”.17 Deparamo-nos, dessa forma, com uma temáticapós-positivista. Assim como em Kratochwil, estamos colocandoem discussão o que foi definido como universal e unívoco napolítica e na ciência. No entanto, aqui, a base do argumentode que existem formas distintas de conhecer e tomar decisõessão as teorias psicanalíticas que usam o gênero comocategoria de análise. De acordo com essas teorias, meninossão socializados para visões objetivistas do mundo, a partirda diferenciação e separação desses de suas mães,enquanto meninas se mantêm identificadas com a figuramaterna, conformando suas “formas de conhecer” a partir derelações e conexões. Carole Gillian18 aborda como homens

16 ENLOE, 2000.

17 TICKNER, 2001, p. 14.

18 GILLIAN, 1982, apud SusanCARROLL e Linda ZERILLI, 1993.

Page 16: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

74 Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013

IZADORA XAVIER DO MONTE

e mulheres teriam diferentes concepções de justiça – homensse engajam na elaboração de concepções universalistas,enquanto mulheres possuem pensamento mais relacional ebaseado em situações concretas. Essas visões são, no entanto,assim como discutido sobre Tickner, criticadas por seuessencialismo.

Uma outra interpretação feminista para as RI é a dofeminismo socialista. Para as socialistas, as diferenças entrecondições materiais de existência de homens e mulheres sãoa base da opressão feminina – a principal fonte do patriar-cado é, assim, o controle dos homens sobre o trabalho femi-nino, principalmente o reprodutivo. Socialistas procurammostrar como a separação entre o trabalho produtivo e oreprodutivo serve apenas a interesses masculinistas sob o capi-talismo. A desvalorização e naturalização do trabalho repro-dutivo das mulheres permite a organização do sistemacapitalista tal como é. A consideração do trabalho reprodutivocomo parte integrante e importante das atividades econômi-cas colocaria em xeque, por exemplo, a produtividade dasgrandes corporações, dependente do trabalho não reconhe-cido e muito menos remunerado que as mulheres fazem demanutenção do lar e criação dos filhos. A não remuneraçãodo trabalho reprodutivo diminui o preço dos salários dasmulheres, enquanto a revisão da importância social dotrabalho doméstico nos levaria a uma revisão das ideias sobrepolíticas de assistência social. A consideração do valor dotrabalho reprodutivo transformaria esse conceito, distancian-do-o da ideia de que são “benefícios” oferecidos pelo governoe ressaltando como são essenciais à produtividade dosindivíduos.

Feministas socialistas são parte do grupo chamado“ponto de vista”. Para essas feministas, a percepção darealidade varia com a situação material do observador e, nocaso das mulheres, sua situação material de desprivilégiopermitira que elas tenham uma visão mais objetiva darealidade:

a posição subordinada das mulheres significa queessas, ao contrário dos homens (ou de alguns homens),não possuem interesse na mistificação da realidadea fim de reforçar o status quo; logo, há maiorprobabilidade que elas desenvolvam umentendimento mais claro, menos enviesado, domundo.19

Como já mencionado anteriormente, o projeto doponto de vista feminista em RI sofre fortes críticas ao longoda década de 90. A dúvida em relação à possibilidade deacumulação sistemática de conhecimento sobre as causasda opressão das mulheres é fruto da emergência da terceira

19 TICKNER, 2001, p. 17.

Page 17: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013 75

O DEBATE E OS DEBATES: ABORDAGENS FEMINISTAS PARA AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

onda feminista, sustentada por feministas pós-coloniais, pós-estruturalistas e pós-modernas. Essas levantam dúvidassobre a possibilidade de se construir um elenco fixo e deter-minado de causas estruturais para a opressão das mulheres.Para pesquisadoras pós-estruturalistas e pós-coloniais, asfontes de opressão são dinâmicas e complexas, em conso-nância com o dinamismo das relações sociais em geral, emconstante estruturação, e não podem ser identificadas efixadas como queriam as feministas de ponto de vista, princi-palmente se considerarmos o posicionamento específico,ocidental e branco, destas.

Como consequência, a teoria passa a considerar ainexistência de uma identidade feminina universal, um pontode vista a ser identificado e que permitiria a categorizaçãodas mulheres e a sistematização de causas da sua opressão.A teoria feminista em RI se aproxima, cada vez mais, dasquestões ontológicas e epistemológicas das abordagens pós-positivistas. O discurso sobre o gênero como fonte complexade organização de poder, instituições e hierarquias torna-secada vez mais central para os Estudos de Gênero em RelaçõesInternacionais.

As pós-modernas rejeitam a redução de mulher egênero a categorias homogêneas. Nas palavras de SandraHarding,

em certo sentido, não existem ‘homens’ e ‘mulheres’no mundo – não há um ‘gênero’ – mas apenasindivíduos, mulheres e homens construídos por lutashistóricas particulares sobre as quais raça, classe,sexualidade, culturas, grupos religiosos e assim pordiante vão incidir no acesso a recursos e poder.20

A delimitação das nossas experiências pelo gênerosimplifica a identidade de indivíduos complexos, servindo àprodução de interpretações usadas para organizar asociedade hierarquicamente. Feministas pós-modernas vão,como outros analistas de Relações Internacionais, concentrar-se no uso de métodos genealógicos ou desconstrutivistas,para analisar as formas pelas quais se constroem as ligaçõesentre o gênero e os fenômenos internacionais.21

Seria de se esperar que o encontro entre dois camposamplos e diversos como os Estudos de Gênero e as RelaçõesInternacionais desse margem a inúmeros conflitos e diver-gências, como, de fato, é o caso. As pós-modernas, críticasdas feministas radicais e de ponto de vista, são, por sua vez,criticadas por essas. Aponta-se a tendência a se distanciarda realidade dos indivíduos, fechando-se excessivamenteno debate sobre as construções discursivas da ciência. Essefechamento distanciaria as pós-modernas do projetoemancipatório original dos Estudos de Gênero. A abstração

20 HARDING apud PETERSON eRUNYAN, 1999, p. 29.

21 PETERSON e RUNYAN, 1999, p.175.

Page 18: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

76 Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013

IZADORA XAVIER DO MONTE

da crítica meta-teórica ignoraria os problemas de indivíduosconcretos – indivíduos cuja melhora de vida é a razão de seroriginal da teoria feminista.

Feminismos pós-coloniais são também conhecidoscomo antirracistas ou anti-imperiais. A economia é importantefator explicativo para essa corrente, mas sua principal ênfaseestá na interseção entre imperialismo, colonialismo,capitalismo e racismo e a opressão das mulheres. As mulheresdo Terceiro Mundo experimentariam formas particularmenteagudas de opressão por causa dessas interrelações. As pós-coloniais desafiam a distinção entre o local e o global,afirmando que estruturas de dominação perpassam essesníveis e demonstrando como isso implica formas específicase múltiplas de opressão para as mulheres do Terceiro Mundo– a maior parte dos mais pobres do planeta.

Existe, ainda, uma outra corrente, particular no seumodo de analisar os mecanismos que funcionam no apoiode estruturas hierárquicas e opressivas, as chamadasecofeministas. Na interpretação das ecofeministas, todaopressão existe em um contínuo; toda exploração, seja elaexpressa no uso insustentável dos recursos naturais, naviolência doméstica ou em guerras totais, está inter-relacionada e é essencialmente a mesma, variando apenasem grau. As mulheres, associadas cultural e linguisticamenteao mundo natural, sofrem a forma de exploração primordial.Todas as outras formas de opressão, de alguma forma, estãomodeladas a partir daquela experimentada pelas mulheres.A relação entre Estados, por exemplo, emularia essa opressãona medida em que Estados marginais ou “oprimidos” sãofeminilizados. Como consequência, todas essas relaçõesde exploração acabam refletindo sobre as mulheres, quesofrem cargas acumuladas dessas explorações.

Ecofeministas vão defender a importância dasubstituição do ideal da autonomia – ideal masculinistaque organiza todas as formas de exploração em um contínuo– pelo da interdependência. Uma visão que redefina arelação entre homens e mulheres, entre estes e a Terra,baseada em respeito, reconhecendo a interdependênciainevitável entre todos, seria a forma de superar as diversasformas de opressão da nossa sociedade.

Resumindo, para Christine Sylvester,22 três são asformas pelas quais a teoria feminista contempla incluir acategoria gênero nos cânones da disciplina de RI. Emprimeiro lugar, há a epistemologia feminista empiricista, cujatarefa é reduzir o viés da disciplina. O ponto de vistafeminista, segundo Sylvester, toma como pressuposto aexistência de uma maneira particular de conhecer arealidade própria às mulheres, ligada às atividadesreprodutivas que lhes são atribuídas caracteristicamente.

22 SYLVESTER, 1994.

Page 19: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013 77

O DEBATE E OS DEBATES: ABORDAGENS FEMINISTAS PARA AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Essas maneiras seriam comumente desvalorizadas edenegridas no campo científico por serem “instintivas”,“intuitivas” e/ou “emocionais”. Faria parte do projeto científicoe político das feministas procurar incluir e dignificar essasformas de conhecimento, transformando-as em pontos devista epistemológicos que desafiem e ofereçam alternativasaos atuais cânones teóricos, que reproduzem e mantêm osprivilégios de certos grupos sociais.

Na interseção com as visões pós-positivistas, Sylvesteridentifica dois tipos de feminismo: o pós-modernismofeminista e o feminismo pós-moderno (“feministpostmodernism and postmodern feminism”) – ambos sendotributários do pós-estruturalismo francês, que concebe alinguagem como uma força de construção e reconstruçãode ordens simbólicas falocêntricas. O segundo tipo citado,feminismo pós-moderno, seria um ponto de negociação entreo pós-modernismo feminista, que interpreta a diferençasexual como função unicamente da linguagem, e o pontode vista feminista, baseado firmemente na ideia daexistência de mulheres “reais”, e um corpo de experiênciasfemininas concretas, distintas e objetivas. Sylvester sepropõe, na sua abordagem, a tentar o manejo de um dilemaidentificado por Enloe, em sua obra Maneuvers:23 comofocalizar mulheres e valorizar visões e experiências femininas,mantendo, ao mesmo tempo, uma desconfiança saudável,do ponto de vista pós-moderno, em relação a identidadesde gênero que possam ser identificadas e fundamentadasem uma realidade biológica dos corpos?

Para Sylvester, localizações múltiplas de mulheres queo ponto de vista feminista alcançou, sem priorizar nemcristalizar nenhuma das várias experiências, seria parte daresposta. Reverberando, porém suavizando, os argumentosde Judith Butler,24 o meio-termo seria a concessão daexistência de subjetividades e identidades múltiplas paraas mulheres. Sylvester junta-se aos críticos da virada pós-moderna ao se preocupar em temperar seu ceticismo sobreas categorizações universais com a preocupação em nãoapagar, junto com os ideais de “Homem” e “Mulher”, aexistência de indivíduos “de carne e osso” que se situam evivem em complexa relação com todas essas categoriassociais. A fim de reconciliar o ponto de vista feminista e pós-moderno, Sylvester propõe um projeto político-metodológicode “política de conversação empática”,

que nos ajuda a aprender quais são as vantagens e aslimitações de nossas categorias identitárias herdadase decidir sobre nossas identidades, política epreocupações diárias em vez de continuar a reproduzi-las ou rejeitá-las automaticamente porque vêm defontes estabelecidas de autoridade.25

24 Ver Judith BUTLER, 1993.

25 SYLVESTER, 1994, p. 12-13.

23 ENLOE, 2000.

Page 20: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

78 Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013

IZADORA XAVIER DO MONTE

Epistemologicamente, a construção do conhecimentopassa a ser dependente de contínuas conversações enegociações sobre o conhecimento. Poderíamos pensar oterceiro debate, ou mesmo a repetição da prática de debatesparadigmáticos, em RI, como uma prática positiva, cujoobjetivo não deve ser chegar a uma decisão definitiva sobreos termos da disciplina, mas a manutenção desse espaçopermanente de negociações e conversações. Ao analisar osdiversos debates que ocorreram na disciplina, contudo,Sylvester não crê que essa possibilidade de uso do terceirodebate para a cooperação empática está sendo realizada.Segundo a autora, o campo ainda se apega a práticas deexclusão que não permitem às RI a realização do seupotencial, incluindo as experiências, corpos e lugares sociaisdaqueles que foram historicamente definidos como “outros”na teoria. Os movimentos teóricos que até hoje tiveram lugarexpulsaram as mulheres das construções teóricas de RI – olivro de Sylvester se propõe à análise dos debates teóricosque construíram o campo como um “domínio masculino”.Uma vez que as mulheres foram suprimidas da teoria, a autoravê como objetivo da teoria feminista desestabilizar e subvertero campo – buscar as vozes femininas e as “formas femininasde conhecer” para ampliar o espaço ontológico dadisciplina.

Conclusão Conclusão Conclusão Conclusão Conclusão

Comumente, diz-se que o fim da Guerra Fria haveriadistanciado o sistema internacional das preocupaçõestradicionais de segurança e alta política, permitindo queassuntos da agenda dita “soft” tivessem sua importância parao campo ampliada. As abordagens feministas teriam, nessecontexto, com sua preocupação em identificar as margensdo meio internacional, alcançado maior expressividade. Essa,no entanto, é só parte da explicação para a expansão dasabordagens centradas no gênero. Como quisemosdemonstrar, a variação no leque de temas que podem serabordados pela teoria não é função apenas de mudançashistóricas na constituição do sistema, mas dos instrumentosque usamos para dar sentido a ele. Tickner se opõe à ideiade que, com o terceiro debate e o fim da Guerra Fria, houveum movimento pela inclusão das mulheres em RI. Para aautora, as mulheres sempre estiveram inclusas no campo,mas encobertas pelas lentes usadas para estudá-lo. Em suaanálise final sobre os desenvolvimentos recentes dadisciplina, ela aponta, compatíveis com o uso do gênerocomo categoria de análise, as teorias de RI preocupadascom a justiça e a moralidade no sistema internacional, coma genealogia do surgimento histórico do Estado e com as

Page 21: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013 79

O DEBATE E OS DEBATES: ABORDAGENS FEMINISTAS PARA AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

relações entre poder e conhecimento na organização dapolítica estatal. O artigo procurou mostrar a possibilidade deinterseções entre preocupações feministas e uma teoria deRI, pós-positivista, que seja capaz de mostrar as formas pelasquais as mulheres são inevitavelmente parte do campo e ogênero, uma categoria útil à análise de diversos fenômenosinternacionais, ainda que tenhamos apenas recentementenos dado conta disso.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero – Feminismo e subversãoda identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.

CARROLL, Susan, and ZERILLI, Linda M.G. “Feminist Challengesto Political Science”. In: FINITER, Ada (ed.). Political Science:The State of the Discipline II. Washington, DC: APSA, 1993.p. 55-76.

DER DERIAN, James. Antidiplomacy: Spies, Terror, Speed andWar. Oxford: Blackwell, 1992.

ENLOE, Cynthia. Maneuvers – The Politics of MilitarizingWomen’s Lives. Berkley and Los Angeles: CaliforniaUniversity Press, 2000.

GILLIAN, Carole. “In a Different Voice: Psychological Theoryand Women’s Development”. Cambridge: HarvardUniversity Press, 1982.

KEOHANE, Robert O., and NYE, Joseph S. Power andInterdependence: World Politics in Transition. London:Little Brown, 1997.

MESSARI, Nizan; NOGUEIRA, João Pontes. Teorias das RelaçõesInternacionais – correntes e debates. Rio de Janeiro:Elsevier, 2005.

ONUF, Nicholas. World of Our Making: Rules and Rule in SocialTheory and International Relations. Columbia: Universityof South Carolina Press, 1989.

PETERSON, Spike V., and RUNYAN, Anne S. Global Gender Issues– Dillemas in World Politics. Colorado: Westview Press, 1999.

RUDDICK, Sarah. “From Maternal Thinking to Peace Politics”.In: COLE, Eva Browning, and COULATRAP-MCQUIN, Susan(eds.). Explorations in Feminist Ethics: Theory and Practice.Bloomington: Indiana University Press, 1992. p. 141-155.

SYLVESTER, Christine. Feminist Theory and InternationalRelations in Postmodern Era. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 1994.

______. Gendering World Politics – Issues and Approachesin the Post-Cold War Era. New York: Columbia UniversityPress, 2001.

ZEHFUSS, Maja. Constructivism in International Relations: ThePolitics of Reality. Cambridge: Cambridge University Press,2002.

Page 22: MONTE O Debate e Os Debates Abordagens Feministas Para as RI

80 Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 59-80, janeiro-abril/2013

IZADORA XAVIER DO MONTE

[Recebido em maio de 2011,reapresentado em março de 2012

e aceito para publicação em maio de 2012]

Debate, Debates: Feminist Approaches to International RelationsDebate, Debates: Feminist Approaches to International RelationsDebate, Debates: Feminist Approaches to International RelationsDebate, Debates: Feminist Approaches to International RelationsDebate, Debates: Feminist Approaches to International RelationsAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: The article collects and discusses feminist approaches to International Relations. Theencounter between the fields of Gender Studies and International Relations dates back to a littleover two decades, and represents a movement that was almost simultaneous to the beginning ofwhat is called in the IR field the “third debate”. In this sense, besides discussing the use of genderas a category of analysis for international relations, the article intends to argue that this use ofgender in IR is closely connected to the critics to conventional IR theories that emerge in thecontext of the third debate.Key WordsKey WordsKey WordsKey WordsKey Words: Gender; International Relations; International Relations Theory; Post-positivism.