moinho do meio: notas históricas e etnográficas de uma estrutura moageira em pias (lousada)

4

Click here to load reader

Upload: luis-jorge-cardoso-de-sousa

Post on 28-Jul-2015

90 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Com o presente texto pretende-se dar a conhecer um dos poucos moinhos ainda em funcionamento no concelho de Lousada, localmente conhecido por Moinho do Meio, situado na margem direita do rio Sousa, na freguesia de Pias.

TRANSCRIPT

Page 1: Moinho do Meio: notas históricas e etnográficas de uma estrutura moageira em Pias (Lousada)

município de lousada - outubro 2011 1

Suplemento de ArqueologiaMensal Ano 12 N.º 90 distribuição gratuita Revista Municipal

IntroduçãoO texto ora apresentado aborda sobuma perspectiva ambivalente uma es-trutura de transformação, embora porimperativos editoriais forçosamente su-perficial, tratando-se concretamente deum moinho de rodízio composto de trêsrodas, todas em funcionamento. Local-mente denominado de Moinho doMeio, é este património edificado pro-priedade de D. Margarida do CéuQueirós. Encontra-se implantado nasmargens do rio Sousa, na freguesia dePias, concelho de Lousada.Encontramos a primeira alusão a moi-nhos no actual município lousadendenuma carta de venda datada de 12 deNovembro de 1113, missiva em queSalvador Sendins e sua mulher Susanavendem metade da villa Bolio, actual-mente lugar da Bola, em Nespereira, aRandulfo Zuleimaniz e sua mulher Jus-ta, pelo preço de 60 morabitinos2. ParaPias a menção é mais tardia, remon-tando apenas a finais do século XIII,concretamente de 2 de Outubro de1296, e vem referida no acordo entreD. Luca Rodrigues, abadessa do mos-teiro de Arouca, e o abade de Aveleda,Gonçalo Golçalves. O documento re-fere-se à partilha das águas do rioSousa que iam para o moinho de Pias,ficando ressalvada a pertença daságuas para o mosteiro, que iniciava àquarta-feira ao romper do sol até aodia seguinte pela mesma hora3. O do-cumento de que se faz referência diz oseguinte:«Conhecida coisa seja que compare-

Moinho do Meio:notas históricas e etnográficas de uma estrutura moageira em Pias (Lousada)

Luís Sousa*

Os moinhos não são apenas um dos mais pitorescos adornos da paisagem. Eles repre-sentam também, com a sua engrenagem de moenda ao mesmo tempo muito singela emuito elaborada, a forma mais evoluída de um sistema primitivo.

(in Oliveira, Galhano e Pereira, 1983: 5)1

ça diante mim Pedro Martins públicotabelião de nosso senhor el Rei emterra de Santa Cruz de Riba Tâmega edas testemunhas diante escritas quecomo fosse contida entre Martim Gon-çalves abade de São Salvador deAveleda com clérigos João Durão ePedro Eanes de uma parte e dona LucaRodrigues abadessa do mosteiro deArouca com seu convento da outra pre-sentes procuradores João Pires dito deOliveira e Domingos … por sua procu-ração selada de seu selo pendente as-sim como … e da aparência não rasanão corrupta em nenhuma parte daqual o teor dela a tal é:Saibam quantos esta procuração vireme lerem e ouvirem que nós D. LucaRodrigues abadessa e o convento domosteiro de Arouca do Bispado deLamego em preito ou preitos por que éou atende ser que sou ou atendo serentre nós de uma parte e entre abadeda igreja de S. Salvador de Aveledado Arcebispado de Braga da outra, asaber um moinho que é sobre a águade Sousa no julgado de Lousada. Es-tabelecemos, fazemos e … João Pirese Domingos … procuradores ou porta-dor desta procuração nossos procura-dores lídimos e avondosos e cada umdeles e em cada assim quando preitoque deles ambos e cada um deles co-meçarem ou começar ambos e cadaum deles e possam ou possa seguir eacabar perante o juiz de Lousada ouperante nosso senhor el Rei de Portu-gal e do Algarve ou perante … ou so-bre juiz ou sobre juízes ou ouvidor ou

ouvidores ou por diante outro ou ou-tros juiz ou juízes ordinário ou ordinári-os … ou justiça ou justiças quaisquer…… … …Feito foi este compromisso dois diaspor andar de Outubro entre as Pias eVila Nousti. E. M. CCC. XXX iiij anos.Foram presentes João … abade de S.Miguel de Lousada, Estêvão Gonçal-ves abade de S. Cristóvão de Lordelo,Pedro … abade de Duas Igrejas, …Martins e Domingos Martins de Noguei-ra, Gonçalo Pires tabelião de Pena-fiel.»4

Moinho. Breves apontamentoshistóricos

O que te fez a ti moleirorico foi a ponta do pico.

(sabedoria popularD. Margarida do Céu Queirós)

O termo moinho deriva do latim mo-linum, de molo, que significa moer, tri-turar cereais ou dar à mó.Os primeiros moinhos constituíam-se deapenas duas pedras de reduzido tama-nho, cuja técnica era o de fixar umapedra e manusear na mão uma outra,tendo como objectivo primordial o detriturar os cereais, ou seja, quebrar par-cialmente, sem redução a farinha. Aeste tipo de mós designa-se normal-mente de vai-vem ou de rebolo, e te-rão surgido há cerca de 10 000 anosatrás, sendo conhecidas no Egipto,Pérsia, Grécia e um pouco por toda aEuropa. Em Portugal surgem em con-

* Arqueólogo. CML. [email protected] OLIVEIRA, E. V.; GALHANO, F.; PEREIRA, B. (1983) - Tecnologia Tradicional Portuguesa – Sistemas de Moagem. Lisboa: INIC.2 Documentos Medievais Portugueses, doc. nº 459, p. 393, segundo Eduardo Teixeira Lopes (2004) – Lousada e as suas freguesias naIdade Média. Lousada: Câmara Municipal, pp. 285-286.3 LOPES, E. T. (2004) – Lousada e as suas freguesias na Idade Média. Lousada: Câmara Municipal, p. 331.4 A.U.C. – Livro do Indes de todos os pergaminhos, sentences e outros papeis particulares do Cartório do Real Mosteiro de Arouca feitono anno de 1743, Lv. 231, fol. 88; A.N.T.T. – Cartório de diversos conventos que vieram da Biblioteca Nacional em 1912 – Arouca, SantaMaria – Gav. 5ª, Ms. 8, doc. nº 1, segundo Eduardo Teixeira Lopes (2004) – Lousada e as suas freguesias na Idade Média. Lousada:Câmara Municipal, pp. 331-332.

Page 2: Moinho do Meio: notas históricas e etnográficas de uma estrutura moageira em Pias (Lousada)

2 município de lousada - outubro 2011

textos arqueológicos doNeolítico verificando-sea sua pervivência até àIdade do Ferro. A suasubstituição dá-se com aintrodução da mó circu-lar, embora coexistindocom esta numa faseinicial, já em contextode Romanização, talvezpelo século II/I a.C. Es-tas mós eram compostaspor dois elementos, umdormente e um moven-te, sendo que o primeiroapresentava uma conve-xidade e, o segundo,uma concavidade. Notopo ou lateralmentepossuíam um pequenomanipulo, geralmenteem madeira, que com aforça humana se impul-sionava em movimentosrotativos. A parte centralda mó movente apresen-tava normalmente umpequeno orifício por on-de se lançavam os grãosa moer.Este tipo de mós circu-lares terá naturalmentepossibilitado uma maiorprodutividade e acarreta-do, possivelmente, alte-rações nos hábitos ali-mentares e dado origemao aparecimento da es-pecialização da activi-dade de moleiro.Será esta a mó, com al-terações de tamanho ede morfologia, que virá até aos dias dehoje. Veremos que vai ser colocada emestruturas físicas apropriadas à produ-ção em larga escala, sendo a forçaimpelida por meio hidráulico ou eólicoe em certas situações também por ani-mais. Mais recentemente todos estesmecanismos de força deram lugar àelectricidade.A importância dos moinhos foi ao lon-go dos tempos por demais evidencia-da, não apenas para a moenga de ce-real, mas, em certas situações, igual-mente por constituírem-se como quemarcos delimitadores de territórios,facto que revela a sua importância noseio da comunidade local. Não são,assim, raras as vezes onde se verifica aintervenção régia, com o lançamento

de recomendações no sentido de re-gulamentar a construção de moinhosassim como toda a vida social a si as-sociada.

Moinho do Meio:morfo-terminologia

Moleiro anda para o céuSenhor não tenho vagar

Deitei o fole a moerAinda está por maquear5

(sabedoria popularD. Margarida do Céu Queirós)

São muitas as estórias que encerra, sãomuitas as vidas que vivenciou…hajamais espaço editorial, dedique-se-lhetempo, e teremos dos mais interessan-tes relatos socioculturais e económicos

do espaço concelhio lou-sadende.O Moinho do Meio, assimchamado por quem nelelabora, ou Moinho dePias, denominação usualentre a população local,encontra-se situado namargem direita do rioSousa É um modestoedifício de secção hori-zontal rectangular, estru-turado por largas paredesde alvenaria regularmen-te trabalhadas. Possuiapenas uma porta, volta-da para o caminho, deuma só folha que abrepara o interior esquerdo.Ao fundo vemos um pe-queno postigo que abrepara o rio Sousa, possibi-litando desta forma aentrada de mais algumaluz natural para iluminaro espaço interior. Do ladoesquerdo quando se en-tra, encontramos uma pe-quena janela, voltadapara as cales de madeiraque levam a água até àspenas, para que assim omoleiro vá observandocomo se encontram ascomportas, não vão en-tulhar e o moinho parar,ou passarem materiaisque danifiquem as penasou penal.O telhado é de duaságuas, coberto por telhade tipo marselhesa, as-

sente sobre vigamento de madeira.O chão é sobradado, de madeira bempolida, normalmente polvilhado de fa-rinha. No chão observam-se dois ressal-tos que demarcam cada uma das móse permitem que não haja mistura dasdiferentes farinhas resultantes da moen-ga. Possui o Moinho do Meio três mós6,chamadas da Porta, do Meio e do Can-to, todas em funcionamento. As pedrasda mó do meio e a do Canto vieram deCoimbra, possuem grão consideravel-mente fino e são bastante duras, o quelhes confere maior durabilidade.A cada mó corresponde um cubo deentrada e uma porta de saída da água.A condução da água até às penas faz-se por meio de canalização em ma-deira de pinheiro manso, a mesma de

5 Retribuição de farinha a que o moleiro tinha direito no final de cada moenga, cuja quantidade variava consoante o cereal moído.6 O Moinho do Meio é composto por três mós, mas o número de rodas que um moinho pode comportar varia consoante a dimensão econdições estruturais do edificado, podendo surgir moinhos com seis, sete e mais rodas. Com uma mó apenas são muito usuais osmoinhos relacionados com produções agrárias de pequena/média dimensão, com duas ou mais serão por certo unidades erigidas frutode relações de interesse mútuo, isto é, em que vários proprietários investem num moinho onde cada um mói o seu cereal sem quedependa de outrem, podendo o mesmo ser alugado ou moer sob a sua observância, tirando daí dividendos económicos.

Fig. 1 - Esquema motor de um moinho de rodízio.

Page 3: Moinho do Meio: notas históricas e etnográficas de uma estrutura moageira em Pias (Lousada)

município de lousada - outubro 2011 3

que são feitas as penas e a restantemadeira que compõe o moinho. Comoreferiu a Dona Margarida, nunca seaplica eucalipto, porque racha, o me-lhor é o pinheiro manso porque estenão se degrada tão facilmente se em-bebido continuamente em água.Qualquer estrutura moageira necessitade força motriz para funcionar. Até àintrodução da electricidade a forçaimpulsora consistia na adaptação daestrutura a um funcionamento em queimperava o uso da água ou do vento,dependendo das mais favoráveis con-dições naturais da área geográfica ondeera implantado o moinho ou azenha.No caso vertente estamos perante ummoinho hidráulico, de rodízio, que éreflexivo da generalidade das unida-des de transformação de grão em fari-nha do território lousadense, isto é,compõe-se de dois níveis, estrutural efuncionalmente diferenciados. No pisoinferior encontra-se montado o enge-nho motor e no superior a moenda.O açude criado no rio Sousa, posicio-nado diagonalmente em relação aorecurso fluvial referido, que permite oaumento do caudal e, por sua vez, alevada direccionada para o caboucoque se encontra em desnível, desde oaçude à entrada da água, confere anecessária força para accionar os trêsengenhos de rodízio, por vezes em fun-cionamento em simultâneo, que com-põem o Moinho do Meio7. A água éguiada para as penas através de cales,que neste caso são em madeira, masque podem surgir também em pedra,inclinadas e descobertas, de paredesrectas ou a afunilar na direcção do pe-nal. Na entrada encontra-se uma com-porta de madeira que permite regulara quantidade de água e evita a entra-da de materiais que podem danificar oengenho.No interior desta unidade moageira tive-mos oportunidade de observar algunsinstrumentos, de que destacamos asapanhadeiras, picos para avivar as su-perfícies de fricção, todo sempre à mão,cestas que vão possibilitando a primeirarecolha de farinha, uns quantos sacos denylon e serapilheira e algumas penei-ras, de diferentes espessuras de rede, quepermitem calibrar a farinha para o clien-te e retirarem-se-lhe as impurezas.Muitos moinhos em Lousada não seencontram em funcionamento por fal-tarem, em muitas situações, unicamen-te as penas. No Moinho do Meio este

problema é ultrapassado por dois artí-fices carpinteiros, filhos de D. Margari-da, que laboriosamente vão reparan-do o penal sempre que alguma penase parte.Quanto à nomenclatura utilizada noMoinho do Meio, relativa a cada umdos elementos constituintes da unida-de transformadora, adaptamos o esque-ma publicado pela Profa. Dra. TeresaSoeiro, em Penafiel: o Tâmega de on-tem8 (Fig.1), mantendo ou alterando asdenominações atribuídas ao mecanis-mo, segundo as observações feitas pelaD. Margarida. Do piso superior para ocabouco, tem o engenho então as se-guintes designações:Torneira – Caixa em madeira destina-da a receber o grão, de perfil tronco-cónico invertido, por onde é posterior-mente lançado o cereal a moer naquelha. Situa-se por cima da mó, sus-pensa em barrotes de madeira horizon-tais fixos a quatro prumos, também emmadeira.Regulador – Cordel preso à quelha, en-laçado numa pega existente na torneiraou atado no travejamento do telhadodo moinho, que possibilita ao moleirograduar a inclinação da quelha e regu-lar a porção de cereal a moer, bem comocontrolar o tempo da moenga.Quelha – Canal, cale ou calha de ma-deira de perfil tronco-cónico por ondepassa o grão direccionado para o olhodo movente.Chamadeira – Peça de formato varia-do (tipo pau curto, ou um disco oval oucircular) habitualmente feita madeira,pregada à quelha, que quando em con-tacto com o movente trepida fazendo

com que o grão vá paulatinamentedeslizando ao longo da quelha.Mó (Movente) – Bloco de pedra graní-tica de formato circular e buraco cen-tral que em movimento rotativo con-juntamente com o pé (dormente) pro-duz fricção controlada que dá origemà moenga do cereal.Cambal – Rebordo lavrado no topo dodormento ou estrutura em madeira queserve de protecção das mós e da moenga.Pé (dormente) – Bloco de pedragranítica de formato circular e buracocentral que se distingue do moventeprecisamente porque ser fixo, sem mo-vimento.Segurelha – Peça de ferro robusta, deformato rectangular, com orifício cen-tral quadrangular onde encaixa a ex-tremidade do lobete ou veio. Esta porsua vez encaixa num entalhe de simi-lares dimensões aberto na face inferiordo movente.Bucha – Peça em madeira que servede chumaceira ao veio e que impedea perda de grão. Ao centro possui umorifício por onde gira o veio.Lobete – No Moinho do Meio o lobeteé um veio de ferro que se situa entre asegurelha e a árvore, porém, em ou-tras paragens geográficas, este é o pro-longamento entre a péla e o veio, semconexão com a segurelha..Árvore – Compõe-se de três peças,aqui sem denominação diferenciada,pese embora em certas regiões se de-nomine de lobete, abraçadeira e árvo-re. Possui perfil circular ou quadran-gular.Penas – Peça concava de madeira,semelhante a uma colher, de formatoem cunha, que encaixa conjuntamen-te com outras penas, em número variá-vel, no rodízio ou penal.Rodízio ou Penal – Roda na qual seencaixam as penas.Aguilhão – Ferro de ponta afilada, ouseixo de forma alongada, no qual as-senta todo o engenho motor e sobre oqual gira o rodízio. O aguilhão por suavez apoia directamente na rela.Rela – Seixo de quartzito, de formaovóide, em que é feito um pequenoorifício onde apoia o aguilhão.Forqueira – Mantivemos a denomina-ção no esquema representativo da no-menclatura do moinho, contudo, estadesignação não se encontra presenteno Moinho do Meio. Trata-se do supor-te da ponte que surge em alguns moi-nhos composta por um tronco de ma-

7 Quando a água é em abundância apenas o paredão do açude é suficiente para reter a água necessária à moagem do cereal, masquando se aproxima o Verão é usual colocarem-se umas quantas tábuas sobrepostas verticalmente para elevar a cota da água. NoVerão pouco funciona o Moinho do Meio, o rio leva menos água devido à falta de pluviosidade e porque começa a rega, pelo que muitada água é desviada para os campos. Se no Inverno podemos encontrar a moer as três mós, no Verão o mais usual é ver-se apenas uma.8 SOEIRO, T. (1987/88) – Penafiel: o Tâmega de ontem, in Penafiel: Boletim Municipal de Cultura, 3ª série, nº 4/5. Penafiel: CâmaraMunicipal, p. 109.

Fig. 2 - D. Margarida do Céu Queirós.Registo fotográfico de Julho de 2007

Page 4: Moinho do Meio: notas históricas e etnográficas de uma estrutura moageira em Pias (Lousada)

4 município de lousada - outubro 2011

deira perfurada e que em outros, casoda unidade a que presentemente nosdedicamos, é substituído por um orifíciona parede da estrutura do cabouco oupor um mero apoio conseguido pela po-sição saliente de uma laje de granito.Ponte – Tronco de madeira colocadona horizontal, fixo numa das extremi-dades na forqueira ou outro tipo deapoio, achando-se na ponta oposta li-gado a um barrote vertical que entrano soalho rematado em cruz que dáorigem ao alçadoiro.Alçadoiro – Barrote aprumado de ma-deira que é fixo à ponte e entra nosoalho por um rasgo circular aberto parao efeito. Na extremidade do barroteencontra-se uma trave horizontal for-mando uma cruz, permitindo que apartir daqui se eleve a ponte por trac-ção, acção que é conseguida pela in-trodução sucessiva de cunhas entre oestrado e a cruzeta.

Margarida do Céu Queirós“Guidinha”, moleira de Pias.Margarida do Céu Queirós (Fig.2), muitoacarinhada e afectuosamente conhecidaentre a população local por “Guidinhade Pias”, nasceu em 1932, contando pre-sentemente com 79 anos, 61 delesvividos como moleira. Veio para estaactividade aos 18 anos, quando, em1950, juntou os poucos trapos que tinhacom os de Antero Ferreira. Foi a partirdeste ano que a Dona Margarida deixoua vida da lavoura para se dedicar decorpo e alma à vida de moleira. Nestemesmo ano, o moinho então chamadode Moinho do Meio, que fica junto dahabitação, foi adquirido ao Sr. José Ma-lheiro, da Casa da Quintã (Caíde-de-Rei,Lousada), momento a partir do qual setornou a sua – não raras vezes a primeira– segunda “casa”.Os filhos começaram a nascer, chegan-do a casa a ficar com catorze bocaspara alimentar. Ao todo foram doze osfilhos que viu nascer – todos baptizados– frisou, de entre estes dois morreramprecocemente, mas as bocas a alimen-tar eram sempre muitas e não podiadescuidar-se da moenga do cereal, queera o grande ganha-pão lá para a casa.Longe vão os tempos em que as horasdispensadas para o funcionamento domoinho se reflectiam proveitosas, ha-

via muita procura por parte de particu-lares, mas principalmente de padarias.O moinho de que Dona Margarida éproprietária chegou a moer 300kg degrão por dia, por vezes mais – erammuitas as bocas famintas a saciar. A vidaera difícil e havia que fazer por ela!A grande maioria do grão moído ia para aPadaria Central de Lousada, estabeleci-mento para o qual moeu ao longo de cercade 50 anos. Farinou para este estabeleci-mento essencialmente milho graúdo, masnão raras vezes moeu milho-alvo e alpiste.Hoje mói apenas esparsamente, quandohá clientes, que são, fruto dos novos tem-pos, muito poucos, e quando a saúde opermite, pois a idade pesa, pelo que ape-nas lá vai conseguindo fitar o dia com aajuda de um neto.O cereal que mais moeu foi sem dúvi-da o milho (branco e amarelo), masnão lhe ficava muito distante em quan-tidade o centeio. Em menor quantiamoeu outros cereais, como o trigo, ce-vada e linhaça9, grão-de-bico para en-godo10, etc. Umas das curiosidades queretemos foi o facto de também ter mo-ído estrelinha e arroz11, que ao ganhar“bicho”, vulgo gorgulho12, não podiamser consumidos, pelo que eram moí-dos e misturados com a farinha.Hoje o transporte do grão e posterior-mente a farinha, faz-se com o auxíliode veículos motorizados, mas em tem-pos não muito distantes o transporteprocessava-se com o apoio de jumen-tos ou cavalos. A Dona Margarida che-gou a ter um pequeno estábulo comtrês ou quatro cavalos, onde hoje é umarmazém, no piso térreo, por baixo dahabitação. Os olhos tremeluzem quan-do ainda se lembra do “Pisco”, do “Ca-dete”, o “Lazão” e o “Picasso”. Do Ca-dete fala com orgulho, era um cavalovistoso e altivo, tinha BI e estava mobi-lizado, isto é, pronto a ser enviado paraa tropa se tal fosse necessário.A sua casa situa-se do lado esquerdodo Moinho do Meio, bem ali ao pé,como se pede para quem vive exclusi-vamente da transformação do grão emfarinha. Cuidar e observar um moinhoacarretava presença contínua quandoem funcionamento, actualmente D.Margarida mói pouco, mas quandomoía em quantidade tinha de estarsempre atenta à moenga.

9 A linhaça apenas era moída depois de ir ao forno, devido conter óleo, o que levava à criação de “fio” no moinho, facto que o poderiadanificar. Depois do forno ter sido utilizado para cozer o arroz e as batatas, era vassourado e no interior era colocada a linhaça, que aípermanecia até se achar devidamente tostada, que ainda quente se lançava à mó para se realizar a sua moagem.10 O engodo destinava-se à pesca, e os seus principais clientes eram o Sr. Cabanelas (farmacêutico na Farmácia Fonseca) e o Sr.Raposo (bancário no Banco Souto Maior).11 Eduardo Pereira, comerciante com estabelecimento em frente à estação ferroviária de Caíde de Rei, era quem usualmente solicitavaa moenga deste tipo de produtos, pois os mesmos eram comercializados em sacos de 50kg.12 Causado por um insecto coleóptero que ataca os cereais.13 VITERBO, S. (1896) – Archeologia industrial Portuguesa. Os moinhos, in O Arqueólogo Português, vol. II. Lisboa: Imprensa Nacional, p. 194.14 BARREIRA, M. (2003) – O moinho de Esgueira. Um documento histórico do séc. XIII, in Patrimónios, nº 3, ano 26, IIª série. Aveiro:ADERAV, p. 118.

ConclusãoFicaram, pensamos, vincados os as-pectos essenciais da vivência da mo-leira do Moinho do Meio, a Guidinhade Pias, que durante uma boa parteda sua vida se dedicou à transforma-ção de grão em farinha, e ao seumoinho.Contavam-se às centenas os moinhosa funcionar em Lousada há meio sé-culo atrás, presentemente apenas sub-siste a unidade objecto deste texto aperpetuar e a lembrar-nos uma das ac-tividades que mais importância de-sempenhou ao longo dos tempos, mor-mente nos séculos XIX e XX, no con-celho de Lousada, panorama queacompanha o constatado um poucopara todo o Entre Douro e Minho. Pas-sam as águas, passam os homens, eas mulheres, que fiquem estas, embo-ra que simples, palavras a lembrar umdos mais emblemáticos símbolos danossa Arqueologia Industrial. Em tomde exteriorização, e prefaciando Sou-sa Viterbo, «antes que tudo se percairremediavelmente, salvemos pela des-crição e pela estampa o que aindanos resta, dilacerado e partido, dosantigos documentos da laboriosidadeportuguesa»13.Nunca o mundo vivênciou um tão ace-lerado e desregrado “desenvolvimen-to”; em momento algum da existênciahumana se verificou uma tão rápidaantropização da paisagem, é por issonecessário que se criem os mecanis-mos necessários para que se conser-vem «estes testemunhos do passado.Mas conservar não significa que tudofique como está, até cair de podre».”14.À D. Margarida do Céu Queirós, e ex-presso-me agora na primeira pessoa,agradeço a forma descomprometida esimpática com que sempre me rece-beu, possibilitando e autorizando a re-alização deste despretensioso texto.Certo dia, em tom de desabafo e, decerto modo, de entristecimento pelapossível perda do moinho, finalizoudizendo: “já mo quiseram comprar, maseu não vendo, quero morrer aqui”. Co-meça a esmorecer a força da água paramover os rodízios, começa a fraquejaro vigor dos braços, haja ao menos for-ça e empenho em manter viva esta tãopeculiar tradição!