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IDENTIDADE MESQUITA TRADIÇÃO E DESCENDÊNCIA COLONIAL Trabalho de Conclusão do Curso de Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo do Instituto de Educação Superior de Brasília, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharelado em Jornalismo. Orientador: Prof. Marco Antônio Pires Brasília 2005 Daiane Souza Alves IDENTIDADE MESQUITA TRADIÇÃO E DESCENDÊNCIA COLONIAL Dissertação aprovada pela Banca Examinadora com vistas à obtenção do título de Bacharelado em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo pelo Instituto de Educação Superior de Brasília. Brasília, DF ______de____________ 2005. BANCA EXAMINADORA: _________________________________________ Prof. Prof Marco Antônio Pires - orientador ___________________________________ Prof___________________________ _______________________________ Prof__________________________

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IDENTIDADE MESQUITA

TRADIÇÃO E DESCENDÊNCIA COLONIAL

Trabalho de Conclusão do Curso de Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo do Instituto de Educação Superior de Brasília, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharelado em Jornalismo.

Orientador: Prof. Marco Antônio Pires

Brasília 2005

Daiane Souza Alves

IDENTIDADE MESQUITA

TRADIÇÃO E DESCENDÊNCIA COLONIAL

Dissertação aprovada pela Banca Examinadora com vistas à obtenção do título de Bacharelado em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo pelo Instituto de Educação Superior de Brasília.

Brasília, DF ______de____________ 2005.

BANCA EXAMINADORA:

_________________________________________ Prof. Prof Marco Antônio Pires - orientador

___________________________________ Prof___________________________

_______________________________ Prof__________________________

DEDICATÓRIA

À Deus e aos meus pais,

Jesus Pereira Alves e

Eduvirgens Leandro de Souza Alves, mamãe Dinha.

Sem vocês, nada posso.

AGRADECIMENTOS

À toda a comunidade Mesquita que se permitiu participar para o

cumprimento deste trabalho, não apenas com dedicação mas com muito afeto e

hospitalidade, também deixando partilhar de suas alegrias e sofrimentos. À dona

Carmem Lúcia Lisboa, imprescindível como facilitadora de aproximação com a

população e fonte de informação e apoio. À Sandra Pereira Braga, ao Sr. Sinfrônio

Lisboa da Costa, Sr. João Antônio Pereira, dona Antônia Pereira Braga e a todos os

que, embora não tenham sido citados, colaboraram doando seus momentos de

trabalho, um pouco de sua vida e tradição.

A Jesus, meu pai, e a Dinha, minha mãe, pela chance e pela vitalidade

que herdei. Obrigada pela dedicação e por todo o esforço no acompanhamento

deste trabalho e de toda a minha vida.

A Jefferson Pereira da Silva, razão do meu amor e melhor amigo, por me

equilibrar psicologicamente, sempre compreensivo e disposto a partilhar de todos os

momentos, bons e maus, do processo.

Agradeço também, imensamente, a todos os amigos que, embora

distantes, torceram para que este trabalho fosse possível e aos que se fizeram

presentes propondo-se a colaborar: Eduardo Erthal, Roberto Fleury, Fernando

Paulino, Heloísa Doyle, Amaro Luiz Alves, Iza Mendes, Paulo Cabral.

Por fim, à Fundação Cultural Palmares que atenciosamente se dispôs a

fornecer todas as informações necessárias sobre Mesquita, além de esclarecer

gentilmente todas as dúvidas relacionadas ao reconhecimento desses

remanescentes negros.

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.....................................................................................00

1 IDENTIDADE. MESQUITA....................................................................00

2 ACEITAÇÃO E RECONHECIMENTO – IDENTIDADE CULTURAL X MODERNIZAÇÃO................................................................................................... ..00

3 FALHA NA COMUNICAÇÃO COMO OBSTÁCULO PARA O RECONHECIMENTO.................................................................................................00

4 INCLUSÃO SOCIAL: VALORIZAÇÃO e REGISTRO.........................00

5 UM OLHAR SOBRE MESQUITA........................................................00

6 FOTOGRAFIA COMO FONTE DE INFORMAÇÃO e REGISTRO HISTÓRICO...............................................................................................................00

7 CONSTRUINDO HISTÓRIA...............................................................00

8CONCLUSÃO...........................................................................................0

REFERÊNCIAS.........................................................................................00

ANEXO A – O PESO DA ESCRAVIDÃO................................................00

ANEXO B – ENTREVISTA A FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES – 31/03/2005.................................................................................................................00

ANEXO C – PROJETO ARCA DAS LETRAS........................................00

ANEXO D – AS COMUNIDADES NEGRAS E O ARTIGO 68 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ...............................................................00

ANEXO E – DECRETO Nº 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003....00

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APRESENTAÇÃO

A idéia para a realização de um levantamento sobre Mesquita dos

Crioulos partiu de uma sugestão de pauta para o jornal-laboratório durante o sexto

semestre da graduação em Jornalismo no ano 2004. A princípio, a pauta seria uma

reportagem sobre uma comunidade constituída excepcionalmente por negros e sua

relação com o ditado comum entre habitantes de cidades próximas “Em Mesquita,

homem branco não cria raiz”.

Durante as apurações descobriu-se, a razão pela qual a raça negra é

predominante: o fato das terras pertencerem a remanescentes de escravos que

trabalharam para o Garimpo Santa Luzia – atualmente cidade de Luziânia – no

período do Ciclo do Ouro, século XVII, fase de grande importância na História

econômica do Brasil.

Como uma das repórteres, pude, em parceria com Paulo Cabral,

conhecer e transmitir, na matéria Mesquita: um povoado à margem do tempo,

publicada no jornal-laboratório NaPrática Maio/Junho/2004, o que é preservado

desde o período colonial. O estudo sobre o povoado despertou a curiosidade e o

interesse em aprofundar o conhecimento sobre seu passado e em colaborar de

alguma maneira para que sua história não se perca por falta de memória, de

registro.

Na matéria, foi abordada parte da história do povoado, interligando a sua

origem à atualidade e às razões pelas quais manteve-se e/ou resistiu mais de um

7

século, praticamente isolado, paralelo ao crescimento urbano e econômico a apenas

8 quilômetros da Cidade Ocidental e à 55 quilômetros da Capital Federal.

A reportagem teve repercussão em alguns veículos de comunicação. Por

exemplo, no Correio Braziliense, que publicou, em 29 de agosto de 2004, na capa

da Revista “D”, a matéria Mesquita: Poeira, Quietude, Passado, apontando hipóteses

sobre a origem do povoado e apresentando sua rotina e tradições.

Houve, também, retorno de órgãos públicos, como a Fundação Cultural

Palmares (FCP) – entidade pública vinculada ao Ministério da Cultura – que realizou

trabalho de conscientização dos mesquitas – como serão chamados os habitantes

de Mesquita neste relatório – sobre a importância e as vantagens de se assumirem

quilombolas, independentemente de o serem ou não, literalmente.

Essas respostas funcionaram como elo entre o vilarejo e a sociedade

divulgando e incentivando a preservação da cultura deixada pelos escravos que

viveram durante a monarquia, apresentando, implicitamente, o contraste existente

entre os dois meios, o rural e o urbano.

Há anos, ser reconhecido como quilombo tem sido a principal dificuldade

de Mesquita. Como o governo pode reconhecer o povoado se os próprios moradores

não se assumem quilombolas? Se não se assumem, existem políticas em favor de

comunidades negras, independente de aceitarem essa condição? Como exigir de

um povo que aceite determinadas condições para que tenha “direito” à terra onde

vive há mais de três séculos consecutivos? O que é necessário para que Mesquita

seja reconhecido? Existem possibilidades de o vilarejo ser assistido de alguma

maneira? Se existe, quais os benefícios? Essa é uma questão que gira em torno das

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chamadas terras de pretos e das limitações a partir de como o artigo 68 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 a aborda:

Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam

ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o

Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

A reivindicação deste povo é por assistência. Para isto é necessário que

sejam reconhecidos como remanescentes de comunidades de quilombo. Para se

conquistar o reconhecimento é preciso que haja auto-aceitação, o que não ocorre

neste caso devido à condição que Mesquita tem de descender de escravos

alforriados.

O principal obstáculo é, portanto, a falta de esclarecimento e

conscientização sobre como o governo vem tratando a expressão “remanescente de

quilombo” e associando-a as comunidades negras rurais. Situação semelhante

ocorre com os índios, primeiros habitantes do Brasil, que hoje lutam na Justiça pelo

direito a pequenas porcentagens de terra em um território com área de 8.511.996

km2, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE).

O objetivo deste trabalho é, portanto, colaborar para a divulgação de

Mesquita como comunidade conservadora de tradições coloniais proporcionando

sua aproximação com o Estado. Com base em apurações anteriores, entrevistas,

relatos (Junho/2004) e pesquisas recentes sobre comunidades quilombolas,

pretende-se, a partir deste produto – catálogo fotográfico –, reunir vestígios capazes

de evidenciar Mesquita como um povoado digno de ser apreciado e que merece e

precisa ser registrado como comunidade de remanescentes de escravos.

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Optar por produzir um catálogo a partir de imagens que definam o dia-a-

dia de um mesquita foi uma decisão não muito complicada de se tomar pelos

seguintes fatos: 1. A facilidade da fotografia em atentar para a curiosidade de quem

a observa, no sentido de buscar conhecimento sobre a situação exposta; 2. A

eficácia da imagem impressa como documento, prova concreta e, principalmente,

visível do que é representado; 3. A interação e familiarização entre o apreciador e o

fato proporcionado pela imagem; 4. O manuseio do catálogo, que promove maior

“contato” e proximidade entre as realidades envolvidas (observador e

representação).

A intenção é, com este produto, apresentar ao Estado e aos demais

interessados o que há de preservado da cultura colonial (desde o período da

monarquia no Brasil) em Mesquita e como o povoado conseguiu manter-se sem

afiliar-se à modernidade, e com isto abrir discussões a este respeito e às

possibilidades de se assistir a comunidade, esta assumindo-se ou não quilombola.

Para a realização deste trabalho foram necessários acompanhamento

durante um ano do cotidiano da comunidade, referências bibliográficas, dados

adquiridos por pesquisadores das comunidades quilombolas e de órgãos do governo

responsáveis pelo seu monitoramento, tais como a Fundação Cultural Palmares

(FCP) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

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1 IDENTIDADE MESQUITA

Terra de negros, Mesquita dos Crioulos surgiu após a assinatura da

Abolição da Escravatura pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888, segundo

descendentes de habitantes da região pertencente ao garimpo Santa Luzia que, há

época, se estendia dos pontos onde hoje se encontra a cidade de Cristalina à

Brazlândia e Planaltina de Goiás. Com a desagregação das grandes propriedades,

fazendeiros e garimpeiros perderam ou cederam partes de suas terras para famílias

de ex-escravos.

Embora saiba-se pouco sobre Mesquita, existem evidências suficientes

para esclarecer trechos de seu passado. Durante o Ciclo do Ouro, século XVII, a

grande fazenda pertencente a João Manoel Mesquita serviu ao garimpo, hoje cidade

de Luziânia, com mão-de-obra escrava. As águas de seus córregos eram usadas

para a lavagem do minério, segundo consta em documentos da época e em raras

obras de autores que escreveram sobre o garimpo.

Os habitantes locais relatam o surgimento da pequena comunidade como

se esta tivesse se originado de apenas duas famílias negras do século XVIII, Pereira

Braga e Magalhães, que se entrelaçaram gerações a dentro no decorrer dos

séculos. No povoado, todos os habitantes são parentes. Somente há cerca de 50

anos teria sido possível detectar focos de miscigenação e conseqüente aculturação.

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Não se sabe ao certo como as terras se tornaram posse desses

remanescentes. Existem três versões contadas pelos moradores sobre como essas

famílias teriam se apossado do terreno. Uma delas diz que João Manoel Mesquita,

com a assinatura da Lei Áurea sem herdeiros, permitiu a seus ex-escravos o

domínio de um trecho das terras. A outra diz que o fazendeiro teria vendido a um

casal de escravos uma porcentagem de seu território. Na última versão, três

escravas, entre elas a que teria sido sua ama de leite, teriam recebido parte da

fazenda pertencente a sinhá, esposa de Mesquita, como gratidão pelos anos de

serviços prestados, após a abolição da escravatura.

Com as tradições culturais herdadas de seus antepassados, durante todo

esse tempo a comunidade foi capaz de se manter independente no que diz respeito

à subsistência. Por meio do sistema de troca do escambo, foram eles capazes de

trocar alimentos agrícolas, doces artesanais por bem e mercadorias não produzidas

na localidade. Em cada casa produzia-se um determinado tipo de alimento que as

famílias mesquitas trocavam entre si para que as necessidades de todos fossem

supridas.

A cultura do marmelo (cultivo do marmelo e produção artesanal do doce

marmelada), os engenhos de cana-de-açúcar para a produção da rapadura e da

cachaça-de-alambique e a feitura artesanal da farinha-de-mandioca, do fubá de

milho e do polvilho são o que garantem, ainda hoje, o sustento de várias dessas

famílias que, até a segunda metade do século XX, tinham pouco contato com o

dinheiro. Esse contato cresceu após a fundação da Cidade Ocidental em 1974, a

apenas oito quilômetros de seu centro, desde então a divisão jurisdicional mais

próxima.

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Hoje, alguns desses produtos, além de fazerem parte da subsistência,

têm considerável valor para a economia local. São feitos em maior quantidade para

serem, também, vendidos em feiras e pequenos comércios de fora do povoado.

Durante meados do século passado, o maior produtor da marmelada foi o senhor

Aleixo Pereira Braga, que, além de cultivar o marmelo, incentivava pessoas da

região a também plantarem e produzirem o doce. Hoje, seu genro, João Antônio

Pereira, tem esse título, sendo também o fundador e presidente da Associação

Renovadora de Moradores e Amigos de Mesquita (AREME), instituição que luta por

melhorias e responde pelo povoado.

A população, constituída por cerca de 1.200 habitantes (dados da

Fundação Cultural Palmares – 2004) conta com apenas uma escola de ensino

fundamental. Tem também um posto de saúde, sem dia nem hora certa para

funcionar. Não existe endereçamento. As referências das casas são os números dos

medidores de energia. A população é basicamente constituída por idosos e crianças,

já que parte dos jovens deixa o povoado e vai para cidades mais desenvolvidas em

busca de melhores condições, retornando somente nos finais de semana.

Uma característica torna o vilarejo interessante: sobreviveu mais de um

século isolado, “independente” e, por 45 anos, praticamente, ao lado da capital do

poder nacional, Brasília, sem que houvesse incorporado certas conquistas da

modernização. O povo mesquita só teve contato com a energia elétrica há menos de

20 anos, a partir do governo José Sarney.

O catolicismo colonial e práticas tradicionais como a coletividade no

trabalho das lavouras, a feitura artesanal de doces, farinha e cachaça, os encontros

religiosos, são ainda preservados e considerados principais características do

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povoado. As principais festas tradicionais religiosas são a Folia de São Sebastião,

que acontece no mês de janeiro, a Festa do Divino Espírito Santo ou Folia de

Pentecostes, durante o mês de maio, e a Festa de Nossa Senhora da Abadia,

padroeira mesquita, no mês de agosto.

A comunidade vem sendo invadida por sitas cristãs pentecostais, o que

provoca modificações substanciais nos hábitos e na cultura locais, haja visto que o

protestantismo conseguiu à nova ideologia. Os conflitos se dão por conta dos

vínculos remanescentes do catolicismo tornando inaceitável aos mesquitas

seguidores de seus preceitos a alteração de valores simbólicos espirituais dentro de

sua religião tradicional e oficial.

Resistentes à sua memória histórica, os mesquitas referem-se à

escravidão com sofrimento, evitando resgatar tristes fatos contados por seus

antepassados que vivenciaram essa realidade. Segundo eles, o regime escravocrata

é uma parte de sua história que deve ser esquecida, pois a comunidade é livre e não

vale a pena se prender ao passado.

O “isolamento” decorrente da distância existente entre Mesquita e outras

cidades, até meados da década de 70, foi um dos fatores que fizeram com que a

comunidade perdesse o direito a recursos federal e municipal por ignorar o que vem

sendo feito em favor dos remanescentes de escravos.

Através deste estudo pretende-se alertar para a necessidade de registro

como comunidade remanescente de quilombo sem que haja a necessidade de

Mesquita assumir-se quilombo ou que se trabalhe a questão da aceitação da

comunidade como quilombola. Resgatar a questão do período escravocrata como

“requisito” para se adquirir o reconhecimento tem o mesmo significado de se magoar

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uma ferida aberta há mais de um século devido aos abusos e maus tratos sofridos

pelos negros durante a colonização.

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2 ACEITAÇÃO E RECONHECIMENTO – IDENTIDADE CULTURAL X MODERNIZAÇÃO

A grande questão associada às terras de pretos são as dificuldades

encontradas para que sejam reconhecidas e, consequentemente, tituladas,

podendo, assim, receber os recursos destinados pelo Ministério da Cultura por meio

da Fundação Cultural Palmares – que é encarregada de acompanhar e assessorar

os povos negros – e de outros órgãos do governo, a partir de ações afirmativas.

Anjos (2004, p.27) denomina terras de preto da forma que se segue:

As comunidades negras rurais, também chamadas terras de pretos, surgem a partir dos quilombos constituídos por negros que fugiram do sistema escravocrata. [...] As denominadas terras de pretos resultam de domínios doados, entregues ou adquiridos com ou sem formalização jurídica, à família de ex-escravos a partir da desagregação das grandes propriedades monocultoras.

Terra de preto é uma expressão utilizada atualmente como forma de

amenizar o impacto da palavra “quilombo” e como sinal de respeito àqueles que não

se assumem quilombolas, mas se vêem apenas como remanescentes negros ou

descendentes de escravos alforriados.

Segundo ordens do rei de Portugal em 1740, o Conselho Ultramarino –

organização de ações conjuntas entre colônias no período de 1642 a 1833 – definiu

quilombo como sendo “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em

parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões

neles”, conforme cita Moura (1981, p.16).

Na língua congolesa, “quilombo” significa grupo que se reúne para rezar a

Deus. No Brasil, eram grupos formados por escravos negros que se concentravam

para adquirir força na fé e resistência na luta pela liberdade, fugindo da escravidão e

construindo novos sítios de moradia.

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Mesquita não tem registro como remanescente de escravos perante o

governo. Para que haja reconhecimento, é preciso a autoaceitação dos habitantes

como quilombolas, mas alguns não aceitam essa condição porque toda a

comunidade descende de escravos alforriados.

Outros mesquitas, sequer assumem-se negros pelo medo de se exporem

a preconceitos racial e de classe socioeconômica, além do receio à exploração

remetida ao seu passado histórico, que seria a pressão por parte de visitantes em

saber sobre o sofrimento a que os negros eram remetidos durante a escravidão.

Outras comunidades também passam por esse problema, pelo

desconhecimento de sua origem, por falta de registro ou informações que

evidenciem ou as comprovem como remanescentes de quilombos.

Entre outros casos, embora “algumas permaneçam parcialmente isoladas

geográfica, cultural e geneticamente até o presente e várias preservem muito de sua

identidade étnica” (OLIVEIRA, 1998, p.7).

Coordenado por Anjos (2005), o Centro de Geografia e Cartografia

Aplicada (Ciga) da UnB realizou durante os últimos cinco anos projeto que consiste

na localização de quilombos no Brasil. No dia 5 de maio de 2005 foi apresentado o

Quadro dos Registos Municipais das Comunidades Quilombolas do Brasil, com o

cadastro de 2.228 comunidades identificadas como remanescentes de quilombos e

sua localização municipal. O dado mostra que existe um número inestimável de

comunidades contemporâneas não registradas. Esse número tende a diminuir à

medida que o crescimento urbano apropria-se dessas regiões e ocorre o fenômeno

da miscigenação, que obriga a aceitação de outros hábitos ou práticas culturais

descaracterizadoras por parte dessas populações que poderiam ser preservadas.

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Essa “exclusão social” colabora também para a degeneração progressiva

dessas etnias devido à falta de monitoramento com vistas à sua preservação e

esclarecimento de seu valor social. Anjos (2005), em divulgação de resultados do

Projeto Geografia Afro-Brasileira da Universidade de Brasília (UnB), afirmou que

muitos negros do Brasil não se sentem brasileiros por falta de reconhecimento e pelo

não cumprimento da demarcação territorial como um direito.

A ausência da autoaceitação decorre da descaracterização ou perda da

identidade cultural por conta do sofrimento histórico associado ao período

escravocrata, tornando-se, assim, empecilho para o reconhecimento, valorização e

registro desses grupos. É possível que Mesquita não tenha sido registrado pela falta

de informação e divulgação de projetos e leis em favor das comunidades negras e

por não haver iniciativa por parte dos moradores em mobilizar o Estado.

O não reconhecimento e devido registro podem representar perda parcial

ou total de seu território, bem como a ausência de apoio em recursos para a

preservação de suas tradições e melhoramento de sua qualidade de vida.

Caracterizado pelo contato contínuo entre sociedades que trocam traços

culturais entre si, o processo de aculturação tem sido relevante obstáculo para o

reconhecimento de comunidades rurais negras. Devido ao processo de urbanização

que cerca e termina por se apropriar desses territórios, o contato extenso danifica e,

em alguns casos, leva à perda total da identidade desses povos. O desenvolvimento

e conseqüente aproximação de bairros e cidades impõem aos moradores desses

povoados a necessidade de se adaptar a novos valores culturais.

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As influências dessas cidades e vilarejos próximos às terras de pretos

prejudicam a conservação de sua identidade, pois a interação com outros costumes

pode modificar e até destruir valores tradicionais seculares. Isto acontece, devido a

necessidade de comunicação entre os homens e, para que haja interação, os

envolvidos, em constante aprendizado, adaptam linguagens e símbolos a sua

cultura. Segundo Linton (1959, p.309), os hábitos mais antigos de um determinado

povo, quando colocados como opção diante de um costume recente, deixam de ser

devidamente valorizados dentro de determinada cultura.

Há alguns anos, com o surgimento da Cidade Ocidental, Mesquita foi

cortado por uma estrada que ligaria o município a Brasília. Ás margens da estrada

formaram-se loteamentos, como Jardim ABC e Dom Bosco, que se encontram

próximos ao povoado. As pessoas que passam a residir nesses bairros vêm de

diversas regiões do país trazendo costumes que vão sendo compartilhados e

adaptados, gerando novas identidades culturais e ameaçando a preservação da

identidade colonial mesquita.

A comunidade negra de Morro Alto é uma das que passaram por situação

semelhante à de Mesquita, como define Barcelos (2004, p.167):

O impacto sobre a região de Morro Alto com o desenvolvimento da BR-101 configurou-se dentro do contexto nacional. Nesse contexto, no qual a estrada (unidade do sistema rodoviário) demarcava o ingresso ao progresso, ao desenvolvimento e à integração da sociedade brasileira, conforme as concepções governamentais, a comunidade de Morro Alto acabou, como grande parte da população marginalizada brasileira, ‘forçada’ à modernização excludente.

Em Mesquita, com o declínio na cultura do marmelo – principal fonte de

renda entre os séculos XIX e XX – devido às pragas, os habitantes buscam outras

formas de garantir o sustento. Os mais jovens saem do povoado em busca de

emprego e estudo. Com novas oportunidades, acabam por conhecer e retornar ao

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seu povo com hábitos que vão sendo agregados aos seus. Por exemplo, os ritmos

musicais e a variação de linguagem (novas expressões, gírias).

No povoado, a modernização, embora lentamente, vai sendo incorporada

à cultura mesquita, nem sempre substituindo, mas sendo adaptada ao rústico

facilitando o trabalho, a produção, e tornando acessível o contato com outros meios.

Por exemplo, a cachaça é ainda produzida em alambique embora, em algumas

casas a moagem da cana para o preparo da bebida seja feita em engenho elétrico.

Cultura, sob o ponto de vista antropológico, significa conjunto de hábitos e

costumes tradicionais transmitidos de geração para geração dentro de uma

comunidade. É o agrupamento de valores simbólicos, de conhecimentos específicos

característicos de um determinado povo. Pode-se definir como sendo “a vida total

de um povo, a herança social que o indivíduo adquire de seu grupo. Ou, ser

considerada a parte do ambiente que o próprio homem criou” (KLUCKHOHN, 1963,

p.28). A influência que uma cultura exerce sobre outra, descaracterizando a primeira,

é também um fator capaz de originar uma nova.

Tradições vão perdendo seu valor histórico-social à medida que são

modificadas, como é o caso da Catira, dança folclórica pertencente a comunidades

rurais negras, localizadas, principalmente, na região Centro-Oeste que, em

Mesquita, vem sofrendo adaptações por parte de alguns jovens, tendo seus passos

combinados aos da dança norte-americana cowntry por influência de freqüentadores

do povoado.

Uma das dificuldades enfrentadas para a elaboração deste catálogo foi o

primeiro contato com os habitantes. A aproximação nesse caso mereceu todo um

preparo especial, já que os mesquitas são pessoas que viveram durante anos

20

“isolados” de uma comunicação intensa com pessoas de fora que, somente, há

pouco tempo vem se intensificando.

Anunciar-se como estudante de jornalismo causou rejeição em algumas

famílias, que classificaram os jornalistas como mentirosos. “A gente conta uma coisa

sobre nossa história e eles falam outra usando nosso nome para explicar o que

querem e ganharem dinheiro às nossas custas”, disse uma moradora que preferiu

não se identificar.

Em pesquisa sobre o território negro Conceição dos Caetanos, Ratts

(1996, p.106) notou situação parecida e chamou a atenção ao depoimento de Bibiu

(2004), habitante da comunidade, que relatou:

Aqui tem vindo muita gente, muito reporte, fazer entrevista, mas antes da gente conhecer a história da consciência negra, a história dos antepassado dos nossos avô, todo reporte que vinha a gente fazia entrevista com eles, conversava, mas depois que a gente pegou a conhecer a realidade, a gente recuou. [...] Os reporte que anda aí no mundo atrás de saber da história para ganhar dinheiro, eles não tão recebendo nada aqui mais não. [...] A última vez que viero fazer entrevista aqui, os reporte trouxero uma corrente... O pessoal não sabia de nada. Amarraram os pés do pessoal pra mostrar como era que tinha sido a escravidão. Só que nós não interessava saber como tinha sido a escravidão, não. Abastava nós saber que negro era escravizado pela pele, pelo cabelo, pelo andado, pelos beiços.

Foram longas as conversas. O uso de uma linguagem simples e clara

explicitou todo o processo e objetivos deste acompanhamento durante um ano aos

mesquitas. Esclarecendo atentamente as dúvidas dos moradores a esse respeito

deu espaço a um sentimento recíproco de confiança.

Esse respeito foi abalado em algum momento com o número crescente de

jornalistas, pesquisadores e alunos de faculdades que chegaram ao povoado, em

alguns casos, praticamente exigindo dos habitantes informações a respeito do

regime escravocrata, principal fator da resistência ainda existente entre os

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mesquitas. A pressão ocasionou revolta em parte dos moradores, que deixaram de

falar sobre o pouco que sabem a esse respeito.

Todo o trabalho de aproximação foi reiniciado, desta vez mais

cautelosamente, refazendo e fortalecendo os vínculos de amizade e, como os

mesquitas, esquecendo a escravidão durante as conversas e apurações, tratando

apenas das tradições, foco para este registro fotográfico.

Outras dificuldades para a realização desta apuração estiveram

relacionadas à produção ou feitura artesanal de alimentos – por dependerem de

épocas de colheitas, clima, disponibilidade dos produtores –, às festas religiosas

tradicionais que ocorrem somente uma vez por ano e à preocupação das pessoas

ao lidar com supostos preconceitos a que estariam sujeitos com a divulgação de sua

imagem, entre outras.

A colheita, por exemplo, do marmelo se dá no mês de janeiro,

consequentemente a feitura da marmelada acontece também nessa época do ano.

A dificuldade em retratar o processo de produção do doce foi a falta de equipamento

fotográfico, que, emprestado pelo Instituto de Educação Superior de Brasília a

alunos do curso de jornalismo, não esteve disponível durante o período de férias.

Nesse aspecto, a metodologia utilizada foi selecionar alguns dos

moradores e explicar todo o processo detalhadamente, incentivando-os a comunicar

a importância deste catálogo para a comunidade, até que fosse possível conseguir o

equipamento adequado para fotografar seu cotidiano. Os pontos mais importantes

para a compreensão dessas pessoas que trataram de transmiti-los pelo povoado

foram:

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1. importância do reconhecimento por parte do governo;

2. valor histórico da comunidade;

3. significado do catálogo como ferramenta de registro histórico;

4. necessidade deste produto como arquivo para fazer parte de um possível acervo

em torno de Mesquita;

5. acompanhamento fotográfico das tradições culturais preservadas;

6. público alvo para a recepção do produto;

7. objetivos.

A explicação detalhada, transparente e paciente dos objetivos deste

trabalho permitiu superar as resistências e a desconfiança que alimentavam a

relação a jornalistas e a pesquisadores, o que possibilitou a confirmação de laços de

respeito e de aceitação, garantindo ao final, até mesmo o apoio dos moradores.

A partir do uso da clareza e transparência com que foi tratado o objetivo

da produção do catálogo em relação aos mesquitas, pôde-se conseguir melhores

resultados. O ato de fotografar foi facilitado e o interesse dos habitantes em

apresentar sua riqueza tradicional os incentivou a valorizá-la e preservá-la um pouco

mais.

23

3 FALHA NA COMUNICAÇÃO COMO OBSTÁCULO

PARA O RECONHECIMENTO

Mesquita não é o primeiro povoado de remanescentes de escravos a

resistir à denominação de quilombo. O motivo desta resistência decorre do

preconceito dos mesquitas em relação à expressão “quilombola” que, no período

colonial, era conferida a negros que se rebelavam contra seus senhores e fugiam

das fazendas por discordarem das condições de trabalho forçado e maus tratos.

Entre os mesquitas as expressões “quilombo” e “quilombola” remetem a

sentimentos de vergonha e são consideradas ofensas, já que a população descende

de escravos alforriados. Não foi necessário o uso da rebeldia por parte de seus

antepassados contra seu senhor para que fossem livres. Pelo contrário, segundo os

habitantes, os anos de serviços prestados, ainda que sob condições injustas, foram

pagos com parte das terras como gratidão para que pudessem desfrutar de sua

liberdade após a assinatura da Lei Áurea. Para os mesquitas, o período de

escravidão em sua história é algo qual não gostam de lembrar.

O fato de eles não se reconhecerem como quilombolas afeta diferentes

questões legais como a falta de apoio do Estado, a atenção para a catalogação e

preservação da memória, o problema da legalização da posse da terra, a

especificidade educacional e o resgate da auto-estima negra. Andrade Filho (2004)

diz que a falha está na comunicação e cita a expressão “comunidades de

remanescentes de quilombos”, constante no Artigo 68 do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias.

24

De acordo com o autor, o modo como são colocadas as palavras, em

qualquer texto, pode influenciar os fatos, principalmente se relacionados a leis.

Nesse caso, as prejudicadas seriam as comunidades que descendem de negros

alforriados, que perdem o direito de serem registradas simplesmente por não se

aceitarem quilombolas.

Gusmão (1996, p. 03) alerta que o mau uso de expressões, também em

campo de pesquisa, pode trazer danos à minoria que se pretende apoiar e defender.

Para se conseguir resultados positivos que contribuam de alguma maneira para o

grupo de estudo, o cuidado durante a fala deve estar dimensionado dentro da

antropologia, não colocando em jogo sentimentos e o conhecimento do que já foi

levantado desse grupo.

Em Mesquita notou-se incompreensão dos habitantes sobre a razão pela

qual o tratamento da comunidade teria que ser diferente em relação às comunidades

vizinhas, por exemplo, de loteamentos. Ficam confusos por serem alvo de atenção,

pela razão a qual são tão procurados somente por descenderem de escravos. Um

caso delicado, já que a questão do reconhecimento envolve a origem deste povo.

O não reconhecimento acarreta danos, como a não demarcação territorial

do povoado, expondo-o às chances de perda para loteamentos que vêm se

formando ao seu redor, à descaracterização de sua identidade histórica e cultural e

à ausência de direito para se exigir benefícios, como saúde, segurança e educação.

Andrade Filho (2004) esclarece que o artigo 68 do Ato das Disposições

Transitórias da constituição, se analisado ao pé da letra, gera transtorno por se

deixar compreender como se todas as propriedades rurais negras fossem

constituídas por descendentes de negros que geraram resistência ao regime

25

escravocrata. Afirma que a expressão utilizada na Constituição Federal desrespeita

os grupos originados de famílias de escravos alforriados ao impor-lhes que, para

terem direito ao registro acatem a condição de quilombolas.

Em consenso, Gusmão (1996, p. 04) remete a falha de comunicação à

exclusão social do negro:

Impasses de toda ordem se revelam no caso exemplar do próprio enunciado do artigo 68 do ADCT, tomado aqui como base de discussão. Seu enunciado trouxe à baila alguns dilemas que não lhe pertencem exclusivamente, mas que refletem os dilemas do próprio padrão que rege a inserção do negro na sociedade brasileira, e que resultam em dificuldades para reconhecer-lhe a especificidade de sua condição enquanto negro, em particular negro brasileiro.

Os negros tiveram “vida social” no Brasil, ainda no período colonial. Os

quilombos eram formados por escravos insubmissos que fugiam e se organizavam

em grupos os quais se diferenciavam uns dos outros por sua estrutura interna, forma

e origem e se estruturavam de acordo com o seu número de habitantes, segundo

Moura (1981; p.17-19). Soares (1995, p.60) ressalta a cidadania existente entre

quilombolas dentro de sua estrutura comunitária:

O quilombo era seu Estado Nacional, era sua nação, era um povo politicamenteorganizado e, de consequencia, o habitante daquele ‘refúgio’ era cidadão, gozava de todos os seus direitos políticos, sociais, ecnômicos e civis no seu meio, no seu ambiente.

Embora espalhados por diversos estados brasileiros, os quilombos,

mesmo distantes uns dos outros, cresciam cada vez mais, e os quilombolas tinham

um único ideal: a partir de contato com escravos ainda cativos, organizar planos que

resultassem na libertação dos negros. Essa comunicação foi de grande importância

para o fim da escravidão no Brasil.

A escravidão acabou e os mesquitas mantiveram as tradições herdadas

dos portugueses, seus senhores, e dos negros coloniais. É preciso conscientizar a

26

população para a necessidade da preservação de sua memória histórica,

reafirmando e mantendo a identidade, fazendo compreender seu valor perante a

sociedade, além de esclarecer dúvidas a respeito das etapas para o registro como

remanescente de escravos.

A Fundação Cultural Palmares considera como de extrema importância

que estes sejam devidamente registrados para que tenham, além da garantia da

posse da terra e políticas de estado de preservação territorial, recursos para

sobrevivência e, consequentemente, a conservação da cultura enquanto

comunidade negra.

Documentar os hábitos e ritos transmitidos entre gerações com o intuito

de chamar a atenção para o valor histórico-cultural de Mesquita, fazer uso da

linguagem visual e, a partir dela, instaurar maior compreensão e aproximação do

observador à sua realidade, é o que se pretende ao produzir um catálogo fotográfico

contendo seu registro sob o ponto de vista antropológico.

A produção de um catálogo fotográfico seria, também, uma estratégia

para que os mesquitas percebessem seu valor perante a sociedade brasileira e

tivessem um registro histórico de memória. A fotografia funcionaria como objeto de

recordação, elemento de reconhecimento e “autoaceitação” pelos moradores e como

documento de comprovação de sua situação cultural no presente momento para a

luta por recursos e melhoria em sua qualidade de vida.

Ver-se como representante ou como modelo de preservação de uma

cultura rica, porém ameaçada, daria a essas pessoas satisfação pessoal e coletiva –

por ser a comunidade extremamente fraterna e exemplo de respeito mútuo entre os

27

moradores – no que diz respeito à valorização da cultura, incentivando o resgate de

tradições e preservação das existentes.

A Fundação Cultural Palmares estabelece que, atualmente, toda e

qualquer comunidade negra que mantenha sua identidade de origem escravo-

colonial, tem direito a recursos, e que todos os órgãos do governo têm políticas

públicas voltadas a esses povos sob a condição de se assumirem quilombolas: a

solução encontrada para beneficiar os grupos negros “não incluídos” na

Constituição.

A principal dificuldade encontrada pela Fundação Cultural Palmares,

outros órgãos do governo e organizações não governamentais (ONGs) para

acompanhar esses povos é justamente o fato destes não se aceitarem como tais por

ingenuidade ou mesmo falta de conhecimento desse conceito.

Assim, Anjos (2004, p. 10) define que, “ao aprofundar-se no relato sobre a

realidade de cada comunidade, possibilita, ainda, afastar uma concepção arcaica do

termo Quilombo, decorrente da aplicação equivocada de cânones próprios da

sociedade escravocrata”. E cita como complemento afirmação da Associação

Brasileira de Antropologia, ABA (1996, p. 81), que coloca o termo quilombo como

tendo “assumido novos significados na literatura especializada e também para

indivíduos, grupos e organizações”.

A exigência de se assumirem como quilombolas é o que dá aos povos

negros de comunidades rurais o direito de exigirem subsídios para melhoria de sua

qualidade de vida, infelizmente nem todas as comunidades têm consciência desta

realidade ou, não possuem informações a esse respeito.

28

O complicador para que Mesquita não fosse devidamente reconhecido

pelo governo foi justamente a falta de informação por parte dos habitantes sobre o

que chegaria a ser “considerado” quilombo atualmente. Somente em meados do ano

2004 houve uma tentativa de esclarecimento por parte da Diretoria de Proteção do

Patrimônio Afro-brasileiro da Fundação Cultural Palmares.

No ano 2005, para o Projeto de Etnodesenvolvimento Econômico

Solidário das Comunidades Quilombolas desenvolvido pela fundação, foram

convidados jovens, representantes de povoados remanescentes de quilombos.

Tornado-se agentes de etnodesenvolvimento, estes jovens são preparados para

realizarem apurações em suas comunidades. Em Mesquita, João Paulo Braga foi

convidado a participar do curso e levantar dados dentro da comunidade.

A partir desse levantamento, que inclui o perfil da população, infra-

estrutura, situação territorial e atividades econômicas, a Fundação Cultural Palmares

poderá estudar melhor o caso Mesquita e desenvolver atividades com foco no

resgate cultural e no desenvolvimento sustentável. Outra atividade também

elaborada pela fundação é o intercâmbio quilombola, em que são selecionados

alguns habitantes de terras de pretos para que passem temporadas em outras terras

e troquem experiências, podendo, assim, descobrir o valor de suas tradições e a

importância do reconhecimento.

A Associação Renovadora dos Moradores e Amigos do Mesquita (Areme)

aguarda da comunidade respostas afirmativas para que Mesquita tenha direito ao

seu Certificado de Autodefinição Quilombola. Esse certificado permitirá a entrada no

Processo de Definição Fundiária que trata da delimitação legal e inalienável de seu

território e, aos habitantes, solicitar monitoramento por parte do Estado.

29

Para que Mesquita fosse contemplado com outros projetos de

responsabilidade da Fundação Cultural Palmares (projeto de apoio emergencial e

programa Bibliotecas Rurais Arca das Letras) foi realizada uma apuração

socioeconômica na comunidade. Após o diagnóstico, foram atendidas durante os

três últimos meses de 2004 com a cestas-básicas, as famílias mais carentes.

Já com o projeto Arca das Letras – organizado pelo Ministério do

Desenvolvimento Agrário por meio da Secretaria de Reordenamento Agrário e pelo

Ministério da Cultura através da FCP –, voltado às comunidades quilombolas,

Mesquita recebeu uma arca com cerca de 220 obras de diversos autores nas mais

variadas áreas da literatura para pessoas de todas as idades. Entre elas, livros sobre

outros quilombos, com o intuito de incentivar o interesse dos habitantes pelo resgate

e preservação de sua identidade.

30

4 INCLUSÃO SOCIAL: VALORIZAÇÃO E REGISTRO

Sensibilizar o Estado para que analise a situação do povoado, discutindo

meios de se resgatar suas tradições esquecidas, recorrendo a ONGs e órgãos

públicos para a necessidade de assistir Mesquita possibilitaria, por exemplo, o

monitoramento das questões relacionadas à legalidade e proteção da terra que não

pode, assim como qualquer outro território negro, segundo o artigo 1º da Lei Federal

nº 7.668 de 22 de outubro de 1988, ser comercializada, mas por falta de orientação,

são vendidos a qualquer preço a não remanescentes negros diretos.

Para não deixar que a memória simplesmente se perca, a preocupação

atual é resgatar e perpetuar a herança social antes que se descaracterize a

identidade. A reprodução da imagem (neste caso a fotografia) foi selecionada para o

cumprimento deste trabalho por sua eficiência bem como representação fiel e

inalienável de um determinado instante, como meio de informação, como objeto de

recordação e como arquivo de memória do que é retratado.

Fotografar Mesquita remeteria a uma construção de memória voltada à

raiz, à origem do povo brasileiro, à sobrevivência no pós-colonialismo e às

dificuldades enfrentadas durante todo o percurso após a queda do Regime

Monárquico até se chegar à época atual.

As festas religiosas, em homenagem a Nossa Senhora da Abadia, Divino

Espírito Santo e Folia de Reis –, com cantorias, comidas fartas e fogueiras são

tradições que, mantidas desde o colonialismo até os dias atuais. Estes rituais fazem

parte do folclore de Mesquita e são o que o fazem digno de ser registrado por tornar

31

possível a análise dos efeitos do progresso para a sociedade urbana e ser

considerado patrimônio vivo da humanidade.

A historiografia corre o risco de perder vários registros do povoado. Com a

morte de lideranças e dos mais velhos, aquilo que poderia ser resgatado por meio da

história oral, das narrativas, vai se perdendo. Ainda é pequeno o interesse

acadêmico pela experiência dos Mesquitas. Existem poucos livros ou referências à

sua história. Existem citações sobre a fazenda de João Manoel Mesquita no Ciclo do

Ouro em livros sobre a história do Garimpo Santa Luzia ou sobre a origem da cidade

de Luziânia e sua relação com Mesquita.

A produção de um catálogo fotográfico é uma maneira de registrar a

memória histórica garantindo participação no acervo do que é documentado. A

importância de um documento desse tipo, é a idéia de época que ele proporciona, a

prova do que passa em tal período, em detalhes, e a necessidade de se “agendar”

os fatos dentro deste período.

32

5 UM OLHAR SOBRE MESQUITA

O objeto de investigação deste trabalho é o cotidiano dos habitantes de

Mesquita relacionado ao que há de preservado em tradições seculares. Registrar

fotograficamente esta herança cultural é permitir que outras gerações tomem

conhecimento deste passado. Possibilita também que a imagem do grupo possa ser

um atestado de identidade, de valorização das suas práticas, a ser melhor

reconhecida pelos próprios mesquitas.

A historiografia já reconhece na fotografia um imoprtante elemento de

pesquisa e de dados historiográficos. O próprio Imperador Dom Pedro II foi um

rigoroso colecionador de fotos, sendo ele mesmo personagem importante da prática

fotográfica em nosso país.

As principais tradições religiosas são a Folia do Divino Espírito Santo e a

Festa de Nossa Senhora da Abadia. A Festa do Divino, como é mais conhecida, que

acontece no mês de maio e normalmente dura de nove à dez dias, terminando

sempre até o dia 15 do mês é um exemplo do que deveria ser representado dentro

de um ensaio fotográfico.

No ano 2005, a festa durou apenas sete dias. Durante esse período, os

foliões, como são chamados os seguidores do giro ou Procissão da Bandeira,

passam por todas as casas do povoado onde realizam as cantorias – orações

cantadas e acompanhadas por instrumentos como violas, violinos e caixa, que é um

pequeno tambor com o qual são marcados os “tempos” musicais e que serve para

anunciar a chegada e a saída da bandeira de uma determinada casa. As letras das

33

cantorias falam de reverência ao Divino Espírito Santo, pedidos de proteção e

agradecimentos, como no trecho abaixo:

“E nas hora de Deus, Amém. (Bis) Pai e Filho e Espírito Santo.

Uniu a pureza Divina. (Bis) Distribui todos encanto.

Louvado seja o Divino. (Bis) Que a cinco dia vem girando.

E retirando o mal da Terra. (Bis) Que aqui está abençoando.

Ele chegou, benzeu a porta. (Bis) E por esta casa entrou.

E ele abençoou o lar. (Bis) E à cidade apresentou.

E damo louvor a Jesus Cristo. (Bis) Que está na porta principal.

E nossos santo por Deus. (Bis) Livrai-no de todo mal. (...)”

Após as cantorias são servidos lanches ou a farofa – porção de farinha

temperada com carnes e especiarias – como forma de agradecimento pela

mandioca (matéria-prima para a produção da farinha e do polvilho) que se pode

colher durante todo o ano. É dançada a Catira pelos foliões para retribuir a acolhida

ao dono da casa, depois há a saída em procissão, para a casa seguinte.

Quem comanda é o Imperador ou Alfer, que é responsável pela folia

durante todos os dias da festa. Dentro da comunidade, o Imperador é considerado

uma liderança espiritual e é quem comanda a folia durante anos até que esteja

debilitado e anuncie reunião para a declaração de um novo líder.

O senhor Evando Sousa e Silva, 67 anos, assumiu a liderança junto com

o senhor Alceu Teixeira Magalhães, “seu” Ageu, 75 anos. Os dois receberam a

Bandeira do Divino de Sebastião Pereira Braga, sogro de “seu” Ageu há 12 anos.

34

No rito existem outros cargos entre os foliões que são escolhidos pelo

imperador, como mestre-guia, regente, caixeiro. Durante a festa, todas as casas se

preparam para receber a bandeira e algumas delas são oferecidas para que se

cumpram os pousos – hospedagens durante os dias da festa. No último dia, todos

reúnem-se para participar da missa e da festa de encerramento.

A Festa do Divino é um exemplo das tradições que poderiam vir a ser

representadas a partir das fotografias que constituiriam o catálogo, servindo de

prova de seu folclore e apontando que Mesquita preenche os requisitos para ser

devidamente reconhecido e registrado.

Outra tradição interessante é produção artesanal da rapadura. A cana é

descascada e moída ainda em engenho manual movido a tração animal. A garapa,

ou caldo, retirado e colocado em grandes tachos de cobre, unida ao açúcar, será

Durante a passagem da Bandeira do Divino Espírito Santo fiéis fazemreverências, pedidos e agradecimentos.

35

cozido e mexido até que se torne uma espécie de mel. A próxima etapa do processo

é adquirir a consistência.

O melado, como é também chamado o mel a partir da garapa, é desviado

através de uma vala de madeira preparada, para o cocho onde será batido para

adquirir a consistência. Neste momento as crianças da vizinhança começam a

chegar e a sentar-se enquanto aguardam inquietas o final da produção. O cheiro do

doce toma grande parte do povoado atraindo-as.

Ao encontrar-se no ponto, o preparo para a rapadura é despejado em

pequenas fôrmas de madeira forradas com folhas de bananeira onde permanecerá

até que se esfrie para ser embalada. Enquanto isso, o ataque as espátulas e ao

cocho de madeira é certo. Seu Sinfrônio, ciente da expectativa, sempre antes de

enformar o doce, separa uma porção para os pequenos apreciadores e para a

Sinfrônio Lisboa da Costa, 78 anos, maior produtor em Mesquita,prepara a rapadura também com mamão e leite de vaca.

36

família. “Aqui todo mundo gosta do doce, principalmente as crianças”, diz e se

empolga “tem gente que fica sabendo e vem de fora comprar. Já vendi a rapadura

até pra estrangeiro. A rapadura do Sinfrônio já foi até pra África”.

37

6 FOTOGRAFIA COMO FONTE DE INFORMAÇÃO E REGISTRO HISTÓRICO

O catálogo foi escolhido como produto para registro e divulgação de

Mesquita por cumprir três papéis importantes: fornecer informações; fornecer

interpretações que tornem significativas e coerentes as informações; exprimir valores

culturais e simbólicos próprios da identidade e da continuidade sociais.

A imagem reflete a realidade de um determinado fato, propondo maior

interação entre a situação e o apreciador e fazendo com que este se identifique com

maior facilidade ao que lhe é proposto.

O manuseio do catálogo proporciona proximidade e familiarização entre

as realidades envolvidas, no caso o observador e o que é representado. Ao se

apreciar fotografias, segundo Kossoy (2002; 132) é comum que quase que

imperceptivelmente o observador se deixe envolver pela trama ali representada e

esboce relações entre os fatos e as circunstâncias, levando, também, em

consideração, o contexto em que a foto foi produzida.

As imagens sem conta produzidas [...] dos microaspectos captados de diferentes contextos sociogeográficos têm preservado a memória visual de inúmeros fragmentos do mundo, dos seus cenários e personagens, dos seus eventos contínuos, de suas transformações ininterruptas. Estas imagens são documentos para a história e também para a história da fotografia. (KOSSOY, 2001;27)

Segundo o autor, a fotografia assume seu valor como documento de

resgate histórico à medida que recorta da vida real o imperceptível e torna-o foco.

Além de capturar “momentos históricos”, torna-se, ao mesmo tempo, peça de tal

importância para a história da fotografia. Deixa de ser objeto de aproximação e

passa a prova concreta de um determinado instante, situando, assim, o apreciador

38

no tempo e espaço. Fotografar Mesquita é uma questão de valorização social e

reconhecimento.

Fotografar e testemunhar o objeto de interesse numa fração de segundos

mostra a importância da foto, também, como meio de comunicação, por trazer à

tona, além do fato em si, sua riqueza em pequenos detalhes essenciais para a

caracterização do cenário onde ele ocorre.

A imagem possui a capacidade de chamar a atenção do observador e

fazer com que este se envolva de modo a se familiarizar e tornar a fotografia um

ícone de associação à realidade histórica de determinados tempo e local. A

princípio, pretende-se fotografar em preto e branco, focando a fração do cotidiano

que inclui o que foi mantido das tradições negras e o que proporcionou a

sobrevivência durante quase dois séculos além da interação entre os moradores.

A limitação das cores tratará de emitir o contraste entre o rústico e o

moderno. Os tons em preto e branco ressaltarão detalhes da composição. Seguidas

de legendas e aspas dos entrevistados, as imagens interagirão com o observador de

modo que este analise, vivencie e tire, daí, conclusões a respeito do tema.

Dividida em fases, a História tem registrados seus mais importantes fatos.

Seja através da escrita, de vídeos, de sonoras, a fotografia também tem seu papel

como documento de registro histórico, congelando frações das mais variadas

situações e servindo como prova concreta da realidade no determinado tempo e

espaço no qual serviu como instrumento de registro. Assim, este projeto pretende

servir como documento de memória histórica do cotidiano de Mesquita tal como o é,

possibilitando um maior contato entre sua realidade e a de quem o aprecia.

39

Toda fotografia é um resíduo do passado. Um artefato que contém em si um fragmento determinado da realidade registrado fotograficamente. Se, por um lado, este artefato nos oferece indícios quanto aos elementos constitutivos (assunto, fotógrafo, tecnologia) que lhe eram origem, por outro o registro visual nele contido reúne um inventário de informações acerca daquele preciso fragmento de espaço/tempo retratado. O artefato fotográfico, através da matéria (que lhe dá corpo) e de sua expressão (o registro visual nele contido), constitui uma fonte histórica. (KOSSOY, 2001;45)

Levar em consideração, fotograficamente, um acontecimento, torna

simples a percepção de que cada momento é subdividido em vários outros. São

fragmentos de situações a partir de imagens. O simples ato de se pressionar o botão

de uma câmera é o ato de se perder um instante histórico. É o tempo no qual a

câmera “pensa”, ou seja, realiza todo um processo técnico de reconhecimento da

imagem, de foco e fotometragem para que a situação seja retratada. Por isso, é

necessário prever o desenrolar dos fatos para que seja capturado aquilo que mais

convém ao fotógrafo. Só então seria possível “selecionar” o que há de mais

importante naquele período de tempo. Do mesmo modo acontece com a história no

sentido de se recortar seus marcos.

Partindo da reprodução da imagem, há maior interação entre os meios

sociais em todo o mundo, amplitude do conhecimento e identificação pelo homem

com outras realidades e proximidade com melhor compreensão do passado,

anteriormente transmitido verbalmente entre gerações e/ou através da escrita.

Constituir um catálogo a partir das fotos retiradas em campo nas quais

serão abordados o trabalho rústico e as tradições, apresentá-lo aos órgãos públicos

alertando sobre a perda em riqueza, principalmente histórica, desta cultura é o

objetivo deste produto que visa ao reconhecimento desta comunidade por seu valor,

além de retorno em recursos. Ao mesmo tempo, pretende-se beneficiar a

comunidade incentivando o resgate de suas tradições e contribuindo para a sua

preservação.

40

7 CONSTRUINDO HISTÓRIA

Fotografar Mesquita não é algo fácil de se fazer, por haver necessidade

em se dividir e trabalhar fases no processo. Fotografar é um trabalho que exige

muito cuidado por envolver pessoas, valores, história. E retratar a comunidade exige

acima de tudo, psicologia, por se tratar de uma comunidade que se encontra

sensível a um sofrimento histórico:

a) Aproximação: A primeira visita ao povoado com a intenção de se

apurar informações para este catálogo foi desprovida de um interesse direto. Seria

apenas uma familiarização. À chegada para assistir a missa de domingo, em

primeiro instante atentou justo pela discrição, como alguém que morasse há anos no

povoado mas há muito não participava na igreja. Estranharam apenas pelo fato de

verem um rosto pouco comum, ou o terem visto poucas vezes como visitante de

alguma das famílias tempos antes, durante apurações para o jornal laboratório

NaPrática, já citado neste relatório.

Após estas participações durante as missas, encontros com pessoas já

conhecidas, e a apresentação à novos habitantes, gerou-se certa afinidade. O

tratamento e o respeito aos limites como, até onde se deveria chegar a cada

encontro, deram espaço às conversas em fins de tarde. Em meio à elas, anúncios de

um futuro trabalho sobre a comunidade, desta vez mostrando a partir de imagens

sua riqueza em tradições, deixou-os por ocasião duvidosos.

Esta dúvida foi a primeira chance para um possível esclarecimento sobre

que razões chamariam atenção de pessoas de fora ao povoado. Logo de início, foi

41

esclarecida a relação entre a origem do povoado e as tradições mantidas até os dias

atuais, daí foram tiradas conclusões próprias pelos habitantes sobre seu valor.

A estratégia funcionou, pena ter sido utilizada somente em algumas

famílias devido ao tempo delimitado para a conclusão do trabalho, o número de

pessoas existentes no povoado e a disponibilidade dos dois lados para que

ocorressem os encontros. A visão destas pessoas tornou-se menos intimidada,

menos apreensiva.

b) Dificuldades: Vários foram os obstáculos. À começar pelo

esclarecimento de dúvidas cada vez mais crescente. Por exemplo, perguntas como

“Porquê fotos?”, “Quem vai querer ver fotos de gente de Mesquita?”, Estas fotos vão

para onde?”, “Você ganha para fazer isso?”, etc. Todas respondidas diretamente e

da maneira clara.

Outro, teria sido um erro cometido na publicação do jornal NaPrática,

onde a idade de uma senhora estaria errada. O erro foi confirmado por parentes que

logo disseram que a mesma jamais disse sua idade certa por não saber ou pela

vergonha em ter ultrapassado os cem anos. Em entrevista, à época para o jornal,

dona Antônia Pereira Braga disse ter 72 anos. Em última visita, no dia 23 de maio,

seu sobrinho-neto, Sinfrônio Lisboa da Costa, 78 anos, afirmou que dona Antônia

tem 112 anos. A situação colocou em risco a confiança e o respeito conquistados.

Em visita, a falha foi discutida.

Além destas houveram, ainda outras dificuldades. O acesso, as chuvas

nos dias marcados para se fotografar produções geralmente feitas a céu aberto,

insuficiência do material fotográfico, entre outras.

42

c) Dados levantados: As informações levantadas em grande parte foram

peças de um verdadeiro quebra-cabeça. As histórias contadas pelos moradores, se

relacionavam com trechos descritos em livros, que por sua vez existiam em

processos judiciais sobre a demarcação das terras que iam, aos poucos,

esclarecendo fatos, até então, hipóteses.

d) Das fotos: Durante o período de cinco meses foram retratadas cerca

de 300 imagens focando as produções da rapadura, da cachaça e da farinha, as

festas religiosas, danças tradicionais e outros hábitos comuns entre os moradores.

Destas foram selecionadas as que melhor expressariam o trabalho na roça onde

melhor se expressam as tradições coloniais.

e) O título: Identidade Mesquita: Tradição e Descendência Colonial foi

escolhido título, justo para que a primeira impressão do observador seja voltada a

realidade transmitida a partir das fotos, situando-o no foco de cada imagem.

f) O catálogo: Foram escolhidas cores neutras para a ilustração do

catálogo por se tratar de um trabalho com fotos em preto e branco. O fundo preto

oferece maior relevância a imagem, valorizando os tons de cinza.

g) Plano de divulgação: Um possível plano de divulgação e veiculação

do catálogo seria primeiramente seu lançamento. Suponde que ocorresse durante o

segundo semestre deste ano, a idéia seria marcar para o dia 20 de novembro, por se

tratar do Dia da Consciência Negra.

Seriam entregues convites ao público alvo (representantes de ONGs e de

órgãos do governo voltados às comunidades negras) para que participassem da

reunião de exposição de lançamento do catálogo fotográfico, onde estariam,

43

também, presentes representantes da comunidade mesquita para que recebessem

um exemplar.

O convite teria o tamanho 10cm X 15cm: tamanho de uma foto

convencional por divulgar o produto como sendo um registro fotográfico.

Modelo do convite:

Também para a divulgação, entregariam-se releases para a imprensa

explicando a importância do evento para a comunidade Mesquita, o objetivo e a

necessidade em se divulgar a questão do reconhecimento para as terras de preto.

Além disso, seriam distribuídos cartazes em locais estratégicos com o título da

exposição , data, endereço e local como nos modelos abaixo:

Modelo de texto para release:

Daiane Souza convida para a exposição de lançamento do catálogo fotográfico

“Identidade Mesquita” Tradição e Descendência Colonial Data: 20/11/2005 Horário: 20h30 Local: Galeria Fayga Ostrower Complexo Cultural da Funarte Eixo Monumental – Setor de Divulgação Cultural Lote 02

44

Um retrato da cultura colonial

Fotógrafa lança catálogo apresentando a preservação da cultura colonial em

Mesquita, povoado remanescente de escravos a 55Km de Brasília

O grande problema das comunidades rurais negras é a dificuldade de

serem registradas como remanescentes de quilombos, seja pelo desconhecimento

da origem de seus habitantes e do conceito de o que é um quilombo, seja pela falta

de informação sobre o que é necessário para serem reconhecidas como tal.

A falta do reconhecimento acarreta danos, como a falta de monitoramento

e de assistência a esses remanescentes. Em Mesquita, comunidade rural negra

situada a 8 quilômetros da Cidade Ocidental e a 55 quilômetros de Brasília, existem

ainda tradições preservadas desde o período colonial, o que é um quesito para que

o povoado receba sua Carta de Autodefinição Quilombola.

Isso não acontece, pois, atualmente, para que uma comunidade seja

assistida, é necessário que os habitantes do povoado se assumam quilombolas.

Essa imposição gera conflitos, pelo fato de a comunidade descender de escravos

alforriados e verem as expressões quilombo e quilombola como uma ofensa já que

para eles a alforria foi considerada um reconhecimento.

Com o objetivo de mostrar que Mesquita preenche os quesitos para ser

devidamente registrado como comunidade remanescente de quilombo, a fotógrafa

Daiane Souza lança, neste domingo, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, o

catálogo fotográfico Identidade Mesquita: Tradição e Descendência Colonial. Nas

fotos, Daiane dirige o foco para as tradições preservadas desde o período colonial

pela comunidade rural negra.

O evento será realizado na Galeria Fayga Ostrower, Complexo Cultural da

Funarte, no Eixo Monumental – Setor de Divulgação Cultural Lote 02, a partir das

45

20h30, e contará com a presença do ministro da Cultura, Gilberto Gil, do presidente

da Fundação Cultural Palmares, Ubiratan Castro, e de representantes de ONGs que

trabalham na luta pela comunidade negra, além de habitantes de Mesquita. Junto

com o lançamento do livro haverá exposição das fotos que compõem o catálogo.

46

Modelo de cartaz:

Exposição

“Identidade Mesquita”

Tradição e Descendência Colonial

Por Daiane Souza

Lançamento do Catálogo Fotográfico Data: 20 de novembro de 2005 Horário: 20h30 Local: Galeria Fayga Ostrower Complexo Cultural da Funarte Eixo Monumental – Setor de Divulgação Cultural Lote 02

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NT

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cend

ência

Col

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l

47

8 CONCLUSÃO

Os mesquitas são pessoas que se demonstram, à maioria das vezes,

resistentes, por não compreenderem a razão pela qual sua história é tão visada. No

povoado, há ainda quem diga que, a escravidão não acabou, em conta da

perseguição da mídia, dos interesses de pesquisadores e de pessoas que buscam

tirar, de alguma forma, proveito através da participação em sua história.

Reforçada a partir da crescente demanda desacompanhada de uma

explicação, de informação, pela qual estariam sendo alvo e sobre quais interesses

os envolveria, a resistência por parte de habitantes é uma maneira de demarcar o

limite até onde é possível conhecer de sua história.

A principal questão relacionada à Mesquita, o reconhecimento como

comunidade remanescente de quilombo, é o pesadelo dos moradores por

desconhecerem a amplitude do significado atual da expressão “remanescente de

quilombo”. Os mesquitas, a têm como ofensa, pois em sua história consta que os

escravos da Fazenda Mesquita teriam recebido sua carta de alforria como gratidão

pelos anos de dedicação, o que têm como um reconhecimento, um troféu, embora

seja óbvio que os verdadeiros heróis, no período colonial, foram os quilombolas por

sua coragem em lutar pela libertação de seus irmãos cativos, tornando-se principais

símbolos da força em favor da insurreição dos grandes proprietários de terras.

Rico em tradições mantidas e em cultura colonial, o que falta para o

povoado ser registrado é a atenção de grupos que acompanhem a comunidade e

troquem informações a seu respeito, esclarecendo a importância de se assumirem

48

quilombo e a necessidade do reconhecimento para melhoria em qualidade de vida e

valorização de sua cultura.

Apresentar aos moradores e ao Estado que o povoado se enquadra nos

quesitos para o registro, é o objetivo ao se produzir um catálogo fotográfico

incentivando sua preservação e reduzindo a resistência a partir da informação.

fazendo com que tanto a comunidade quanto o governo vejam-na com um outro

olhar, desta vez com olhar crítico e positivo.

49

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ABA. Documento do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais. Boletim Informativo do NUER, Rio de Janeiro, 1996, p. 81.

ANJOS, José Carlos dos; SILVA, Sergio Baptista da Silva. São Miguel e Rincão dos Martimianos: ancestralidade negra e direitos territoriais. Rio Grande do Sul: editora da UFRGS, 2004.

ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Território da Comunidades Quilombolas do Brasil: segunda configuração espacial. Brasília: Mapas Editora & Consultoria, 2005.

BARCELLOS, Daisy Macedo de et al. Comunidade Negra de Morro Alto: historicidade, identidade e territorialidade. Rio Grande do Sul: editora da UFRGS, 2004.

CABRAL, Oswaldo R. Cultura e folclore. Goiás: Catarinense, 1954.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

GUSMÃO, Neuza Maria Mendes de. Da antropologia e do Direito: impasses da questão negra no campo. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 1996.

KLUCKHOHN, Clyde. Antropologia: um Espelho para o homem. Belo Horizonte: Itatiaia editora, 1963.

KOSSOY, Boris. Fotografia e História.2.ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

KOSSOY. Boris. Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. 3.ed.. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

LEITE, Miriam Moreira. Retratos de Família: leitura da fotografia histórica. São Paulo: Edusp.

LINTON, Ralph. O homem: uma introdução à Antropologia. Tradução de Lívia Vilela, Livraria Martins,1959.

MOURA, Clóvis. Os Quilombos e a Rebelião Negra. 2.ed.. São Paulo: Brasiliense Editora,1981.

50

OLIVEIRA, Silviene Fabiana de; GUIMARÃES, Maria Nazaré Klautau e PILLA, Ernani José Sfoglia, Palmares em Revista nº 2, Brasília, Fundação Cultural Palmares, 1998.

RATTS, Alecsandro J.P. Conceição dos Caetanos: memória coletiva e território negro. Palmares em Revista n° 1, Brasília, Fundação Cultural Palmares, 1996.

SALGADO, Sebastião. Outras Américas. São Paulo: Compainha das Letras, 1999.

SANTAELLA, Lucia. A Assinatura das coisas : Peirce e a Literatura. Rio de Janeiro: Imago editora,1992.

SOARES, Aldo Azevedo. Kalunga: o direito de existir. Brasília: Fundação Cultural Palamares, 1995.

51

ANEXO A

O Peso da Escravidão

“A escravidão foi um peso terrível: a ‘nódoa’ da colonização portuguesa,

como dizia Joaquim Nabuco. Uma sociedade que durante quatro séculos manteve

sua prosperidade na base do trabalho escravo paga um preço muito alto por isso.

Deforma-se. Estamos há um século sem escravidão, mas é preciso Ter consciência

do que ela representou para combater o que restou em cada um de nós. Restou

muito, inclusive nos descendentes de escravos, que muitas vezes aceitaram coisas

inaceitáveis.

Nas reações violentas contra a violência senhorial institucionalizada e nas

fugas constantes, o negro exprimiu a qualidade fundamental de homem, negando,

na prática, a representação que dele se fazia como um ser capaz apenas de realizar

a vontade e os interesses dos que socialmente eram seus contrários.

A abolição, desacompanhada como foi de medidas que sinalizassem a

responsabilidade social dos brancos pela situação degradada dos negros, não

implicou democratização da ordem social. Desprovidos de recursos mínimos para o

exercício da cidadania, os negros sem chances reais de uma inserção positiva no

processo produtivo”.

Fernando Henrique Cardoso

- Cerimônia de comemoração do sesquicentenário do nascimento de Joaquim Nabuco.

Brasília, 24 de agosto de 1998; O presidente segundo sociólogo: entrevista de FHC a Roberto Pompeu de Toledo. São Paulo. Companhia das Letras, 1998, página 24.

52

ANEXO B

Entrevista a Fundação Cultural Palmares – 31/03/2005 • O que a Fundação Cultural Palmares considera, hoje, quilombo ou quilombola?

• Quais os requisitos para que uma comunidade rural negra seja reconhecida e titulada como remanescente de escravos e faça valer seus direitos?

• Segundo o Artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988, toda terra proveniente de quilombo deve ser preservada. Pode-se afirmar que todo povoado quilombola tem apoio do governo mas, o que acontece com as comunidades que descendem de escravos alforriados?

• Quais os benefícios para uma comunidade reconhecida e registrada como remanescente de escravos?

• Quantas são as terras de pretos em número aproximado em todo o território nacional? E na região Centro- Oeste? Qual o número de terras de pretos registradas?

• Existe algum projeto relacionado à Mesquita dos Crioulos? De que se trata?

• Mesquita é registrado? É reconhecido como remanescente de escravo?

• O que falta para Mesquita receber seu Certificado de Autodefinição Quilombola?

• Quando foi a última visita de representantes da FCP ao povoado? A que conclusões chegaram?

• O que foi abordado sobre a história do povoado?

• Dados estatísticos sobre o povoado.

• O que pode ser feito para a melhoria da qualidade de vida da comunidade mesquita?

• Quais os danos conseqüentes da falta de registro?

• De que se trata o projeto Biblioteca Rural Arca das Letras?

• Existe divulgação dentro das comunidades rurais negras a respeito do reconhecimento e da importância do registro e do Certificado de Autodefinição Quilombola?

• Quais outros projetos e órgãos poderiam beneficiar a comunidade de alguma forma?

54

são fabricadas por sentenciados das Penitenciárias Estaduais, mediante convênios

com o Ministério da Justiça.

A biblioteca tem cerca de 220 títulos entre literatura infantil, literatura para

jovens e adultos, livros didáticos, técnicos, sobre cidadania, saúde, agricultura, livros

sobre a história afro-brasileira, entre outros de interesse das populações

remanescentes de quilombos.

- Texto veiculado no foolder de divulgação do Projeto Arca das Letras pela Secretaria de

Reordenamento Agrário do Ministério do Desenvolvimento Agrário.

55

ANEXO D

As comunidades negras e o artigo 68 da Constituição Federal

O artigo 68 da Constituição Federal traz palavras que necessitam de

esclarecimentos (*) Sílvio Vieira de Andrade Filho

O artigo 68 da Constituição do Brasil reza que "aos remanescentes das

comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a

propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos".

A redação deste artigo tem provocado problemas de entendimento como

poderemos constatar a seguir.

Se de um lado houve no Brasil comunidades que serviram de refúgio de

escravos (quilombos), por outro, houve a formação de comunidades por negros

originários de propriedades rurais. Não foram no passado núcleos de resistência e

nem receberam ataques com o objetivo de serem destruídas. Como podemos

perceber, o referido artigo menciona somente "quilombos".

Para efeitos constitucionais, o governo explica que “quilombo” deve ter

sentido abrangente, devendo ser entendido como qualquer comunidade negra rural

que agrupa descendentes de escravos vivendo da cultura de subsistência e onde as

manifestações culturais têm forte vínculo com o passado africano. Como se vê, foi

colocado de modo forçado um novo significado para a palavra "quilombo". Como

sabemos, as palavras podem receber novos significados, mas estes ocorrem de

modo espontâneo e não por imposições de medidas provisórias, de legislação

complementar, etc.

56

No artigo 68, não é só a palavra "quilombo" que gera confusão. A palavra

"Estado" deve ter sentido abrangente também, podendo referir-se ao governo

federal, estadual ou municipal.

Pelo referido artigo, só podem receber títulos os que já estão ocupando

suas terras. Este trecho do artigo tem sentido muito limitado e desnecessário

porque, com 20 anos ou mais de moradia em uma comunidade, os interessados já

têm direito a usucapião.

Outro esclarecimento diz respeito ao órgão incumbido de trabalhar com as

questões fundiárias envolvendo as comunidades negras no âmbito federal. Em

1995, no terceiro centenário da morte de Zumbi, o Incra (Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária) e o governo do Pará emitiram o primeiro título de

posse à comunidade de Boa Vista. Atualmente, a Fundação Cultural Palmares,

órgão do Ministério da Cultura, está encarregada no âmbito federal de analisar as

referidas comunidades que desejam obter títulos de posse através destas fases:

identificação, reconhecimento de que são realmente comunidades negras,

delimitação, demarcação, titulação e registro em cartório. Se houver necessidade,

haverá a devida desapropriação de terras. A referida fundação conta com os

pareceres técnicos do Incra, do Ibama, etc. e com a parceria dos estados e dos

municípios.

O Estado de São Paulo tem alguma legislação própria e sua atuação é

feita principalmente através do Itesp (Instituto de Terras do Estado de São Paulo,

órgão pertencente à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania) e da

Procuradoria Geral do Estado que contam também com a colaboração das

Secretarias do Meio Ambiente e da Cultura, do Condephaat e da OAB-SP. O Estado

de São Paulo só atua em suas próprias terras. Não interfere em terras federais.

Quando solicitado, colabora com o governo federal, emitindo pareceres, etc. Quando

57

há necessidade, o Estado de São Paulo tem providenciado com êxito

desapropriações amigáveis. Exige dos interessados a formação de associações para

poder emitir títulos coletivos com cláusula de inalienabilidade. O governo paulista e a

maioria dos interessados preferem o título coletivo para evitar que alguém da

comunidade beneficiada ao sair desta possa vender parte de terras a estranhos. Há

maior facilidade para o governo realizar benefícios na comunidade possuidora de

título coletivo. Além disto, a forma de viver dos negros sempre foi coletiva. O uso de

cercas só ocorre em casos absolutamente necessários.

- (*) Sílvio Vieira de Andrade Filho é autor do livro "Um Estudo Sociolingüístico das Comunidades Negras do Cafundó, do Antigo Caxambu e de seus Arredores" “As comunidades negras e o artigo 68 da Constituição Federal” – Artigo publicado na coluna Ponto de Vista do jornal Diário de Sorocaba em 14.05.2004, p. 02, disponibilizado no endereço http://www.jornalexpress.com.br/noticias/detalhes.php?id_jornal=7863&id_ noticia=15, visitado em 30 de março de 2005.

58

ANEXO E

Presidência da República Casa Civil

Subchefia para Assuntos Jurídicos

DECRETO Nº 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003. Regulamenta o procedimento para

identificação, reconhecimento, delimitação,

demarcação e titulação das terras ocupadas

por remanescentes das comunidades dos

quilombos de que trata o art. 68 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o

art. 84, incisos IV e VI, alínea "a", da Constituição e de acordo com o disposto no art.

68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,

DECRETA:

Art. 1o Os procedimentos administrativos para a identificação, o

reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva

das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que

trata o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, serão

procedidos de acordo com o estabelecido neste Decreto.

Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos,

para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-

atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais

específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à

opressão histórica sofrida.

59

§ 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das

comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria

comunidade.

§ 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos

quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica

e cultural.

§ 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em

consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das

comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar

as peças técnicas para a instrução procedimental.

Art. 3o Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a identificação,

reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos

remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência

concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

§ 1o O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos

para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras

ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de

sessenta dias da publicação deste Decreto.

§ 2o Para os fins deste Decreto, o INCRA poderá estabelecer convênios,

contratos, acordos e instrumentos similares com órgãos da administração pública

federal, estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações não-governamentais e

entidades privadas, observada a legislação pertinente.

§ 3o O procedimento administrativo será iniciado de ofício pelo INCRA ou

por requerimento de qualquer interessado.

60

§ 4o A autodefinição de que trata o § 1o do art. 2o deste Decreto será

inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá

certidão respectiva na forma do regulamento.

Art. 4o Compete à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da

Igualdade Racial, da Presidência da República, assistir e acompanhar o Ministério

do Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações de regularização fundiária, para

garantir os direitos étnicos e territoriais dos remanescentes das comunidades dos

quilombos, nos termos de sua competência legalmente fixada.

Art. 5o Compete ao Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural

Palmares, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o

INCRA nas ações de regularização fundiária, para garantir a preservação da

identidade cultural dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como

para subsidiar os trabalhos técnicos quando houver contestação ao procedimento de

identificação e reconhecimento previsto neste Decreto.

Art. 6o Fica assegurada aos remanescentes das comunidades dos

quilombos a participação em todas as fases do procedimento administrativo,

diretamente ou por meio de representantes por eles indicados.

Art. 7o O INCRA, após concluir os trabalhos de campo de identificação,

delimitação e levantamento ocupacional e cartorial, publicará edital por duas vezes

consecutivas no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde

se localiza a área sob estudo, contendo as seguintes informações:

I - denominação do imóvel ocupado pelos remanescentes das

comunidades dos quilombos;

II - circunscrição judiciária ou administrativa em que está situado o imóvel;

III - limites, confrontações e dimensão constantes do memorial descritivo

das terras a serem tituladas; e

61

IV - títulos, registros e matrículas eventualmente incidentes sobre as

terras consideradas suscetíveis de reconhecimento e demarcação.

§ 1o A publicação do edital será afixada na sede da prefeitura municipal

onde está situado o imóvel.

§ 2o O INCRA notificará os ocupantes e os confinantes da área

delimitada.

Art. 8o Após os trabalhos de identificação e delimitação, o INCRA

remeterá o relatório técnico aos órgãos e entidades abaixo relacionados, para, no

prazo comum de trinta dias, opinar sobre as matérias de suas respectivas

competências:

I - Instituto do Patrimônio Histórico e Nacional - IPHAN;

II - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

Renováveis - IBAMA;

III - Secretaria do Patrimônio da União, do Ministério do Planejamento,

Orçamento e Gestão;

IV - Fundação Nacional do Índio - FUNAI;

V - Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional;

VI - Fundação Cultural Palmares.

Parágrafo único. Expirado o prazo e não havendo manifestação dos

órgãos e entidades, dar-se-á como tácita a concordância com o conteúdo do

relatório técnico.

Art. 9o Todos os interessados terão o prazo de noventa dias, após a

publicação e notificações a que se refere o art. 7o, para oferecer contestações ao

relatório, juntando as provas pertinentes.

62

Parágrafo único. Não havendo impugnações ou sendo elas rejeitadas, o

INCRA concluirá o trabalho de titulação da terra ocupada pelos remanescentes das

comunidades dos quilombos.

Art. 10. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades

dos quilombos incidirem em terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e lagos, o

INCRA e a Secretaria do Patrimônio da União tomarão as medidas cabíveis para a

expedição do título.

Art. 11. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades

dos quilombos estiverem sobrepostas às unidades de conservação constituídas, às

áreas de segurança nacional, à faixa de fronteira e às terras indígenas, o INCRA, o

IBAMA, a Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional, a FUNAI e a

Fundação Cultural Palmares tomarão as medidas cabíveis visando garantir a

sustentabilidade destas comunidades, conciliando o interesse do Estado.

Art. 12. Em sendo constatado que as terras ocupadas por remanescentes

das comunidades dos quilombos incidem sobre terras de propriedade dos Estados,

do Distrito Federal ou dos Municípios, o INCRA encaminhará os autos para os entes

responsáveis pela titulação.

Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das

comunidades dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade,

prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será

realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários

à sua desapropriação, quando couber.

§ 1o Para os fins deste Decreto, o INCRA estará autorizado a ingressar no

imóvel de propriedade particular, operando as publicações editalícias do art. 7o

efeitos de comunicação prévia.

63

§ 2o O INCRA regulamentará as hipóteses suscetíveis de desapropriação,

com obrigatória disposição de prévio estudo sobre a autenticidade e legitimidade do

título de propriedade, mediante levantamento da cadeia dominial do imóvel até a sua

origem.

Art. 14. Verificada a presença de ocupantes nas terras dos

remanescentes das comunidades dos quilombos, o INCRA acionará os dispositivos

administrativos e legais para o reassentamento das famílias de agricultores

pertencentes à clientela da reforma agrária ou a indenização das benfeitorias de

boa-fé, quando couber.

Art. 15. Durante o processo de titulação, o INCRA garantirá a defesa dos

interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos nas questões

surgidas em decorrência da titulação das suas terras.

Art. 16. Após a expedição do título de reconhecimento de domínio, a

Fundação Cultural Palmares garantirá assistência jurídica, em todos os graus, aos

remanescentes das comunidades dos quilombos para defesa da posse contra

esbulhos e turbações, para a proteção da integridade territorial da área delimitada e

sua utilização por terceiros, podendo firmar convênios com outras entidades ou

órgãos que prestem esta assistência.

Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares prestará assessoramento

aos órgãos da Defensoria Pública quando estes órgãos representarem em juízo os

interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos, nos termos do

Artigo 134 da Constituição.

Art. 17. A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada

mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o

art. 2o, caput, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade,

imprescritibilidade e de impenhorabilidade.

64

Parágrafo único. As comunidades serão representadas por suas

associações legalmente constituídas.

Art. 18. Os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas

dos antigos quilombos, encontrados por ocasião do procedimento de identificação,

devem ser comunicados ao IPHAN.

Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares deverá instruir o processo

para fins de registro ou tombamento e zelar pelo acautelamento e preservação do

patrimônio cultural brasileiro.

Art. 19. Fica instituído o Comitê Gestor para elaborar, no prazo de

noventa dias, plano de etnodesenvolvimento, destinado aos remanescentes das

comunidades dos quilombos, integrado por um representante de cada órgão a seguir

indicado:

I - Casa Civil da Presidência da República;

II - Ministérios:

a) da Justiça;

b) da Educação;

c) do Trabalho e Emprego;

d) da Saúde;

e) do Planejamento, Orçamento e Gestão;

f) das Comunicações;

g) da Defesa;

h) da Integração Nacional;

i) da Cultura;

j) do Meio Ambiente;

k) do Desenvolvimento Agrário;

l) da Assistência Social;

65

m) do Esporte;

n) da Previdência Social;

o) do Turismo;

p) das Cidades;

III - do Gabinete do Ministro de Estado Extraordinário de Segurança

Alimentar e Combate à Fome;

IV - Secretarias Especiais da Presidência da República:

a) de Políticas de Promoção da Igualdade Racial;

b) de Aqüicultura e Pesca; e

c) dos Direitos Humanos.

§ 1o O Comitê Gestor será coordenado pelo representante da Secretaria

Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

§ 2o Os representantes do Comitê Gestor serão indicados pelos titulares

dos órgãos referidos nos incisos I a IV e designados pelo Secretário Especial de

Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

§ 3o A participação no Comitê Gestor será considerada prestação de

serviço público relevante, não remunerada.

Art. 20. Para os fins de política agrícola e agrária, os remanescentes das

comunidades dos quilombos receberão dos órgãos competentes tratamento

preferencial, assistência técnica e linhas especiais de financiamento, destinados à

realização de suas atividades produtivas e de infra-estrutura.

Art. 21. As disposições contidas neste Decreto incidem sobre os

procedimentos administrativos de reconhecimento em andamento, em qualquer fase

em que se encontrem.

66

Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares e o INCRA estabelecerão

regras de transição para a transferência dos processos administrativos e judiciais

anteriores à publicação deste Decreto.

Art. 22. A expedição do título e o registro cadastral a ser procedido pelo

INCRA far-se-ão sem ônus de qualquer espécie, independentemente do tamanho da

área.

Parágrafo único. O INCRA realizará o registro cadastral dos imóveis

titulados em favor dos remanescentes das comunidades dos quilombos em

formulários específicos que respeitem suas características econômicas e culturais.

Art. 23. As despesas decorrentes da aplicação das disposições contidas

neste Decreto correrão à conta das dotações orçamentárias consignadas na lei

orçamentária anual para tal finalidade, observados os limites de movimentação e

empenho e de pagamento.

Art. 24. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 25. Revoga-se o Decreto n° 3.912, de 10 de setembro de 2001.

Brasília, 20 de novembro de 2003; 182o da Independência e 115o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Gilberto Gil

Miguel Soldatelli Rossetto

José Dirceu de Oliveira e Silva