monsaraz - vida morte e ressureição de uma vila alentejana.pdf
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JOSÉ PIRES GONÇALVES
DA ASSOCIAÇÃO DOS ARQUEÓLOGOS PORTUGUESES
E DO INSTITUTO PORTUGUÊS DE ARQUEOLOGIA,
HISTÓRIA E ETNOGRAFIA
MONSARAZ
VIDA, MORTE E RESSURREIÇÃO
DE UMA VILA ALENTEJANA
CONFERÊNCIA PROFERIDA NA CASA DO ALENTEJO, A 21 DE ABRIL DE 1966.
EDIÇÃO DA CASA DO ALENTEJO
LISBOA – 1966
DE ACORDO COM O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO
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As minhas primeiras palavras serão, necessariamente, de saudação e agradecimento à Direção
da Casa do Alentejo pela honra que me quis conceder, convidando‐me a colaborar nesta jornada
preparatória da excursão que os alentejanos de Lisboa vão fazer a Monsaraz e facultando‐me
esta gloriosa tribuna, tão rica de tradições culturais e tão enobrecida pela passagem dos mais
destacados vultos da intelectualidade alentejana, para eu aqui vir evocar, perante VV. Ex.as, a
minha tão amada vila do Guadiana.
Trairia os meus mais íntimos sentimentos se não afirmasse a V. Ex.a, Senhor Presidente da
Direção, a mais profunda gratidão por tão amável convite e se não confessasse também, e
importa bem acentuar esta nota de confissão, que ele me deixou confundido e até apreensivo
pelo involuntário desapontamento que a minha participação nesta jornada cultural da Casa do
Alentejo possa, porventura, causar ao auditório a quem vou ter a honra e o prazer de me dirigir.
A V. Ex.a, Senhor Prof. Doutor Ramos e Costa, pelos termos tão gentis e, eu ia dizer, quase
ditirâmbicos com que entendeu assinalar a minha passagem por esta sala e apresentar‐me a tão
distinto auditório, agradeço, também, vivamente sensibilizado, o fulgor e a benevolência das
palavras com que recortou o perfil da minha obscura personalidade.
E, já agora, consintam VV. Ex.as que, aproveitando a oportunidade da sua tão honrosa quanto
consoladora presença, exprima publicamente os meus melhores sentimentos de gratidão e
dirija uma particular saudação ao meu querido e eminente Amigo Prof. Doutor Silva Marques
pelo valioso auxílio que, com o seu imenso saber, tão generosamente me tem dispensado na
exumação histórica de Monsaraz e na redenção desta tão típica vila alentejana ao serviço da
Arte e da Cultura nacionais.
Começamos por alertar VV. Ex.as contra ideias preconcebidas e por dizermos que nos seria
impossível, e aliás também profundamente fatigante para VV. Ex.as, traçarmos, no limitado
espaço de tempo usual em falas desta natureza, o amplo e colorido quadro da análise biográfica
de uma povoação como Monsaraz, com larga e importante projeção histórico‐artística na vida
do nosso País.
Por isso, com plena consciência das limitações pessoais e sem pretensões que só serviriam para
nos ridicularizar no conceito do auditório de «elite» que nos honra com a sua generosa presença,
tentaremos esboçar perante VV. Ex.as, em curtos mas precisos quadros de teatro histórico,
alguns dos aspetos da vida de Monsaraz que mais atraentes nos pareceram e que julgamos
capazes de prenderem, embora fugidiamente, a atenção de todas as pessoas empenhadas no
conhecimento do passado, das glórias e também das vicissitudes da nossa imensa e hoje tão
desesperada e mal compreendida terra do Alentejo.
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Não nos propomos, portanto, tratar com pruridos de erudição a sedutora temática biográfica
da velha povoação de Monsaraz, ainda há poucos anos quase desconhecida e ignorada da
cultura portuguesa e hoje, mercê de unia lufada de brisas fecundas, desvendada e bem
conhecida do grande público, nos mais ínfimos detalhes da sua vida, da sua história, da sua arte,
da sua estranha e inconfundível paisagística.
Tentaremos, assim, traçar apenas, perante VV. Ex.as, um esboceto histórico‐artístico de
Monsaraz e, para adoçarmos a bravia aridez da exposição e imprimirmos alguma vida e alguma
cor aos mortiços vitrais que vamos focar, projetaremos também alguns diapositivos que serão,
talvez, a única conquista espiritual válida que VV. Ex.as terão alcançado quando chegarmos ao
fim desta despretensiosa e monótona fala.
E com este leal e claro aviso peço a VV. Ex.as para virem comigo a Monsaraz.
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A pouco mais de 40 quilómetros a nascente da cidade de Évora e junto da margem direita do
grande e misterioso rio Guadiana, no cume de um cerro solitário, ergue‐se, como
melancolicamente escreveu o poeta da terra. «a carcaça estranha de MONSARAZ».
Povoação acastelada e enclausurada na sua bronzeada cerca de muralhas, dominando vastos
horizontes e lembrando, no estranho perfil, uma enorme e desmantelada nau, Monsaraz, pelo
seu evocativo poder anímico, pela transparente atmosfera de iluminura que a envolve, é hoje
um arcaico mundo perdido na fronteira com a Espanha e oferece‐se, na terra do Alentejo, como
um valor histórico, monumental e paisagístico da mais alta ressonância turística e possuidor das
mais surpreendentes visões cenográficas para atrair e conquistar multidões. Para darmos a VV.
Ex.as o clima do tema que vamos tratar começaremos por lhes mostrar alguns diapositivos.
MONSARAZ:
Quando ouvimos pronunciar esta palavra mágica ou quando tomamos o primeiro contacto com
aquela espectral cenografia os nossos anseios emocionais levam‐nos, logo, a perguntar qual a
origem deste nome.
Passamos, pessoalmente, por esta terrível prova e apesar de nos faltar aquela extravagante
curiosidade que Montesquieu atribuía aos parisienses do seu tempo podemos confessar a VV.
Ex.as que o mistério filológico de Monsaraz nos torturou, impiedosamente, durante muitos e
longos anos.
Não sabemos bem porquê mas o que é certo é que os nossos linguistas têm, até agora,
desdenhado debruçar‐se sobre as origens e a explicação do famoso topónimo alentejano.
Apenas um deles, e dos mais notáveis e operosos, o Dr. José Pedro Machado, com a probidade
intelectual que tanto distingue a sua rica e bela personalidade, teve a coragem de afirmar que
não sabia explicar o topónimo Monsaraz.
Monsaraz é hoje, para nós, uma palavra composta e híbrida dos étimos latino Mons, montis, a
significar monte, outeiro, cerro e Xarez ou Xaraz, de etimologia desconhecida, talvez oriental ou
ibérica, depois arabizada, e deriva de Monte Xarez ou Monte Xaraz, corrompido na forma
Montesaraz do foral afonsino e, finalmente, por aglutinação, no Monsaraz atual.
O genitivo de qualidade Xarez ou Xaraz alude a terra povoada por densos matagais de esteva ou
xara, como espécie arbustiva outrora dominante no «maquis» da região e, ainda hoje,
florescente às portas de Monsaraz.
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Xarez ou Xerez é topónimo único registado em Portugal pelos dicionaristas e designa,
precisamente, uma herdade situada entre a margem direita do Guadiana e o sopé do outeiro
coroado pela acastelada povoação de Monsaraz.
A palavra Xarez ou Xerez equivalia, durante o domínio muçulmano na Península, à forma arábica
Saris ou Sharish.
Como VV. Ex.as sabem o equivalente castelhano do vocábulo português xara é Jara.
Assim Xarez ou Xerez apresenta os equivalentes arcaicos castelhanos de Jaraez ou Jarás que
conduziram, por corrupção, às formas atuais do Jerez castelhano e do Xarez portuguesa.
Monsaraz parece significar, portanto, Monte Xarez (forma etiológica) ou Monte Xaraz (forma
arcaica) isto é, cerro erguido no coração de uma terra à margem do Guadiana, antigamente
povoada por um impenetrável brenhal de estevas ou xaras e que, pela excelência de condições
estratégicas – posição de altura com cobertura defensiva de um grande e profundo rio –
recomendava, naquele sítio inacessível, a fundação de um povoado.
É este, pelo menos, o estado atual da nossa interpretação pessoal do topónimo Monsaraz.
E tal era, antigamente, o domínio avassalador destes matagais de cistáceas na região marginal
do Guadiana onde hoje se situam Monsaraz e Vila Nova del Fresno, incluída em Espanha nas
terras do bailiado templário de Xerez de los Caballeros que, ainda hoje, sob o patrocínio do
mártir arlesiano S. Genésio, se registam nestas povoações, persistentemente, os topónimos de
S. Gens do Xerez e S. Ginés de la Jara.
Perdoem VV. Ex.as que, para urdir esta tentativa pessoal de interpretação filológica do vocábulo
Monsaraz, os tenha, por tanto tempo, enredado nos densos meandros da toponímia e corrido
o risco de, com esta opaca nota de abertura, lhes fazer perder o fio da paciência para me
escutarem.
Monsaraz, permitam‐me a lapaliçade, é terra muito antiga e de história obscura até aos fins do
século XII.
Sabe‐se que, durante os tempos pré‐históricos, foi, pelo menos na parte agrária fértil do seu
território, região muito povoada e essa densidade de povoamento ainda hoje se encontra
testemunhada pela abundância de monumentos arqueológicos existentes no seu termo atual.
Na mancha fértil dos granitos, os arqueólogos alemães Leisner inventariaram e estudaram há
anos, com o maior rigor científico, um núcleo de quase 150 dolmens entre os quais se encontra
um monumento de proporções colossais – a célebre anta do olival da Pega – e, ainda
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recentemente, o nosso comprovinciano de Avis, Mário Sáa, trabalhando na pesquisa de marcos
miliários nas vias romanas da antiga Lusitânia teve a felicidade de descobrir, no termo de
Monsaraz, um enorme e famoso menir fálico.
Este monumento megalítico, pela raridade e pelas gigantescas proporções de que se reveste –
um bloco cilíndrico de granito trabalhado com quase 6 metros de comprimento, um diâmetro
basilar de 1,50 m e um orifício uretral com 30 cm de diâmetro – constitui peça cultural e turística
do mais alto interesse não só para Monsaraz como também para Portugal.
Como VV. Ex.as sabem o significado bretão de «menhir» equivale, em francês, a «pierre longue».
Pois o menir de Monsaraz, situado entre as duas aldeias do Outeiro e da Barrada, no termo da
vila, ainda hoje é conhecido na linguagem popular local pela designação de Penedo comprido e
o culto fálico, muito difundido na região durante os tempos pré‐históricos, encontra‐se,
também, materialmente documentado por amuletos de bronze com figurações e simbolismos
sexuais.
Outro monumento megalítico deste tipo, conhecido pela designação de Penedo Gordo, existiu,
também, nas proximidades de Reguengos, junto da estrada que liga esta vila à cidade de Évora
e foi, ingloriamente, destruído e sacrificado há anos para obra de cantaria.
Íamos jurar que algumas das pessoas presentes nesta sala, bem familiarizadas com o passado
da terra de Monsaraz, ainda tiveram a sorte de conhecer esse celebrado menir do Penedo
Gordo, erguido na grande lavra de vinhas que circunda Reguengos.
Mas o passado pré‐histórico de Monsaraz não se afirma apenas, clamorosamente, através dos
monumentos legados pela cultura megalítica.
No arrabalde da vila adormecida no tempo, junto da antiga igreja moçárabe de S. Bartolomeu e
da cuba muçulmana a que nos iremos referir dentro de instantes, a nossa curiosidade é
despertada pela presença de uma vasta necrópole rupestre pré‐romana, de sepulturas
antropomórficas cavadas na rocha viva e a própria Monsaraz foi, na antiguidade, um povoado
neolítico fortificado, um castro.
Este castro montesarense, com o colo defensivo localizado no arrabalde de S. Bartolomeu, entre
a porta da Vila e o outeiro onde hoje se ergue a ermida de S. Bento, foi, mais tarde, romanizado
e depois, sucessivamente, ocupado por visigodos, árabes, moçárabes e judeus e, finalmente, a
seguir à Reconquista, cristianizado.
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A romanização do termo oferece ricos e abundantes testemunhos no agro montesarense e
traduz o enleio virgiliano que esse povo consagrava às duras e movimentadas fainas do campo.
Próximo de Reguengos, junto da elegíaca ribeira do Álamo, aponta‐se a famosa vila agrária da
Azinheira, onde têm sido exumados tesouros de incalculável valor arqueológico para toda a
Península. Um deles, que mereceu honras de ser incluído, e como peça da maior importância,
na iconografia arqueológica da monumental obra do Prof. Garcia y Bellido sobre a escultura
romana ibérica, exibe‐se, hoje, no museu Soares dos Reis, do Porto, como joia de inestimável
valor para o estudo da romanização peninsular.
Todos VV. Ex.as o conhecem dado tratar‐se de peça singular no recheio museológico do nosso
País. É o belo e precioso sarcófago de mármore, rica e finamente esculturado, que o
colecionador inglês Eduardo Allen, nos fins do século XIX, comprou a um antiquário de Évora e
legou, por sua morte, à cidade do Porto.
E ainda recentemente o arqueólogo Afonso do Paço, com a nossa colaboração, exumou na
Azinheira a tampa, também esculturada, de outro túmulo romano de calcário que, neste
momento, temos sujeito a trabalhos de reconstituição e restauro para, depois, o podermos
mostrar em Monsaraz.
A presença visigótica, pelo contrário, escassos testemunhos materiais legou a Monsaraz. Afirma‐
se, todavia, em alguns achados numismáticos – trientes de Leovigildo e Recesvinto – e nos
capitéis de mármore encontrados nas velhas muralhas cristãs da Reconquista.
A partir do século VIII Monsaraz, como VV. Ex.as sabem, cai sob o domínio do Islão.
A povoação muçulmana que, nessa época e segundo julgamos, se designava pelo nome arábico
de Saris (ou Sharish) pertenceu ao extenso reino de Badajoz e ao seu antigo alfoz se prendem,
ainda hoje, os nomes de muitos muçulmanos notáveis em toda a Península, designadamente
Azovel, Ramila, Baço, Auanco.
Vale a pena determo‐nos alguns instantes sobre este problema para mostrarmos a VV. Ex.as a
importância que devemos atribuir à prospeção toponímica nos levantamentos históricos
regionais e, sobretudo, a importância de que esse estudo se reveste para a reposição da herança
muçulmana na terra e nas povoações do Alentejo. Os nomes de Azovel, Ramila, Baço e Auanco,
que muitos de VV. Ex.as talvez acabem de ouvir pronunciar pela primeira vez, aludem a quatro
mouros notáveis que nós tivemos a felicidade de prender à terra de Monsaraz e, de forma mais
expressiva, à própria história do domínio muçulmano no sul de Portugal.
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Os nossos mais autorizados historiadores, de uma maneira geral, falam muito vagamente de
grandes figuras muçulmanas relacionadas com a nossa própria história e os nomes que
acabamos de referir a VV. Ex.as encontravam‐se mergulhados no mundo das sombras e libertos
da terra portuguesa – nós diríamos, com mais rigor, da nossa imensa e querida terra do Alentejo,
tão povoada de vultos berberes e tão inundada de perfumes islâmicos.
Azovel, que empresta o seu nome a um afluente do Guadiana servindo de limite aos concelhos
de Reguengos de Monsaraz e Alandroal, foi um famoso caudilho cordovês almorávida que viveu
na primeira metade do século XII e chegou a ter sob o seu comando um corpo de exército de
1000 cavalos.
Lugar‐tenente do célebre governador de Badajoz, Texufine, este Azovel, mestre da guerra de
movimento em que os mouros eram tão exímios, morreu na mata de Montiel, em terras de
Castela, no ano de 1143, às mãos do exército cristão comandado pelo notável cavaleiro espanhol
Múnio Afonso, alcaide‐mor de Toledo.
Todos nós julgamos possuir do perfil histórico do nosso Geraldo Sem Pavor um conhecimento
que no‐lo inculca como tendo sido um dos primeiros vultos portugueses do século XII.
Pois o nosso Geraldo, como chefe militar e comparado com Azovel no equivalente do comando
de tropas montadas, talvez nunca tivesse estado, em vida, à frente de um exército com um
efetivo de 300 cavalos, menos de um terço da cavalaria manobrada pelo almorávida.
Para VV. Ex.as poderem avaliar da projeção deste Azovel no mundo muçulmano peninsular, basta
dizer‐lhes que Ibne Caldune, o maior historiador árabe de todos os tempos, não hesita em o
classificar de «chefe almorávida de alta categoria».
A prospeção toponímica da ribeira e da atalaia do Azovel, nos termos de Monsaraz e Terena,
documenta a passagem do famoso caudilho cordovês pela terra alentejana do vale do Guadiana.
Ramila, outro topónimo arábico do termo de Monsaraz, alude ao jurista e asceta cordovês Aboûl
Abbâs Ahmad ibn Ramila que, no tempo do califado, percorreu o reino mouro de Badajoz e se
celebrizou pela sua visão profética a propósito da decisão da batalha de Zalaca, em que Afonso
VI, de Castela, sai derrotado por uma formidável coligação muçulmana comandada por aquele
Iúçufe Ibn Texufine, o califa de quem Azovel foi lugar‐tenente, e em que participou, também, o
lírico famoso da Saudação a Silves, o rei de Sevilha Mutâmide Ibn Abbad.
Baço, que emprestou o seu nome a um pequeno curso de água no termo de Monsaraz – notem
VV. Ex.as como a maioria destes topónimos arábicos se encontram vinculados a linhas de água:
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Azovel, Almançor, Ardila, Alcarrache, Alcorvisca, Goudelim, Aldrogos, Baço, etc., – era um
famoso mestre pedreiro ao serviço daquele califa almóada Abu Iacub Iúçufe, que veio a morrer
dos ferimentos recebidos na algara de Santarém, em Julho de 1184.
A este Ahmed Ibn Baço se atribuem, entre muitas outras obras importantes, a direção da
construção da alcáçova e da cerca almóada de Badajoz e ainda, para maior espanto de VV. Ex.as,
o plano inicial da edificação do famoso alminar da mesquita de Sevilha que, mergulhado no
perfume subtil das laranjeiras andaluzas, todos conhecemos e admiramos pelo nome de Giralda.
Auanco, finalmente, que deixou o seu nome preso ao primeiro malhão da demarcação
ducentista entre os termos de Monsaraz e Portel, foi o celebrado Ibne Vazir, que chegou a deter
nas suas mãos as chaves dos reinos mouros de Silves, Beja e Badajoz, com inclusão de todo o
território pertencente à cidade de Évora.
Mas, vencida esta jornada de curtas notas pelo mundo das grandes figuras muçulmanas ligadas
ao campo e às águas do Alentejo, tornemos, placidamente, a Monsaraz...
Em 1167, depois da tomadia da cidade de Évora, a medina montesarense foi conquistada aos
mouros pelo famoso fronteiro e capitão de salteadores Geraldo Sem Pavor, numa expedição
que, tudo leva a crer, deve ter partido da capital do Alentejo ou, então, de Juromenha.
A testemunhar este novo feito de armas do conquistador de Évora ainda hoje subsiste nos
arredores de Monsaraz a prova toponímica da Geralda ou serra do Geraldo, designando uma
linha de colinas erguidas no sopé da velha povoação acastelada do Guadiana, donde ele devia
ter desferido o golpe de mão noturno contra a alcáçova árabe montesarense.
Depois, em 1178, encerrado o episódio da derrota de D. Afonso Henriques em Badajoz, o
aventureiro português, como mercenário, foi acolher‐se à corte do califa Abu Iacub Iúcufe I, em
Sevilha, e Monsaraz tornou a cair em poder dos almóadas.
Só mais tarde, talvez em 1232, nas operações conduzidas ao longo do áspero e escalvado vale
do Guadiana pelo rei D. Sancho II, auxiliado por templários, calatravos e espatários, Monsaraz
volta de novo, e desta vez definitivamente, à posse dos cristãos. A sua guarda foi, então,
confiada à Ordem do Templo.
Esta reconquista levada a cabo pela cristandade não implicou necessariamente, como VV. Ex.as
bem sabem, o total abandono e deserção da terra por parte dos mouros.
Muitos deles, em quem o amoroso amanho do campo e da horta apagara de vez os sentimentos
de belicismo religioso, sujeitaram‐se ao pagamento das páreas tributárias exigidas pelos cristãos
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e continuaram a lavra nas suas alcarias, a pastorícia no prado e nas cabanas alentejanas, a
atividade artesanal da olaria, dos chocalhos e dos cobres martelados, da coirama, das mantas e,
no rescaldo da guerra, submeteram‐se com o resignado espírito dos vencidos.
Mas o repovoamento cristão de Monsaraz e do seu termo, como válido facto histórico, só vem
a ocorrer no tempo de D. Afonso III e é obra do cavaleiro Martim Anes, alcunhado de Sangalho.
Este povoador Martim Anes parece ter sido, também, o primeiro alcaide cristão da fortaleza de
Monsaraz.
Em 1263 Monsaraz é já uma importante povoação fortificada na fronteira de Castela e também
sede de concelho perfeito e dotado com os mais amplos privilégios jurídicos.
Nesta data possui já, com toda a certeza, a sua primeira carta de foral expedida por D. Afonso
III e logo a seguir, em 1270, comunicada a Vila Viçosa e em 1276, para prevenir diferendos
territoriais com os concelhos vizinhos e, sobretudo, com o potentado senhorial do concelho de
Portel, D. João de Aboim, o rei manda reexpedir a carta anteriormente outorgada e fixa,
rigorosamente, a demarcação do primitivo termo montesarense.
O termo de Monsaraz, em 1276, era muito mais vasto do que é atualmente e alongava‐se,
morfologicamente, num grande esporão digital que alcançava o outeiro onde hoje se ergue a
vila do Redondo que, como VV. Ex.as sabem, é de fundação dionisiana e não existia, portanto,
nesta data.
Na posse do diploma foralengo a regular a sua vida pública o concelho de Monsaraz detém um
quadro administrativo e judicial completo, com alcaide, dois alvazis, tabeliães, mordomo,
almotacé e, pelo menos, um sesmeiro e vive, pode dizer‐se, o seu tempo áureo.
A partilha das terras pelos moradores, então povoadas por densos e impenetráveis matagais de
cistáceas e infestadas por feras e bandos de ladrões, foi dirigida, em nome do rei, por Martim
Anes e orientada pelo sesmeiro Domingos Pires, que julgamos oriundo de Avis.
A superfície abrangida pelas terras comunais baldias, pertencentes ao concelho, e pelas terras
reguengas, patrimoniais da coroa, tanto quanto nos é possível reconstituí‐las historicamente e
com exatidão, era, mesmo num contexto agrário medieval, impressionante.
Essas terras comunais – talvez 70 % do território concelhio – retalhadas no agro esquelético e
maninho de Monsaraz, ocupavam as manchas geológicas do silúrico superior e do pré‐câmbrico
e arcaico desdobradas na zona seca e árida das margens da ribeira do Azovel e no enclave sul
que alastrava entre as fragas dos rios Guadiana e Degebe. Esta escassa distribuição ducentista
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da terra de Monsaraz pelos povoadores explica, na sua fenomenologia histórica, a vastidão dos
baldios possuídos pelo concelho durante séculos e parece ter desempenhado, também, decisivo
papel nas periódicas e graves crises de despovoamento com que, na ronda do tempo, o termo
montesarense se viu a braços.
A maioria desses baldios medievais só veio a ser parcelada, e mesmo assim em grandes
herdades, já no século XIX, sob a égide da reforma agrária concebida e realizada por esse homem
a quem o penetrante espírito de Mário de Castro atribuiu, em justo comentário, o génio do bom
senso: o juiz de fora de Marvão, Mouzinho da Silveira.
No período inaugural da ocupação cristã, nessa época de vida local febril, o «pobrador» Martim
Anes – suspeitamos que este cavaleiro tivesse sido o conhecido Martim Anes do Vinhal mas não
reunimos ainda prova bastante consistente para o podermos afirmar com segurança – começou
logo a levantar a nova alcáçova e os cavaleiros das ordens militares e o clero secular deram,
também, início à construção dos templos primitivos de Santa Maria da Lagoa – a igreja Matriz
da vila – e Santiago, da ermida de Santa Catarina no arrabalde, do hospital do Santo Espírito e
da Albergaria, esta destinada a acolher os romeiros que, vindos da margem esquerda do
Guadiana, em busca do famoso santuário mariano de Terena, atravessavam o rio na barca de
passagem e faziam caminho por Monsaraz, onde pernoitavam.
Um peregrino ilustre, Afonso X, o Sábio, vindo da Andaluzia, a caminho de Terena, deve ter
passado nesta época por Monsaraz. Extramuros da fortaleza medieval e como presença material
da civilização muçulmana, talvez desde os fins do século XI, persistiam na Monsaraz
contemporânea do povoamento cristão, um templo moçárabe consagrado a S. Bartolomeu e a
cuba islâmica erguida no cemitério do arrabalde.
Este monumento muçulmano que acabamos de mostrar a VV. Ex.as, nas suas limitadas
dimensões e sob o orago de S. João Baptista, padroeiro dos hospitalários, foi poupado e
adaptado a ermida e batistério cristão.
A economia de Monsaraz, no século XIII, seguia o modelo da época nas terras do sul de Portugal
acabadas de reconquistar ao mouro e era, fundamentalmente, agrícola e pastoril.
Ao lado desta economia agro‐pastoril de base e na continuidade das tradições romana e
muçulmana temos como certo um apreciável desenvolvimento das pequenas indústrias da
olaria tosca – ainda hoje persistente e florescente em Aldeia do Mato – dos cobres martelados
e dos chocalhos e também o artesanato grosseiro dos tecidos de lã e linho – saragoças,
estamenhas, buréis, mantas regionais.
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O núcleo demográfico inicial, sabem‐no VV. Ex.as tão bem como nós, era constituído por cristãos,
moçárabes, mouros e judeus. A comunidade hebraica, quase sempre segregada para a periferia
arrabaldina das povoações, instalou aqui em Monsaraz, excecionalmente, a sua judiaria
intramuros da vila, na azinhaga da porta de Évora.
Na base da tolerância religiosa pelo judeu e pelo mouro encontrava‐se, fundamentalmente, o
problema do repovoamento das terras acabadas de reconquistar pelo cristão, tantas vezes
sujeitas a regímen de penúria demográfica incompatível com o seu ulterior progresso
económico e social.
Nesta política de repovoamento, como tão lucidamente opinou Vallecillo Ávila no belo estudo
publicado a propósito dos judeus de Castela, «os cristãos, poucos em número e pobres de
recursos, aceitavam a colaboração de quantos a isso se prestavam».
Os judeus de Monsaraz, principalmente devotados às operações da banca e aos complicados e
equívocos tratos da mercadoria, não devem, contudo, ter sido apenas financeiros e mercadores.
Foram, também, com certeza, lavradores e coureleiros, dado que a toponímia montesarense do
século XIII regista parcelas agrárias que pertenceram ao famoso bispo eborense da Reconquista
D. Durando Pais e que se encontravam, precisamente, localizadas em sítio já conhecido, nessa
época, pelo Vale do Judeu.
Ao lado da população pobre e humilde, historicamente condenada ao anonimato, a Monsaraz
do século XIII, toda ela povoada por «música de asas» como diria, simbolicamente, o poeta
bogotano José Asunción Silva, contou também, entre os seus moradores, algumas das figuras
mais gradas da sociedade portuguesa do tempo e, mais ainda, algumas figuras que, pela sua
projeção europeia, não podemos incluir apenas numa modesta escala de valores locais.
Uma dessas figuras foi a do grande bispo eborense da Reconquista D. Durando Pais que, como
VV. Ex.as bem sabem, teve papel preponderante na edificação de um dos mais grandiosos, senão
o mais grandioso monumento do Alentejo: a Sé de Évora.
D. Durando não possuiu apenas em Monsaraz as suas casas de pousada e muitas propriedades
rústicas como se veio mesmo a finar nesta vila alentejana, na primavera de 1283.
Pode apontar‐se, ainda, como um dos pioneiros da cultura da vinha e do olival no antigo termo
de Monsaraz e ali deixou o nome ligado a uma das ruas da povoação – a rua do Bispo – e o
espumoso rasto das suas cepas episcopais.
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Estas vinhas de bispo, nesses remotos tempos em que as cortes eram itinerantes e
deambulavam permanentemente pelas nações, correndo‐as de ponta a ponta, constituíam,
então, um dos grandes trunfos de que a Igreja se servia para fixar a heráldica cota da simpatia
real. Os monarcas da época possuíam, de facto, uma noção muito exata dos mosteiros e das
pousadas do alto clero que melhor sabiam condimentar e regar as suas mesas com uma boa e
espirituosa pinga.
E D. Durando, como conselheiro do monarca e homem da corte, parece não ter fugido, também,
a esta nobre, amorosa e delicada tradição episcopal.
Mas no tempo do bispo D. Durando – um dos maiores economistas portugueses da Idade Média,
mestre da Sorbona, íntimo de Pedro Hispano e de S. Tomás de Aquino, cavaleiro de Santiago,
embaixador da igreja portuguesa no concílio de Lyon, viajadíssimo – podem apontar‐se como
moradores em Monsaraz, entre muitos outros destacados vultos, o famoso cavaleiro templário
D. João Lourenço, o mercador, Martim Silvestre, conhecido magnate e tão fabulosamente rico
que chegou a comprar, em praça pública, todo o concelho de Mourão, Rui Pais Bugalho,
aparentado com um dos maiores mestres da caça de falcoaria na Península Ibérica, o célebre
Gomes Pais Bugalho, Aparício Anes, irmão do povoador de Monsaraz e dono e fundador da
«aldeia» com o seu nome, – onde hoje se situa o latifúndio do Roncão d'El‐Rei – e grande amigo
e íntimo do famoso mestre de Santiago, D. Paio Peres Correia.
João Lourenço, cavaleiro do Templo, teve tamanha projeção social no seu tempo que foi ele,
até, um dos embaixadores que D. Dinis mandou a Roma para negociar na cidade eterna a
fundação da Ordem de Cristo em Portugal, da qual chegou a ser Grão Mestre.
D. João de Aboim, o fundador de Portel, mordomo‐mor e conselheiro de D. Afonso III, a quem
acompanhara na corte francesa de Branca de Castela e do rei S. Luís foi também vizinho de
Monsaraz a partir de 1267.
Era, no seu tempo, um homem sensível e privilegiado, trovador com honras de cancioneiro,
senhor de pendão e caldeira que, como diria Sofia de Melo Breyner, «com o suor dos outros
ganhava o seu pão» e,………… diremos nós, as suas terras.
A Monsaraz perturbou ele os limites geográficos naturais com o seu termo de Portel e, não
contente com esta desembaraçada e fidalga conquista, ainda lhe arrancou mais uma fatia
territorial para a anexar ao grande herdamento do Esporão por ele comprado a Soeiro
Rodrigues, juiz ordinário de Évora.
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Também o bando português que apoiou em Badajoz a rebelião de Sancho IV contra seu pai o rei
Afonso X, o Sábio, tinha fortes raízes humanas cravadas na terra de Monsaraz. Desse bando
faziam parte Estevão Pires Godinho e outros montesarenses com os apelidos de Rocha e Anes,
que os anais históricos da velha povoação registam com insistência.
Tem estranho e delicado sabor a evocação destes factos ocorridos há 700 anos e, talvez por isso,
nos seja permitido glosar para Monsaraz o que Maurice Barrés escreveu a propósito do famoso
santuário francês do Puy e dizer que a velha vila do Alentejo é, «para o nosso gosto pessoal, a
vila mais sedutora, a mais estranha e, também, a mais rara de Portugal».
Em 1319, acabada de fundar em Portugal a Ordem de Cristo, Monsaraz é logo erigida comenda
desta milícia e fica na dependência de Castro Marim.
Sensivelmente nesta época, de certeza posteriormente a 1317, ergue‐se em Monsaraz o edifício
gótico do primitivo Tribunal, decorado a fresco com o famoso painel alegórico da Justiça terrena.
A torre de menagem de cinco quinas que, nas noites quentes e enluaradas do verão alentejano,
recorta naquela atmosfera subtil o seu perfil altaneiro e projeta no casario da vila adormecida
as suas sombras fantasmagóricas, é do mesmo tempo e julgamo‐la, também, obra dionisiana.
Entre 1325 e 1342, segundo o itinerário real dado por Armando de Castro na sua notável obra a
propósito da Evolução Económica de Portugal, D. Afonso IV, o nosso mais intrépido monarca
caçador, esteve em Monsaraz, pelo menos uma vez; e em 1340, provavelmente sob o comando
do filho do rico mercador Martim Silvestre, o cavaleiro e mestre de falcoaria Gomes Martins,
reúne‐se em Monsaraz e no seu termo uma pequena hoste de cavaleiros e peonagem que dali
parte a juntar‐se às forças concentradas em Évora pelo rei D. Afonso IV e que, sob o signo da
Vera Cruz do Marmelar, sai da capital do Alentejo a derramar sangue e suor na batalha do
Salado.
Depois, já no tempo do rei D. Fernando, os senhores absentistas do termo de Monsaraz sofrem,
alarmados, o traumatismo social da Lei das Sesmarias e, logo no início da crise da Independência,
a vila é saqueada nos haveres e na honra pela canalha dos arqueiros ingleses do conde de
Cambridge, Eduardo, e os montesarenses, com armas na mão, respondem corajosamente a
estas bárbaras e sensuais manifestações da tão declamada aliança britânica, matando «muitos
deles escusamente».
Com a evolução desta crise histórica nacional a vila fronteiriça do Guadiana abraça o partido da
rainha de Castela, D. Beatriz, a filha de Leonor Teles e, pela voz do seu alcaide‐mor Gonçalo
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Rodrigues de Sousa, bisneto do sensível fidalgo fundador de Portel, o rapace D. João de Aboim,
apoia a absorção castelhana de Portugal.
Esta atitude consciente, refletidamente interessada e, no fundo, defensiva de arcaicas
prerrogativas de casta por parte de numerosa e qualificada fação da nobreza portuguesa do
tempo não encontra, como sabemos, acolhimento no cérebro do moço Nun'Álvares.
O fronteiro do Alentejo, que escolhera Évora para quartel‐general das campanhas na sua
frontaria, escoltado por uma pequena hoste de escudeiros decididos, sai uma madrugada desta
cidade, toma Monsaraz por ardil estratégico e manda içar no eirado da torre de menagem, com
clamoroso gáudio da burguesia popular, o pendão do mestre de Avis.
Aos primeiros clarões da aurora, aquele a quem os castelhanos chamavam, com tanto despeito,
o Nuno «Madruga», manhosamente, solta um pequeno fato de vacas a pastar no vale do Limpo,
no sopé de Monsaraz, e tenta o alcaide a ir arrebanhá‐las para as encerrar no castelo. Este,
ingenuamente, cai na armadilha e, como o «rouxinol» de Cachemira, deixa abertas as portas da
fortaleza por onde vão entrar os homens de Nun'Álvares, emboscados nos penhascos e no
matagal de estevas que circundam a alcáçova.
Gonçalo Rodrigues, o alcaide‐mor, é logo destituído na alcaidaria e a 24 de Setembro de 1384,
Mem Rodrigues de Vasconcelos, o comandante famoso da Ala dos Namorados em Aljubarrota,
assume as funções de alcaide‐mor de Monsaraz.
Os bens possuídos por Gonçalo Rodrigues no termo de Monsaraz, entre os quais se contava o
latifúndio do Esporão, que, nos fins do século XIII, andava nas mãos do seu bisavô D. João de
Aboim, foram, então, doados a Mem Rodrigues, avô de Álvaro Mendes de Vasconcelos que veio
a ser, mais tarde, já no século XV, o construtor do solar amuralhado do Esporão e primeiro
morgado deste título.
As Crónicas e os biógrafos de Nun'Álvares que lhes aproveitaram as informações para
recortarem o perfil do Condestável são unânimes em atribuírem a Monsaraz a importância
qualificativa de um dos mais fortes e leais baluartes fronteiriços na luta contra Castela.
Nun'Álvares converteu a fortaleza de Monsaraz, nessa época, em base logística e centro de
irradiação estratégica e desta vila partiu ele, numa ardente manhã de verão, acompanhado por
uma pequena hoste – 80 lanças e uns 150 homens de pé e besteiros, refere a Crónica – a resgatar
um roubo que os castelhanos haviam feito nas ricas pradarias da Vidigueira e a castigar o vizinho
«pueblo» de Vila Nova del Fresno onde o inimigo, triunfante, se havia acoitado.
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Nesta operação partida de Monsaraz parece que Nun'Álvares, como era seu costume, ia
montado numa mula e quando tentava transpor uma porta rasgada na base da torre de
menagem de Vila Nova, os castelhanos, que o espreitavam do alto da torre, alvejaram‐no com
um enorme pedregulho que o atingiu numa coxa, lhe esfarrapou uma espenda da sela e por
pouco não o mata da mesma maneira como seu irmão mais novo, Fernão Pereira, fora morto
junto da porta da torre do castelo de Vila Viçosa.
A tradição condestabrina montesarense é muito absorvente e não se traduz apenas na memória
dos episódios militares mas alarga‐se ainda à tão apregoada devoção de Nun'Álvares à Virgem
e à fundação, no arrabalde de Monsaraz, da pequena ermida da Orada que, mais tarde, em
1670, veio a ser incluída e absorvida pela fundação do convento de agostinhos descalços que
hoje ali se ergue, em confrangedora e melancólica ruína.
Povoação de fronteira, pouco tempo antes assolada e devastada por graves surtos epidémicos
da peste negra e, agora, tragicamente sujeita às terríveis inclemências da guerra com Castela,
Monsaraz encontra‐se, nos fins do século XIV, quase despovoada. E como se as pragas da peste
e da guerra não bastassem para fazer dela uma terra morta e mergulhada em sombras de
tristeza e desolação, sofre novo trauma social com a criação, no tempo de D. João I, de um couto
de homiziados destinado a atrair moradores e a tentar a sua expansão demográfica à custa de
criminosos foragidos à Justiça e recrutados na escória humana do país.
Em 1422, por doação do Condestável a seu neto D. Fernando, Monsaraz é integrada na
Sereníssima Casa de Bragança e passa, em matéria de tributação fiscal, a constituir um dos mais
preciosos e fartos vínculos da grande casa ducal portuguesa.
Nesta época, alcançada a paz com Castela depois da gloriosa jornada de Aljubarrota, pacificada
a fronteira donde sempre se levantara o «soão» da remata avoenga castelhana, o campo de
Monsaraz anima‐se e povoa‐se da vida que lhe empresta uma densidade populacional que orça
pelos 5000 vizinhos, tidos em velhos documentos por «boas gentes».
Mas, pouco tempo depois, por a vila ser «fragosa e de má serventia», torna a cair em nova crise
de despovoamento.
E tão grave se manifestou esta nova crise demográfica que, em cortes celebradas no tempo de
D. Afonso V, o procurador do concelho de Monsaraz, Diogo Lourenço, apela para o rei e solicita
para os moradores da vila e do seu termo, como medida repovoadora, a isenção dos tributos a
que se encontravam obrigados, alegando ainda, com clarividência política, que essa isenção
devia ser extensiva «aos judeus e mouros que ali fossem morar».
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O rei, com a exata noção da importância estratégica de Monsaraz como povoação fronteiriça
fortificada, que ele bem conhecia por ali ter pousado pelo menos uma vez, não só atende as
reclamações formuladas por Diogo Lourenço em matérias administrativa e fiscal como também,
para facilitar o acesso dos moradores à vila, manda pavimentar as congostas que, pelos flancos
do outeiro, ascendem às portas da muralha e alarga a sua generosidade até à concessão do
grande privilégio urbanístico do calcetamento das ruas no interior da povoação. Esse
calcetamento foi executado com o material lítico pobre de xisto regional e, para maior segurança
ambulatória das cavalgaduras e dos próprios homens movendo‐se em ruelas de acentuado
desnível, a técnica adotada foi a da calçada em cutelo, com os toscos blocos de laje implantados
de gume no leito da pavimentação, como ainda hoje lá se pode observar nos troços mais antigos
do empedramento.
Outro fenómeno curioso e atraente na vida campestre da Monsaraz quatrocentista foi o
fenómeno da transumância pastoril.
Pela linear evocação que temos vindo a fazer já VV. Ex.as concluíram, certamente, que as crises
demográficas envolvem um fenómeno periódico e repetido, com carácter fatalista, na história
de Monsaraz.
Na orla do termo, desde os velhos tempos da reconquista ao mouro, o concelho de Monsaraz
possuía vastas terras comunais baldias, maninhas e revestidas por altos e impenetráveis
matagais ou então por baixos e raquíticos matinheiros – ou matineiros como, por corruptela,
ainda hoje dizem em Reguengos.
Estas terras, está bem de ver, andavam alobadadas e, nas zonas sulcadas pelas grandes linhas
de água do Guadiana e do Degebe e povoadas por aqueles densos matagais de cistáceas que,
no século XVIII, tanta impressão fizeram ainda ao botânico alemão Link, encontravam‐se todas
as espécies de caça de montaria, veações, porcos monteses e até o próprio urso.
E este aspeto, quanto o julgamos saber, foi normal na edénica paisagem do campo
montesarense, pelo menos até ao fim do século XV.
A periferia do termo de Monsaraz, a norte e a sul da vila acastelada, não era lavrada e cultivada
e destinavam‐na os oficiais da câmara à pastoreação dos gados e ao aproveitamento de lenhas
para gasto dos moradores do termo.
Como VV. Ex.as sabem as condições climatológicas da Península impuseram à vida pastoril, desde
o tempo dos celtas, uma técnica especial de apascentamento do gado ovino – sobretudo o
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clássico merino espanhol – que implicava, periodicamente, as pequenas ou grandes migrações
dos rebanhos em regímen de transumância.
Monsaraz, no século XV, sobretudo as terras do termo confinantes com a bacia hidrográfica do
Guadiana, sofreu também as agruras do famoso e privilegiado regímen da transumância
espanhola, dirigido e economicamente explorado pelo grande potentado senhorial da Mesta
castelhana.
Basta poisar fugidiamente os olhos nas densas páginas da monumental obra do americano Julio
Klein sobre este tema, para podermos captar, sem esforço, a exata noção dos graves problemas
sociais e económicos suscitados pela transumância pastoril ao longo dos extensos itinerários
percorridos por esses rebanhos verdadeiramente tentaculares.
A transumância praticava anualmente um ritual migratório clássico e hoje muito divulgado e
bem conhecido do grande público.
Pelos prados do Alentejo, quando os nossos vales ainda eram verdes, transitavam,
habitualmente, os rebanhos merinos pertencentes às canadas soriana e salmantina da
transumância castelhana.
Os rebanhos, conduzidos por um autêntico estado‐maior de pastores, partiam ou regressavam
a Castela em datas rituais e antes de fazerem a sua entrada em Portugal os contratadores da
Mesta vinham ajustar a compra e assegurar a posse de algumas pastagens... nem todas as que,
depois, comiam.
A caminho das nossas férteis planícies do campo de Ourique passaram pelo termo de Monsaraz,
no século XV, rebanhos de 50 e 60 000 cabeças merinas, a maioria delas oriunda do campo
glacial da cidade de Sória.
A presença de sorianos e salmantinos no campo montesarense desta época ainda hoje sobrevive
na toponímia do termo: um dos pegos do rio Guadiana, na grande defesa do Roncão, a jusante
do moinho do Boi, intitula‐se, explicitamente, «Pego dos sorianos» e um dos mais vastos baldios
do antigo termo de Monsaraz, com as suas ásperas e degradadas colinas desdobradas ao longo
do fraguil do Degebe, em memória dos pastores salmantinos do século XV, tomou o nome de
defesa dos Salamanquiz ou Salamanquinos.
Depois, com o rodar do tempo, a tentação do Magrebe, a aliciante e rendosa empresa das
descobertas e as miragens da especiaria, do ouro, do marfim e dos escravos negros afastam as
gentes das patriarcais fainas da lavoura e muitos montesarenses dessa época fabulosa alistam‐
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se nas tripulações das caravelas e partem, também, a semear a fé de Cristo e, principalmente, a
cultivar o ideário mais positivo de traficar no continente negro as mais estranhas e desvairadas
mercadorias.
Diogo da Azambuja, cavaleiro professo da Ordem de Cristo que, logo a seguir à execução do
duque de Bragança D. Fernando II, no patíbulo da Praça do Geraldo, em Évora, viria a ser alcaide‐
mor de Monsaraz, recrutou gente no Alentejo e, encarregado por D. João II, largou, em 1481, a
fundar a primeira feitoria portuguesa na África e a levantar, com cantaria previamente
aparelhada em Portugal, o famoso castelo de S. Jorge da Mina.
Quem sabe se muitas dessas vetustas e morenas pedras do celebrado baluarte português de S.
Jorge da Mina, que as nossas cartas náuticas do século XVI figuram sob os mais românticos
exotismos arquitetónicos orientais, não foram arrancadas aos imensos barrotais graníticos do
termo de Monsaraz e amorosamente afeiçoadas naquele campo legendário pelas hábeis e rijas
mãos dos pedreiros montesarenses de quinhentos?
Quem sabe, ainda, se aquelas famosas mantas de sorrobeco matizadas, por arcaicas influências
da temática decorativa berbere, a faixas verdes, vermelhas, azuis e brancas, os clássicos
«lambens» – «debaixo dos quais o frio não sabe onde estamos» como, tão consoladamente,
clamava o friorento poeta muçulmano de Santarém, Ben‐Sara – que constituíam a base da troca
comercial portuguesa com o ouro da Mina trazido do interior do sertão pelo indígena negro, não
foram, também, tecidas pelas delicadas e preciosas mãos dos artífices montesarenses, mestres
notáveis na confeção das mais belas peças do tradicional artesanato laneiro do Alentejo?
Com a execução do duque de Bragança, em Évora, a gente grada de Monsaraz, tão opulenta e
privilegiada à sombra da frondosa árvore feudal da Sereníssima Casa, sente passar pela terra o
frémito glacial da justiça temível e do maquiavelismo coroado de D. João II. Fernão Rodrigues
Pereira, alcaide‐mor de Monsaraz, a quem chamavam o «Pássaro», acolhe na vila os filhos do
justiçado e, atravessando o Guadiana, refugia‐se com eles em Castela.
Um dos órfãos que a duquesa viúva confiou à guarda do alcaide‐mor de Monsaraz era o moço
D. Jaime que, mais tarde, o próprio rei D. Manuel reporia no ducado de Bragança e que tanto se
viria a celebrizar na conquista da praça de Azamor e no assassinato da própria mulher, uma filha
dos duques de Medira Sidonia, acusada de amores ilícitos com o pajem António Alcoforado na
corte ducal de Vila Viçosa.
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Época dramática esta em que as ambições dos homens, os ancestrais e opacos privilégios da
nobreza, o supremo poder jurídico da coroa e, por vezes, a honra ofendida dos grandes senhores
da Terra fizeram correr, no áspero e seco campo do Alentejo, caudalosos rios de sangue.
Monsaraz viveu também, nesta época, um destes terríveis dramas sanguinários, em tudo digno
do memorável e trágico desagravo daquela D. Maria a Brava, tão celebrada nos anais da história
de Salamanca.
O episódio sangrento, pelo seu intenso conteúdo emocional, vale a pena ser contado a traços
largos. Revela, nitidamente, a costumagem violenta da época e talvez, em matéria de
desagravos pessoais, a semente doutrinária lançada à terra portuguesa pelo monarca reinante.
Álvaro Mendes de Vasconcelos, neto do heroico comandante da Ala dos Namorados em
Aljubarrota, o famoso Mem Rodrigues, foi primeiro morgado do Esporão e residia, no tempo de
D. João II, no solar acastelado que ele próprio mandara edificar nas redondezas da atual vila de
Reguengos.
Este fidalgo tinha dois filhos, João e Diogo Mendes de Vasconcelos.
O primeiro filho sucedeu ao pai no morgadio e o segundo, casado com uma filha de Fernão
Soares de Albergaria, foi primeiro morgado das Vidigueiras, onde teve o seu solar, mais tarde a
residência de campo da família do conde de Monsaraz e que o grande poeta alentejano, com
telúrico poder de evocação, cantou naquele poema imortal da Sesta, que todos VV. Ex.as bem
conhecem:
«Nogueiras, altas nogueiras
Da Quinta das Vidigueiras»
Álvaro Mendes, o velho morgado do Esporão, «fidalgo dos mais ilustres de Évora» no dizer do
padre Fialho, foi um dia insultado naquela cidade por Diogo Gil Magro, cavaleiro da casa do rei.
Diogo Gil era homem de tanta confiança de D. João II que foi ele, até, de parceria com seu irmão
Rui Gil e com os quatro irmãos Palhas, o encarregado pelo monarca de assassinar o alcaide‐mor
de Moura, Lopo Vaz de Castelo Branco.
Este crime, como é bem sabido, foi praticado nos matos do termo de Moura, no decorrer de
uma montaria.
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A ofensa pública dirigida por Diogo Gil ao fidalgo do Esporão não consentiu a este, alquebrado
pelos anos, tirar pronto desforço pessoal. Álvaro Mendes apressou‐se a dar conhecimento do
agravo sofrido aos dois filhos que, moços ainda, se encontravam em África, na frontaria de
Tânger.
Ao receberem a notícia do pai João e Diogo Mendes de Vasconcelos não tardaram em regressar
a Portugal.
Vieram encontrar‐se com o velho fidalgo ao solar amuralhado do Esporão, no termo de
Monsaraz, e aqui souberam que o matador do alcaide de Moura e blasfemador da honra do pai,
apavorado perante a eminência do desforço que os filhos do ofendido não deixariam cair em
cesto roto, se havia refugiado no castelo de Arraiolos e ali fora pedir proteção e asilo ao alcaide
e senhor da vila, Pedro Zuzarte.
Os dois irmãos do Esporão, auxiliados pelo seu parente Diogo Lobo da Silveira, barão de Alvito,
por Diogo da Azambuja, Diogo de Mendonça e outros fidalgos eborenses, armaram gente nos
seus domínios senhoriais e, em bando, dirigiram‐se a Arraiolos.
Nesta vila, rebentando a porta à machadada, assaltaram a casa onde Diogo Gil se encontrava
escondido e fizeram‐lhe o mesmo que D. João II, na presença de Diogo da Azambuja, havia feito
ao seu cunhado duque de Viseu: mataram‐no à punhalada.
Executada a vingança cortaram a cabeça da vítima e, no regresso a Évora, então um formigueiro
cosmopolita de gente, passearam‐na, ostensivamente espetada na ponta de uma lança, pelo
local da ofensa e pelas ruas da cidade, em solene e sinistra manifestação de desagravo público
pela honra paterna.
Sobre o cadáver do matador do alcaide de Moura cuspiram os Mendes de Vasconcelos a
maldição apocalíptica do «quem a ferro mata, a ferro morre».
As viris e fidalgas erupções desta natureza pagavam‐se muito caras nos tempos de D. João II e,
em regra, acabavam com os seus autores amarrados ao baraço da forca ou ao aderno do cepo,
mesmo que eles tivessem as linhagens cravadas nos pergaminhos da primeira nobreza do reino.
Mas, por vezes a inflexível justiça dos grandes homens também oscila, caprichosa e fragilmente,
entre a rigidez dos princípios éticos e a terna doçura das amizades. E, a este propósito, contam
os cronistas do tempo, o genro de Diogo da Azambuja, Francisco de Miranda, amigo íntimo do
rei, intercedeu na corte em favor dos filhos do venerando morgado do Esporão levando o seu
patrocínio ao extremo de interpelar D. João II nestes termos irreverentes:
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«E se a Vossa Majestade lhe fizessem o mesmo que a eles fizeram, que faria Vossa Majestade?»
O rei, atónito, rendido à intencional brutalidade da argumentação do amigo, parece ter
respondido fria e laconicamente:
«Faria o mesmo que eles fizeram e, por isso, me haverei com eles temperadamente».
A resposta do monarca, a ser autêntica, mostra claramente que, nesse tempo, a honra era ainda
uma força irresistível que não só acordava a clemência na alma de um cardo como triunfava,
até, da própria morte dada a um sicário.
João Mendes de Vasconcelos que, como filho primogénito do morgado do Esporão, havia sido o
autor material do desacato, para se furtar ao castigo, homiziou‐se em Castela, onde viveu até à
morte de D. João II, ocorrida pouco tempo depois.
Regressou, então, a Portugal e D. Manuel nomeou‐o, mais tarde, nosso embaixador na corte de
Carlos V.
No termo de Monsaraz este braço fidalgo dos Mendes de Vasconcelos recorda‐se não só através
dos dois solares rurais do Esporão e das Vidigueiras como, também, nos «montes» dos Mendes
e do Morgado, erguidos nos arredores de Reguengos.
No princípio do século XVI Monsaraz, já colorida pela cosmopolita nota demográfica das
escravas negras e dos mulatos gerados nas suas fecundas entranhas, recebe a visita do escudeiro
de D. Manuel, Duarte Darmas, encarregado pelo monarca da missão de desenhar as vistas
panorâmicas e as plantas das fortalezas fronteiriças do reino.
Num dos desenhos à pena dessa preciosa reportagem gráfica quinhentista lá se podem ver a
janela já mutilada da torre de menagem dionisiana com a sua robusta grade quadriculada em
vergalhões de ferro, o perfil do outeiro de S. Gens ainda sem a coroa da atalaia seiscentista de
Nicolau de Langres e, no arrabalde, a igreja de S. Bartolomeu com o seu humilde frontão
sobrepujado por tosca sineira e as duas cruzes moçárabes de braços iguais.
Em 1512 D. Manuel manda reformar o velho foral de Monsaraz e regula a vida pública da vila e
do seu termo por novo, mais amplo e atualizado diploma jurídico.
Um dos moradores que assina, em Câmara, o termo de recebimento deste foral manuelino é,
precisamente, o alcaide pequeno de Monsaraz, Martim Botelho, o mesmo a quem Duarte
Darmas, expressamente, alude numa das legendas das suas belas vistas panorâmicas.
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E também nesse diploma, perpetuando a densa tradição montesarense do Condestável, se faz
referência a uma «Horta do Conde» que, muito provavelmente, pertenceu ao glorioso conde de
Arraiolos.
Depois, em 1520, encontrando‐se na vila o bacharel João Álvares ouvidor do duque de Bragança
D. Jaime, os moradores de Monsaraz suplicam humildemente a fundação da confraria da
Misericórdia, na qual se incorporariam a albergaria e o hospital pobre do Espírito Santo
primitivos, do século XIII – os nossos hospitais parecem ter sido, na ronda dos séculos, sempre
iluminados por franciscana pobreza e, com os escassos bens que, para tratarem os indigentes,
abnegadamente lhes têm sido legados pelos doadores particulares, mais pobres têm ficado
quando, sob o signo do social, os seus provedores, generosa, caridosa e desprevenidamente, se
têm inclinado a colaborar com os opulentos e demiúrgicos serviços burocráticos dos modernos
potentados financeiros da assistência – petição que foi logo deferida no dia 1 de Novembro do
ano seguinte, 1521.
Mas a confraria da Misericórdia, depois da reunião das forças vivas de Monsaraz, à qual
assistiram, entre muitos outros, o fidalgo e alcaide‐mor António Lobo, os vigários das quatro
igrejas da vila e ainda aquele Martim Botelho a que há instantes nos referimos, só vem a ficar
definitivamente instituída na matriz de Santa Maria da Lagoa em 27 de Julho de 1522.
O primeiro provedor da Misericórdia de Monsaraz, com a sua insígnia da vara preta de muitos
anéis de latão amarelo, foi, segundo as boas normas da sociedade burguesa da época, o fidalgo
e cavaleiro Grizante Nunes, morador na vila.
Em 1527, a avaliar pelos dados fornecidos pelo cadastro da população do reino, Monsaraz e
todo o seu termo regista 647 fogos que expressos em modernos índices demográficos, talvez se
possam computar, aproximadamente, nuns escassos 1700 habitantes.
Esta nova crise demográfica deve imputar‐se à peste que continuava a grassar com alarme em
Portugal, a provocar grande mortandade e a levantar, nessa época, complexos e graves
problemas na vida dos povos.
Um desses problemas resultava da precária e superficial inumação dos mortos no interior dos
próprios templos que, por vezes e como o afirma o cronista espanhol de quinhentos Juan Daza,
por falta de espaço e com a fartura dos enterramentos causava «tão grande fedor nas igrejas
que não havia homem que nelas entrasse».
E foi talvez por causa deste problema sanitário do mau cheiro exalado pela putrefação dos
cadáveres superficialmente enterrados na igreja de Santa Maria da Lagoa ou, então, por voto
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dos moradores formulado à Virgem para alcançarem a graça da extinção da peste, que a
primitiva Matriz gótica do século XIII foi mandada demolir e que, em sua substituição, se
construiu o templo quinhentista que domina, atualmente, o casario de Monsaraz.
A edificação deste templo, extraordinariamente grandioso para a modéstia urbanística da
povoação, teve começo em 1560 e deve‐se, como o ensinou oportunamente o Prof. Reinaldo
dos Santos, a mestre Pero Gomes, da escola de Afonso Álvares.
Concluída a monumental obra da nova Matriz de Santa Maria da Lagoa – uma igreja feita de
novo no século XVI mas que uma certa cultura nacional, obstinada e falsamente, continua a
atribuir à devoção mariana do Condestável – a lavoura de Monsaraz, periodicamente
«crucificada nos braços negros da fome» como diria o poeta Manuel Alegre, atravessou uma
grave crise e o trigo produzido no agro montesarense não bastava para o «entretien» das
sementeiras e também não chegava para a alimentação dos moradores pobres.
E por tal forma que, na primavera de 1581, D. João III se viu obrigado a proibir a saída do trigo
de Monsaraz e do seu termo, notificando expressamente os lavradores a venderem na vila o
cereal das suas produções, desde que lho pagassem no prazo de 30 dias a contar da data da
entrega.
Em 1588 a crise do trigo continuava ainda viva e o rei, em busca de solução ocasional e
comprometida, manda arrotear e lavrar o baldio da Machoa.
Este baldio constituído, segundo referem velhos papéis, por «maninhos que se não aproveitam
nem lavram e que, se forem aproveitados e lavrados, podem dar pão» foi, em 1608, arrendado
a Manuel Moreno de Chaves pelo largo prazo de 10 anos, obrigando‐se este lavrador a arroteá‐
lo e semeá‐lo ao serviço dos interesses económicos do concelho de Monsaraz e da extinção da
fome na área do termo.
Como prudente norma jurídica, por razões de profilaxia moral dependentes do barro humano,
consideravam‐se expressamente excluídos destes contratos de arrendamento das terras
comunais dos concelhos, os oficiais da Câmara, os juízes ordinários e dos órfãos, os alcaides‐
mores e os tabeliães.
Esta nuvem negra da crise do pão que, nos fins do século XVI, pairava sobre Monsaraz, adensou‐
se ainda com o luto da pesada e inglória derrota de 1578, em Alcácer Quibir.
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As sombras crepusculares dessa terrível derrota desceram também sobre Monsaraz, que se sabe
ter dado em homens e em sangue uma contribuição substancial à nossa tão trágica aventura da
África.
António Lobo, alcaide‐mor de Monsaraz, tomba ao lado do rei na terra ardente do Magrebe e
sob o espanto dos seus próprios olhos, no campo poeirento da batalha, vê morrer o próprio filho
que era o enleio da sua vida.
Portugal, agrilhoado às funestas consequências políticas da aventura desencadeada por um
jovem psicopata coroado de lisonjas, perde a independência e, como simples colónia, cai sob o
domínio da Espanha.
Monsaraz, vinculada desde 1422 à donatária Casa de Bragança, continua, todavia, durante a
ocupação espanhola, sob tutela administrativa e judicial da Sereníssima Casa.
Sobre a murmurante brisa dos Braganças soprou apenas uma forte rajada de vento espanhol
mas, no fundo social da vida dos povos, tudo continuou idêntico ao arcaico figurino do passado.
E assim, a 29 de Agosto de 1598, por ordem do duque de Bragança e como medida de fixação
demográfica local, esboça‐se em Monsaraz uma modesta reforma agrária que se traduziu no
parcelamento das terras comunais concelhias situadas à roda da vila e na sua distribuição pelos
moradores pobres e sem uma nesga de ferregial para arrotearem.
O espírito da partilha dos ferregiais de Monsaraz, informado por balbuciante e comprometido
princípio de justiça agrária, contemplava, apenas, os moradores sem posse de terras e, ao longo
dos séculos, sujeitos à degradante escravidão das trevas.
Todavia, alguns privilegiados da terra, procurando iludir a ordem ducal e o transparente espírito
da justiça social do tempo, logo começaram, com jurídico e baixo oportunismo, a alienar, por
título de compra, as courelas distribuídas pelos pobres ao abrigo dessa reforma agrária de
compromisso e intenção demográfica.
A paisagem de minifúndio que hoje podemos contemplar nos flancos do cerro montesarense,
onde a terra se mostra retalhada em pequenos ferregiais isolados uns dos outros por baixos
muros de pedra solta e cenográficos renques de piteiras mexicanas, resultou desta partilha
quinhentista do agro comunal à roda de Monsaraz.
Mas a Monsaraz dos fins do século XVI e princípio do século seguinte não vive apenas dos
episódios históricos ligados à sua medieva tradição agro‐pastoril.
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Participa, também, no processo evolutivo da vida espiritual do país e, em 1606, Monsaraz
contribui já com uma verba de 40 000 réis para a manutenção das bolsas de estudo atribuídas
aos estudantes pobres que frequentam, na Universidade de Coimbra, os cursos de Medicina e
Farmácia e impulsiona a formação de médicos e boticários ao serviço da diluída e retalhada
assistência portuguesa.
Esta verba paga pela vila de Monsaraz em prol da cultura universitária portuguesa conta‐se, até,
como sendo uma das mais altas entre todas as que eram concedidas pelas restantes terras do
Alentejo.
Entretanto começa, surdamente, a estruturar‐se em Portugal a conspiração contra a opressão
espanhola. O patriótico movimento da Restauração conta no Alentejo com grandes vultos da
conjura e logo a 2 de Dezembro de 1640, vindo de Vila Viçosa, chega a Monsaraz um correio a
cavalo com a «alegre nova» de se ter levantado rei de Portugal, o duque de Bragança D. João.
O portador da notícia é recebido em Monsaraz pelo alcaide‐mor Fernão Rodrigues de Brito e a
população da vila fronteiriça que, durante os 60 anos da perda da independência nacional, não
conseguira esquecer que, dos lados da Espanha, nunca vieram bons ventos, nem bons
casamentos, acolheu‐a em delírio.
Segundo rezam velhos e amarelecidos papéis festejou‐se a libertação com «dois dias de missa
de pontifical e procissão com toda a solenidade de música e de instrumentos costumados,
fazendo‐se descamisada com toda a nobreza da vila e do seu termo e acendendo‐se luminárias,
por toda a parte».
D. João IV foi aclamado em altas vozes na praça e nas ruas de Monsaraz pelos três braços do
povo, da nobreza e do clero, os sinos das igrejas repicaram festivamente e estralejaram foguetes
no céu.
Portugal está, mais uma vez, para não fugir ao seu histórico destino, em guerra aberta com a
Espanha.
As velhas fortificações de Monsaraz, as suas torres e a sua cinta de muralhas medievais,
encontram‐se ultrapassadas pelas novas tácitas da guerra seiscentista.
Havia, assim, que reformar os velhos muros da Idade Média e guarnecê‐los por uma nova rede
de fortificações à Vauban, adaptada às técnicas da guerra com artilharia.
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Nicolau de Langres, famoso mercenário francês a soldo de Portugal, vem a Monsaraz para
reconhecer toda a linha do Guadiana, localizar a rede das atalaias defensivas e desenhar o novo
plano das fortificações a construir na vila fronteiriça.
O apagado clima pacifista da vila medieval assume vivos e inquietos ritmos belicistas e logo a 21
de Março de 1643, em missão militar e acompanhado pelos peritos estrangeiros João
Cosmander, jesuíta flamengo, e João Gilot, francês, o tenente‐general da artilharia do reino Rui
Correia Lucas apresenta‐se em Monsaraz e é recebido na Câmara, onde são tomadas
importantes deliberações estratégicas.
Por outro lado o campo de Monsaraz, dotado de rica e farta disposição de pastos, vota‐se
febrilmente à criação dos cavalos necessários ao abastecimento da cavalaria e povoa‐se de
grandes manadas de éguas.
Os maiores centros da criação equina dessa época localizam‐se na grande defesa do Roncão,
marginando os ermos do rio Guadiana e nos prados ubérrimos do manuelino Reguengo do Mon
Real, este situado no anel agrário onde se ergue a atual vila de Reguengos de Monsaraz.
E, de vez em quando, na Natureza selvática e bravia do termo, como medida de proteção e
fomento equino, juntavam‐se os povos e faziam‐se grandes montarias aos lobos, como praga
depredadora dos rebanhos e das manadas.
Pela vastidão do terreno devassado pelos batedores e pela imensidão das portas dispostas na
zona monteada deu brado no Alentejo a montaria que, no inverno de 1644, precisamente na
véspera do dia de Natal, se realizou no termo de Monsaraz.
Em 1670, para alojar uma comunidade de frades agostinhos descalços, funda‐se no arrabalde
de Monsaraz, junto da ermida mandada edificar no século XIV pelo condestável D. Nuno Álvares
Pereira, o convento da Orada.
A fábrica do mosteiro, em materiais toscos e pobres da região, teve início em 1700 e resultou
pesada, fria e perfeitamente identificada com a paisagem desolada e agreste das margens da
ribeira do Azovel, povoadas por impenetráveis matagais de esteva e tojo gatum e recortadas em
ciclópicos e plúmbeos alcantis de xisto.
Este convento da Orada possuía cerca anexa onde os monges, à arcaica maneira muçulmana,
amanhavam a sua pequena horta e recolhiam e apascentavam a futilidade de um rebanho
constituído à custa das cabeças dadas de esmola pelos «fiéis cristãos» da lavoura local, a
pretexto das festas pascais.
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Entre a comunidade monástica e o povo de Monsaraz suscitaram‐se, por vezes, graves conflitos
com fundamento no modo de vida dos frades e nos abusos cometidos pelo rebanho conventual
na fruição dos pastos comunais da Coutada.
E como o cenário ecológico de Monsaraz foi, remotamente, dominado pela cultura do trigo e a
grande força humana do trabalho se concentrava, tradicionalmente, no amoroso amanho e
granjeio da terra e, por outro lado, a maioria da população rural montesarense vivia dobrada
aquela miséria da argila com semente no coração, como diria o poeta Mohammad Iqbal, a grave
crise cerealífera que ocorreu no termo de Monsaraz em 1685 levou, para justa e equitativa
distribuição do pão entre os moradores humildes, à criação do celeiro comum.
Este situava‐se no início da Rua Direita, quase em frente da casa que, segundo a tradição, teria
sido a pousada do juiz de fora e nela, se observava o regimento do celeiro de Évora que, como
VV. Ex.as sabem, foi o primeiro a ser criado em Portugal, no ano de 1576.
O problema do trigo em Monsaraz teve sempre tal acuidade que sensivelmente nesta época, a
Câmara da vila, dominada pela alarmante noção do dano que a passarada causava às
sementeiras e às searas chegou a aprovar e a executar uma postura de guerra aos pardais na
qual fixava um prémio pecuniário a atribuir e a pagar a todos os moradores que apresentassem,
nos Paços do Concelho, as cabeças dos pássaros desta espécie que se provasse terem sido
mortos na área do termo.
Nesta época, sem graves riscos de morte, não se podia ser pardal em Monsaraz e o prolóquio
alentejano do «todo o pássaro come trigo mas quem paga é o pardal» encontrava‐se, a avaliar
pela letra da postura municipal, em voga triunfante e ameaçadora no termo montesarense.
Agora os pardais abandonaram a calma e mansa atmosfera do campo e voaram para o cósmico
bulício das grandes urbes e, no Alentejo, esta fúria destruidora das espécies e criadora dos mais
graves e insuspeitados desequilíbrios biológicos da Natureza, ateada pelas nobres confrarias
venatórias, deslocou‐se contra os chamados nocivos da caça.
Mas nós, resignadamente, teremos de nos penitenciar destas impulsivas suspeições produzidas
perante VV. Ex.as onde, certamente, se encontrarão muitos e estrénuos devotos de Santo
Huberto que não nos perdoarão a irreverência terrível.
Minhas Senhoras e Meus Senhores: para felicidade de VV. Ex.as, Monsaraz começa já a entrar
em agonia.
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A sua posição de vila medieval acastelada, erguida no alto de um cerro agreste e alcantilado, o
impetuoso progresso das aldeias dos Reguengos, situadas numa planície de fácil e suave acesso
e enriquecidas pelo viril esforço dos seus moradores posto ao serviço de um surto ardente do
artesanato laneiro e das cintilações económicas da grande lavra de vinhas – com castas de uvas
que destilam e entoam cantos de sereia e acordam sonhos paradisíacos nas libações dos homens
– e ainda a fidalga e tradicional fidelidade do ideário montesarense aos princípios políticos da
monarquia absoluta, tudo isto contribuiu para a agonia e decadência de Monsaraz e para a
transferência da sede do concelho, em 1840, para a jovem vila dos Reguengos, arvorada, «pelos
serviços dispensados pelos seus habitantes à causa da Liberdade», segundo reza expressamente
o texto da sua primeira carta de foral concedido por D. Maria II, em cérebro da vida pública do
termo.
A morte de Monsaraz traduz, assim, não só o reflexo do explosivo progresso económico de
Reguengos como, também, o colorido ideológico do enciclopedismo voltaireano que, a partir da
segunda metade do século XIX, tanto tem inquietado os filhos da terra a que a gente fidalga e
absolutista de Monsaraz, tão irónica e depreciativamente, chamava a «terra dos cardadores de
lã».
A sonâmbula e misteriosa alma da Monsaraz atual foi admiravelmente evocada pela estranha
sensibilidade da poetisa Beatriz Rodrigues Barbosa, de Reguengos, e encontra‐se bem expressa
nos versos que vamos dizer:
Adrede
ali parou o tempo!
O vidro da ampulheta
contra as velhas muralhas
O mesmo sol o mesmo vento
A mesma cor por dentro,
nas fachadas,
As mesmas casas frescas,
Os fantasmas
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presentes
dos ausentes,
a poesia
o alaúde
a pedra,
Mensagem conservada.
Mensagem conservada, diremos nós, numa nobre e generosa dádiva de abandono ao equívoco
snobismo esteticista do homem moderno e num maravilhoso, autêntico e prodigioso milagre de
ressurreição da vila morta alentejana.
21 de Abril de 1966.