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MIRA MATEUS, Maria Helena. Unidade e diversidade da língua portuguesa. In: ______________. A face exposta da língua portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002. p. 15-25. UNIDADE E DIVERSIDADE DA LÍNGUA PORTUGUESA Introdução A questão da unidade e da diversidade da língua portuguesa é uma questão fascinante pelas várias vertentes em que pode ser encarada, pela interdisciplinaridade que supõe e pela consciência que nos dá de pertencermos a um mundo que ultrapassa as nossas fronteiras e se estende por vários continentes. Tendo já abordado este problema em Portugal e no Brasil, em Cabo Verde, em Moçambique e até na Galiza, sinto que a manutenção de uma língua passa hoje, mais do que nunca, pela vontade determinada de afirmar a sua existência e de lutar pela sua sobrevivência. Alguns marcos históricos A língua portuguesa é reconhecidamente a quinta língua do mundo em número de falantes. Falada como língua nacional ou oficial em sete países (Portugal e Brasil, Angola, Moçambique, S. Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde) e espalhada por quatro continentes, a língua portuguesa está restringida, na Europa, a um espao de 90.000 km 2 . Embora seja a língua do maior país da América do Sul, a sua utilização está limitada em organismos plurinacionais e, por exemplo, no contexto da Comunidade Europeia frequentemente é confundida com o Espanhol. Não é de esquecer, todavia, que o português outrora foi língua de prestígio na qual se comunicavam com asiáticos e africanos os mareantes europeus ao tocarem longínquos litorais. Adaptado, enfim, a diferentes culturas, o português manteve uma individualidade e uma coesão interna evidentes. É indubitável a força da sua tradição, a riqueza do seu processo vital. Vejamos para já alguns marcos da sua história. No período dos Descobrimentos, o português foi língua de expansão cuja difusão ocorria naturalmente no trato do comércio, na dominação dos escravos, na construção do império. Não era, então, necessário justificar a importância da língua: ela impunha-se no facto consumado de um povo em crescimento que estendia o seu poder. A dilatação da fé e do império tinha um veículo: o português. Recordemos que, desde finais do século XVI até ao século XIX, esta era a língua que, além de utilizada no Brasil, tinha o estatuto de língua de comunicação generalizada no litoral africano e de língua franca nos portos da Índia e do sudeste asiático. Mas, e depois da época áurea? Quando, embora tivesse perdido o pedaço americano do império o Brasil –, Portugal ainda não era um ‘pequeno país’? Reforçou-se então em África o papel da língua de subjugação cultural, que já se havia instalado no Brasil com pleno êxito desde o século XVIII, com o Marquês de Pombal. Lembremos que no território brasileiro o português já tinha tido exercido essa subjugação cultural pois, embora os portugueses estivessem em minoria, a política linguística pombalina impô-lo em substituição da “língua geral”, de origem indígena, que fora difundida pelos jesuítas. Tal imposição sobrepôs o português às línguas índias e africanas faladas pela maioria da população da época. Nos territórios africanos o português transportou valores cuja transmissão ilusoriamente permitia segurar as pontas do espaço imperial. No momento em que o ultramar começou a abrir fissuras, a situação da língua portuguesa tornou-se paradoxal. Abandonando a sua situação de língua de subjugação, o português nascia como língua de identidade nacional cobrindo nações plurilíngues e funcionando como bandeira: o português em Moçambique, do Rovuma ao Maputo, em declaração de independência; o português da Guiné- Bissau confrontando-se com o Francês de países limítrofes; o português em Angola permitindo o entendimento entre falantes das vivíssimas línguas nacionais; o português em Cabo Verde e em S. Tomé, a par de línguas crioulas cheias de vigor, como veículo de comunicação com o exterior e sinal

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MIRA MATEUS, Maria Helena. Unidade e diversidade da língua portuguesa. In: ______________. A face exposta da língua portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002. p. 15-25.

UNIDADE E DIVERSIDADE DA LÍNGUA PORTUGUESA

Introdução

A questão da unidade e da diversidade da língua portuguesa é uma questão fascinante pelas

várias vertentes em que pode ser encarada, pela interdisciplinaridade que supõe e pela consciência que

nos dá de pertencermos a um mundo que ultrapassa as nossas fronteiras e se estende por vários

continentes. Tendo já abordado este problema em Portugal e no Brasil, em Cabo Verde, em

Moçambique e até na Galiza, sinto que a manutenção de uma língua passa hoje, mais do que nunca,

pela vontade determinada de afirmar a sua existência e de lutar pela sua sobrevivência.

Alguns marcos históricos

A língua portuguesa é reconhecidamente a quinta língua do mundo em número de falantes.

Falada como língua nacional ou oficial em sete países (Portugal e Brasil, Angola, Moçambique, S.

Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde) e espalhada por quatro continentes, a língua portuguesa

está restringida, na Europa, a um espao de 90.000 km2. Embora seja a língua do maior país da América

do Sul, a sua utilização está limitada em organismos plurinacionais e, por exemplo, no contexto da

Comunidade Europeia frequentemente é confundida com o Espanhol. Não é de esquecer, todavia, que

o português outrora foi língua de prestígio na qual se comunicavam com asiáticos e africanos os

mareantes europeus ao tocarem longínquos litorais. Adaptado, enfim, a diferentes culturas, o

português manteve uma individualidade e uma coesão interna evidentes. É indubitável a força da sua

tradição, a riqueza do seu processo vital. Vejamos para já alguns marcos da sua história.

No período dos Descobrimentos, o português foi língua de expansão cuja difusão ocorria

naturalmente no trato do comércio, na dominação dos escravos, na construção do império. Não era,

então, necessário justificar a importância da língua: ela impunha-se no facto consumado de um povo

em crescimento que estendia o seu poder. A dilatação da fé e do império tinha um veículo: o

português. Recordemos que, desde finais do século XVI até ao século XIX, esta era a língua que, além

de utilizada no Brasil, tinha o estatuto de língua de comunicação generalizada no litoral africano e de

língua franca nos portos da Índia e do sudeste asiático.

Mas, e depois da época áurea? Quando, embora tivesse perdido o pedaço americano do império

– o Brasil –, Portugal ainda não era um ‘pequeno país’? Reforçou-se então em África o papel da

língua de subjugação cultural, que já se havia instalado no Brasil com pleno êxito desde o século

XVIII, com o Marquês de Pombal. Lembremos que no território brasileiro o português já tinha tido

exercido essa subjugação cultural pois, embora os portugueses estivessem em minoria, a política

linguística pombalina impô-lo em substituição da “língua geral”, de origem indígena, que fora

difundida pelos jesuítas. Tal imposição sobrepôs o português às línguas índias e africanas faladas pela

maioria da população da época. Nos territórios africanos o português transportou valores cuja

transmissão ilusoriamente permitia segurar as pontas do espaço imperial.

No momento em que o ultramar começou a abrir fissuras, a situação da língua portuguesa

tornou-se paradoxal. Abandonando a sua situação de língua de subjugação, o português nascia como

língua de identidade nacional cobrindo nações plurilíngues e funcionando como bandeira: o português

em Moçambique, do Rovuma ao Maputo, em declaração de independência; o português da Guiné-

Bissau confrontando-se com o Francês de países limítrofes; o português em Angola permitindo o

entendimento entre falantes das vivíssimas línguas nacionais; o português em Cabo Verde e em S.

Tomé, a par de línguas crioulas cheias de vigor, como veículo de comunicação com o exterior e sinal

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de diferença em relação aos povos circundantes. Em África a língua portuguesa oficial é uma opção

política, uma atitude nacional e tem, no momento presente, uma estreita ligação com a sobrevivência

dos territórios como países independentes. Vale acrescentar que, no Brasil, a língua portuguesa é

igualmente língua de unidade nacional já que não podemos esquecer a existência de línguas indígenas

ainda hoje faladas por pequenos grupos de índios.

Que diremos agora da íntima relação entre língua e identidade cultural? Em que circunstâncias

devemos entender o papel da língua de afirmação – a que preserva a diferença na justificação da

autonomia? Este é claramente o estatuto de línguas como a basca e a catalã na Península Ibérica, ou as

línguas da antiga União Soviética. Línguas que se afirmam numa relação de forças, línguas

instrumento de luta, factores coesivos de vibração nacionalista. Neste fim de século em que o mundo

pulsa em movimentos contrários de agregação e desagregação, as línguas de afirmação não se

questionam, justificam-se na emergência dos nacionalismos.

No caso de Portugal e do Brasil, não se tratando de uma afirmação de independência, como

encarar a relação dos portugueses e dos brasileiros com a sua língua materna? Na borda do Oceano

Atlântico existe um pequeno país cujas fronteiras são as mais antigas da Europa; na América do Sul, a

maior área nacional tem já um razoável percurso histórico no interior do continente americano. Nestes

dois espaços se fala uma língua que, de norte a sul, não apresenta notáveis variações. Essa língua de

tradição é um repositório de esquecidas memórias e os povos que a falam reconhecem-na como parte

do seu património, ao lado dos monumentos, das artes e ofícios, da música. Este ‘bem querer’ à língua

materna é para nós, no presente, movimento de coração: nem arma de combate, nem bandeira de

unidade, nem instrumento de imposição cultural, mas apenas, e até ao mais fundo de nós mesmos, o

principal apoio para a construção do mundo individual e social.

Identidades e diferenças linguísticas

Voltemos agora à análise da unidade e da variação da língua portuguesa, questão a discutir sob

diversos ângulos. Umas vezes as diferenças, outras as semelhanças, agora o que é linguístico, logo o

que é social ou cultural – e os conceitos vão surgindo, a exigirem termos que permitam um rápido

reconhecimento. Assim, denomino variantes as variedades de uma única língua usadas em diferentes

países. No interior de cada variante registam-se variedades chamadas dialectos, com estatuto de

igualdade do ponto de vista linguístico. Os dialectos podem corresponder a diferentes regiões ou a

diversos registos, próprios de distintos grupos sócio-culturais e sócio-económicos. A escolha de um

dialecto para ser utilizado nos meios de comunicação (e geralmente no ensino a nacionais e a

estrangeiros), e a sua denominação como norma-padrão baseia-se, como é evidente, em razões

exclusivamente sócio-culturais e políticas. No caso de Portugal, a norma-padrão é o dialecto que se

fala em Lisboa e Coimbra, no Brasil aceita-se como norma-padrão a fala do Rio e S. Paulo.

O interesse que se atribui à unidade da língua portuguesa convida à reflexão sobre alguns

aspectos que, por serem comuns às diferentes variantes e aos dialectos que as integram, caracterizam a

língua como um todo. Embora admita à partida a complexa inter-relação dos campos fonético e

fonológico, morfológico, sintáctico, semântico e pragmático, é possível encará-los como objectos de

análise, quer separadamente quer em sub-conjuntos.

O acesso imediato a uma língua faz-se pelo seu nível fonético. O funcionamento do sistema

fonético de uma língua implica a existência de certo número de elementos, os sons, sujeitos à actuação

de determinadas regras. Os dialectos de todas as variantes do português apresentam, neste domínio,

duas características fundamentais que os diferenciam, em conjunto, dos dialectos espanhóis, os que

lhes estão mais próximos de entre os dialectos românicos:

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- supressão do /l/ e do /n/ latinos intervocálicos em português e sua manutenção em espanhol

(exemplificada em formas como só / solo, mau / malo, cor / color, pomba / paloma, quente / caliente,

boa / buena, areia / arena, mosteiro / monasterio, mão / mano);

- manutenção das vogais breves latinas sem a ditongação que sofreram em espanhol (sete, medo,

porta, sorte, diferindo-se de siete, miedo, puerta, suerte).

A par destes aspectos detectam-se outros menos evidentes mas igualmente determinantes da

especificidade da língua. E refiro a ocorrência de consoantes palatais em todas as posições da palavra

(confronte-se por exemplo chuva, chamar, chave, achar, com lluvia, llamar, llave, hallar, ou pense-se

na regular pronúncia do /s/ final de sílaba como [ ʃ ] nos dialectos portugueses e na maioria dos

brasileiros: pesca, pás); refiro ainda a existência de inúmeros ditongos crescentes, resultantes em

grande parte da supressão do /l/ e do /n/, ditongos que podem ser nasais (como os de mão, bem, mãe,

põe) ou orais (como os de pai, leite, pau, papeis, teu, véu, oito).

No campo da flexão morfológica o português também apresenta especificidades relativamente

às línguas românicas que lhe estão próximas. Vale lembrar a construção dos tempos compostos (cujo

auxiliar haver foi há muito substituído por ter, em contraste como o espanhol e o francês, por

exemplo: confronte-se tens comido com has comido ou tu as mangé) e ainda a original introdução do

pronome clítico entre as partes constitutivas do futuro e do condicional (mesóclise), particularidade

esta que evidencia a consciência que os falantes possuem da formação destes dois tempos verbais. A

possibilidade de dizer escrever-te-ia, lembrar-me-ei é ainda hoje apontada como curiosa característica

da língua portuguesa (que praticamente já se perdeu no Brasil).

Os domínios morfológico e sintáctico estão intimamente relacionados, e frequentes são os

aspectos que tradicionalmente se consideram morfológicos mas cuja análise não dispensa um estudo

ao nível da sintaxe. Estão neste caso duas das mais importantes particularidades do sistema verbal do

português: o infinitivo flexionado e o futuro do conjuntivo. Relativamente ao infinitivo flexionado,

lembro que, em todas as variantes do português, é frequente uma frase como “É preciso vires amanhã

(cá a casa)” que contrasta com “É preciso que venhas amanhã (cá a casa)”, sendo esta última, com

oração integrante, a única possibilidade existente nas outras línguas românicas se pretendermos

explicitar a pessoa verbal (p. ex. “Il faut que tu viennes demain...” ou “Es necessario que vengas

mañana...”)

No que respeita ao futuro do conjuntivo, ele permite um contraste de significado com o presente

do indicativo (veja-se: “Enquanto puderes, estuda a lição” e “Enquanto podes, estuda a lição”), ao

passo que nas demais línguas românicas, em que não existe o futuro do conjuntivo, tal oposição não se

estabelece a partir dos tempos verbais.

Se nos detivermos mais um pouco na utilização das formas verbais, não podemos deixar de

referir os valores sintácticos e semânticos do emprego do pretérito perfeito composto, valores

aspectuais e temporais que têm um papel importante na intercomunicação. O uso exclusivo, em

português, do pretérito perfeito simples quando se remete para um processo localizado e concluído no

passado (“A Maria tem estudado a lição”) permite utilizar o pretérito perfeito composto com valores

diversos, entre os quais são de salientar a repetição iterativa (“A Maria tem estudado a lição todos os

dias”) e a continuidade que, do passado, vem ao presente (“A Maria tem estado a estudar a lição”). O

facto de línguas românicas como o francês usarem quase exclusivamente o pretérito perfeito composto

(“Marie a étudié la leçon”) retira a este último tempo verbal a possibilidade de ser usado com os

diferentes valores que apontei para o português.

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Mas a análise de uma língua não se esgota nos domínios acima indicados. Em situação de

comunicação intervêm factores pragmáticos que determinam a produção linguística dos interlocutores.

Como qualquer outra língua, o português apresenta características específicas que pertencem à

competência comunicativa dos seus falantes. De entre essas características ressalta a utilização, na

resposta a pedidos de informação, do verbo contido na pergunta: “Comeste a fruta?” “Comi.”.

As particularidades referidas fazem parte de todas as variantes do português. No entanto, entre

as variedades da língua faladas nos países em que é língua nacional – Portugal e Brasil – existem

óbvias diferenças. Se distingui o português e o espanhol com alguns factos fonéticos, que dizer dos

aspectos, também fonéticos, que diferenciam o português europeu e o brasileiro? E enuncio, de

imediato, os mais evidentes: em Portugal, a redução das vogais átonas e a existência de uma vogal [ ɨ

] com as características de um shwa, vogal que frequentemente é suprimida – redução que não se deu

no Brasil (p.ex. p[ɐ]rtir vs. p[a]rtir, t[u]mar vs. t[o]mar, s[ɨ]p[ɐ]rar ou sp[ɐ]rar vs. s[e]p[a]rar); na

maioria dos dialectos do Brasil, a palatalização do /t/ e do /d/ nos característicos [tʃ] e [dʒ] (p. ex.

[tʃ]ia, bate, ba[tʃ]i, dia, [dʒ]ia, pode, po[dʒ]i) e a vocalização do /l/ final de sílaba (Brasi[w] e não

Brasil). E, ainda, o ritmo silábico do português brasileiro, a partir da audibilidade das vogais, que se

opõe ao ritmo acentual do português europeu. Serão estas e outras diferenças suficientes para se

considerar que a língua se cindiu em duas? E que dizer do português falado, por exemplo, em Angola

ou Moçambique, em que o léxico importado de línguas nacionais torna por vezes difícil a inter-

comunicação com portugueses e brasileiros?

Se analisarmos agora a variação dialectal no interior do português europeu, como devemos

interpretar as diferenças fonéticas que aí se verificam, por exemplo, em especificidades dos dialectos

dos Açores? As vogais palatais [ü] e [ö] de [ü]va, p[ö]co, próprias do dialecto de S. Miguel, não

constam sequer do sistema vocálico da norma-padrão do português. O fenómeno da harmonização

vocálica que se detecta no dialecto da Ilha Terceira, que leva à realização de ditongos crescentes em

sílaba tónica e à modificação do timbre de vogais (c[ɨdjá]de em vez de cidade, bon[úi]to em lugar de

bonito), não existe na norma portuguesa. Serão estas e outras características suficientes para se

distinguirem duas línguas? Certamente não. Mas serão essas diferenças maiores ou menores, do ponto

de vista linguístico, do que as que apóntamos e que distinguem o português do espanhol? Eis uma

pergunta cuja resposta ultrapassa o âmbito meramente linguístico.

Argumentos externos

Se é quase impossível, muitas vezes, especificar quais as diferenças linguísticas que determinam

a separação de duas línguas, o argumento da incompreensão mútua entre falantes é critério pobre e

ultrapassado. Na realidade, falantes de diferentes dialectos da mesma língua podem encontrar

dificuldade no entendimento recíproco (lembre-se, p. ex., o que sucede a portugueses do continente em

face de alguns dialectos açoreanos), e falantes de línguas consagradamente distintas podem

mutuamente compreender-se utilizando as suas próprias formas de falar (e assim sucede por vezes

entre portugueses e espanhóis). E diferenças no léxico, na sintaxe, na pronúncia, todas elas ocorrem

entre variedades da mesma língua (cite-se a propósito a distância existente entre certos dialectos

italianos).

No tempo em que o mundo estava dividido em quartos separados, no tempo das demoradas

comunicações a pé, a cavalo ou de barco, no tempo em que a música voava nas asas dos cantadores

que se deslocavam com os seus instrumentos, as línguas que a humanidade hoje fala foram-se

formando lentamente, em isolamento, em contatos resultantes das migrações ou por expansão imperial

de uma colonização sem regresso. Foram muitos milhares de anos grávidos de línguas diferentes. A

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todas se pode aplicar a definição de Serafim da Silva Neto. Elas são “o resultado de complexa

evolução histórica, e se caracterizam, no tempo e no espaço, por um feixe de tendências que se vão

diversamente efectuando aqui e além. O acúmulo e a integral realização delas dependem de condições

sociológicas, pois, como é sabido, a estrutura da sociedade é que determina a rapidez ou a lentidão das

mudanças”.

Nos tempos recentes, as formas de falar de determinadas comunidades a que foi reconhecido o

estatuto de línguas independentes não são já, como se chamou ao latim, “companheiras do império”

mas “camaradas da revolução”, e não nasceram da cisão no corpo disperso de uma comunidade

linguística mas já existiam há várias gerações, em paralela afirmação de diferença. Neste caso se

incluem sobretudo os crioulos, dos quais se pode citar como exemplo o crioulo cabo-verdiano hoje

considerado e denominado língua cabo-verdiana.

Mas, tendo chegado o fim dos impérios políticos, algumas línguas se mantêm ainda dispersas

por diferentes países e por vários continentes. No presente e no futuro próximo, o que as manterá sob o

mesmo nome? A enunciação que fiz de particularidades que individualizam o português não é

certamente suficiente – diria mesmo, não justificaria – a valorização que importa dar à sua unidade

interna. A actividade linguística, como forma preferencial do comportamento humano, não é um

sistema fechado sobre si, analisável apenas em termos dos elementos que o constituem e das regras

que sobre eles se aplicam e impulsionam o seu funcionamento.

A linguagem verbal – concretizada para cada um de nós na língua que falamos – identifica-nos e

estabelece a nossa relação com o mundo, é veículo, ligação e factor de construção da sociedade e da

cultura em que estamos inseridos. Os homens reconhecem-se naqueles que falam a mesma língua, e a

língua permite-lhes reconhecerem-se na sua individualidade e no seu ser social.

Mas esse reconhecimento não é obrigatoriamente decorrente do uso de uma língua que se herda,

em processo evolutivo que se perde na memória dos falantes. Um acto de vontade política pode

igualmente determinar a distribuição, por toda uma sociedade, desse bem comum. Tal sucedeu com o

português, antes instrumento de sujeição, hoje é tomado por novas nações como meio de afirmação e

de contacto com o exterior. A vontade política tem portanto interferência na manutenção e difusão de

uma língua.

Num mundo de eficientes e rápidas comunicações, em que a tecnologia da informação põe em

ligação imediata os dois pontos mais distantes da terra – e esta é uma revolução de igual importância à

da invenção da escrita ou da imprensa –, um único nome para a foram de falar de vários países, que o

aceitam e nele se reconhecem, estará cada vez mais assegurado pela presença constante dos meios de

comunicação e pela expansão da escolarização. A manutenção da mesma língua é uma vontade

explícita e uma convicção assumida.

Na realidade, a convivência entre variedades de língua com diferentes realizações fonéticas,

sintácticas ou lexicais é possível, desejável e enriquecedora. Ela não obriga a considerar, por esta ou

aquela razão, que a partir de determinado momento duas variedades de uma mesma língua passam a

ser línguas diferentes. Por isso se deve recusar, como não fundamentada e pseudo-científica, a

declaração de uma nova língua, a brasileira, no espaço linguístico português.

Mas se tal declaração surge esporadicamente e, mesmo no Brasil onde já tem sido defendida, é

de imediato afastada por artificial e desnecessária, muito mais frequente é a atribuição de

superioridade a uma das variedades do português – quase sempre a portuguesa. Os argumentos que a

apoiam situam-se em dois planos: o propriamente linguístico e o sócio-cultural. Vejamos:

O modelo do passado é frequentemente invocado para uma valorização linguística. Ora a língua

que os portugueses difundiram com a colonização tinha um sistema de vogais átonas claramente

menos reduzido do que a norma actual do português europeu, portanto mais próximo da norma

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brasileira. Este é um dos exemplos que se poderiam apresentar de uma maior evolução na variedade

falada em Portugal.

Mas não podemos com isto supor que a pronúncia brasileira tenha ficado suspensa no tempo.

Exemplos claros de evolução são a vocalização do /l/ final de sílaba e a platalização de [t] e [d], de que

atrás falei. E as referências podiam multiplicar-se, provando que conservação e mudança caracterizam,

diferenciando, ambas as variedades.

O mesmo argumento de conservação de características linguísticas é invocado em relação a

outros aspectos da língua – morfológicos, sintácticos, lexicais – como apoio de julgamentos de valor.

Mas também aqui os processos são complexos.

A utilização dos pronomes pessoais serve de exemplificação. No desaparecimento dos casos

latinos que distinguiam funções como as de sujeito (nominativo), objeto directo (acusativo) ou

indirecto (dativo) – e que tiveram como consequência a redução das palavras a uma só forma

independentemente da sua função – verifica-se em português uma excepção: os pronomes pessoais. O

eu, sujeito, corresponde ao me, objecto indirecto, o ele e o ela, sujeitos, dão lugar a o e a quando

objetos directos e a lhe quando indirectos. Portanto, frases como “Eu vi ele na rua”, que ocorrem em

certas variedades do português, são consideradas inaceitáveis por utilizarem o pronome sujeito com

função de objecto directo (acusativo), o mesmo acontecendo a “Eu vi-lhe na rua”, em que o dativo está

com função acusativa. E no entanto estas frases revelam somente a progressiva aplicação de uma regra

geral que actuou na formação das línguas românicas: o desaparecimento da diferença casual.

É no ambiente da chamada ‘língua culta’ e através da escolarização que o falante aprende que,

nessa e noutras circunstâncias, a regra geral é preterida em favor de uma regra de excepção – como as

que regulam ou fixam, nos verbos irregulares, as formas fiz (em lugar do regular *fazi) ou trouxe (em

lugar de *truxe, paralela de pude).

Estas são histórias secretas das palavras, regras que foram desactivadas, explicações que dizem

sem explicar, interacções, mistérios. E contudo, essas mesmas formas excepcionais que a escola nos

ensina vão sofrendo alterações, modificações, novas regras surgem e começam a ser aplicadas, outras

caem em desuso. Não pode considerar-se portanto que determinado momento da deriva de uma língua

seja superior a outro do ponto de vista linguístico.

O outro tipo de argumentos apresentados para valorizar certas(s) variedade(s) fundamenta-se em

factores que só longinquamente se relacionam com a natureza da língua: o número de falantes (já

invocado para defender a superioridade do português do Brasil), a importância histórica (com que por

vezes se sobrevaloriza o português europeu), o estatuto adquirido em contextos multilíngues

institucionalizados. Ainda que tais argumentos pudessem justificar a superioridade de uma variedade

(o que não parece aceitável), a sua natureza sócio-política confirma o que acima disse: do ponto de

vista linguístico não há hierarquia entre as variedades de uma língua, não há normas mais ou menos

correctas. A afirmação radica em critérios de carácter social.

O mesmo se pode dizer da relação entre dialectos. O desprestígio que marca certas pronúncias

tem como causa a consagração de um dialecto como norma da língua culta, dialecto que corresponde,

normalmente, ao que se fala na região em que estão sediados os órgãos do poder político.

Mais frequente do que o desprestígio de uma pronúncia regional é o que atinge certas formas de

falar – sociolectos – utilizadas por grupos sociais desfavorecidos ou marginalizados socialmente. Foi

durante longo tempo convicção indiscutível que determinados sociolectos eram linguisticamente mais

pobres e insuficientes para servir a expressão e comunicação de conceitos abstractos e sentimentos

elaborados. Os trabalhos realizados por sociolinguistas vieram provar que não há insuficiências

decorrentes das características linguísticas dos socioletos que impeçam a explicitação verbal de

conceitos científicos ou filosóficos. A questão centra-se nas necessidades e nos interesses sócio-

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culturais, que exigem da língua usada determinada especialização. É neste ponto que ocorre realçar o

papel da escola, onde se pratica o desenvolvimento de um ‘código elaborado’ (para citar Bernstein) em

todos os níveis linguísticos, pela estimulação da explicitação verbal perante as novas exigências do

conhecimento. Daqui decorre a importância da escolarização como factor que proporciona as

condições básicas de acesso de todos os membros da sociedade às estruturas do poder.

A unidade da língua – uma opção política

Depois de consideradas identidades e diferenças entre as variedades do português, retorno o

tema geral da unidade e diversidade da língua para afirmar que a manutenção de um conjunto de

variedades linguísticas no enquadramento do que se denomina uma língua é, em última análise, uma

opção política e como tal deve ser analisada e avaliada. Resta saber a quem interessa essa opção e, ser

for caso disso, como fazer para encorajar. Ou seja, é necessário discutir a língua como opção política e

opção de uma política da língua.

O mundo actual não é só caracterizado pela intercomunicação no campo dos meios de

transmissão da informação. Essa intercomunicação insere-se num ambiente geral de trocas nos

domínios e subdomínios da economia, pela migração de profissionais que se deslocam no interior de

grandes espaços plurinacionais e, consequentemente, plurilíngues. Essas trocas que orientam muitas

das grandes opções políticas tomadas sobretudo pelos países tecnológica e industrialmente fortes, são

em si mesmas potencialmente enriquecedoras.

No entanto, para que neste contexto se não perca a identidade das sociedades e comunidades de

menor força no campo económico, é necessário reflectir sobre os parâmetros que definem essa

identidade cultural, estabelecer prioridades e delinear estratégias.

É minha convicção que a língua constitui um dos mais importantes parâmetros na manutenção

dessa identidade. A sua conservação em ambientes plurilíngues, em que se jogam destinos de grandes

espaços sócio-economómicos e sócio-políticos (como a União Europeia e a ONU), tem apresentado

dificuldades de toda a ordem, desde a impreparação das estruturas de ensino à falta de instrumentos e

material adequado, passando pela pouca convicção com que esta vertente cultural é defendida quer

pelos políticos quer, ainda, pelos intelectuais. Mais: o ensino e a difusão da língua em espaços em que

ela funciona como língua estrangeira ou como língua segunda raramente (para não dizer nunca) são

precedidos de um estudo objectivo das condições em que se vão desenvolver, do seu interesse, dos

objetivos, do contexto linguístico em que se integrarão, do peso cultural e económico que virão a

adquirir. Julgo que sem um conhecimento desses factores não se poderá falar em conservação de

identidade cultural.

Numa época em que alguns sectores da intelligentzia mundial deixaram de olhar as relações

económicas como o único, ou pelo menos o mais importante motor da história, numa época em que o

estudo das mentalidades voltou a constituir uma forma preferencial de iluminar o percurso do homem,

recrudesceu naturalmente a importância das culturas particulares. A tomada de consciência da

identidade pessoal – do indivíduo e das sociedades – passa sem dúvida pelo conhecimento dos traços

do universal e do peculiar, pelas memórias da igualdade e da diferença. E o conhecimento de uma

língua como o português, de larga difusão geográfica e de longa tradição histórica, é fonte de

enriquecimento cultural.

Toda a cultura é uma confluência de culturas, em que os rastos deixados pela história se

encontram sedimentados em camadas mais ou menos superficiais. E a língua é, sem dúvida, um

magnífico repositório dessas memórias.