mitologia da civilização industrial, cosmopolitismo excludente e a improvisação da...

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REVISTA DE HISTÓRIA FFLCH-USP 1999 MITOLOGIAS DA CIVILIZAÇÃO INDUSTRIAL, COSMOPOLITISMO EXCLUDENTE E A IMPROVISAÇÃO DA SOBREVIVÊNCIA - SÃO PAULO 1910-1930 Maria Inez Machado Borges Pinto Profª Drª do Deptº de História/FFLCH-USP RESUMO: Este artigo pretende analisar como imagens de cunho futurista alinham-se nos vários textos dos modernistas paulistas, entre eles Mário e Oswald de Andrade, numa visão da paulicéia como ícone da modernidade brasileira. Contra- pondo-se a essa visão, sobressaem algumas abordagens de Blaise Cendrars que captam as facetas contraditórias, tensas e excludentes da modernização inacabada da cidade. PALAVRAS-CHAVE: Modernidade, Urbanização, Exclusão, Futurismo, Blaise Cendrars. ABSTRACT This article analyses how futurist images delineate in the writings of the modernists of São Paulo, as Mário and Oswald de Andrade, a vision of the “paulicéia” as an icon of the Brazilian modernity. In opposition to this vision there are some remarks made by Blaise Cendrars that show the contradictory, tense, and excluding facets of the unfinished modernity of the city. KEYWORDS: Modernity, Urbanization, Exclusion, Futurism, Blaise Cendrars. O testemunho poético mais significativo sobre a cidade de São Paulo às vésperas da Semana de Arte Moderna pode ser encontrado nos versos de Luís Aranha, nos quais se aglutinam os motivos e a sinta- xe de uma visão apaixonada e heróica da civilização industrial. Em suas montagens de flashes cotidianos, ritmadas pela rapidez, pela velocidade da vida cita- dina, sujeitas a angulações estranhas, a cortes abrup- tos, caracterizados por uma linguagem freqüen- temente prosaica, na qual se integram, de maneira decidida, recursos derivados das modernas técnicas de comunicação de massa, configuram-se várias ima-

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Mitologia Da Civilização Industrial, Cosmopolitismo Excludente e a Improvisação Da Sobrevivência - São Paulo 1910-1930

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  • REVISTA DE

    HISTRIA

    FFLCH-USP

    1999

    MITOLOGIAS DA CIVILIZAO INDUSTRIAL,COSMOPOLITISMO EXCLUDENTE E A IMPROVISAO DA

    SOBREVIVNCIA - SO PAULO 1910-1930

    Maria Inez Machado Borges PintoProf Dr do Dept de Histria/FFLCH-USP

    RESUMO: Este artigo pretende analisar como imagens de cunho futurista alinham-se nos vrios textos dos modernistaspaulistas, entre eles Mrio e Oswald de Andrade, numa viso da paulicia como cone da modernidade brasileira. Contra-pondo-se a essa viso, sobressaem algumas abordagens de Blaise Cendrars que captam as facetas contraditrias, tensas eexcludentes da modernizao inacabada da cidade.

    PALAVRAS-CHAVE: Modernidade, Urbanizao, Excluso, Futurismo, Blaise Cendrars.

    ABSTRACT This article analyses how futurist images delineate in the writings of the modernists of So Paulo, as Mrioand Oswald de Andrade, a vision of the paulicia as an icon of the Brazilian modernity. In opposition to this vision thereare some remarks made by Blaise Cendrars that show the contradictory, tense, and excluding facets of the unfinishedmodernity of the city.

    KEYWORDS: Modernity, Urbanization, Exclusion, Futurism, Blaise Cendrars.

    O testemunho potico mais significativo sobre acidade de So Paulo s vsperas da Semana de ArteModerna pode ser encontrado nos versos de LusAranha, nos quais se aglutinam os motivos e a sinta-xe de uma viso apaixonada e herica da civilizaoindustrial. Em suas montagens de flashes cotidianos,

    ritmadas pela rapidez, pela velocidade da vida cita-dina, sujeitas a angulaes estranhas, a cortes abrup-tos, caracterizados por uma linguagem freqen-temente prosaica, na qual se integram, de maneiradecidida, recursos derivados das modernas tcnicasde comunicao de massa, configuram-se vrias ima-

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    gens de So Paulo, claramente revestida da dimen-so do mito. Trs delas so significativas por enfeixa-rem emblematicamente a viso que o grupo moder-nista tinha de So Paulo nos albores dos anos 20: acidade tentacular (Drogaria do ter e de Sombra),a cidade vertical (Poema Giratrio), a cidade indus-trial (Drogaria do ter e de Sombra, Crepsculo)(ARANHA, 1984).

    Estas trs dimenses podem ser condensadas nosplanos que articulam a viso da cidade vertical, conce-bida como estrutura americana no apenas por seucrescimento vertiginoso, mas pela presena simult-nea de todas as caractersticas do processo moderni-zador pelo qual passava ento a capital paulista. Adimenso mtica, no caso, realada pelo af de in-serir a sua cidade na geografia cosmopolita do mun-do eletrizado, no qual cada pas se funde e se con-funde numa soma de similitudes que, entretanto, captade maneira eficaz o retrato de So Paulo moderno.

    O rumorAdivinho minha terra natalPrdios crescendoAndares sobre andaresCatedraisTorresChaminsO centro da cidadePrdios como couraadosAncoradosCordoalhasMastarusFlmulas tremulandoGalhardetes dos traquetesE a multido frenticaOs bancosOs jornaisAs grandes casas comerciaisBondesTintinabulao das campainhasAutomveisBuzinasCarros carroas fragorosamenteBairros industriaisCatadupas de som a rugir pelo espaoVentres de fornos colossaisNas fbricas usinas e oficinasTurbilhonam turbinas

    Mquinas a mugir em movimentos loucosVozes trepidaes campainhasBaques gritos sereias alaridoRouquejos e tropelRelgios a compassar nessa luta insofridaO ritmo frentico da vida!...!...(ARANHA, L., 1984 p.58-9).

    O Poema Giratrio, datado de 1922, insere-sejunto com outros versos de Aranha numa visualizaoprototpica da cidade de So Paulo como lugar porexcelncia da modernidade brasileira. O fascnio queo poeta expressa, longe da diviso perante a nova faceda cidade que perpassa os poemas de Paulicia Des-vairada e Losango Cqui, no dessemelhante daque-le que enforma a divulgao de novas idias por par-te do grupo modernista que transforma So Paulo nofulcro irradiador de um novo modo da civilizao.

    Imagens de cunho futurista alinham-se ao longode inmeros textos de propaganda das novas idias,propondo, o mais das vezes, equao So Paulo = ci-dade moderna = cultura nova. Numa sobreposio oti-mista e freqentemente acrtica, destacam-se as vi-ses da cidade tentacular, da cidade em crescimento,da cidade industrial, da cidade acampamento, da ci-dade, enfim moderna, qual no falta nenhum dosatributos exteriores que definem o processo de moder-nizao acelerado desde o incio do sculo XX. Paraos fautores da arte nova, sequiosos de destacar o pa-pel da Paulicia no contexto brasileiro e, at mesmo,latino-americano, no difcil construir um imensocaleidoscpio, uma montagem de fatos e sensaesque estruturam um retrato eloqente de um fenme-no indito para o pas. Se o Rio de Janeiro era a capi-tal poltica, So Paulo configura-se nitidamente comoa construo, avessa aos velhos cenrios e aos velhoscostumes do Brasil oitocentista e rural. por isso quea cidade encontra expresso em imagens fortementeconotadas com a modernidade, com seus ritmos, comsua efervescncia, constituindo um painel em que noh lugar para dvidas e hesitaes e sim to-somentepara a viso prospectiva, para a vocao futurista

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    de um povo de mil origens, arribado em mil barcos,com desastres e nsias (ANDRADE, 1921).

    A cidade, definida pela audcia vertical, devas-sada no recorte desassombrado de suas ruas de f-bricas e dos seus conjuntos de palcios americanos,revela ao olhar apaixonado dos modernistas sua fei-o complexa, inacabada e provisria: os desdobra-mentos infindveis de bairros nascentes, a ambioimprovisada das suas feiras, a vitria dos seus mer-cados, o recorte na paisagem das chamins fume-gantes e das ruas tumulturias de povo, seu carterde metrpole febril, milionria, imprevistamenteenorme e, por isso mesmo, prxima da lgica doacampamento, do empreendimento em devir, de ci-dade tentacular, de cidade tentacular, derrama-da at a vrzea, na qual o apito das fbricas e loco-motivas, e o atraente rodar dos veculos no asfalto,os zumbidos dos bondes, o fonfonar dos autos, os bur-burinhos das turbas, criam estados de alma novos,acendem desejos, sonhos, tristezas novas.

    So imagens interativas, como se pode perceber,muitas vezes retricas em seu af propagandstico,que no conseguem esconder uma leitura positivistado fenmeno So Paulo, vazada no trip tainianoraa-momento-meio. o que se percebe, por exem-plo, na anlise de um intelectual no-paulista comoRonald de Carvalho, que traa um retrato do Estadode So Paulo para explicar a presena do grupo inde-pendente, assumindo como axioma tcito a idia deque o meio a causa da obra de arte. A figura hist-rica do bandeirante transposta e aplicada aos fazen-deiros, aos industriais, aos criadores de fortuna, aosself-made, isto , queles indivduos prticos, degnio claro e positivo, que se erguem como contra-ponto aos gramticos e bacharis, aos crticos edoutores que pululam pelo resto do pas. Traado operfil da raa, entendida no caso como carter regio-nal, Ronald de Carvalho funde momento, raa e meiona viso das energias novas - mquina, tear, polia -,que deram origem a uma gens vigorosa, varonil,

    cheia de juventude e coragem, capaz de transfor-mar em paulista, em filha da terra, a contribuiode todos os povos de alm-mar (CARVALHO, 1972).

    Menotti Del Picchia, entre os modernistas de SoPaulo, quem leva mais longe tal tipo de argumenta-o, enfeixando-a na metfora dupla do brao quetrabalha e do crebro que cria, do pensamento,sob a gide de duas figuras mitolgicas, Hrcules eApolo. Seu discurso constri-se, freqentemente,como uma somatria de negativas: o papel de SoPaulo empreendedor cantado e exaltado em sua uni-cidade, em contraposio a uma regio geogrficaatrasada - o Norte - e a uma srie de fatores culturais,entre os quais avultam o regionalismo e o indianismo,como smbolo de um passado a ser negado e supera-do. Os termos utilizados no poderiam ser mais con-tundentes: So Paulo, Estado futurista por exceln-cia- racial, industrial, econmica e culturalmente -,representa o antpoda complexo dos cismarentospatrcios do norte, os quais ainda descansam, pacfi-cos, nas velhas normas ancestrais, sem as perturba-es criadoras da concorrncia do industrialismo in-sone, da batalha financeira americana.

    A viso crtica do Norte como sinnimo do restodo Brasil, mergulhado num carrancismo que anqui-lossa as naes secularmente cristalizadas em deter-minadas normas de vida, especular ao combate sis-temtico contra estruturas culturais ultrapassadas, quetraz em seu bojo a discusso sobre o surgimento deuma nova raa, cosmopolita e atualizada, profunda-mente diferente do tipo brasileiro convencional. Peri,Jeca-Tatu, tbios resqucios de uma minoria agoni-zante, esto fadados a desaparecer diante do surgi-mento do tipo definitivo do brasileiro vencedor.Novo Enias da Roma americana, o brasileiro deSo Paulo um ser poligentico, mltiplo, forte,vivo, culto, inteligente, audaz, fruto de muitas raasem combate, resultante de muitos sangues e adapta-do, pela fora das leis mesolgicas, no meio em quesurge, temperado pelo clima, plasmado pela fora da

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    fatalidade histrica; traz no seu organismo uma civi-lizao multisecular, uma cultura requintada.

    Se, em artigos como Matemos Peri! (Jornal doComrcio, 23 jan. 1921) e Peri (Correio Paulistano,2 fev. 1921), Menotti Del Picchia est desfechandoum ataque virulento contra nosso absurdo e ingnuoamor pelo passado, que mata as aspiraes de frmu-las novas - na poltica, na economia, na finana, natica, na literatura -, num texto como Da Esttica.Seremos Plagirios?, sua tomada de posio reveste-se de conotaes raciais. A questo central do artigono tanto o indianismo, que j fora denunciado porMonteiro Lobato como decalque chateaubrianesco,mas o papel do ndio na formao da cultura nacional,resumido pelo autor a algumas tangas e tacapes e aalguns nomes sonoros de cobras, rios e cidades. Aanlise do caboclo pauta-se por critrios semelhan-tes: definido como uma crosta inconsciente, quese apatifa sob as runas das ltimas taperas, votadaao desaparecimento.

    No difcil perceber na viso negativa do ndioe do caboclo ecos do pensamento de Monteiro Lobato,sobretudo do autor de Velha Praga e Urups. Algunsexemplos sero suficientes para provar esta simetria.A partir da definio do ndio como ser errante edo caboclo como espcie de homem baldio, semi-nmade, Del Picchia e Lobato articulam um lequede questes que desemboca na falta de sentido estticocomo sinnimo de falta de cultura, numa atitude cr-tica. Um e outro mostram-se at mesmo incapazes deconstituir condignamente sua moradia: a oca do n-dio no valia a casa do castor, um Joo de barro eramais artista.; a palhoa do caboclo parece nascidado cho por obra espontnea da natureza - se a natu-reza fosse capaz de criar coisas to feias e faz gar-galhar ao joo-de-barro. Que cultura poderiam cri-ar tais seres? O ndio no deixou um trao estticono Brasil, nem na msica (mero tan-tan), nem na li-teratura, nem na estaturia, do mesmo modo que ocaboclo que, egresso regra, no apresenta o mais

    remoto trao de um sentimento nascido com otroglodita.

    Bastaria contrapor aos argumentos de Del Picchiaa pesquisa de Rego Monteiro1 que, no mesmo pero-do, forma sua visualidade nos exemplos da arte ma-rajoara, conjugados com influncias orientais (hindus,egpcias, japonesas), negando, portanto, um dos es-teios de sua pregao. O discurso de Del Picchia, en-tretanto, persegue outros fins: construir uma imagemherica da modernidade de So Paulo, usando todasorte de recursos retricos, no importa se nem sem-pre verdadeiros ou enfocados a partir de uma ticapeculiar. Em seu ataque aos resqucios do passado, -romantismo, regionalismo, parnasianismo - o autordeixa transparecer uma concepo no apenas estti-ca, mas social e racial.

    Para negar o trip racial brasileiro e para opor-lhea viso do paulista cosmopolita, homem de ao,pragmatista, ativo, Del Picchia no hesita em redu-zir o problema das raas a uma conveno estereotipa-da, que confina o ndio no museu e no livro de hist-ria, quando no na selva espera de um Rondon, e onegro no interior do tipo caucasiano. Seus argumen-tos no poderiam ser mais explcitos quando define ahiptese do mestio como um caso rarssimo e qua-se teratolgico, que se descolora e se perde, venci-do pela vitria fisiolgica das raas fortes, que osnavios de todo o mundo despejam nos nossos portos.

    A operao no era gratuita. Embora com outrosreferenciais, era paralela ao mito grego dos parna-sianos e correo parisiense buscada pela socie-dade da belle poque, denunciando o sonho do Bra-sil branco perseguido por nossas elites. O tipo

    1 Sobre Vicente do Rego Monteiro, cf. Catlogo, Vicente do Rego

    Monteiro, 1899-1970; BATISTA, Lopez & Lima, Brasil; primei-ro tempo modernista, 1917/1929, pp.77-81, 94-5; sobre as dimen-ses estticas e polticas do movimento das artes decorativas, cf.BOUILLON, Journal de Larte dco, 1903-1940; Arwas, Art dco.

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    definitivo do brasileiro vencedor alicerava-se namorte de Peri e de Jeca-Tatu, na recusa de todo smbo-lo no-moderno. E no-modernos, segundo CndidoMota Jnior, eram o Brasil do selvagem antropfa-go, do aimor todo plumas e dentuas humanas; oBrasil do miservel mestio, inepto e indiferente atudo, ao estado de sua gente, integridade de suaptria; o Brasil do mulato borracho, das mucamassapecas, que s cuidam da pinga e das folias dotambu (MOTA JUNIOR, 1921).

    no mito tecnizado que se explicita a visopositivista de So Paulo. A viso de uma cidade cos-mopolita - evoluda de sculos em cinqenta anos deentradas comovidas, onde se debatem, para aml-gamas finais, canes de todos os idiomas, xtases detodos os passados, generosidades e mpetos de todasas migraes, na qual formiga um povo multifrio,internacional, fruto de uma raa que se transforma,dia a dia, numa estirpe decidida e mscula, america-nizada - ou melhor - abrasileirada pela luta deconquistas econmicas que a violncia de um choquede nacionalidades e uma maior densidade de popula-o exacerbaram. Esta luminosa metrpole, estuantede labor intelectual, fatalizada a futurismos de ati-vidades, de indstria, de histria e de arte, reconhe-cido leader mental da nao, um fulcro gerador deidias e escolas, criador de expresses libertas dasvelhas frmulas perras (ANDRADE, 1921).

    Todos os ingredientes esto presentes nesta mon-tagem multifacetada - consideraes raciais e gen-ticas (o paulista, a multietnia), o momento histricoe o ambiente (a metrpole do sculo XX, a industriali-zao e seus corolrios: urbanizao, economia mo-netria, nova paisagem citadina, multido), - conver-gindo na idia de cultura como sintoma, comoproduto da poca e do lugar geogrfico, que repontana maioria dos textos at agora analisados.

    Se toda autoviso parcial, o mais das vezes, m-tica, se tende a obliterar choques e contrastes paraconstituir uma imagem funcional, a anlise de So

    Paulo no momento em que surge com maior clarezaaquilo que definimos um mito tecnizado. Muitasvezes, entretanto, este exterior ao grupo inovador,configura-se a partir de outras determinaes, comotestemunham os panegricos de Carneiro Leo(LEO, 1920) e de Roberto Capri (CAPRI, 1922).

    Algumas adjetivaes usadas por Carneiro Leo- atividade febril, coragem dos empreendimen-tos, audcia realizadora- so suficientes para mos-trar que os atributos que os modernistas conferem cidade no so exclusivos do grupo de vanguarda, masparticipam de um estado de esprito bem mais amplo,encantado com o progresso alcanado por So Paulonum curto espao de tempo. Ao exaltar seu crescimen-to demogrfico, industrial, comercial, financeiro,educacional e cultural, o ensasta no deixa de traaruma linha de continuidade com o passado. EmboraSo Paulo seja a cidade que d mais claramente asensao do crescimento de um povo, uma cria-o exclusiva do trabalho e da inteligncia, no podeser considerada uma civilizao parvenue, um acam-pamento de exploradores.

    Se empreendimentos como a Cultura Artstica ea Revista do Brasil so apontados como frutos tpicosdo solo paulistano Carneiro Leo, entretanto, confereprimazia rea econmica e financeira como fulcrodos reais interesses da elite e do povo em geral, porconstiturem as razes dominantes da construo dafortuna pblica e particular. Por isso, o povo paulistal e discute, com avidez e inteligncia, os projetos,as medidas governamentais, as sugestes dos entendi-dos, dando-lhes o seu assentimento, ou criticando-lhesa execuo. O realismo dos negcios , porm, tem-perado pela sensibilidade latina, pela beleza natural dapaisagem, constituindo um exemplo para a formaodo povo futuro, que o ensasta faz brotar da mesclade italianos e brasileiros, da qual j estava resultandouma raa forte, clara, ruidosamente alegre, que nopede seno viver e se expandir, com todo o vio e exu-berncia de belas criaturas, sequiosas de existir.

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    A metrpole que Carneiro Leo descreve comoresultado exclusivo do esforo do homem, comoexemplo da fora criadora do esprito humano, considerada por Roberto Capri o germe de uma ver-dadeira cidade-modelo por seus monumentos, suasconstrues, suas fbricas portentosas, por sua vidaintensa. Num tom sempre exaltatrio da Roma ame-ricana, o autor destaca tanto a urbe burguesa, com seusprdios vastssimos em os quais fervilha o lufa-lufada Indstria, do Comrcio, das Cincias, das Artes edas profisses liberais, quanto o ncleo proletrio,tipificado pelo Brs, pulmo industrial da cidade, ondeo esforo do operrio se multiplica grandiosamentenum crescente esplndido.

    Embora o atendimento na loja fosse individuali-zado, o Mappin Stores no deixa de lanar mo dealguns dos mais poderosos instrumentos de venda dosmagazines: catlogos ilustrados que permitem com-pras pelo correio ou por telefone; anncios na impren-sa diria, redigidos em vrios idiomas, de acordo como rgo de divulgao; vendas especiais em determi-nadas pocas do ano (Carnaval, Semana Santa, Na-tal, por exemplo); liquidaes oportunamente anun-ciadas, que comprovam o alcance de uma arte deviver, o triunfo da aparncia, forjados pelo comr-cio e transformados em normas pelas demais classessociais, sobretudo pela pequena burguesia.

    Como na Paris de Haussmann, constitui-se em SoPaulo uma cidade opulenta, totalmente isolada douniverso dos pobres, na qual Richard Morse percebedois momentos distintivos. O primeiro, corresponden-te aos Campos Elseos, prprio de uma classe cultae afrancesada. J o segundo, representado porHigienpolis, seria prprio de uma plutocracia din-mica, trabalhadora, endinheirada e moldada na ima-gem anglo-saxnica de requinte e conforto. Tratar-se-ia da transio do baronato do caf aos imigrantesenriquecidos, mas o lapso de tempo por demais cur-to para que a hiptese de Morse possa ser pensadacomo efetiva (MORSE, 1970).

    O crescimento horizontal de So Paulo confirma,porm, a idia da cidade tentacular, que a imagina-o do povo aplica espontaneamente s linhas debonde da Light, apelidadas o polvo canadense(AMERICANO, 1962, p.27).

    Isso chama a ateno de inmeros viajantes, en-tre os quais Artur Dias, que, em 1904, define SoPaulo como vrias cidades sucessivamente agrupa-das dentro da linha exterior instvel. Mais severo o juzo de Hesse-Wartegg em meados dos anos 10,que no hesita em escrever: So Paulo no umagrande cidade, mas um amontoado de pequenas cida-des construdas uma ao lado da outra e uma dentroda outra, uma cidade que est em vias de se transfor-mar em cidade grande e a nica coisa grandiosa nela o seu futuro. Tudo transpira o estado inacabado ea grandeza futura, at os homens, pois as relaessociais ainda so confusas, turvas, as guas no seclarificaram, os sedimentos ainda no se depositaramno fundo, as camadas ainda no se formaram (ApudAMERICANO, 1962).

    O incio do sculo XX testemunha ainda a intro-duo de novos ndices de modernizao na cidade:a abertura da primeira sala cinematogrfica, Bijou,localizada na Avenida So Joo, e a concesso dachapa P-1 a Francisco Matarazzo, o qual entretanto,no o primeiro dono de automobile do Estado.

    A abertura da primeira sala cinematogrfica, emnovembro de 1907, no coincide com a introduo docinema em So Paulo. Entre 1896 e 1899, houve 181dias de projees registradas, nmero baixo segundoMximo Barro, se referindo populao da cidade ese comparado com os ndices do Rio de Janeiro. Oexemplo do Bijou logo seguido por outros empres-rios: so abertas vrias salas no centro e em bairroscomo Vila Buarque, Santa Ifignia, Luz, CamposElseos, Brs, Liberdade, sem falar nas sesses cine-matogrficas gratuitas promovidas por algumas con-feitarias de luxo (BARRO,1986, p.58).

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    O uso do automvel populariza-se aos poucos emvirtude de seus preos elevados e de seu difcil ma-nejo. Em 1904, so registrados oitenta e trs vecu-los, que se transforma em dois mil e quinhentos nofim do primeiro quartel do sculo. Logo surgem leisregulamentando seu uso e So Paulo o pioneironesse tipo de iniciativa: cobrana de taxa de circula-o (1900), obrigatoriedade de inspeo pela prefei-tura e fixao dos limites de velocidade (1903), car-teira de habilitao (1904).

    O incremento da produo verifica-se em doissetores: o agroexportador e o metalrgico, que seroredimensionados com o trmino do conflito [Primei-ra Guerra Mundial]. No primeiro caso, a queda noconsumo internacional de caf compensada pelademanda de carnes, cereais, feijo, acar e tecidosde algodo, que deveriam abastecer tambm o merca-do do Rio de Janeiro, essencialmente importador. Nosegundo caso, trata-se da produo de peas e mqui-nas pelo sistema de retrabalho do metal por parte depequenas empresas, que no podem ser consideradasindstrias, pois se voltavam principalmente para oconserto de equipamentos preexistentes.

    A avaliao do momento , porm, positiva, comotestemunham alguns relatos j analisados, que nun-ca levam em conta a questo operria e a ascensodo movimento trabalhista, para no empanar o bri-lho do retrato sem defeitos. Mesmo se a eles contrapu-sermos a viso crtica de Lima Barreto, perceberemosque a equao se mantm, pois, em seu ataque cala-mitosa oligarquia paulista, o escritor carioca apon-ta logo aqueles elementos que se configuram comopositivos na avaliao ufanista. O que Lima Barretocontesta - o malfico esprito de cupidez de riquezacom que So Paulo infeccionou o Brasil, o monop-lio econmico do caf, o imperialismo paulista Nohavia nada em So Paulo que no fosse excepcional.A alface de So Paulo era um regalo; os sapatos nofaziam calos; os biscoutos curavam enxaquecas; oschapus no deixavam crescer certos ornamentos

    conjugais; o dinheiro era excelente e os polticos...os mais sbios do mundo - reponta, o mais das ve-zes, como virtude a explicar o carter nico da ci-dade e do Estado no contexto nacional (BARRETO,1956, p.39, 52-55, 205).

    Mas no apenas na economia que So Paulo sus-cita admirao e entusiasmo. Clemenceau e Denis, es-crevendo no mesmo perodo, destacam a funo edu-cacional da cidade: o primeiro, ao declarar que suaEscola Normal deveria servir de modelo aos paseseuropeus; o segundo, ao defini-la crebro do Brasilpelo valor de suas escolas e pela ateno dedicada aoensino pblico, com exceo do secundrio, quasetodo em mos de particulares (CLEMENCEAU,1911,p.246 e DENIS, s.d., p.174-149).

    Se visitantes estrangeiros manifestam tamanhoentusiasmo por certas caractersticas da cidade, noadmira que, alguns anos depois este estado de espri-to tome conta tambm da elite intelectual, que tenta-r traar um painel positivo de sua vida cultural. Sig-nificativo o testemunho de Goulart de Andrade que,em Tristeza do Bem Alheio(Correio Paulistano, 22fev. 1920), viso consagrada de So Paulo comoreino do juro, lucro, saque, cheque ope aquela deum verdadeiro renascimento intelectual, aliceradoem leitores, editores e, sobretudo, artistas por ele con-siderados a pliade de mais brilho que lucila por a.Menotti Del Picchia, que, ao comentar o artigo, clas-sificara a maioria do pblico paulista como pertencenteao perodo da pedra lascada, em pronunciamentosposteriores no hesitar em afirmar a liderana exercidapor So Paulo no pas tambm em matria de cultura: o Estado que mais l, segundo se pode verificarpelas estratgias da casa editora do sr. Monteiro Lobato. o Estado que discute seus artistas, aplaude-os, con-dena-os ao ostracismo do esquecimento. Exposiesse abrem todos os dias, com mais ou menos sucesso.Glrias de atores e bailarinas caem, a golpes de vai-as, nas suas ribaltas, ou se afirmam com a consagra-o dos seus aplausos. Canta peras. Anima o Teatro

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    Nacional (HLIOS, 1920; DEL PICCHIA, 1920;ANDRADE, 1920).

    Tem escultores magnficos, raros, mas fortes. Temconcertistas, pianistas geniais, virtuoses admirveis.Nada falta a este retrato para desmentir a idia de queSo Paulo era dominado to-somente pela preocu-pao tacanha e prosaica da caa moeda. O perfilbosquejado por Del Picchia pode ser enriquecido comos elementos que constam de uma crnica de Mriode Andrade, o qual percebe a cidade sob a tica du-pla do progresso material e intelectual. Fazem partedeste opostas faces - tradicionalistas a convejaragouros e futuristas em fria -; igrejinhas, revistas,sales, onde a discusso larga e livre e a crtica isentae sem desmaios, a gerao de idias e de escolas, umofego bblico de criao, que faz prever batalhas esacrifcios geniais (ANDRADE, 1920).

    Alceu Amoroso Lima j havia traado um prog-nstico semelhante, ao afirmar: o sculo XX osculo de So Paulo. Embora em seu artigo Oxodo (Revista do Brasil, 17 set. 1917) proponha asada dos grandes centros a fim de propiciar o desen-volvimento de um nacionalismo agrrio, o autorno deixa de reconhecer que em So Paulo brotaria ofuturo movimento intelectual, alicerado no plenogerminar da idia regionalista. Se o regionalismo eracombatido pelo futuro grupo de vanguarda, os outroselementos enumerados em O xodo no destoamdo coro geral, na medida em que se referem a umEstado que desfruta metade da fortuna nacional e quepossui uma aristocracia prpria, herdeira da altiveze do bom senso dos bandeirantes.

    A anlise do ambiente cultural de So Paulo noperodo em pauta demonstra, porm, que a situaono era to propcia quanto a descrita pelos modernis-tas e que nos encontramos, na realidade, diante demais um aspecto do mito tecnizado, tendente a for-necer uma imagem projetiva da cidade. Bastar, paratanto, examinar os dois campos principais de atuaodo modernismo: o literrio e o artstico.

    A afirmao de que So Paulo o Estado ondemais se l deve ser relativizada diante dos ndicesde analfabetismo revelados pelo recenseamento de1920: havia 72% de iletrados no Estado, o que reduzdrasticamente o espectro de um possvel pblico con-sumidor. Embora tais dados sofressem uma reduosignificativa na capital, que contava com 42% de no-alfabetizados, outros fatores so decisivos para esta-belecer um perfil do pblico leitor: o preo das publi-caes, as preferncias ostentadas, tiragens etc.

    Os preos oscilavam de acordo com o tipo depublicao, mas as chamadas edies populares sesituavam acima da mdia salarial da pequena burgue-sia, no conseguindo sustentar a concorrncia dosperidicos. So estes, de fato, que se aproximam dogosto mdio do pblico, propiciando-lhe um painelda atualidade que abarcava cultura, poltica, esporte,alm de sees especializadas (moda, cozinha etc.).O tom mundano o trao caracterstico destas publi-caes, freqentemente dirigidas mulher como con-sumidora potencial, o que explica o surgimento derevistas marcadamente femininas ou de sees espec-ficas nos peridicos gerais. A Vida Moderna (1907),A Cigarra (1914), A Garoa (1921), Vida Paulistana(1921), s para citarmos alguns ttulos editados em SoPaulo, oferecem a seus leitores entretenimento ecultura por contarem entre seus colaboradores comalguns dos mais renomados escritores nacionais.

    No terreno propriamente literrio, destaca-se No-vela Semanal, lanada em 1921, com o propsito devulgarizar a melhor literatura, dirigindo-se simulta-neamente a duas faixas de leitores: homens de letrase pessoas cultas e pblico de mediana cultura. Com-punha-se de contos, novelas, de um suplemento lite-rrio e pretendia, de fato, rivalizar com o livro pelaextenso, variedade e interesse da matria.

    Se o empreendimento da Sociedade Editora Ole-grio Ribeiro pode ser um ndice de um certo tipo degosto, no se pode esquecer um outro gnero deter-minante na poca, o folhetim, publicado diariamente

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    em rgos da grande imprensa como O Estado de S.Paulo. A maioria dos autores divulgados era estrangeirae entre eles se sobressaem os nomes de Dumas, Ponsondu Terrail, Xavier de Montpin e Enrique PerezEscrich. A enumerao destes nomes j fornece umperfil do pblico leitor e, sobretudo, de seus gostos.Sucessos como os de Monteiro Lobato, Leo Vaz (OProfessor Jeremias), Hilrio Tcito (Mme. Pommery)so excesses no panorama literrio, pois o pblicoprivilegiava aquilo que o primeiro denominava ro-mantismo do corao, ou comdias de costume2.

    Se a paraliteratura a tnica do perodo, isso noquer dizer que no existissem em So Paulo condi-es para o estabelecimento de um mercado produ-tor e consumidor com maiores ambies culturais.Monteiro Lobato paradigmtico neste sentido: suacasa editora no revoluciona apenas o sistema de dis-tribuio, mas divulga alguns dos mais expressivosescritores nacionais, abrindo-se a outra reas que noa literatura, como demonstra o exemplo de OliveiraViana (VIANA, 1921, p.4).

    No campo artstico, a situao era ainda mais im-precisa. Comeava a se constituir um mercado de arte,mas, paradoxalmente, no existia um espao especfi-co que permitisse reconhec-lo como tal.

    Se definimos a viso que os modernistas forne-cem de So Paulo como um mito tecnizado por-que ela mais projetiva do que efetiva, sem que issoimplique o no-reconhecimento do processo de mo-dernizao acelerado. Mas justamente por ser acele-rado que tal processo exibe tantos choques e contra-dies, obliterados na construo da pica da cidade,que leva em conta to-somente seus aspectos positi-vos, coincidentes com as conquistas da burguesia

    industrial e da plutocracia urbano-rural. Mesmo de-pois da Semana de Arte Moderna, mesmo depois dainstalao do debate moderno, So Paulo continuasendo visto como um fruto da modernizao positi-va mais do que como resultado de um processo maiscomplexo, dialtico e tenso. o que transparece, primeira vista, do poema que Blaise Cendrars escre-veu para o catlogo da mostra parisiense de Tarsilado Amaral em 1926. Os versos finais so bem emble-mticos em sua celebrao da pica burguesa: SoPaulo visto como a concretizao do ideal modernopor sua ausncia de tradies e de preconceitos, porseu apetite furioso, sua confiana absoluta, seuotimismo, sua audcia, seu trabalho, seu labor,sua especulao, por sua preocupao exclusiva deseguir as estatsticas prever o futuro o conforto a uti-lidade a mais-valia e atrair uma grande imigrao.

    A viso dos modernistas prolonga-se na percep-o de Cendrars, que transforma So Paulo no epto-me do esprito moderno, na concretizao da cida-de futurista, ritmada pelo trnsito, pelas multides,caracterizada por uma paisagem artificial, na qualsoam buzinas e piscam letreiros. Mas h dois quistosno-modernos nesta paisagem: um fogareiro recor-tado numa lata de biscoitos e pequenos burros puxan-do carroas (Apud AMARAL, 1970, p.143), que re-metem de imediato complexidade da modernidadebrasileira, contraditria, moderna e provinciana, mi-lionria e excludente, com agudas tenses sociais,bem diferente das imagens do mito tecnizado.

    Blaise Cendrars aponta as facetas contraditrias,tensas e excludentes da modernizao inacabada dapaulicia. Cendrars tambm faz referncias imagemde uma metrpole tomada integralmente pela pobre-za, com uma enorme contingente de mo-de-obrainstvel, rotativa e flutuante, narrando os expedien-tes eventuais e incertos de sobrevivncia das popula-es pobres.(PINTO, 1994, p.111). O poeta mostracomo a sombra desse jogo imponente de aparnciasdo cosmopolitismo burgus da Blle poque, uma

    1 Sobre o mercado editorial em So Paulo, vide SILVA BRITO,

    155-159; HALLEWELL,L., O Livro no Brasil, So Paulo, 1985,p. 235-265; e, sobretudo, FIORENTINO, T. A., Prosa de Ficoem So Paulo, So Paulo, 1982.

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    nova realidade surda e contundente ganhava corpo deforma tumulturia e tensa.

    Era na cidade, e no centro financeiro, comerci-al e administrativo que toda essa multido de desempre-gados e semi-ocupados aflua (PINTO, 1994, p.184).

    O que teria feito uma das personagens mais cen-trais, mais em foco, mais festejadas da vida artsticade Paris e da Europa, decidir-se a vir a esse recantoremoto do mundo em 1925? Blaise Cendrars tinhauma obsesso: a modernidade. Ele era irresistivel-mente atrado por todas as manifestaes mais extre-mas do fenmeno moderno. Adolescente ainda foitestemunhar diretamente o erguimento dos arranha-cus em Nova York, vagando pelas ruas, enregeladoe faminto, e pelo porto, o mais rico e movimentadodo mundo, vendo chegar e partir cargas colossais demercadorias e desembarcar falanges interminveis dehomens e mulheres vindos de todos os lados do pla-neta, despossudos, andrajosos, mudos, agarrados unsaos outros com uma expresso de terror congelada nosolhos. Dali seguiu para a Califrnia, assistindo scorridas do ouro e do petrleo, observando cidadesinteiras nascerem do dia para a noite, como cogume-los depois da chuva. Partiu para o Panam, onde aengenharia acabara de unir os dois oceanos e onde seimplantaram as mais delirantes operaes especula-tivas jamais imaginadas. Voltou a Paris para publicaro Les pques New York, cujos manuscritos lidos porApollinaire teriam uma influncia decisiva na elabo-rao do seu Alcools. Ambos os livros publicados em1913 revolucionariam a poesia francesa.

    Depois da Guerra, com a morte de Apollinaire eo casal Delaunay fora de Paris, ele e Lger se torna-ram as figuras-chaves da nova cena cultural. Por queento deixar Paris nesse momento e se deslocar parauma longnqua cidade do sul da Amrica Latina? Maisdo que uma simples visita, Blaise prolongaria suaestada por nove meses. Ele se sentiria magnetizadopela cidade, qual voltaria trs outras vezes, uma vezpor ano, de 1926 a 1928, sempre para longas perma-

    nncias. Ao que parece, mltiplas dimenses do fe-nmeno paulista o atraam.

    No escapava, porm, a Blaise o outro lado dessefenmeno, mais imediato e concreto, a fantsticaconcentrao de renda propiciada pela monoculturae pelas atividades especulativas que se desenvolviamem torno dela. Essa jogatina em escala mundial, esseteatro verde do poder fascinava igualmente o poeta.Em 1926, ele escreveu num apndice ao seu roman-ce Moravagine, publicado naquele ano:

    28 de janeiro de 1924, em atravesso o Equador s 14 horas abordo do Formose que me leva ao Brasil. Eu creio que agoraestou preparado e posso levar uma vida dupla, uma vida de ativi-dades febris, mltiplas, especulativas, arriscadas para ver o quesignifica dentre os homens pr em movimento montes de dinheirode um modo indiferente e gratuito e, por outro lado, levar umavida lenta de escritor (BUHLER, 1960).

    Mais tarde, noutro texto, ele se referiria ao Brasilcomo o paraso dos miliardrios (SEVCENKO,1990). Assim, Blaise pretendia penetrar profunda-mente nesse assomo que era a monocultura moder-na, observando-a pelos seus pontos extremos: asmulheres e homens simples, os imigrantes pobres eangustiados num limite, o crculo estreito de ondesaam as decises fixando o destino de milhes deseres no outro.

    Paulo Prado, de que Blaise seria amigo e admira-dor at sua morte, proporcionou condies para queo poeta tivesse completa liberdade de movimento indoonde quisesse, fazendo o que gostasse. O poeta ou seenterrava nos sertes das fazendas dos Prado, ouperambulava pelas ruas e subrbios de So Paulo,observando e conversando com as pessoas comuns.Quis ir ao Rio, quis ir s cidades histricas, subiasozinho s favelas, entrava nas cadeias, casebres,comia pelas ruas, fazia amizade com as quituteiras,feirantes, vendedores ambulantes e proprietrios depequenos negcios autnomos, de tostes (PINTO,1994, p.115).

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    Desde a chegada, Blaise se entrega contempla-o da cena brasileira, sem entusiasmo pelos intelec-tuais afrancesados que procuram se acercar dele, comexceo de Paulo Prado. J na viagem de Santos paraSo Paulo, se desinteressara da comitiva de intelec-tuais que fora busc-lo e se deixava hipnotizar pelasuntuosidade da paisagem.

    Blaise admira extasiado a Mata Atlntica, mas noa converte em smbolo, emblema ou alegoria. Elegoza a presena exuberante das plantas e rvores, oefeito conjunto da sua espessa cobertura sobre o re-levo dramaticamente acidentado da serra, mas no fazdela uma representao abstrata que configure algu-ma identidade, fora moral ou energia histrica. As-sim tambm com olhos desprendidos de conceitos eleenxerga a cidade. Essa cidade que uma mistura deNice com Londres, os vastos jardins e espaos pbli-cos de predominncia mediterrnea: imigrantes emigrantes pobres de vrias procedncias, nacionali-dades e etnias como italianos, sobretudo, portugue-ses, espanhis, negros, mulatos, rabes. importan-te observar que a cidade no era apenas formada peladiversidade dos aspectos materiais, segundo mode-los de urbanizao importados; a multiplicidade daspresenas de vrios povos e etnias tambm colabo-rava para formar seu perfil cosmopolita e desordenado(PINTO, 1996, p.418).

    Essa colocao acerca do perfil de So Paulo,pode parecer contraditria e excludente, mas na ver-dade ela faz parte da ebulio ntima, da improvisa-o dos costumes e espelha a formao compsita,agregado mais ou menos informe de elementos de v-rias procedncias, etnias, estratos que marcam o pro-cesso de sedimentao da sociedade paulistana nesseperodo de crescimento tumulturio, inspirando-nos namagistral anlise de Srgio Buarque de Holanda em Metais e Pedras Preciosas(HOLANDA,1968,p.259)podemos afirmar que o que de tudo ressalta na socie-dade paulistana a sua estrutura movedia que sedesmancha, em partes, e se recompe continuamen-

    te ao sabor de contingncias imprevisveis (PINTO,1996, p.415).

    Como se observa, Blaise no precisa provar nada,no quer provar nada, apenas apreciar o frescor mul-tifrio de uma experincia social singular, intensa eheterognea da modernidade contraditria em anda-mento (SALIBA, 1998, p.319). Do alto do seu quar-to de hotel no Largo do Paissandu, ele observa o mo-vimento embaixo. So notas curtas, instantneos emque a linguagem procura registrar as imagens e o mo-mento concreto quase com a imediatez mecnica eirrefletida com que o celulide de Eastman registra aluz. A anotao social aparece pela escolha do focoque o poeta faz. Paisagem.

    O muro trespintado da PENSIONE MILANESE se enquadrana minha janela

    Eu vejo uma fatia da avenida So JooBondes carros bondesBondes-bondes bondes bondesMulas amarelas atreladas a trs puxam carrocinhas vaziasPor cima das pimenteiras da avenida se desloca o anncio

    gigante da CASA TOKIOO sol verte verniz (BLAISE CENDRARS, 1985, p.56).

    Nem falta o sarcasmo acre e bem-humorado, comque Blaise ridiculariza o uso esprio que se faz doautomvel como um instrumento de ostentao, po-der e opresso contra a populao da cidade, confor-me os versos sucessivos das composies A cidadedesperta e Klaxons eltricos.

    Os primeiros bondes operrios passamUm homem vende jornais no meio da praa.............................................................

    As buzinas lhes respondemE os primeiros carros passam a toda velocidade (BLAISE

    CENDRARS, 1985, p.61-2).Aqui no se conhece a Liga do SilncioComo em todos os pases novosA alegria de viver e de ganhar dinheiro se exprime pela voz

    das buzinas e a peidorrada dos carros de escapamento abertos(BLAISE CENDRARS, 1985, p.62).

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    Vagando pelos arrabaldes pobres, Blaise, o autor daAntologia negra e do bal de lendas africanas A criaodo mundo, pde constatar qual era a condio da popu-lao negra no Brasil e como renegados, estigmatiza-dos, privados dos direitos elementares e excludos dacena pblica, eles estavam longe de ser heris em SoPaulo, e sobreviviam nas fmbrias da economia cafeeira.Em que pese a imagem ttrica, seu poema Menu debagatela de uma notvel secura e impacto comuni-cativo, ressaltando pelo contraste fauve de cores e aluminosidade cegante uma cena que se fixa direto namemria como que impressa por um ferro em brasa.

    O cu de um azul cruO muro em frente de um branco cruO sol cru bate na minha cabeaUma negra instalada num terracinho frita pequeninos peixes

    numa panela recortada de uma lata de biscoitosDois negrinhos roem um pedao de cana-de-aucar (BLAISE

    CENDRARS, 1985, p.62).

    Mas, apesar dos pesares, o poeta mantinha umaslida confiana de que a experincia de So Paulo,levada s ltimas conseqncias, pelas prprias ten-ses de extremos que comportava, pelas expectativasque irradiava, pelas potencialidades que latejavamnela lutando para se concretizar, acabaria gerando umel democratizador que se provaria irreversvel. Blaiseparecia ver a cidade como um campo de prova, umgrande laboratrio urbano, em que a modernidade seredimisse das torpezas da Guerra e se justificassecomo uma forma aglutinadora e emancipatria. Seupoema Saint-Paul uma das descries mais atila-das que j se fez da cena urbana, assim como do con-texto social e cultural do experimento paulista.

    Eu adora esta cidadeSo Paulo como o meu corao

    Aqui nenhuma tradioNenhum preconceitoNem antigo nem modernoS contam esse apetite furioso essa confiana absolutaesse otimismo essa audcia esse trabalho esse esforoessa especulao que faz construir dez casas por horade todos os estilos ridculos grotescos belos grandes pequenosnorte sul egpcio yankee cubistaSem outra preocupao que a de seguir as estatsticasprever o futuro o conforto a utilidade a mais-valia eatrair uma enorme imigraoTodos os pasesTodos os povosEu amo issoAs duas trs velhas casas portuguesas que restam so faianas azuis (BLAISE CENDRARS, 1985, p.63-4).

    A estranha irregularidade desse poema revela-dora. O poema nos fala de amor, mas tambm de ex-plorao desenfreada de pessoas, de esperanas, deansiedades. Blaise v esse fenmeno indito de multi-des heterogneas - compostas de gente na maioriaestranhas umas s outras - que se reuniram num pon-to remoto do mundo, unidas apenas pela obsessocomum de forar a realidade a adquirir a forma dosseus vrios sonhos pessoais e obscuros. Mais do quecubista, essa era uma situao surrealista transforma-da num experimento social de escala assustadoramen-te grande. So Paulo era uma audaciosa obra de artemodernista em si mesma, com suas contradies in-trnsecas, sua coleo de ambies delirantes e seudesprezo pela histria, passada ou futura. Espalhadasdentro desse labirinto arquitetnico da metrpole, aspoucas casas portuguesas remanescentes da vila colo-nial, pequenas, decorativas e antigas, eram to in-teis quanto chals sob uma avalanche. Elas poderi-am, no entanto, servir ao menos como referncia parase avaliar a dimenso do cataclismo moderno.

  • 73Maria Inez Machado Borges Pinto / Revista de Histria 140 (1999), 61-73

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