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MONSTROS DE VIDRO

texto e direçãoANA VITORINO CARlOS COSTA

eStreiA ABSoLUtA

40.ª criação

Visões Úteis

cenografia

e figurinos

Inês de

Carvalho

banda sonora

original e

sonoplastia

João Martins

desenho de luz

José Carlos

Coelho

elementos

gráficos e

audiovisuais

entropiadesign

co ‑criação

Ana Azevedo

Nuno Casimiro

Pedro Carreira

interpretação

Ana Azevedo

Ana Vitorino

Carlos Costa

Pedro Carreira

e ainda

Inês de

Carvalho

voz ‑off

Alice Costa

música

adicional

"Perfidia"

Alberto

Domínguez

"Music to

Watch Girls By"

Sid Ramin

"Crema Batida"

Al Caiola

"Viva la Vida

(instrumental)"

Coldplay

produção

Visões Úteis

dur. aprox. 1:30

M/16 anos

qua‑sáb 21:30

dom 16:00

Próximas

apresentações:

Coimbra – teatro

Académico de

Gil Vicente

7 dez

Aveiro – estúdio

Performas

10 dez

Teatro Carlos Alberto

24 Nov4 Dez 2011

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E é aqui que começamos a perguntar: se perdermos o controlo e nos espatifarmos lá em baixo, como é que estar dobrado para a frente com as mãos sobre a cabeça me vai salvar a vida? E se isto não me salva a vida, porque é que eles querem que eu me ponha nesta posição?

visões úteis Monstros de Vidro

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O ano de 2001 foi totalmente dedicado a um projecto sui generis – pelo menos na altura parecia sui generis – intitulado Visíveis na Estrada através da Orla do Bosque, e que pretendia ser uma reflexão acerca do Outro, da Fronteira, enquanto linha que nos separa do Outro, e da Viagem, enquanto modo de superação dessa linha. Os trabalhos organizaram ‑se então a partir de uma premissa simples: criar um espetáculo sobre tudo isto e dar uma volta à Europa, parando aqui e ali para falar com pessoas cujo trabalho cruzasse estes temas, não só entre si, mas também no contexto da integração europeia. E no regresso criar um segundo espetáculo, que deveria ser diferente do primeiro, na medida em que a viagem nos teria transformado em pessoas diferentes.

O primeiro passo neste processo foi o espetáculo Estudos – que se desenrolava ao longo de um percurso por vários espaços do recém ‑inaugurado Maus Hábitos –, em que as tensões entretanto indiciadas se confrontavam à volta de mesas e “marcas de água mineral”, num jogo constante com a disposição do público.

Logo de seguida, uma equipa do Visões Úteis, composta por sete pessoas, meteu‑‑se à estrada para uma viagem de 30 dias,

numa Ford Transit, com paragens previstas em Itália, Grécia, Alemanha, Bélgica, Inglaterra e França. E nesta viagem os nossos convidados foram artistas, intelectuais e políticos em cuja atividade se refletiam as mesmas preocupações que nos motivavam: o poeta Tonino Guerra, a deputada italiana (e ex ‑Comissária Europeia) Emma Bonino, os encenadores Luca Nicolaj e Ramin Gray, o cineasta Theo Angelopoulos, o programador Thomas Liolios, a atriz Sara de Roo, o escritor e (então) eurodeputado Vasco Graça Moura, o arquiteto Daniel Libeskind, e os dramaturgos Gregory Motton e Joseph Danan. E destes encontros – mas também de inúmeros desencontros e imprevistos em que perdemos nomes como Umberto Eco, Leni Riefenstahl e Emir Kusturica – íamos dando conta, todos os dias, naquele que terá sido um dos primeiros blogues portugueses (ainda que tecnicamente não o fosse, por a tecnologia ainda não estar disponível).

Finalmente – e de regresso a casa após uma viagem que testava os conteúdos na própria forma –, surgia o espetáculo Orla do Bosque, que (re)equacionava os conceitos iniciais e convocava as experiências da viagem para uma praça habitada por uma árvore petrificada e pelos vestígios arqueológicos de uma coluna clássica.

Dez anos depois, e considerando as mudanças atravessadas pelas artes performativas em Portugal, mas também os sucessivos processos criativos do Visões Úteis (associados a viagens e residências), este até poderá parecer “apenas um ano como os outros”. Mas a verdade é que, na altura, parece ter saído de tal forma dos modos de produção

2001 ‑2011: DEZ ANOS DEPOIS DA ORLA DO BOSQUE

visões úteis

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“normais” que acabou por gerar reações de perplexidade e desaprovação, sendo considerado bizarro e irresponsável por diversos agentes do sector.

O projeto só se tornou então possível pela conjugação de esforços de Isabel Alves Costa (Diretora do Rivoli Teatro Municipal e responsável pela programação de Artes Performativas da Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura), José Wallenstein (Diretor Artístico do Teatro Nacional São João, que na altura produzia o festival internacional de teatro PoNTI) e Manuela de Melo (Vereadora do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal do Porto). Curiosamente, e dez anos depois, o Rivoli Teatro Municipal encerrou, o Pelouro da Cultura foi extinto, o PoNTI foi abandonado e a Capital da Cultura não é decididamente aqui. Mas a cidade ainda tem um Teatro Nacional… por enquanto. E todo este processo criativo – que era sem dúvida também processo de construção de identidade estética e política – acabou então, com o apoio da (sempre inevitável) Fundação Calouste

Gulbenkian (e em particular de Manuel Costa Cabral e António Caldeira Pires), sintetizado num livro editado pelas Edições Quasi, dirigidas por Valter Hugo Mãe e Jorge Reis ‑Sá. E, curiosamente, também a Quasi fechou as portas, na sequência da concentração oligopolista que atravessou o mercado editorial português na última década.

Ao longo dos anos seguintes, o espetáculo Orla do Bosque parece ir permanecendo na memória dos que o fizeram e dos que o viram, como um momento especial; talvez porque tentava ser voz de uma geração a entrar nos 30 (demasiado novos para fazer seus os ideais de Abril e demasiado velhos para acreditar no mundo de consumismo cool que a publicidade tentava vender) ou talvez pelo otimismo melancólico em que se encerrava (o espetáculo terminava até com a voz de Jorge Palma, cantando que “enquanto houver estrada para andar a gente vai continuar”). Assim, e à medida que a última década se desenrolava, a brincadeira recorrente de “voltar a

90°

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fazer a Orla do Bosque” foi dando lugar à possibilidade de uma “Orla do Bosque Revisitada”, que convocasse para o mesmo local os mesmos protagonistas da visita inicial, mas dez anos depois, agora já nos 40 e com filhos, deixando que a simples passagem do tempo desenhasse o projeto. E este seria o ponto de partida para Monstros de Vidro.

Mas a verdade é que, assim que o processo criativo se começou a adensar, fomo ‑nos deparando precisamente com a impossibilidade de regresso ou, por outras palavras, com a necessidade de fazer algo de completamente diferente para conseguir então fazer algo de parecido. E, por isso, acabámos por renunciar à ideia embrionária de uma criação a partir do nosso arquivo, precisamente porque a praça da Orla do Bosque sempre tinha sido um espaço eminentemente público e não o território de angústias íntimas. Mas, além disto, havia também na Orla do Bosque algumas características que hoje seria impossível mantermos: por um lado, uma imensa vontade de expor

os conteúdos diretamente através do texto, de dizer descaradamente tudo o que tinha de ser dito, um pouco como na campanha Parlare Non Stop do Partido Radical Italiano, com que nos cruzámos, durante a viagem, nas ruas de Milão; e, por outro lado, uma certeza assertiva acerca do bem e do mal, que levava a uma estrutura q.b. dramática e assente em personagens desenhadas a partir de dicotomias simples.

Mas, ao longo destes dez anos, fomos perdendo estas certezas e mergulhando numa cada vez maior perplexidade acerca dos discursos que povoam o espaço público da(s) comunidades(s) em que estamos inseridos. Percebemos então que o regresso à Orla do Bosque seria impossível. A menos que a ideia de regresso impossível fosse precisamente o ponto de partida.

Nota: todos os textos relativos ao ensaio Visíveis na Estrada através da Orla do Bosque e aos espetáculos Estudos e Orla do Bosque estão disponíveis em www.visoesuteis.pt/galeria; o sítio/blogue referido encontra ‑se em www.visoesuteis.pt/projectos/orladobosque/index.html.

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Dez anos depois, voltámos ao encontro dos nossos convidados da viagem de 2001. Mas agora por correio eletrónico. Pedimos então a alguns deles – e no contexto da estreia de Monstros de Vidro – que “viajassem” connosco mais uma vez, lançando um olhar sobre a década passada e sobre o que terá mudado na sua relação com o mundo. E, se quisessem, porque não arriscar também um olhar sobre o futuro… Obrigado a todos, mais uma vez!

Luca Nicolaj Ator e Encenador, Cia. Luca Nicolaj (Itália)Ao longo dos últimos dez anos, aproximei ‑me de uma visão que considera que cada pessoa ou grupo social “constrói” uma realidade subjetiva (logo, a realidade objetiva não existe!), interpretando as suas perceções de acordo com as suas crenças pessoais arbitrárias e frequentemente supersticiosas. O problema é que cada um considera, com maior ou menor rigidez, a “sua” realidade como “a” realidade. Talvez seja assim que nasçam os “monstros”. É inevitável que por vezes algo produza um choque e a construção pessoal da realidade se rompa: é aí que surgem as crises. Talvez se possa ver assim a crise que caracteriza a nossa época?

Gregory Motton Dramaturgo (Reino Unido)A minha vida é a de um dissidente. Continuo no mesmo exílio interno em que já vivia há dez anos atrás. Em 17 anos, apenas uma das minhas peças foi encenada em Inglaterra, e essa era, por acaso, uma peça sobre o amor. As minhas peças costumam ser sobre outros temas, e essas nunca são levadas à cena neste país. Fui, efetivamente, silenciado enquanto autor. É isto que eles fazem… a escritores como eu… na Grã ‑Bretanha. Em relação à Europa, escrevi uma peça para uma companhia belga acerca do ataque da União Europeia à democracia parlamentar mas, curiosamente, essa peça nunca se estreou. Thomas Liolios Psicopedagogo (Grécia)Na última década, o que mudou radicalmente foi o acesso à informação e às possibilidades de comunicação. É como se alguém tivesse de repente disponibilizado toda a informação e dito “vamos então ver o que é que vocês vão fazer com isto”. E assim ficámos numa situação que nos permite moldar as nossas crenças, as nossas verdades, o nosso comportamento, a nossa consciência, etc. No contexto dos sistemas que lidam com as massas, agora temos que manipular tudo isto baseando ‑nos na nossa individualidade. O que muda é que agora temos à nossa frente o desafio de criar novas comunidades de pessoas autónomas, livres e autodeterminadas. Pessoas com um sentido de responsabilidade por si próprias e pelos outros.

2001 ‑2011: OS NOSSOS CONVIDADOS

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Joseph Danan Dramaturgo e Professor (França)A “revolução” informática. Uma faca de dois gumes. Uma maravilha de comunicação inter ‑humana, uma ajuda incrível à circulação das ideias e à mobilização. E também a escravatura absoluta: com um clique, podemos atribuir a milhares de pessoas uma tarefa que consideramos urgente. É o cúmulo da civilização burocrática e da submissão aos dispositivos liberticidas. Ramin Gray Encenador, Diretor Artístico da Actors Touring Company (Reino Unido)Quando sucedem grandes aconte‑cimentos, a arte pode parecer insignificante e irrelevante. Com o colapso do Comunismo, foi ‑nos dito que a História tinha acabado. Mas, com o 11 de setembro, parecia que uma nova ideologia tinha começado. Com o atual colapso do Capitalismo, parece que tudo se está a dissolver. Mas dissolve ‑se em narrativa, emoção, comportamento, ou seja, em puro teatro. Uma arte caótica, espasmódica e pouco fiável. Andrea Gambetta Solares Fondazione delle Arti (Itália)Dez anos passam depressa (quando não se está na prisão ou no hospital), mas resumir em poucas linhas a primeira década deste milénio não é fácil, até porque em apenas 3650 dias muitas coisas mudaram. A transformação do mundo da cultura, pelo menos na Itália, aconteceu através de uma lenta decadência, devida não só à crise económica, mas principalmente aos cortes absurdos que foram levados a cabo pelos governantes italianos neste último

período, num orçamento nacional já de si miserável quando comparado com outros países europeus.

“A cultura não se come!” é o triste refrão que ouvimos tantas vezes, e de pouco vale a voz de tantas realidades que trabalham no terreno e que ainda acreditam na coesão social operada pela cultura, nas emoções artísticas/teatrais/musicais/cinematográficas que dão força ao indivíduo e o ajudam na sua relação com o próximo. Pessoalmente, sou daqueles que acreditam que a Bela Itália podia fazer da cultura o seu core business, criando um circuito virtuoso entre cultura, turismo, bens artísticos, criatividade, pesquisa. O que é o Made in Italy, se não isto? Hoje, as intervenções culturais não podem ser concebidas como acessórias, não só porque produzem riqueza económica estável, direta e indireta, mas porque a própria identidade das pessoas e grupos sociais é sempre mais fundada em elementos culturais e simbólicos do que em estruturas e pertenças de classe, riqueza, família e ideologia.

Espero sinceramente que no final o bom senso prevaleça. Pela qualidade do nosso futuro. E pela minha filha Annalisa, nascida em 2005, precisamente a meio da última década.

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Vamos então olhar para trás e tentar contar a história. Vamos tentar fazê ‑lo o melhor possível. Afinal de contas, já conhecemos os manuais e dominamos as regras.

Numa história bem contada é importante começar por estabelecer um contexto. Podemos começar, por exemplo, com: “Era uma vez um lugar onde as pessoas viviam alegres e despreocupadas. Todas tinham uma casa onde morar, trabalho e comida, e todas acreditavam num futuro radioso. Parecia que nada lhes faltava, e tudo o que precisavam materializava ‑se à sua frente, como que por magia. Os habitantes desse lugar eram muito espertos e estavam informados sobre praticamente todas as coisas à face da terra. Mas, estranhamente, pareciam também ter algumas crenças bizarras: que eram os únicos a habitar aquele espaço, que provavelmente viveriam jovens para sempre, que os bens que possuíam eram inesgotáveis… E por mais que a realidade lhes provasse o contrário, eles recusavam ‑se a ver, e tinham uma confiança ilimitada nas suas capacidades e possibilidades”.

Depois, podemos introduzir um acontecimento traumático, o elemento de desorganização essencial para que

a história avance. Podemos dizer, por exemplo: “Um dia, uma grande tempestade abateu ‑se sobre esse lugar. De um momento para o outro, as pessoas perderam tudo o que tinham, e o que não tinham mas pensavam que tinham. De repente, parecia que não ia haver futuro, e que a vida que tinham vivido até aí tinha sido apenas um sonho. Ninguém parecia saber o que fazer para reconstruir aquele lugar e recomeçar a vida. Parecia não haver sabedoria, ou conhecimento, ou confiança, ou crença que as pudesse salvar”.

Para que a história realmente prenda a atenção, é importante que a linguagem seja simples e atrativa. Deve ser rica em imagens e detalhes, mas sem deixar de ser eficaz. É importante percebermos o que nos dizem, seguirmos a narrativa. Nas histórias mal contadas, por vezes usam ‑se palavras a mais, palavras e mais palavras, discursos, opiniões, comentários, versões, contraditórios, correções, até já não sabermos quem disse o quê e porquê, o que é facto e o que é fabricação. Até estarmos de ouvidos cheios e já não querermos ouvir mais nada.

Numa história bem contada, cada personagem desempenha um papel essencial à ação ou à compreensão da moral da história. Geralmente, percebemos sem dificuldade que papel cada um vai ter. As personagens não costumam trocar constantemente de lados, não vagueiam à procura do seu lugar, nem ficam paralisadas numa página da história para nunca mais sabermos nada delas.

Na maioria das histórias há vítimas (que poderão ou não reclamar por justiça), há sábios que ajudam a esclarecer a situação, há alguém que

MONSTROS DE VIDRO: UMA HISTÓRIA MAl CONTADA

ana vitorino, carlos costa

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assume os comandos e guia os outros na direção certa. E tem de haver alguém que se possa culpar.

E é por isso que a certa altura nas histórias, mais cedo ou mais tarde, aparece um monstro. Numa história muito negra podem até aparecer vários monstros. Nas histórias, os monstros não surgem apenas para meter medo ou criar suspense; se conseguirmos ver através deles, percebemos que eles estão ali para cumprir uma função concreta: testar a comunidade e forçá ‑la a olhar para si própria, para as suas forças e fraquezas, avisá ‑la que o seu comportamento a vai levar à autodestruição, e assim dar ‑lhe uma possibilidade de redenção.

Para que a história acabe bem, será preciso que as personagens reconheçam o monstro por aquilo que ele é e se disponham a mudar o que têm de mudar. Depois, retemperadas de força e de bom senso, basta ‑lhes um golpe certeiro

para partir o monstro em mil pedaços e poderem, finalmente, seguir em frente.

Nas histórias mal contadas, as personagens lutam com toda a sua energia contra o monstro, aliviadas por poderem concentrar nele toda a culpa que exista, sem que sobre uma migalha que lhes possa cair nos ombros. O fim destas histórias é sempre um falso fim: o monstro morre e faz ‑se uma festa, celebra ‑se a arrogância e a ignorância; e no volume seguinte começa tudo outra vez.

A nossa história está, por agora, muito mal contada. Cheia de pessoas perdidas, palavras a mais, desastres iminentes, falsos fins, monstros de vidro.

Será preciso interrompê ‑la e recomeçá‑la as vezes que forem necessárias. Rees ‑ crevê ‑la até nos orientarmos.

Experimentar outra vez até acertarmos.

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Gosto de pessoas. Gostei quando a Maria João Brilhante me recomendou o Visões Úteis como um dos grupos a ser investigado no meu estágio pós ‑doutoral, por ela supervisionado. Gostei quando conheci o Mickael de Oliveira e ele me disse ser amigo do Carlos, e que poderia nos colocar em contato. Gostei quando o Carlos marcou nosso encontro para dez dias depois de eu ter chegado a Lisboa, e assim fui encontrá ‑lo na Fábrica Social, no Porto. Gostei muito do Carlos, da Ana e do Pedro, quando os conheci. E admirei imediatamente o seu trabalho. Eles também gostam das pessoas. E, talvez por isso, seu trabalho é político – e humanista.

Seu livro, Visíveis na Estrada através da Orla do Bosque, resultado da intrigante e riquíssima viagem que fizeram por vários países da Europa, é um verdadeiro manifesto em prol das humanidades. Por que viajaram para entrevistar as pessoas e não o fizeram por email? Porque gostam de pessoas – e apostam nos encontros. Vem daí, acredito, o seu compromisso com o que dizem, com o que fazem. Não são precisos esforços, propriamente, precisam apenas seguir seus princípios, seu caminho delineado por princípios de comprometimento e inclusão.

Para o programa de Monstros de Vidro, me pediram uma visão crítica do trabalho do Visões Úteis. Confesso que não estou muito certa de que serei tão crítica quanto eles esperam que eu seja.

Do meu contato com o Visões Úteis, no período entre julho e dezembro de 2010, pude conversar mais ou menos informalmente com Ana, Carlos e Pedro em diferentes ocasiões. Alguns momentos desta convivência foram marcantes. Talvez o principal tenha sido quando, ao final da apresentação de Boom & Bang, em Aveiro, conversando com Ana sobre as dificuldades no apuro de uma linguagem de cena para um teatro assumidamente pedagógico – não é à toa que a peça começa com a frase “Isto não é uma peça de teatro” –, ela me disse, enfática: “Alguém precisa falar sobre isso”.

E agora, porque alguém precisa falar sobre isso, encaram destemidos o púlpito que o teatro lhes confere para “lançar um novo olhar crítico ao nosso aqui e agora”. E, para isso, retomam a experiência – fantástica – de Orla do Bosque. Pode perceber ‑se um movimento interessante neste retorno que não é uma volta ao igual. Percebo aí uma trajetória que tem como referência justamente a espacialidade como linguagem artística. Assim:

O Visões Úteis tem apostado no espaço fora do teatro como lugar privilegiado para experiências, além das tradicionais residências artísticas. Há em A Comissão, por exemplo, a apropriação de um espaço não teatral, mas que se mantém com sua funcionalidade prática cotidiana. A sala de convenções de hotel em que a peça é feita figura, na peça, uma sala de convenções de um hotel – o que

AlGUÉM PRECISA FAlAR SOBRE ISSO

nara keiserman*

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imprime à cena simultaneamente reconhecimento e estranheza. Mas suas criações foram além de fazer teatro em lugares não concebidos para este fim, como o táxi em O Resto do Mundo.

Estou me referindo aos audio ‑walks, experiência que talvez tenha sido a que mais me impressionou. Há, aí, muitos aspectos referentes a esse “ir além”. Nesta saída do espaço fechado (teatral ou não) para o aberto, em contato estreito com a paisagem (é Arte na Paisagem, claro), transforma o espectador num vivenciador. O investimento político é visível – porque lida não só com as ideias, mas com a concretude do espaço urbano. Mas, como são “feras” no texto, seus audio ‑walks são verdadeiras peças poéticas que, ao colocar o ouvinte/vivenciador alternadamente nos planos da realidade e da ficção, possibilitam ver o invisível – e aí a poesia se torna ato político, ou a intenção política se torna em ato poético.

Coerência, integridade e humor são qualidades que iluminam o trabalho do Visões. Observo uma aposta no riso como acionador da inteligência crítica, como meio de adesão do espectador ao que a cena apresenta e sobre o que reflexiona. Com sua ideologia exposta, não se tem dúvida do pensamento criador coletivo que perpassa cada palavra, cada gesto, cada ação, cada projeto.

O projeto Orla os levou para a estrada, por onde transitaram com fluência e, tenho certeza, alegria. Dez anos depois, os coloca no espaço apenas aparentemente fechado, referente apenas ao lugar em que Monstros de Vidro vai ser apresentado. O texto, criado em ação pelos encenadores – outra marca do político no trabalho do Visões

Úteis –, é estruturado em episódios que recusam os cânones aristotélicos. Numa linguagem por vezes sugestiva, ou apenas alusiva, o espaço de atuação concedido aos artistas cênicos e aos espectadores é mais que aberto. Possui o arejamento compatível com sua visão de mundo, em que os afetos – sentimento e compromisso – têm lugar preponderante.

* Investigadora e professora na Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Fez o pós ‑doutoramento na Universidade de Lisboa com Aspectos Narrativos do Teatro Português Contemporâneo.

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É um projeto artístico, de origem teatral, fundado no Porto em 1994, e atualmente residente na Fábrica Social. Até 2011, o Visões Úteis criou e produziu 35 espetáculos de teatro, quatro audio ‑walks, uma instalação multimédia, quatro filmes e cinco festivais, em Portugal, espanha, França e itália.o Visões Úteis é um projeto artístico, marcadamente de autor, que se produz a si próprio, um projeto pluridisciplinar, com uma direção partilhada e assente em metodologias de trabalho colaborativas que convocam uma especial participação de toda a equipa artística. Como sinais desta identidade podem apontar ‑se as sucessivas experiências de Performance na Paisagem – articuladas com viagens, residências, património e memórias – e a assinatura de dramaturgias originais – resultado de longos processos criativos que questionam, sem mediação, não só o nosso aqui e agora mas também os modos de participação do público.

No Visões Úteis, o projeto estético continua a crescer em sintonia com uma forte motivação ética – podemos mesmo dizer política –, numa constante reflexão acerca do sentido contemporâneo de fazer arte e teatro, que quotidianamente marca as opções de trabalho, agudiza a consciência da responsabilidade social e política para com as comunidades envolventes, e obriga à partilha dos processos de reflexão e autonomia da arte contemporânea com a população em geral, e em particular com todos aqueles que vivem nas periferias, sejam estas de geografia, género, geração, cultura ou etnia.o Visões Úteis é membro da PLAteiA – Associação de Profissionais das Artes Cénicas e do ietM – international Network for Contemporary Performing Arts.A direção Artística é de Ana Vitorino e Carlos Costa.

VISÕES ÚTEIS

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FICHA TÉCNICA VISÕES ÚTEIS

direção de produção

Ana Vitorino, Carlos Costa

coordenação financeira

Pedro Carreira

produção executiva

Joana Neto

assistência de produção

Helena Madeira

execução de cenografia

Miguel Rocha

coordenação técnica

e operação

Luís Ribeiro

FICHA TÉCNICA TNSJ

coordenação de produção

Maria João Teixeira

assistência de produção

Eunice Basto

direção de palco (adjunto)

Emanuel Pina

direção de cena

Cátia Esteves

luz

Filipe Pinheiro (coordenação);

Abílio Vinhas, António Pedra,

José Rodrigues, Nuno Gonçalves

maquinaria

António Quaresma,

Carlos Barbosa, Joel Santos

som

João Oliveira, António Bica

eletricistas de cena

Júlio Cunha, Paulo Rodrigues

APOIOS TNSJ

APOIOS À DIVULGAÇÃO

AGRADECIMENTOS TNSJ

Mr. Piano – Pianos rui Macedo

Polícia de Segurança Pública

APOIOS VISÕES ÚTEIS

AGRADECIMENTOS VISÕES ÚTEIS

Maria Helena Guimarães

Hugo Martins

ricardo Lopes

Hernâni

o Visões Úteis é uma estrutura

financiada por Secretaria de

estado da Cultura/direcção ‑Geral

das Artes

Visões Úteis

Fábrica Social

rua da Fábrica Social, s/n

4000 ‑201 Porto

t 22 200 61 44

[email protected]

www.visoesuteis.pt

www.facebook.com/

visoesuteis.teatro

twitter.com/visoesuteis

Teatro Nacional São João

Praça da Batalha

4000 ‑102 Porto

t 22 340 19 00

Teatro Carlos Alberto

rua das oliveiras, 43

4050 ‑449 Porto

t 22 340 19 00

Mosteiro de São Bento da Vitória

rua de São Bento da Vitória

4050 ‑543 Porto

t 22 340 19 00

www.tnsj.pt

[email protected]

EDIÇÃO

Departamento de Edições

do TNSJ

coordenação

João Luís Pereira

modelo gráfico

Joana Monteiro

capa e paginação

João Guedes

fotografia

João Tuna

impressão

Empresa Diário do Porto, Lda.

Não é permitido filmar, gravar ou fotografar

durante o espetáculo. o uso de telemóveis ou

relógios com sinal sonoro é incómodo, tanto para

os intérpretes como para os espectadores.

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