monnia clariça hennig leal - a constituição como princípio - pesquisável - ano 2003

Upload: andrefagundes10

Post on 02-Mar-2016

35 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

  • Mnia Clarissa Hennig Leal

    A CONSTITUIO COMO PRINCPIO

    Os Limites da Jurisdio Constitucional Brasileira

    AManole

  • A Constituio como Princpio

    Os limites da jurisdio

    constitucional Brasileira

  • Constituio como Princpio

    M N I A C L A R I S S A H E N N I G L_ E A L_

    Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul. D ou to randa em Direito pela Universidade do Vale do

    Rio dos Sinos. C oordenadora da Ps-G raduao Lato Sensu da Universidade de Santa Cruz do Sul. Professora das disci

    plinas de Teoria Constitucional e de Histria do Direito, bem com o de inm eros cursos de Especializao.

    A .M anole

    Os limites da jurisdio

    constitucional Brasileira

  • Copyright 2003 Eclitora Manole Ltda., por meio dc contrato com a autora.

    Editorao Eletrnica: Acqua Estdio Grfico Capa: Eduardo Bertolini

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

    L445c

    Leal, Mnia Clarissa HennigA Constituio como princpio: os limites da jurisdio constitucional brasileira/ Mnia Clarissa Hennig Leal. - Barueri, SP: Manole, 2003

    Inclui bibliografia ISBN 85-204-1719-1

    1. Brasil - Constituio. 2. Leis - Const itucionalidade.I. Ttulo.

    03-0557.CDU 342.4(81)

    Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro poder ser reproduzida.por qualquer processo, sem a permisso expressa dos editores.

    proibida a reproduo por xerox.

    1* edio brasileira - 2003

    Direitos adquiridos pela:Editora Manole Ltda.Av. Ceei, 672 - Tambor 06460-120 - Barueri - SP - BrasilFone: (0__ 11) 4196 6000 - Fax: (0__ 11) 4196 [email protected]

    Impresso no Brasil Prnted in Brazil

  • Aos meus pais, Dario e Rita: nem mesmo o infinito capaz de abarcar o meu infinito amor por vocs. Obrigada pelo que so e pelo que sou.

    Ao meu marido, Rogrio: ainda onde nada mais existir, existir o meu amor por ti.

  • AGRADECIMENTOS

    Muitos so os caminhos e as histrias que permeiam a produo de um texto como este e, portanto, tambm muitos so os tributos devidos.

    Assim, neste momento, no poderia deixar de fazer meno Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), que me acolheu desde a Graduao e permitiu, por meio de inmeras bolsas de Iniciao Cientfica que se estenderam ao longo de todo o curso, que me dedicasse integralmente ao estudo e pesquisa do Direito, incentivando esta paixo que me impulsionou diretamente em direo ps-graduao e carreira acadmica.

    Neste sentido, aqui vai o meu especial agradecimento coordenao do Mestrado em Direito, grande espao de interlocuo e de produo desta obra, do qual ela um dos muitos frutos, pela ousadia e pela sensibilidade de manter como reas de concentrao temas to candentes e to caros sociedade - e porm to relegados - como os Direitos Sociais e as Polticas Pblicas, em cuja perspectiva se alinha a teoria constitucional contempornea que norteia e o fundamento deste trabalho.

    VII

  • A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    Tratando-se de menes especiais, impe-se, ainda, um incon- dicionado reconhecimento ao Professor Doutor Lnio Luiz Streck, incansvel em sua luta pela construo de um novo paradigma para o Direito e em suas consideraes para a maturao do texto, a quem s me resta dizer Vielen, vielen Dank {es kornrnt vom Herzen) e Capes, por me permitir desfrutar, integralmente, do prazer que a produo cientfica.

    Enfim, a todos que, direta ou indiretamente, cruzaram o meu caminho e me fizeram ser o que sou hoje, e queles que, embora no nominados, de alguma maneira fizeram deste trabalho o que ele , muito obrigadaWl

  • SUMRIO

    Prefcio..................................................................................... XIIntroduo..............................................................................XV

    I. A constituio: evoluo, natureza esignificados ....................................................................... 11.1. A Constituio na perspectiva da evoluo do

    Estado: do Estado de Direito liberal ao Estado Democrtico de D ireito .......................................... 1a. O Estado de Direito liberal: gnese

    constitucional e caracteres ............................... 1b. O Estado social e o Estado Democrtico

    de Direito .......................................................... 111.2. A natureza da Constituio.................................26

    II. Os princpios constitucionais...................................... 49II. 1. Os princpios como Constituio

    material ................................................................. 4911.2. A distino entre regras e princpios................72

    III. Os princpios e a jurisdio constitucional .............. 95

    IX

  • A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    III. 1. O sistema brasileiro de controle de constitucionalidade: breves

    consideraes histricas...........................................................95111.2. Os fundamentos do controle de

    constitucionalidade e a legitimidade doSupremo Tribunal Federal ...................................................105

    111.3. O cotejo dos princpios pelo Supremo Tribunal Federal no controle difusoe no controle concentrado deconstitucionalidade: um paradoxo? ...................................121

    Consideraes finais ....................................................................... 139Referncias bibliogrficas ...............................................................147

    X

  • PREFCIO

    Os Pr in c p io s como c o n d i o dePOSSIBILIDADE DO SENTIDO DA

    Co n s t it u i o

    No h dvida de que o constitucionalismo passou por uma revoluo copernicana. toda evidncia, essa revoluo ocorre no seio da transformao do Estado e do Direito, tendo como pano de fundo o segundo ps-guerra. 0 panorama poltico-jurdico-econmico que originou a crise que culminou na Segunda Grande Guerra fez com que se construssem barreiras - verdadeiras blindagens - contra vilanias e tiranias. Registre-se, neste ponto, a idia de clusulas ptreas, anteparos vigorosos contra maiorias (eventuais ou no).

    No bojo das Constituies foram estabelecidos os modos e os mecanismos propiciadores do acontecer de um novo modelo de Direito e seu perfil transformador. Para alm de um Direito ordenador - o prprio do modelo liberal de Estado - e de um Direito promovedor - dominante na

    XI

  • A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    forma assumida pelo Estado Social o Direito no Estado Democrtico de Direito (EDD) passava a se constituir como um plus normativo, apto a sustentar a materialidade das Constituies prprias desse novo mo- delo, assentado em dois pilares, antiticos aos fatores que ocasionaram as grandes guerras: o respeito democracia e a realizao dos direitos fundamentais sociais.

    Da que a materialidade do texto constitucional passou a ganhar sentido a partir dos princpios. Dito de outro modo: no interior do que se passou a chamar de ps-positivismo, as regras e os princpios passaram a receber um plus de sentido. Princpios valem; regras vigem, lembra Paulo Bonavides. Violar um princpio mais grave que violar uma regra, denuncia Celso Antonio Bandeira de Mello. Os princpios passam a ser, assim, nesse novo cenrio, a prpria condio de possibilidade do sentido da Constituio. No princpio era o princpio, pois!

    neste rico contexto que se encaixa a obra de Mnia Hennig, que tenho a satisfao de apresentar comunidade jurdica. Fortemente ancorada em bibliografia nacional e aliengena, a autora procura resgatar, mais do que o valor dos princpios, a sua funo instrumental no plano do controle de constitucionalidade. Este um ponto de fundamental interesse para a cincia jurdica ptria. Afinal, se no h dis- senso dos operadores do Direito - com exceo daqueles que permanecem refns daquilo que denomino de baixa constitucionalidade - acerca da importncia dos princpios, a pergunta que cabe : por que no radicalizar sua aplicao enquanto topos de aferio da para- metricidade constitucional? Ao no se aceitar, por exemplo, um recurso especial ou extraordinrio fundado na violao de princpio, no se est a solapar a sua importncia? Nesse sentido, caberia indagar: alguns dispositivos do novo Cdigo Civil provocam nitidamente retrocesso social. Seria possvel, ento, inquinar tais dispositivos de inconstitucionais invocando como parmetro o princpio (implcito) da proibio de retrocesso social prpria do paradigma institudo pelo Estado Democrtico de Direito?

    So questes dessa ordem - sobremodo instigantes - que fazem da obra de Mnia um importante contributo para o desvelamento da fora normativa da Constituio. Afinal, continuo a acreditar - e parece

    XII

  • PREFACIO

    que a autora est de pleno1 acordo - que a Constituio (ainda) constitui. E, para que possa ocorrer o acontecer (Ereigner) desse constituir, h que se compreender a Constituio no interior do paradigma do Estado Democrtico de Direito. Nesse contexto, vai um alerta: o texto no segura nada. O texto no existe como [e esse como um como hermenutico - (etwas ais etwas) ] texto em si. 0 texto s na sua norma.

    *

    E por isso que a norma sempre resultado da interpretao do texto (Eros Grau chama a isto de alografia do Direito). Do mesmo modo que Heidegger vai dizer que o ser sempre o ser de um ente, a norma sempre a norma de um texto e o texto s na sua norma. A construo hermenutica dessa norma - que exsurge da interpretao do texto - vai depender dos princpios, os quais, agregados aos textos, constituiro a norma (sentido) da Constituio.

    Por tudo isso, o estudo dos princpios torna-se condio indispensvel para o jurista preocupado com a realizao/concretizao da Constituio. No h dvidas, pois - e Mnia deixa isto bem claro - , que os princpios constituem a ao!

    Lnio Luiz StreckPs-Doutor em Direito Constitucional e Hermenutica

    Professor dos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da Unisinos e Mestrado em Polticas Pblicas da Unisc.

    1 Nesse sentido, permito-me remeter o leitor ao meu Jurisdio Constitucional e Hermenutica -um a nova crtica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, em especial cap. 5.

    XIII

  • I NTRODUO

    0 Brasil se constitui, segundo o disposto no artigo l 2 de nossa Constituio, em um Estado Democrtico de Direito, que se caracteriza pelo fato de no responder por uma mera legalidade, e sim por uma legalidade qualificada por valores e princpios materiais, que se afiguram como sendo a base de todo o ordenamento jurdico.

    Dentro deste contexto, a questo do controle de consti- tucionalidade adquire profunda relevncia, principalmente se considerarmos que, no mbito jurdico, a grande descoberta do pensamento moderno est nas Cartas Constitucionais, entendidas como lex superior, cuja grande inovao no se encontra na idia em si mesma, mas no carter universal por elas assumido neste perodo, principalmente a partir da Constituio norte-americana de 1787.

    Esta norma constitucional, por sua vez, d estrutura (organizao) ao Estado1, estabelece a forma de elaborao das outras normas e fixa os direitos e as responsabilidades fundamentais dos indivduos. Por tudo isto, ela passa a ser

    1 Compreendido aqui num sentido lato, que inclui a sociedade.

    XV

  • A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    reconhecida como Lei Fundamental, por ser a base de todo o direito positivo da comunidade que a adota, sobrepondo-se aos demais atos normativos por estar situada no vrtice da pirmide jurdica que representa idealmente o conjunto de normas jurdicas vigentes em determinado espao territorial.

    Em face de tais argumentos, possvel dizer que a Constituio o complexo de normas fundamentais de um dado ordenamento jurdico, ou a ordem jurdica fundamental da comunidade, acrescentando, ainda, que ela estabelece os pressupostos de criao, de vigncia e de execuo das normas do resto do ordenamento, determinando amplamente seu contedo, bem como se converte em elemento de unidade da comunidade em seu conjunto, colocando-se ela, em razo disso, como base, como ponto de partida e como fundamento de validade de todo o sistema.

    Enquanto norma reguladora, a Constituio composta de princpios e de regras, sendo ambos espcies do gnero norma jurdica e, portanto, dotados de normatividade. No h distino entre princpios e normas. As normas compreendem regras e princpios, de modo que a distino relevante no , como nos primrdios da doutrina, entre princpios e normas, mas entre regras e princpios.

    Assim, s normas programticas reconhecido um valor jurdico constitucionalmente idntico ao dos restantes preceitos da Constituio, pois, uma vez sendo o Direito Constitucional positivo, possvel falar em Constituio como norma ou em fora normativa da Constituio, de modo que suas normas vinculam, necessariamente, o legislador, os rgos de concretizao e os poderes pblicos, estando os princpios no degrau mais alto da escala normativa, fase esta denominada pela doutrina como ps-positivista.

    Isto significa dizer que eles valem diretamente contra a lei, quando esta estabelece restries em desconformidade com seus preceitos, implicando a inconstitucionalidade de todos os dispositivos legais contrrios, inclusive de ordem constitucional.2

    Esta concepo afasta-se, pois, de um conceito de Constituio puramente formal, sendo possvel concluir, segundo a nova teoria constitucional, que, uma vez sendo os princpios constitucionais portadores

    2 Como no caso das Emendas Constituio, por exemplo.

    XVI

  • INTRODUO

    de valor normativo, seu contedo, necessariamente, deve servir como referencial axiolgico ao controle de constitucionalidade, impondo-se a declarao de inconstitucionalidade em face de princpio, por parte dos Tribunais competentes, seja no mbito da legislao infraconstitu- cional, seja no mbito da legislao constitucional.

    Avaliar como se d a aferio desta constitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, em face dos princpios constitucionais e da normatividade que lhes atribuda pela teoria constitucional contempornea (especialmente por autores como Dworkin, Alexy, Canotilho e Hesse), tanto em sede de controle concentrado (em especial com relao Ao Declaratria de Inconstitucionalidade) como em sede de controle difuso (no julgamento de Recurso Extraordinrio) o escopo do presente trabalho, para o qual, dada a sua natureza bibliogrfica, se adotar o mtodo analtico e histrico-crtico, que, procurando dar tratamento localizado no tempo matria objeto do estudo, pretende afe- rir como se operam, nesse mbito, as questes acima mencionadas.

    Com relao ao tema abordado, contudo, tem o Supremo Tribunal Federal tido um comportamento um tanto quanto paradoxal, pois, ao mesmo tempo que reconhece a inconstitucionalidade de Emenda Constitucional, sequer conhece do recurso extraordinrio interposto com fundamento na violao de princpio constitucional.

    A hiptese que se desenvolve, neste sentido, a de que, em verdade, no se trata de um paradoxo, pois nem mesmo quando o tpico em questo a aferio da constitucionalidade de Emenda Constitucional o referido Tribunal atribui aos princpios constitucionais o status de normas efetivamente vigentes e auto-aplicveis, negando, por conseguinte, a sua condio de parmetros para a aferio da constitucionalidade e, conseqentemente, a realizao da materialidade da Constituio.

    Para tanto, no primeiro captulo do trabalho, abordaremos a questo sob o ponto de vista da Constituio, traando, num primeiro momento, um esboo do seu conceito na perspectiva da evoluo do Estado, demonstrando como ela passou de mero instrumento assegu- rador das liberdades no perodo liberal a projeto civilizatrio no atual Estado Democrtico, e, num segundo momento, como se manifesta, em seu contedo, um aspecto eminentemente material, representado especialmente pela figura dos princpios constitucionais.

    Introduzido o tema dos princpios, elemento central sobre o qual se desenvolve a dissertao, tratamos, no segundo captulo, de sua na

    XVII

  • A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    tureza marcadamente axiolgica, enquanto manifestao do contedo do pacto constitucional e expresso mxima dos valores eleitos pela comunidade que d origem a este mesmo pacto, tido como um projeto civilizatrio. Uma vez posta esta perspectiva, traa-se uma distino entre os princpios e as regras, destacando-se o fato de serem - ambos- espcies de norma jurdica e, portanto, dotados de normatividade, destacando-se os primeiros com relao aos segundos em razo de seu carter fundamental dentro da ordem jurdica.

    J no terceiro e ltimo captulo, adentramos na perspectiva juris- dicional, traando, primeiramente, as linhas histricas da jurisdio constitucional no Brasil, tendo em vista, especialmente, a demarcao da competncia do Supremo Tribunal Federal para aferio da consti- tucionalidade das leis em sua forma que combina os modelos concentrado e difuso, para ento discutir a sua legitimidade - enquanto rgo pertencente ao Poder Judicirio - para o exerccio deste controle. Por fim, procedemos a uma anlise da jurisprudncia exarada por este Tribunal com relao aos princpios constitucionais em sede de Recurso Extraordinrio e de Ao Declaratria de Inconstitucionalidade, no sentido de verificar se lhes tem sido conferida, efetivamente, a plena eficcia que lhes atribuda pela teoria constitucional contempornea, estreitamente conectada com os fundamentos e preceitos do Estado Democrtico de Direito.

    A partir das consideraes tecidas ao longo do texto, pretendemos, por conseguinte, contribuir para a ampliao da perspectiva democrtica no pas, por meio do ideal de realizao da justia social que se encontra latente na principiologia da Constituio.

    XVIII

  • A CONSTITUIO: EVOLUO, NATUREZA E SIGNIFICADOS

    1.1. A Co n s t it u i o n a p e r s p e c t iv aDA EVOLUO DO EsTADOl DO ESTADO

    de D ir e it o l ib e r a l ao Es t a d o

    De m o c r t ic o de D ir e it o

    1 .1 . a . O E s t a d o d e D i r e i t o l i b e r a l :

    g n e s e c o n s t i t u c i o n a l e c a r a c t e r e s

    Carta Poltica. Lei Mxima. A Constituio, no de hoje, afigura-se como o instrumento poltico-jurdico mais importante da organizao social, sendo sua superioridade hierrquica amplamente reconhecida. Seus contedos e caracteres, contudo, sofreram algumas profundas alteraes ao longo do tempo, fruto das influncias de cada momento histrico.

    Apesar da existncia de alguns fatos que indicam a existncia de uma Constituio j na Idade Antiga,' Idade

    1 Conforme MATTEUCCI, Nicola. Organizacin dei poder y libertad. Historia dei constitucionalismo moderno. Traduccin de Francisco Javier Ansutegui Roig y Manuel

    1

  • A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    Moderna que se atribui a verdadeira inveno da Constituio nos moldes em que a conhecemos nos dias atuais, pelo menos no que diz respeito ao carter universal por ela assumido nesse perodo - apesar das inmeras variantes nacionais que se podem verificar. Como diz Matteucci,2 este um processo histrico que apresenta alguns caracteres unitrios, ainda que com modelos constitucionais distintos. Ou, como quer Hberle,3 el actual Estado constitucional tiene muchos padres y muchas madres, en funcin de sus variantes nacionales pero tambin como tipo.

    Apesar destas variantes, no entanto, a Revoluo Francesa de 1789 pode ser considerada como sendo o bero deste novo constituciona- lismo, pois, ao reduzir a conceitos jurdicos as idias polticas e a realidade econmica da burguesia, gerou una presin directa e indirecta que los pases angloamericanos - con sus ejemplos y modelos de Estado constitucional - no haban producido en tal grado.4 Assim, 1789 conserva sin embargo, formalmente y por lo que se refiere a los conte- nidos, un lugar especial.

    O que se pode perceber - trao tambm destacado por Hberle na obra aqui citada - que muitos dos contedos incorporados ao texto constitucional naquele momento histrico permanecem presentes nas Cartas at os dias atuais (apesar de haverem sido adaptados s novas realidades), o que demonstra uma certa clusula de no-retrocesso

    Martnez Neira. Madrid: Trotta. 1998. p. 23, com o termo "constitucionalismo" se faz referncia, geralmente, a uma reflexo sobre a experincia poltico-jurdica relativa organizao do poder. E estes momentos de reflexo, segundo ele, fazem parte da histria europia desde o m undo antigo.

    Neste mesmo sentido, vai a afirmao de CAPPELLETTI, Mauro. O controle jud ic ia l de constitucionalidade das leis no Direito Comparado. Traduo de Aroldo Plnio Gonalves. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1992, p. 10. quando afirma a idia de Constituio j apresentava alguns precedentes antigos de supremacia de algumas leis tidas com o fundamentais" sobre outras, com o na Grcia, por exemplo, onde o nmos (lei em sentido estrito), quando em contraste com um psfisma (decreto), prevalecia sobre este ltimo.

    2 MATTEUCCI, Nicola, op. cit., p. 24.

    3 HBERLE, Peter. Libertad, igualdad, fraternidad. 1789 como historia, actualidad y futuro dei Estado Constitucional. Traduccin de Ignacio Gutirrez Gutirrez. Madrid: Trotta, 1998, p. 59.

    4 Idem, ibidem.

    2

  • A CONSIIIU IO : EVOLUO. NAUREZA E SIGNIFICADOS

    que este autor sustenta quando afirma que estes pontos assinalam um marco inicial intransponvel, uma (r) evoluo que no permite um retorno ao status quo ante, de modo que se pode perceber, da, a conformao de uma nova ordem, instauradora do conceito moderno de Constituio.

    Com a queda do modelo feudal, a forma concentrada de organizao do poder poltico, justificado na vontade divina, sofre um profundo desgaste, abrindo-se espao para a teoria do contrato social que, partindo do pressuposto de que o indivduo est no centro da teoria poltica, coloca o Estado como sendo criado por um pacto firmado entre homens livres e iguais, que a ele delegam a funo de assegurar as suas liberdades e os seus direitos:

    El Estado no es una creacin de Dios ni un orden divino, sino una comunidad (res publica) al servicio dei inters comn de todos los individuos. El punto de partida y la referencia obligada dei orde- namiento estatal es el indivduo singular, libre, igual, autodetermina- do, y sus objetivos en la vida terrena: promoverlos es precisamente el por qu dei Estado, el fundamento que lo legitima.5

    Cria-se, assim, a idia de que o Estado est a servio do homem, e no o contrrio, o que permite que se imponham limites s suas atividades e ao seu poder:

    As, el moderno constitucionalismo est ligado, por un lado, a los princpios iusnaturalistas con su obra de racionalizacin dei derecho vigente y, por otro, a la 'revolucin democrtica', (...) que no fundamenta la legitimidad dei poder en el derecho divino dei rey, ni em la tradicin, sino en el consenso racional de los ciudadanos.6

    Todo este processo se d tendo como pano de fundo a instaurao do Estado liberal, movido e gerido pelos interesses da burguesia, segun-

    5 BCKENFRDE, Ernst Wolfgang. Estdios sobre el Estado de Derechoy Ia democracia. Traduccin de Rafael de Agapito Serrano. Madrid: Trotta, 2000, p. 19.

    G MATTEUCCI, Nicola, op. cit., p. 25.

    3

  • A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    do os princpios iluministas do racionalismo e do antropocentrismo. Partindo do pressuposto de que o homem anterior ao Estado, o seu fundamento, d-se uma inverso na perspectiva da garantia dos direitos dos cidados e dos deveres do Estado, que passa a ser regido por dois princpios fundamentais: o princpio da distribuio e o princpio da organizao.

    O primeiro, que tem seu pressuposto na idia de que a liberdade do indivduo um dado anterior ao Estado, faz com que esta (a liberdade do indivduo) seja ilimitada em princpio, ao passo que a faculdade do Estado para invadi-la seja limitada em princpio, resultando na mxima de que ao indivduo permitido fazer tudo aquilo que no seja proibido e ao Estado, somente aquilo que permitido.

    J o segundo d origem ao princpio da separao dos poderes, forma ideal encontrada para pr em prtica o princpio da distribuio, segundo o qual o poder se divide em competncias circunscritas (sistema de freios e contrapesos), o que acentua ainda mais o carter limitado da atuao estatal.

    Aliada a isto, vem a idia de necessria mensurabilidade de todas as manifestaes do poder do Estado, pela qual todas as atividades do poder devem ter um funcionamento calculvel e previsvel, por meio da existncia de normas prefixadas.

    Nesta perspectiva, o Estado passa a ter competncias e atribuies bem delimitadas, sendo que o melhor instrumento para ordenar estes regramentos sobre competncias e atribuies - e para assegurar os direitos individuais - de uma maneira neutra e racional a lei, que pode ser caracterizada como sendo uma regra geral (norma geral) que surge com o consentimento do povo - por meio da representativida- de - num procedimento caracterizado pela discusso e pela publicidade:

    Todos los princpios esenciales para el Estado de Derecho estn includos institucionalmente en este concepto de ley. (...) El asentimiento de la representacin dei pueblo garantiza el principio de la libertad y la posicin de sujeto dei ciudadano; la generalidad de la ley impide ingerencias en el mbito de la libertad civil y de la sociedad ms all de sus limitaciones o delimitaciones de caracter general, esto es, vlidas para todos por igual; el procedimiento determinado por la discusin y la publicidad garantiza la medida

    4

  • A CONSTITUIO:EVOLUO, NATUREZA E SIGNIFICADOS

    de racionalidad que el contenido de la ley puede humanamente alcanzar.7

    Para poder vincular tambm ao Estado, porm, ela precisa ter um status diferenciado, capaz de, efetivamente, obrigar a todos os entes polticos:

    O instrumento que melhor pode ordenar os regramentos sobre competncias e atribuies, de uma maneira neutra e racional (sob a tica liberal), a lei; entretanto, para que vincule inclusive o Estado ao respeito da mesma, ela deve ter um status diferenciado, capaz de efetivamente obrigar a todos os entes polticos: o de lei constitucional.8

    Est aberto, assim, o caminho para a idia de Constituio e sua superioridade hierrquica com relao s demais normas. Reforando esta nova perspectiva, aparece outro trao caracterstico das Constituies modernas, atendendo aos ideais de segurana jurdica imperantes naquele tempo: a rigidez proveniente da lei escrita, em oposio tradio vigente na Idade Mdia, onde as leis fundamentais eram con- suetudinrias.

    Se quiere una constitucin escrita no slo para impedir un gobierno limitado, sino para garantizar los derechos de los ciudada- nos y para impedir que el Estado los viole. En efecto, la constitucin no slo regula el funcionamento de los organismos dei Estado, sino que adems consagra los derechos de los ciudadanos, puestos como limites al poder dei Estado. Para esta finalidad, la constitucin debe ser rgida e inflexible, en el sentido de que sus normas no pueden ser modificadas ni interpretadas por el poder legislativo ordinrio, ya que son superiores jerrquicamente.9

    1 BCKENFRDE, Ernst Wolfgang, op. cit., p. 23.8 LEAL, Rogrio Gesta. Perspectivas hermenuticas dos Direitos Humanos e Funda

    mentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 123-4.9 MATTEUCCI, Nicola, op. cit., p. 25.

    5

  • A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    Assim, para o autor, a originalidade do constitucionalismo moderno consiste, exatamente, em sua tendncia e aspirao a uma Constituio escrita, que contenha uma srie de normas jurdicas organicamente relacionadas entre si, fruto de um processo de racionalizao de todos os aspectos da vida poltica e social. A codificao do direito privado se une, portanto, a codificao do direito pblico, que obedece mesma exigncia de certeza e de publicidade, essencial para a realizao da igualdade (formal).

    Cria-se, enfim, a idia de que toda sociedad en la que no est ase- gurada la garantia de los derechos ni establecida la separacin de poderes carece de Constitucin.10

    E preciso ressaltar, contudo, que esta concepo pretende assumir um carter essencialmente neutral, em que a Constituio aparece como instrumento de garantia dos direitos de cada cidado contra o poder arbitrrio do Estado, que no deve interferir na esfera privada (representada, eminentemente, pela figura do mercado, um espao politicamente neutro baseado numa srie de relaes entre indivduos livres e independentes e tido como a verdadeira sociedade natural, na qual no deve haver interferncias externas - diga-se, estatais).

    Estado e sociedade apresentam-se, por conseguinte, como dois eixos paralelos e independentes, estando a sociedade, em verdade, colocada como oposta ao Estado, num resqucio claro da luta contra o absolutismo que imperara at ento. O Estado, enquanto construo artificial, um tre pens, considerado como um mal necessrio, que, no entanto, no pode interferir demasiadamente nas relaes existentes na sociedade:

    As liberdades individuais, fundamento do progresso, inatas, eram, pois, liberdades pr-polticas: o Estado formava-se exacta- mente para as proteger e no podia interferir na sociedade para as limitar, mas apenas para as generalizar, impedindo os eventuais abu-

    O grifo constante da citao nosso, sendo que, a partir de agora, adotaremos o critrio de colocar todos os destaques feitos pelo prprio autor em itlico, estando os nossos destacados em negrito.

    10 HBERLE, Peter, op. cit., p. 50.

    6

  • A CONSIIIU IO : EVOLUO. NAUREZA E SIGNIFICADOS

    sos cometidos no seu exerccio. Um Estado, portanto, absolutamente neutral perante os interesses econmico-sociais que se digladia- vam na sociedade.11

    O que se afirma, a partir de ento, a igualdade natural dos homens, pois, por natureza, todos so iguais e como tal devem ser tratados pela lei, sendo que o que se reivindica o reconhecimento dessa igualdade pelo Direito. Em outras palavras, o que se reivindica a abolio dos privilgios pelos quais a nobreza e o clero juridicamente se distinguiam do Terceiro Estado.

    La burguesia mercantil, industrial, financiera e intelectual que desarrolla el movimiento liberal no era economicamente oprimida por la aristocracia dominante. Ella disfrutaba, por lo contrario, de bastantes recursos materiales; en muchos casos era mismo ms abastada que la aristocracia. Pero las leyes relativas a privilgios de la nobleza la mantenan en un estatuto social inferior que le era inso- portable. El absolutismo no le ofreca una libertad suficiente, tampo- co le aseguraba qualesquiera garantia de seguridad personal. Regulaciones governamentales respecto a las corporaciones impe- dan su desarrollo econmico. (...) Los grandes enfrentamientos liberales sern, as, enfrentamientos por una reforma de los estatutos jurdicos.12

    A Constituio , neste contexto, justamente o mecanismo capaz de conferir esta garantia, constituindo-se ela, assim, mais em um instrumento de manunteno da ordem estabelecida - numa tentativa da burguesia de se defender do Estado e manter as conquistas obtidas com a Revoluo - do que de transformao social.13

    Isto porque,

    11 PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral. Os limites do poder constituinte e a legitim idade material da Constituio. Coimbra: Coimbra. 1994, p. 154.

    12 DUVERGER, Maurice. Instituciones polticas y Derecho Constitucional. 5a edio. Barcelona: Ariel, 1970, p. 77.

    13 Da o extremo legalismo verificado neste perodo, realidade que se reflete no prprio Direito, com o triunfo de movimentos extremamente restritivos, com o o chamado Empirismo Exegtico, por exemplo.

    7

  • A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    Na verdade, o dever de absteno estatal, postulado pelo princpio da separao da sociedade privada e do Estado, manteve-se ntegro, sim, mas apenas no que concerne correo das injustias (...) derivadas do livre exerccio das liberdades econmicas e do direito de propriedade. J relativamente quelas liberdades cujo exerccio poderia fazer perigar o monoplio poltico e social da burguesia (...), tal abstencionismo no se verificou.14

    Assim, pode-se concluir que a neutralidade do Estado neste aspecto acarreta a sua postura em favor de uma classe - a classe burguesa o que leva constatao de que, na realidade, a Constituio liberal impunha a parcialidade do Estado em proveito de uma classe,15 numa postura que se poderia denominar de imparcialidade parcial.

    Carl Schmitt, em sua obra Teoria de la Constitucin, alerta para esta falcia de neutralidade, ao afirmar que o Estado de Direito, apesar de toda sua juridicidade e normatividade, segue sendo um Estado, que sempre contm um elemento especificamente poltico e, por isso, no hay ninguna Constitucin que sea, puramente e sin residuo, un sistema de normas jurdicas para la proteccin dei indivduo frente al Estado.16

    Toda essa concepo legitimada, por sua vez, por um dos corolrios fundamentais da concepo jurdica liberal, representado pelo

    h PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral, op. cit., p. 155-6.1:1 Idem, ibidem, p. 155. Segundo a autora, "sob o ponto de vista sociolgico no se

    trata apenas de uma constituio do Estado - com o indicam as suas matrias de regulamentao normativa mas ao mesmo tempo a forma poltica da sociedade burguesa (...), pois se a constituio garante em primeiro lugar uma certa forma de relaes sociais ela , assim, a forma poltica de uma sociedade especfica, ou seja, a sociedade burguesa".

    Da a afirmao de Bolzan de Morais de que o Estado de Direito, no caso o liberal, no isento de contedo, ou seja, ele no se identifica com uma legalidade em sentido estrito: No se trata, como se quer muitas vezes, de um total alheamento do contedo jurdico do Estado. Em realidade, tem-se a consubstanciao do contedo poltico do liberalismo na forma jurdica do Estado ou do Estado Liberal de Direito. Do contrrio, teramos o esvaziamento do contedo para a simples legalidade, o que s ocorre com o desenvolvimento do positivismo jurdico im pondo a identificao do Direito lei e, conseqentemente, do Estado de Direito a um Estado lega. MORAIS, Jos Lus Bolzan de. Do Direito social aos interesses transindividuais: o Estado e o Direito na ordem contempornea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 71.

    16 SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitucin. Madrid: Revista de Derecho Privado, [s. d.], p. 145.

    8

  • A CONSIIIUIO: EVOLUO. NAUREZA E SIGNIFICADOS

    princpio da autonomia da vontade, que pressupe um acordo de vontades formalmente iguais e assegura, assim, a cada indivduo, a tomada de suas prprias decises e, conseqentemente, a assuno de seus resultados. Esta presuno, contudo, segundo alguns autores, pode ser tida como um encobrimento de um certo darwinismo biolgico traduzido para o campo do social:

    O Estado liberal no era to formal como por vezes se afirma.Ele no era s um Estado de direito, mas tambm um Estado de limites a servio dos factores dominantes da sociedade burguesa.Um exemplo claro o da funo racional das leis gerais e abstractas: sendo um instrumento de garantia do livre e igual desenvolvimento dos indivduos, encobriam a possibilidade de desiguais poderes sociais e a natureza de classe do Estado.17

    Este Estado est, pois, para Kant, juridicamente, fundado nos seguintes princpios a prior: a) liberdade de todo membro da sociedade, como ser humano; b) igualdade, tendo em sua base o fato de todos estarem sujeitos lei; c) independncia de todos os membros da comunidade, enquanto cidados.18

    Em resumo, sob as frmulas jurdicas burguesas encontravam-se liberdades sem contedo, sem possibilidades de realizao, o que desvela a natureza classista da classe constituinte.

    Como bem assevera Bckenfrde,

    El Estado de Derecho formal es tambin en esa medida Estado de Derecho burgus: confirma la distribucin de los bienes en vez de transformaria y, atravs de sus formas y procedimientos, impide la intervencin directa sobre la propiedad individual con fines de re- distribucin social.19

    17 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Constituio dirigente e vinculao do legislador. Contributo para a compreenso das normas constitucionais programticas. Coimbra: Coimbra. 1994, p. 42.

    18 KANT, Immanuel. A paz perptua. Traduo de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. So Paulo: L&PM, 1989. p. 43.

    19 BCKENFRDE, Ernst Wolfgang, op. cit., p. 31. Como bem assevera Ludwig von Stein, citado por Bckenfrde (Idem. Ibidem, loc. cit.), El Estado de Derecho se apoya en

    9

  • A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    Esta realidade nos remete, por outro lado, constatao de que preciso diferenciar, necessariamente, a figura do modelo Estado de Direito do Estado de Direito burgus, que se apresenta como sendo apenas uma das verses do primeiro, como bem foi percebido por Schmitt,20 ao afirmar que o Estado de Direito no significa finalidad y contenido dei Estado, sin slo modo y carcter de su realizacin. Ele se apresenta, neste aspecto, como uma oposio ao Estado de fora, arbitrrio, o que fica caracterizado pelo seu aspecto de legalidade, de respeito ao direito objetivo vigente.21

    Este falso absentesmo imposto figura do Estado gera, por sua vez, uma extrema desigualdade social, num contraponto igualdade meramente formal tutelada pelo iderio liberal, onde s teoricamente o direito igual para indivduos que tambm s teoricamente so iguais. No tardou, por isso, que a classe no possidente (o quarto estado) viesse a aperceber-se da injustia material de um Direito que apenas se legitimava pela sua generalidade e abstrao.22

    Diante deste quadro, surgem, especialmente no comeo do sculo XX, fortes movimentos sociais, alavancados pela ecloso das lutas operrias, que vo resultar em um novo modelo estatal, denominado de Estado social.23

    la distincin entre bien y valor. La propiedad sobre el bien puede ser cambiada, pero la propiedad sobre el valor se mentiene inamovible.

    20 SCHMITT, Carl, op. cit., p. 146.21 Ele aparece, neste sentido, com o sendo um instrumento, a forma pela qual se reves

    te a consecuo de seus fins - que podem ser tanto de manuteno do status quo vigente, com o o caso do Estado burgus, conforme j foi citado, ou de transformao da ordem vigente, com o o caso do Estado Democrtico de Direito, sendo que, no primeiro, predomina a idia da forma, do procedimento (sendo a manuteno da ordem estabelecida a sua conseqncia) e, no segundo, o carter teleolgico, da a relevncia dada ao aspecto material do ordenamento jurdico.

    22 PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral, op cit., p. 159.23 A formao da idia de Estado social, mais precisamente a idia de Estado Social

    de Direito atribuda a Hermann Heller, um dos mais destacados tratadistas de teoria poltica e do Estado do incio do sculo XIX, e surgiu da idia de que era preciso salvar" o Estado de Direito no s da ditadura fascista, mas tambm da degenerao provocada pelo positivismo jurdico e pelos interesses das classes dominantes. HELLER, Hermann. Teoria dei Estado. Traduccin de Lus Tobo. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1987, p. 217 e segs.

    10

  • A CONSTITUIO: EVOLUO, NAUREZA E SIGNIFICADOS

    Importante ressaltar, neste sentido, com Pinto,24 que o contedo da igualdade como princpio jurdico-poltico reflete, sempre, o tipo das desigualdades que, histrica e socialmente, se confrontam. Assim, o carter puramente formal da igualdade no Estado de Direito liberal no exprime seno a superao burguesa das desigualdades jurdicas prprias do antigo regime. Com o sucesso poltico da revoluo liberal, contudo, a contradio social fundamental passa a situar-se entre a burguesia e o proletariado, razo pela qual, necessariamente, ter que ser outra a igualdade reivindicada pela classe que passou a estar em conflito com o direito estabelecido.

    No plano terico do pensamento jurdico, os reflexos dessa luta tra- duzem-se num novo entendimento do princpio da igualdade, que no se entende mais realizvel seno mediante a igualdade social (igualdade no apenas perante a lei, mas atravs dela).

    m i 1 .1 . b . O E s t a d o s o c i a l e o E s t a d o D e m o c r t i c o

    d e D i r e i t o

    Todo este processo tem em sua base, portanto, a constatao da incapacidade do sistema liberal-burgus de lidar, de um lado, com a irracionalidade do sistema capitalista, geradora de um novo feudalismo econmico encoberto pelo Estado (formal) de Direito e, de outro, com a irracionalidade representada pelo fascismo.

    Diante desta constatao, a soluo no est, segundo Heller, em renunciar ao Estado de Direito, mas em dar a este um contedo econmico e social, proporcionando, dentro da prpria instncia estatal, uma nova ordem laborai e de distribuio de bens. Segundo ele no haveria, pois, que se renunciar ao Estado de Direito, devendo-se, antes, desenvolver as suas instituies no sentido da democracia social.25

    24 PINTO. Luzia Marques da Silva Cabral, op. cit., p. 160-1.25 Ambos, Estado de Direito e Estado social, so aqui tidos com o compatveis. No

    concordamos, pois, com aqueles que consideram ser o ideal de liberdade - caracterstico do Estado de Direito - inconcilivel com o ideal de igualdade pregado pelo Estado social, eis que valores contrapostos e excludentes. Acreditamos, neste sentido, que a dicotomia entre estes dois princpios pode ser superada se considerados, ambos, sob uma perspectiva dialtica, ou seja. se se considerar que ambos se condicionam mutuamente, resultando da uma sntese que se apresenta diversa do produto que resultaria de uma simples justaposio destes conceitos. O que se tem. pois. uma noo de igualdade com liberdade e

    11

  • A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    A partir deste entendimento, o Estado social pode ser com preendido mais como uma tentativa de adaptao da sociedade ps-industrial aos novos tempos do que como algo eminentemente novo:

    El Estado social significa historicamente el intento de adapta- cin dei Estado tradicional (por el que entendemos en este caso el Estado liberal burgus) a las condiciones sociales de la civilizacin industrial y postindustrial con sus nuevos y complejos problemas.(...) No hemos de ver las medidas de tal adaptacin como algo totalmente nuevo, sino ms bien como un cambio calitativo de ten- dencias.26

    Assim,

    Desde el ltimo tercio dei siglo XIX se desarroll en los pases ms adelantados una 'poltica social' cuyo objetivo inmediato era remediar las psimas condiciones vitales de los estratos ms desamparados y menesterosos de la poblacin. Se trataba, as, de una poltica sectorial no tanto destinada a transformar la estructura social cuanto a remediar algunos de sus peores efectos y que no precedia, sino que seguia a los acontecimientos.27

    Enfim, trata-se mais, em princpio, da adoo de medidas corretivas dos efeitos negativos de um sistema geralmente considerado como auto-regulado (o mercado) do que de uma ruptura na estrutura poltica, social e econmica. Este novo Estado - tambm denominado de Estado de Bem-Estar ou de Welfare State - representa, portanto, neste

    de uma liberdade com igualdade, sendo impossvel dissoci-las. Alm disso, j dissemos aqui que o Estado de Direito nada mais do que um modus operandi que pode servir consecuo de diferentes fins (podendo servir, portanto, tanto ao m odelo liberal com o ao modelo social), de m odo que a oposio que se apresenta mais entre o modelo liberal e o m odelo social de Estado (contedo) do que entre Estado de Direito e o Estado social (forma e contedo).

    26 GARCA-PELAYO. Manuel. Las transformaciones dei Estado contemporneo. Madrid: Alianza, 1996, p. 18. A questo de que o Estado de Direito uma forma, um modus operandi, da qual podem se revestir diferentes contedos j foi abordada alhures.

    27 Idem, ibidem.

    12

  • A CONS 11UI AO: fc V LUO, N A U RE Z A E SIGNIFICADOSI

    aspecto, no uma ruptura,28 mas sim uma mera adaptao do modelo liberal s necessidades sociais, uma concesso29 que tem por fim ltimo evitar que o exemplo revolucionrio russo se alastre por toda a Europa. Em outras palavras: prefervel classe dominante ceder e manter o poder do que resistir e sucumbir ao socialismo.

    o que se pode depreender das palavras de Garca-Pelayo, quando afirma que

    Las condiciones histricas que han hecho posible el desarrollo de esta nueva funcin dei Estado que ni es socialista, ni es capitalista en el sentido clsico dei concepto, sino que se corresponde con la etapa dei neocapitalismo son, de un lado, un reto histrico, una necesidad de resolver problemas agobiantes irresolubles dentro de la estructura dei Estado liberal y de la sociedad dei Hochkapitalismus.(...) Era claro para las potncias occidentales que haba que evitar tanto la cada en un socialismo de inspiracin sovitica como la vuelta a las condiciones dei perodo anterior.30

    O Welfare State se apresenta, assim, como uma soluo intermediria entre o socialismo e o capitalismo (em sua viso liberal clssica):

    28 Pode-se dizer que, no tocante evoluo do Estado Liberal, o desenrolar das relaes sociais produziu uma transformao neste modelo, dando origem ao Estado Social de Direito que, da mesma forma que o anterior, tem por contedo jurdico o prprio iderio liberal agregado pela convencionalmente nominada questo social. (...) Ao final, o que se observa uma certa identidade nestes m odelos apresentados, podendo-se dizer que am bos tm com o fim comum a adaptao social. Seu ncleo bsico permanece intocado. MORAIS, Jos Lus Bolzan de, op. cit., p. 79-80.

    29 O fato de serem aqui tratados com o uma concesso no lhes retira, contudo, de forma alguma, o carter de conquista social, at m esm o porque no se pode querer imaginar que esta concesso tenha se dado de forma gratuita e graciosa; o que queremos demonstrar, no entanto, que no houve uma ruptura ou uma transformao profunda no sistema (apesar da inovao que este modelo de Estado representou).

    Alm disso, se os direitos sociais fossem considerados apenas e estritamente sob o prisma da benevolncia, poderiam ser facilmente retirados por aqueles que os concederam, o que vai diretamente contra a noo que desenvolvemos neste trabalho, onde entendem os que as conquistas da humanidade no mais podem sofrer retrocessos com relao ao contedo por elas incorporado.

    30 GARCA-PELAYO, Manuel, op. cit., p. 19-20.

    13

  • A CONSTITUIO COMO PRINCPIO

    Y si el Estado democrtico liberal de Derecho queria continuar teniendo vigncia haba que adaptar sus valores a las nuevas exigen- cias y anadir a sus objetivos los de la regulacin permanente dei sistema social. (...) As, pues, inters radical dei Estado, ms an, inters existencial era proceder a la estructuracin de la sociedad.31

    Diante de tal quadro, o Estado no pode mais ser tido como mero espectador, devendo intervir diretamente nas questes sociais e passando de ente de postura negativa (com o simples dever de no invadir a esfera dos direitos individuais constitucionalmente assegurados) a promotor de bens e servios - devedor de uma prestao positiva32 - como forma de assegur-los a uma parcela mais abrangente da sociedade, sendo que as categorias sociais desfavorecidas passam a ser beneficirias de um tratamento diverso (discriminao positiva), de acordo com a idia de que devem ser tratadas desigualmente situaes desiguais.

    Pode-se dizer, portanto, que este processo consistiu, em ltima anlise, numa generalizao de direitos, antes sonegados para grande parcela da populao em decorrncia do padro extremamente competitivo vigente.

    31 Idem, ibidem, p. 24.32 No plano da literatura constitucional deve-se, em grande medida, a Duguit o sta

    tus positivus dos direitos sociais, quando afirma, por exemplo, que um dever estrito para o Estado dar assistncia queles que, em virtude de sua idade, das suas enfermidades e doenas, esto na impossibilidade de trabalhar ou m esm o de realizar um trabalho suficientemente remunerador, sobretudo em funo do princpio da igualdade, que deve, necessariamente, ser considerado sob o aspecto distributivo, para o que precisa da interveno do Estado: "En resume, le prncipe d egalit est une rgle de notre droit public positif s'imposant au lgislateur et toute loi qui la violerait serait une loi inconstitutuin- nelle. Mais en mme temps, cette galit il faut lentendre seulement en ce sens que tous les hommes doivent tre galement protgs par la loi, que les charges doivent tre non pas arithmtiquement gales, mais proportionnelles. II ne faut jamais oublier qu'en vou- lant raliser 1'galit mathmatique des hommes, on risque fort de crer de ringalit. DUGUIT, Leon. Trait de D roit Constitutionnel. 3 dition. Paris: Fontemoing, 1927, vol. III, p. 638. A traduo livre do texto acima a seguinte: Em resumo, o princpio da igualdade uma regra de nosso direito pblico positivo que se impe ao legislador e toda lei que a violar ser uma lei inconstitucional. Mas ao m esm o tempo, preciso entender esta igualdade somente no sentido de que todos os homens devem ser igualmente protegidos pela lei, que os encargos devem ser no aritmeticamente iguais, mas proporcionais. No se pode jamais esquecer que, ao querer realizar a igualdade matemtica entre os homens, corremos o forte risco de criar a desigualdade.

    14

  • A CONSTITUIO:EVOLUO, NAUREZA E SIGNIFICADOS

    Rompe-se, assim, definitivamente, com a idia liberal de uma harmonia preestabelecida, de uma justia imanente s relaes sociais, de maneira que no mais se acredita que a ordem social e econmica seja capaz de produzir a justia ao funcionar livremente por si mesma.

    Estado e sociedade sofrem, ento, um processo de aproximao,33 decorrente da perda da capacidade de auto-regulao por parte do mercado, que tinha que buscar naquele a ao reguladora de que carecia. Cria-se, desta forma, uma certa relao de interdependncia entre sociedade e Estado: En suma, el Estado era incapaz de subsistir sin proceder a la reestructuracin de la sociedad y la sociedad por su parte era incapaz de subsistir sin la accin estructuradora dei Estado34

    Encontramo-nos, pois, como quer o autor,

    Con una tendencia a la estatizacin de la sociedad, pero tam- bin con una tendencia a la socializacin dei Estado y, por tanto, a la difuminacin de limites entre ambos trminos. En resmen, Estado y sociedad ya no son sistemas autnomos, (...) sino dos sistemas fuer- temente interrelacionados entre s a travs de relaciones complejas.35

    33 Como j se referiu anteriormente, uma das caractersticas da ordem poltica liberal era no s a distino, mas a oposio entre Estado e sociedade, o que produzia a inibio do Estado frente aos problemas econmicos e sociais. Este era concebido com o uma organizao racional (racionalidade esta que se traduzia por m eio de leis abstratas, da diviso dos poderes e da organizao burocrtica da administrao, com estrutura vertical ou hierrquica). J a sociedade, em contrapartida, era tida com o uma ordem espontnea, tambm dotada de racionalidade, porm no de uma racionalidade atribuda, mas de uma racionalidade imanente; sua estrutura no era vertical, mas horizontal, sustentada principalmente por relaes competitivas. Neste contexto, el Estado, organizacin a rtificial, n i deba, n i a la larga podia, tratar de modificar el orden social natural, sino que su fun- cin habria de limitarse a asegurar las condiciones ambientales mnimas para su funcionamiento espontneo. (...) De este modo. el Estadoy la sociedad eran imaginados como dos sistemas distintos, cada uno de limites bien definidos, con regulaciones autnomas y con unas mnimas relaciones entre s. O Estado social, ao contrrio, parte da premissa de que a sociedade, deixada total ou parcialmente nas mos de seus mecanismos auto-regulado- res, conduz irracionalidade e que somente a ao do Estado pode neutralizar os efeitos negativos de um desenvolvimento econm ico e social no-controlado. Neste sentido, GARCA-PELAYO, Manuel, op. cit., p. 21-2 passim.

    31 Idem, ibidem, p. 24.35 Idem, ibidem, p. 25.

    15

  • Neste contexto, o Estado abandona a sua (aparente) neutralidade e apoliticidade e assume fins polticos prprios, tomando a responsabilidade de transformar a estrutura econmica e social no sentido de uma realizao material da igualdade, a fim de impedir que a desigualdade de fato destrua a igualdade jurdica. A poltica estatal passa a levar a cabo, direta ou indiretamente, uma estruturao da sociedade que se manifesta em mltiplos aspectos, estendendo o usufruto dos bens materiais e imateriais por meio do incremento dos servios sociais, especialmente de sade e de educao.

    Na esteira dessa evoluo, constitucionalizam-se catlogos mais ou menos amplos de direitos econmicos sociais e culturais - direitos estes que, contrariamente aos direitos de liberdade, no so meros poderes de agir, mas poderes de exigir. Os textos constitucionais incorporam, pois, propsitos emancipatrios, tendo como meta a correo ou transformao da ordem social e econmica vigente no sentido de consecuo de uma real igualdade, de modo que tambm Constituio passa a ser atribuda uma nova funo, mais dirigente, no sentido de ser um programa de ao para governados e governo.

    A recepo constitucional dessa nova dimenso social do princpio da igualdade - com a conseqente restrio das liberdades econmicas- verifica-se, por sua vez, a partir do fim da Primeira Guerra Mundial36 e decididamente assumida pelas constituies ocidentais j depois da Segunda Grande Guerra.

    Estas conquistas, todavia, como j foi referido, em verdade no representaram mais do que um paliativo, uma concesso, eis que mantiveram praticamente inalterada a estrutura socioeconmica capitalista,

    36 Constituio mexicana de 1917; Constituio de Weimar (1919); Constituio espanhola de 1931; e a prpria Constituio brasileira de 1934.

    No dizer de Jos Lus Bolzan de Morais, no entanto, fica o registro de que o m odelo constitucional do Welfare State principiou a ser construdo com as Constituies Mexicana de 1917 e de Weimar de 1919, contudo no tem uma aparncia uniforme. O contedo prprio desta forma estatal se altera, se reconstri e se adapta a situaes diversas. Assim que no se pode falar em o Estado do Bem-Estar dado que sua apresentao, por exemplo, americana - do Norte, claro - se diferencia daquela do tat-Providence francs e m esm o da Europa Setentrional. Todavia correto pretender que h um carter que lhe d unidade, a interveno do Estado e a promoo de servios". MORAIS, Jos Lus Bolzan de. As funes do Estado contemporneo: o problema da jurisdio. In: Anurio do Programa de Ps-Graduao em Direito. So Leopoldo: Unisinos, 1999, p. 58.

    A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    16

  • A CONSTITUIAO:EVOLUO, NATUREZA E SIGNIFICADOS

    sendo estes direitos incorporados ordem jurdica com um carter meramente promissrio. Assim, conciliam-se os interesses divergentes e opostos, mas em verdade mantm-se os privilgios, agora encobertos por um manto de falsa legitimidade, atribuda pela incorporao formal, ao texto constitucional, de uma nova ordem de direitos:

    Havia quem quisesse que se atribusse Assemblia Constituinte, no s a tarefa de reconstruir na forma republicana as estruturas fundamentais do Estado, mas tambm a de deliberar ao menos algumas fundamentais reformas de carcter econmico e social que representassem o incio de uma transformao da sociedade em sentido progressivo (...). Mas esta idia no foi acolhida: ou, para dizer melhor, foi acolhida por metade com o fim de dar aos seus apoiantes a iluso de que no foi negada de todo. Entre o tipo de constituio breve, meramente organizatria do aparelho do Estado, e o tipo de constituio longa, esta tambm ordenadora da sociedade, a Assemblia Constituinte escolheu um tipo de constituio longa, isto , contendo ainda uma parte ordenadora que, em vez de efetuar uma transformao das estruturas sociais, se limitava a promet-las a longo prazo, traando-lhe o programa para o futuro.37

    Conclui o autor que esta aparente condescendncia por parte da direita em inserir tal reconhecimento na Constituio teve como condio a renncia, por parte da esquerda, de toda e qualquer tentativa de atuao imediata em termos de transformao social (prometida para um momento posterior).

    Isto quer dizer que o poder constituinte reconhece a injustia da sociedade presente, mas reenvia para um futuro incerto a (pacfica) renovao social, o que Calamandrei38 denomina de revoluo prometida.

    A Constituio do Estado social no , pois, um simples registro das relaes de poder vigentes no momento constituinte, assumindo, antes, uma estrutura programtica, compreendendo sempre um elemento de utopia concreta cuja realizao dependente da ao poltica.

    37 PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral, op. cit., p. 163-4.38 CALAMANDREI, Piero. Operegiuridiche. Napoli: Morano, 1965, vol. III, p. 513-4.

    17

  • A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    No tardaram, no entanto, manifestaes no sentido de reverso dessa concepo restrita acerca dos direitos fundamentais, atribuindo- se-lhes uma natureza autoaplicvel e imediata.

    Historicamente, deve-se a Lavagna,39 inicialmente, o mrito de incluir as normas de direitos fundamentais no conceito de norme discopo, de carter finalista, atribuindo-lhes, porm, plena eficcia, embora destinadas a uma atuao de longo prazo, combatendo, assim, a interpretao conservadora que conferia a essas normas uma conotao meramente programtica, desprovida de qualquer vinculatividade.

    Afirma ele que as normas de escopo so, eminentemente, normas obrigatrias, devendo as instncias estatais no s respeit-las como tambm implement-las, pelo que se apresentam no apenas como um valor impeditivo, mas tambm impositivo:

    Le norme di scopo, viceversa, a parte il fatto di coincidere o meno com quelle che altri qualificano direttive, sono vere e proprie norme obbligatorie. Indicando, infatti, un fine da perseguire, esse rendono, innanzitutto, illetittime le leggi che mostrassero di perseguire fini diversi, o di ostacolare il raggiungimento dei fini da esse indicati; per cui sono pienamente precettive sotto 1'aspetto, per cosi dire, impeditivo. Ma lo sono anche sotto il profillo impositivo. Quali norme diretti al legislatori (...) esse, non solo vietano di legiferari in senso contrario, ma impongono di emanare le leggi e gli atti neces- sari per raggiungere i fini indicati.'10

    A partir da, a teoria constitucional evolui no sentido de conferir aos denominados princpios constitucionais valor igual ou superior s

    39 Conforme PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral, op. cit., p. 180.40 As normas de escopo so verdadeira e propriamente normas obrigatrias. Indi

    cando. com efeito, um fim a prosseguir, elas tomam , antes de tudo, ilegtimas as leis que pretendessem prosseguir fins diversos ou colocassem obstculos consecuo dos fins por elas indicados; por isso, elas so plenamente preceptivas sob o aspecto, por assim dizer, impeditivo. Mas so-no ainda sob o aspecto impositivo. Enquanto normas dirigidas ao legislador (...), elas no s vetam a legislao de sentido contrrio, mas 'im pem a emanao de leis e os atos necessrios para atingir os fins indicados". LAVAGNA. Cario. Cons- tituzione e socialismo. Bologna: II Mulino, 1977, p. 53.

    Mais tarde, esta concepo vai se estender tambm aos outros poderes (Executivo e Judicirio), de m odo que no apenas o Legislativo o destinatrio de tais mandamentos.

    18

  • A CONSTITUIO: EVOLUO, NAUREZA E SIGNIFICADOS

    demais regras,41 numa viragem lingstica que d origem ao conceito de Estado Democrtico de Direito, em substituio ao Estado social.42

    Nas indagaes postas por Canotilho em seu livro Constituio dirigente e vinculao do legislador, pode-se perceber, claramente, as novas questes que passam a envolver o conceito de Constituio e, conseqentemente, os novos rumos tomados pela teoria constitucional neste novo perodo:

    Deve uma Constituio conceber-se como 'estatuto organiza- trio', como simples 'instrumento de governo', definidor de competncias e regulador de processos ou, pelo contrrio, deve aspirar a transformar-se num plano normativo-material global que determina tarefas, estabelece programas e define fins? Uma constituio uma lei do Estado e s do Estado ou um 'estatuto jurdico do poltico', um 'plano global normativo' do Estado e da sociedade?43

    41 Tema que ser abordado nos captulos posteriores do presente trabalho.12 Adotamos, aqui, o pensamento de Elias Daz (embora alguns autores - dentre eles

    Garca-Pelayo - no procedam claramente a essa diferenciao), para quem h que se fazer uma distino entre Estado social de Direito e Estado democrtico de Direito, sendo que o primeiro se caracteriza pela atitude paternalista do Estado, que assume a funo de produtor de bens e de servios, e o segundo, pela tendncia transformao da ordem estabelecida, o que pressupe a participao da sociedade - da o seu carter democrtico. DAZ, Elias. El Estado Democrtico de Derecho en la Constitucin espanola de 1978. Madrid: Sistemas, 1981, p. 46.

    Cabe explicitar, ainda, neste sentido, a ressalva feita por Pablo Lucas Verd no sentido de que cada um deles contm, in nuce, elementos do seguinte e este conserva, durante algum tempo, resduos do anterior, o que se justifica pelo prprio carter pacfico desta transformao, que no se apresentou com o uma ruptura, mas sim com o uma evoluo (aspecto que j foi abordado nas pginas 11 e seguintes do presente trabalho): Recordemos que Ia frmula Estado social y democrtico de Derecho es una sntesis constitucional de contraposiciones doctrinales y reales que han seguido el proceso histrico-ideolgico e institucional Estado liberal de Derecho k Estado social de Derecho n Estado democrtico de Derecho. Quiero decir que cada una de estas fases es no slo cuantitativa, adems es cualitativamente diferente de la anterior, pero, sin embargo, desarrolla la inmediatamente

    *

    precedente y prepara a la inmediatamente posterior. VERDU, Pablo Lucas. La lucha por el Estado de Derecho. Bolonia: Publicaciones dei Real Colgio de Espana, 1975, p. 134.

    43 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, op. cit., p. 12.Necessrio destacar, aqui, que adotamos, para os fins do presente trabalho, a posio

    original do autor portugus, e no sua reviso crtica intitulada Rever ou romper com a Constituio Dirigente? Defesa de um constitucionalismo moralmente reflexivo" (publi-

    19

  • A CONSTITUIO COMO PRINCPIO

    Segundo ele,

    Subjacente aos modelos' constitucionais est uma 'imagem' de sociedade e uma 'teoria de aco': a constituio, na senda de uma filosofia iluminista (idealista e materialista), tem a 'funo' de propor um 'programa racional' e um 'plano' de realizao da sociedade; a lei fundamental, de acordo com padres sistmico-institucionalistas, tem a 'funo' de 'garantir' os princpiosjurdicos ou 'regras do jogo' da 'sociedade estabelecida".44

    Neste sentido, a programtica material da Constituio passa a ser entendida como um instrumento de superao do mero Estado de Direito/15 idia reforada por Garca-Pelayo quando afirma que o Estado social (Democrtico) no um Estado com qualquer contedo, mas sim deten-

    cada nos Cadernos de Direito Constitucional e Cincia Poltica, n. 15. p. 7-17), onde afirma que "Mesmo que as Constituies continuem a ser simbolicamente a magna carta de identidade nacional, a sua fora normativa ter parcialmente de ceder perante novos fentipos poltico-organizatrios, e adequar-se. no plano poltico e no plano normativo, aos esquemas regulativos das novas associaes abertas de Estados nacionais abertos". Prope ele a substituio de um direito autoritariamente dirigente mas ineficaz por outras frmulas (como os contratos) que permitam completar o projeto da modernidade nas condies da ps-modernidade.

    Concordamos, pois, com a crtica de Streck quando afirma que Pelo que se pode depreender, o mestre portugus deixa de lado a defesa de um direito intervencionista, de cunho transformador, passando a defender um direito redutor de complexidades, um direito reflexivo, um direito guia, de cunho autopoitico, de matriz luhmanniana". STRECK, Lnio Luiz. Hermenutica jurdica e(m) crise. 2 edio revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 228.

    44 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, op. cit., p. 14.45 Enquanto concepo formalista, ou seja, de um Estado formal de Derecho. como

    refere Garcia de Enterra: "A este cambio de perspectiva es a lo que la doctrina alemana ha llamado expresivamente el paso de un Estado formal de Derecho (que seria, por cierto, el Estado burgus de Derecho) a un Estado material de Derecho, o dei Derecho en su con-

    *tenido material y no formal". ENTERRIA, Eduardo Garcia de. Reflexiones sobre la leyy los princpiosgenerales dei Derecho. Madrid: Civitas, 1984, p. 104. Assim, a questo no reside na ausncia de um aspecto material no Estado Liberal de Direito, mas na preponderncia da forma sobre o contedo (pois a supremacia da forma era o meio pelo qual se realizava o seu contedo), ao passo que, no Estado Social e Democrtico, h uma inverso nesta relao.

    20

  • Htor de uma legalidade qualificada, baseada em alguns princpios e valores supremos, que uma simples lei em sentido estrito no pode violar:

    El Estado de Derecho, en su prstino sentido, es un Estado cuya funcin capital es establecer y mantener el Derecho y cuyos limites de accin estn rigurosamente definidos por ste, pero, bien entendido que Derecho no se identifica con cualquier ley o conjunto de leyes con indiferencia hacia su contenido. (...) Por consiguiente, si bien la legalidad es un componente de la idea dei Estado de Derecho, no es menos cierto que ste no se identifica con cualquier legalidad, sino con una legalidad de determinado contenido y, sobre todo, con una legalidad que no lesione ciertos valores por y para los cuales se constituye el orden jurdico y poltico y que se expresan en unas normas o princpios que la ley no puede violar."16

    Tem-se, pois, que a funo estatal no est mais vinculada estritamente idia de legalidade, mas tambm e fundamentalmente idia de legitimidade, razo pela qual o Direito passa a ser entendido como sendo a expresso dos valores jurdico-polticos vigentes em uma determinada poca.

    E o que se pode depreender das palavras de Smend, quando afirma a necessidade de um fundamento antropolgico para a teoria da Constituio:

    En el mbito de la teoria de la constitucin, la necesidad de un fundamento antropolgico es toda vez y de nuevo afirmada: una teoria democrtica dei Estado y de la constitucin no puede asentar- se en una voluntad dei Estado formal, pero solo en el hombre, en su situacin social y poltica.'17

    Neste contexto, um dos aspectos relevantes desta nova ordem48 passa a ser desempenhado, como j referimos, pelo elemento democr

    46 GARCA-PELAYO, Manuel, op. cit., p. 52-3.47 SMEND, Rudolf. Constitucin y Derecho Constitucional. Traduccin de Jos Maria

    Beneyto Prez. Madrid: Centro de Estdios Constitucionales, 1985, p. 31.48 preciso ressaltar aqui, mais uma vez, que, apesar de se poder distinguir duas

    modalidades de Estado de Direito - a liberal e a social no se trata de conceitos contra-

    A CONSTITUIAO:EVOLUO, NATUREZA E SIGNIFICADOS

    21

  • A CONSTITUIO COMO PRINCPIO

    tico, que se baseia na premissa de que a sociedade deve participar ativamente na formao da vontade geral do Estado, ao invs de se restringir esta atuao ao mbito de uma participao poltica representativa, configurando-se, assim, o Estado Democrtico de Direito,'19 num processo que, segundo Garca-Pelayo, se caracteriza mais pela socializao do Estado do que pela estatizao da sociedade:

    El Estado social (...) hemos de considerado como un sistema democraticamente articulado, es decir, como un sistema en el que la sociedad no slo participa pasivamente como recipiendaria de bienes y servicios, sino que, a travs de sus organizaciones, toma parte activa tanto en la formacin de la voluntad general dei Estado, como en la formulacin de las polticas distributivas y de otras prestaciones estatales. Dicho de otro modo, cualquiera que sea el contenido de lo

    ditrios, mas sim de duas dimenses, de dois m om entos do Estado de Direito, constituindo este ltimo no uma ruptura em relao ao primeiro, seno uma tentativa de adaptao do Estado de Direito clssico a um novo contedo e a novas condies ambientais. Neste sentido, GARCA-PELAYO, Manuel, op. cit., p. 54.

    Tambm Gordillo nos diz que "si tomamos la nocin tradicional de Estado de Derecho pareceria tal vez que ha sido sustituida por la dei Estado de Bienestar; pero no es bien as. La nocin de Estado de Bienestar ha venido a operar com o un correctivo para la nocin clssica dei Estado de Derecho, revitalizndola pero no suprimindola. GORDILLO, Augustn. Tratado de Derecho Administrativo. 5 edicin. Buenos Aires: Fundacin de Derecho Administrativo. 1998, tom o I, p. 111-44.

    19 Tido com o um sistema democraticamente articulado, isto , um sistema no qual a sociedade participa no s de forma passiva, com o recipiendria de bens e de servios, mas tambm toma parte ativa na formao das polticas estatais, atravs de suas organizaes. O Estado deixa, portanto, de ser visto com o um ente assistencialista para se transformar em manifestao dos anseios da sociedade: A novidade do Estado Democrtico de Direito no est em uma revoluo das estruturas sociais, mas deve-se perceber que esta nova conjugao incorpora caractersticas novas ao modelo tradicional. Ao lado do ncleo liberal agregado questo social, tem-se com este novo modelo a incorporao efetiva da questo da igualdade com o um contedo prprio a ser buscado garantir atravs do asseguramento jurdico de condies mnimas de vida ao cidado e comunidade. (...) H, neste ltimo, uma redefinio que lhe d contornos novos, onde tal objetivo se coloca vinculado a um projeto solidrio - a solidariedade agrega-se a ela. com pondo um carter comunitrio. Assim, o que ocorre no pode ser circunscrito, apenas, a um aumento do nmero de direitos mas, isto sim, a uma transformao fundamental no contedo do Direito ele mesmo". MORAIS, Jos Lus Bolzan de. Do Direito social aos interesses transin- dividuais:..., op. cit., p. 80-1 passim.

    22

  • A C0NS11U IO : t VOLUO, NA UREZA E SIGNIFICADOS

    social, su actualizacin tiene que ir unida a un proceso democrtico, ms complejo, ciertamente, que el de la simple democracia poltica, puesto que h de extenderse a otras dimensiones. (...) Slo mediante la va democrtica la tendencia a la estatizacin de la sociedad puede ser neutralizada por un proceso de socializacin dei Estado.50

    Trata-se, pois, de uma democracia mais complexa do que aquela verificada na poltica clssica, no s pelo maior nmero de atores envolvidos, mas tambm pela pluralidade dos setores a que ela se estende e pela quantidade e heterogeneidade dos problemas que precisa enfrentar e abordar.51

    Este elemento democrtico vai se refletir, por sua vez, tambm na concepo de Constituio, que passa a ser entendida no mais como mero instrumento de garantia contra o poder absoluto do Estado,52 mas como expresso mxima dos valores eleitos pela comunidade que a adota:53

    La Constitucin ya no se limita a fijar los limites dei poder dei Estado frente a la libertad civil, y a organizar la articulacin y los limites de la formacin poltica de la voluntad y dei ejercicio dei

    50 GARCA-PELAYO, Manuel, op. cit., p. 48-9.51 Segundo Garca-Pelayo, exatamente esta complexidade que torna a democracia

    social mais adequada s condies das sociedades industrial e ps-industrial, dados a sua complexidade e pluralismo, uma vez que, para que um sistema seja eficaz, precisa possuir uma complexidade proporcional de seu ambiente. O autor vai ainda mais longe ao afirmar que slo sobre el regmen democrtico puede constituirse un verdadero y eficaz Estado social. Lo dems no pasa de ser un Polizeistaat, un regreso al despotismo ms o m enos ilustrado acomodado a las exigencias dei tiempo presente". Isto porque tanto o fascism o com o o nazismo eram, em sua origem, governos tidos com o sociais. Idem, ibidem, p. 47-51 passim.

    52 Aspecto que predominou durante o perodo liberal clssico, com o j anteriormente referido.

    53 Conforme STRECK, Lenio Luiz. Hermenutica jurdica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 214-5 passim, "Constituio significa constituir alguma coisa; fazer um pacto, um contrato, no qual toda a sociedade co-produtora. (...) A Constituio . assim, a materializao da ordem jurdica do contrato social, apontando para a realizao da ordem poltica e social de uma comunidade, colocando disposio os mecanismos para a concretizao do conjunto de objetivos traados no seu texto normativo deontolgico". Por fim, diz o autor ainda que 0 plus normativo representado pelo Estado Democrtico de Direito resulta com o um marco definidor de um constitucionalis- m o que soma a regulao social com o resgate das promessas da modernidade'.

    23

  • A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    dominio, sino que se convierte en la positivacin jurdica de los valores fundamentales dei orden de la vida en comn.54

    Estes valores supremos so, por sua vez, representados pelo princpio da dignidade da pessoa humana (e pelo respeito aos direitos hum anos e fundamentais), revelador de um projeto amplamente includente, que traz em seu bojo um ideal de justia social, numa perspectiva muito bem trabalhada por Canotilho, quando diz que

    Em primeiro lugar, a idia central da antropologia burguesa - igualdade ontolgica de todos os homens - conducente, no plano institucional, afirmao categrica do princpio da igualdade perante a lei, mas com recusa de igualdade de condies materiais (rebaixada a 'igualitarismo externo' por oposio a igualdade interna ou ontolgica) aqui expressamente rejeitada. Isto no pelo seu ponto de partida (incontestavelmente exacto: 'igualdade interna dos homens'), mas pelas conseqncias que da se retiram (minimizao da igual dignidade social).55

    A igualdade formal do perodo liberal substituda, portanto, por um ideal de igualdade material.

    Assim, a Constituio passa a ser vista como sendo a ordem fundamental jurdica da coletividade,56 o plano estrutural fundamental, orientado por determinados princpios de sentido, princpios estes que revelam, conforme j dissemos, os valores polticos, culturais e sociais dessa coletividade. Ela passa a ser vista, ento, numa perspectiva viva, como obra de todos os seus intrpretes:57

    5 BCKENFRDE, Ernst Wolfgang, op. cit., p. 40.55 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, op. cit., p. 31-2.50 Expresso cunhada por HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da

    Repblica Federal da Alemanha. Traduo de Lus Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Anto- nio Fabris, 1998, p. 37.

    57 Peter Hberle fala em uma sociedade aberta de intrpretes da Constituio quando afirma que o dizer e interpretar a Constituio no deve ser tido com o algo restrito s instituies; pelo contrrio, aqueles que vivem a Constituio so os seus intrpretes legtimos, j que ela , eminentemente, um produto cultural.

    24

  • A CONSIIIUIO: EVOLUO. NAUREZA E SIGNIFICADOS

    At pouco tempo imperava a idia de que o processo de interpretao constitucional estava reduzido aos rgos estatais ou aos participantes diretos do processo. Tinha-se, pois, uma fixao da interpretao constitucional nos 'rgos oficiais', naqueles rgos que desempenham o complexo jogo jurdico-institucional das funes estatais. Isso no significa que se no reconhea a importncia da atividade desenvolvida por esses entes. A interpretao constitucional, todavia, uma atividade que, potencialmente, diz respeito a todos.58

    Como bem assenta o jurista alemo, a Constituio no se constitui, estritamente, em um texto jurdico; ela , antes de tudo, um produto cultural:

    No es la Constitucin slo un texto jurdico o un entramado de regias normativas sino tambin expresin de una situacin cultural dinmica, medio de la autorepresentacin cultural de un pueblo, espejo de su legado cultural y fundamento de sus esperanzas.59

    Ela , por assim dizer, uma simbiose de texto e contexto, no qual interferem muitas foras e muitos sujeitos, resultando numa dinmica intensa que vai determinar a sua abertura60 como forma de assegurar sua evoluo em meio a uma sociedade extremamente plural e complexa.

    58 HBERLE, Peter. Hermenutica constitucional. A sociedade aberta dos intrpretes da Constituio: contribuio para a interpretao pluralista e 'procedimental' da Constituio. Traduo de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. p. 24.

    59 Idem, Libertad, igualdad, fraternidad..., op. cit., p. 46.60 Esta abertura, numa perspectiva sistmica, se refere exatamente ao m eio com o

    qual ela (a Constituio) interage, pois ela tida, justamente, com o um produto desse meio. Nas palavras de HELLER. Hermann, op. cit., p. 258, la Constitucin es una forma acunada que viviendo se desarrolla.

    Conforme Cittadino, Friedrich Mller, Konrad Hesse e Peter Hberle partilham desta perspectiva e integram o que alguns constitucionalistas designam por Nova Hermenutica: Os autores que integram a Nova Hermenutica partem do pressuposto que (sic) a diferenciao social e o pluralismo poltico so as principais caractersticas da sociedade contempornea. Neste contexto de conflitividade poltica e social, mas que tambm inclui formas democrticas de participao nos assuntos pblicos, no seria

    25

  • A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    Uma vez traado este panorama histrico, resta-nos, agora, neste primeiro momento do trabalho, analisar a natureza da Constituio, a fim de que se possa compreender qual o papel (poltico e jurdico) que ela representa para a comunidade que lhe d origem.

    1.2. A NATUREZA DA CONSTITUIO

    Conforme j referido no item anterior, a partir do constituciona- lismo moderno que se pode trabalhar com uma verdadeira noo de Constituio, apesar de todas as sociedades politicamente organizadas- quaisquer que sejam as suas estruturas sociais - possurem certas formas de ordenao passveis de serem designadas por Constituio.61 Trata-se, no entanto, de uma constituio real, de modo que as constituies escritas e seu conseqente significado so uma criao da poca moderna.62

    Como bem assevera Bonavides, ao diferenciar os conceitos material e formal de Constituio, sendo ela, do ponto de vista material, tida como o conjunto de normas pertinentes organizao do poder, distribuio da competncia, ao exerccio da autoridade, forma de governo e aos direitos da pessoa humana, sob esse aspecto, no h Estado sem Constituio, Estado que no seja constitucional, visto que

    razovel tomar o ordenamento constitucional com o um sistema normativo completo e fechado, caracterizado pela ordem e pela unidade. Frente ao processo de diferenciao e ao pluralismo, a Constituio, segundo estes autores, se caracteriza por sua estrutura aberta, incompatvel com qualquer interpretao m etodologicamente formalista. Quando a Nova Hermenutica recusa as regras clssicas de interpretao constitucional - incompatvel com a idia de abertura constitucional - isto significa o fim do primado da norma e a conseqente primazia da constituio material sobre a constituio formar. CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e justia distributiva. 2a edio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 30.

    61 o que CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6a edio. Coimbra: Almedina, 1995, p. 57, denom ina de conceito histrico-universal de constituio.

    62 O que se pode perceber que, de maneira geral, as noes anteriores de constituio se apresentam mais com o uma decorrncia natural da vida em comunidade do que com o uma construo instituidora de uma ordem social (concepo que se introduz com a Revoluo Francesa de 1789), de modo que se pode dizer, neste sentido, que os processos constitucionais se do, em cada um desses perodos histricos, em sentidos opostos.

    26

  • A CONSTITUIAO:EVOLUO, NATUREZA E SIGNIFICADOS

    toda sociedade politicamente organizada contm uma estrutura mnima, por rudimentar que seja.63

    Da a afirmao de Lassale de que o que, portanto, realmente peculiar poca moderna no so as Constituies materiais, mas as Constituies escritas, as folhas de papel:

    Eine wirkliche Verfassung oder Konstitution also hat jedes Land und zu jeder Zeit gehabt. Was also der modernen Zeit wirkliche eigentmlich ist, das sind - es ist sehr wichtig, dies steht aufs schrfste festzuhalten - nicht die wirklichen Verfassungen, sondern die geschriebenen Verfassungen, oder das Blatt Papier64

    Assim, na histria constitucional romana, a Constituio (constitu- tiones principum) utilizada para indicar os atos normativos do imperador e que passaram a ter o valor de lei, constituindo-se mais em fonte escrita de direito, de modo que ela no possua propriamente o sentido de constituio de um Estado.

    J Aristteles oferece um conceito de Constituio que significa o prprio modo de ser da polis, dizendo ter ela por objeto a organizao e a distribuio dos poderes.65

    63 BONAVIDES, Paulo. Cuiso de Direito Constitucional. 6d edio. So Paulo: Malhei- rosf 1996, p. 63.

    6-1 LASSALE, Ferdinand. ber die Verfassung, conferncia publicada em 1863. In: http://www.unifreiburg.de/bibliothek, acesso em 21 de outubro de 2001. A traduo livre que fizemos do trecho acima um pouco distinta daquela constante da traduo brasileira: Uma Constituio real e verdadeira, possuram todos os pases em todos os tem pos. A caracterstica prpria dos tempos m odernos - e isto m uito importante afirmar rigorosamente - no so as Constituies reais, mas as Constituies escritas, as folhas de pape. No livro publicado com o ttulo de A essncia da Constituio, a verso a seguinte: Assim, todos os pases possuem ou possuram sempre e em todos os m om entos de sua histria uma Constituio real e verdadeira. A diferena nos tempos m odernos - e isto no deve ficar esquecido, pois tem muitssima importncia - no so as Constituies reais e efetivas, mas sim as constituies escritas nas folhas de pape. LASSALE, Ferdinand. A essncia da Constituio. 2- edio. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1988, p. 31.

    65 Segundo CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional, op. cit., p. 58, no conceito aristotlico de constituio aparecem dois aspectos caractersticos de sua concepo moderna: a) a constituio com o ordenamento fundamental de uma associao poltica; b) a constituio com o conjunto de regras organizatrias destinadas a disciplinar as relaes entre os vrios rgos de soberania.

    27

  • Na Repblica Romana, por sua vez, a Constituio aparece como organizao jurdica do povo, o que evidencia, pela primeira vez, um conceito tendencialmente jurdico e ressalta a importncia do povo como organismo ligado por estruturas jurdicas em vista de um fim comum. Importante ressaltar, neste sentido, que, apesar de no se poder falar na Repblica Romana como Estado dotado de personalidade jurdica na acepo moderna, este conceito tambm no identifica populus com multitudo, com um simples agregado de indivduos; isto significa que a noo de povo superior e distinta da idia de um mero agregado de homens, um somatrio de vontades individuais.

    *

    E na Idade Mdia, no entanto, que se assiste ao desenvolvimento da idia de lex fundamentalis, conformada por um conjunto de princpios tico-religiosos e de normas consuetudinrias que vinculavam reciprocamente o rei e os indivduos e que no podiam ser violadas pelo soberano (lois de royaume), em oposio s denominadas lois du roi, elaboradas pelo prprio monarca e, portanto, passveis de serem por ele modificadas ou revogadas. Aparece na idia de Constituio, portanto, uma noo de direitos imutveis, decorrentes de uma ordem divina.66 Neste contexto, as leis fundamentais teriam uma fora superior s outras porque tambm o soberano estaria por elas vinculado, no podendo alter-las ou modific-las unilateralmente.

    Estava aberto, assim, o caminho para a superioridade hierrquica da Constituio enquanto estatuto de direitos inviolveis, porm ainda sem a sistematicidade que lhe conferida na Idade Moderna, enquanto documento escrito, sendo que a primeira tentativa neste sentido atribuda ao Instrurnent of Government de Cromwell (1653).67

    Mais tarde, com o triunfo do movimento constitucional - alavancado pela revoluo burguesa - impe-se o chamado conceito ideal de

    66 Trata-se, portanto, de um certo direito natural com fundamento religioso, reflexo da expanso do cristianismo que se deu neste perodo histrico.

    67 Antes disso, so apontados com o precedentes pela doutrina a Magna Carta de Joo Sem Terra (1215), que contudo no tida ainda com o uma verdadeira declarao de direitos. Posteriormente, a denominada Petition ofRights (1628) traz os princpios fundamentais das liberdades civis, apresentando, no entanto, carter meramente declaratrio. Depois, veio o Agreement o f the People (1647-1649), que se afigura com o sendo o primeiro projeto de Constituio totalmente articulado, apesar de no se constituir num ato legislativo. Neste sentido, a obra de CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional, op. cit., p. 62.

    A CONSTITUIO COMO PRINCIPIO

    28

  • A CONSIIIU IO : EVOLUO. NAUREZA E SIGNIFICADOS

    Constituio, cunhado por Carl Schmitt68 e identificado com os postulados polticos liberais, segundo o qual so elementos caractersticos da idia de constituio: a) a existncia de um sistema de garantia das liberdades dos indivduos; b) o princpio da separao dos poderes; c) o fato de dever ser um documento escrito.

    A partir desta tipificao, passou-se a distinguir entre Estados constitucionais e Estados no-constitucionais, como se pode depreender das palavras de Canotilho acerca do tema:

    Com base neste conceito ideal, passou a distinguir-se entre Estados constitucionais e Estados no-constitucionais'. Os primeiros seriam os que dispunham de uma ordenao estadual plasmada num documento escrito, garantidor das liberdades e limitador do poder mediante o princpio da diviso de poderes. Estados no- constitucionais seriam todos os outros.69

    A idia constitucional significa, pois, em sntese, a tentativa de- atravs de uma lei formal - limitar e controlar o poder poltico e vincular o exerccio desse poder a normas bilateralmente vinculantes para os detentores do poder poltico e para os cidados. Esta viragem deixa transparecer, por seu turno, uma transformao na com preenso da Constituio, que j no se apresenta mais como mera ordenao da vida em sociedade, mas, mais do que isso, o ato constitutivo dessa ordenao, que inaugura uma nova realidade jurdica e poltica:

    A ordenao da comunidade poltica atravs de um documento escrito, de uma lei formal-constitucional, torna claro que para o constitucionalismo a constituio j no o modo de ser de ordenao da comunidade mas o acto constitutivo dessa ordenao no plano sensvel.70

    68 SCHMITT. Carl. op. cit., p. 41-6 passim.69 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional, op. cit., p. 63.70 SOARES, Rogrio G. E. Interesse pblico, legalidade e mrito. Coimbra: Coimbra

    Editora, 1955, p. 64.

    2 9

  • Esta constatao nos remete, por sua vez, discusso acerca do poder constituinte, ou seja, qual a origem e quais so os sujeitos deste pacto. Historicamente, cabe a Sieys a teorizao da existncia de um pouvoir constituant, a partir de sua clebre afirmao de que Une cons- titution suppose, avant tout, un pouvoir constituant. Esta constatao, por sua vez, pressupe a compreenso de que a Constituio no um mero processo aleatrio que se d dentro da sociedade, mas sim uma construo dos indivduos71 nela inseridos, que possuem a capacidade (racional) de estabelecer os fundamentos bsicos da ordem social e, naturalmente, so anteriores a ela.72 0 que ocorre, aqui, uma transmutao da idia iluminista do contrato social para a teoria constitucional, de modo que Constituio atribudo, portanto, um carter constitutivo, eis que instituidora de um paradigma (jurdico e poltico).

    Neste sentido, Sieys distingue trs momentos distintos de participao no processo constituinte, partindo do indivduo isoladamente considerado e passando pela formao da volont gnrale at chegar noo de representatividade.

    Num primeiro momento, indivduos isolados, desejando unir-se, formam uma nao, de onde resulta uma vontade comum que d origem Constituio poltica dessa nao (conjunto de regras que definem a organizao do poder pblico delegado, do governo e os fins da delegao desse poder), que o momento constituinte por excelncia. Por fim, diante da complexidade formadora da vontade comum, o poder passa a ser delegado a uma representao nacional que deve, contudo, atuar estritamente dentro dos limites a ela atribudos, de modo que se tem, assim, as trs pocas de formao das sociedades polticas:

    71 A idia de pouvoir constituant reclama, portanto, a participao popular na elabo- rao da lei fundamental, principalmente se se considerar que a sua emergncia se d no horizonte histrico da modernidade, quando se transferiu o locus efetivo da soberania para o povo.

    12 Afirma o autor ser bvio que a realidade do poder constituinte precede historicamente a sua elaborao terica. SIEYS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. Qu 'est-ce que le Tiers tat? 3a edio. Traduo de Norma Azeredo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 91 e segs.

    Segundo esta perspectiva,