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Editorial Num país em que, como afirma M. Paulo Nunes, as revistas culturais morrem do mal do terceiro número, temos bons motivos para co- memorar a 46ª edição da revista Presença, que estamos entregando ao público leitor. E que não se comemore apenas a longevidade da publica- ção, mas também a fidelidade à linha editorial que adotou: a defesa da cultura piauiense, o compro- misso com a verdade e a pluralidade de ideias. Neste número, a grande homenageada é Teresina que, no seu 159º aniversário, é cantada em prosa e verso pelo romancista e historiador Afonso Ligório e pelo poeta e músico Raimundo de Moura Rego, cujo centenário de nascimento se comemora este ano. Em textos de caráter memorialista Ligório (“Teresina de ontem e de hoje”) e Moura Rego (“Teresina do meu tempo”) nos remetem a uma cidade provinciana, simples e pacata, com ar de vila grande. Uma cidade que só se conserva no plano da memória. A revista visita e homenageia o bairro Vermelha, um dos polos culturais mais expressivos de Teresina, com artigos de Fonseca Neto, Francisca Maria Soares Mendes e Roberson Gramosa. De Parnaíba, que também aniversaria em agosto, o poeta e historiador Alcenor Candeira Fi- lho nos instiga a localizar a famosa Casa Grande da Parnaíba, com sua história recheada de glórias e lendas. Na seção Vultos Históricos, o escritor M. Paulo Nunes traça um perfil, breve, bastante rico, de Petrônio Portella, um dos grandes vultos da política nacional. Contempla-nos também com uma crônica sobre Mário Vargas Llosa, o mais novo ganhador do Nobel de Literatura, e outra sobre o historiador Alexandre Herculano, lembrando o bicentenário de seu nascimento. Na área específica da criação literária, a revista traz um conto “O Esfolado”, de Pedro S. Ribeiro. Na seção destinada à história, publica-se, neste número, o artigo “A guerra sertaneja do Contestado”, um resumo da bela conferência proferida pelo historiador catarinense Enéas Athanázio, na sede do Conselho Estadual de Cultura, no dia 19 de maio. Na seara das artes plásticas, uma oportuna homenagem ao pintor Afrânio Pessoa Castelo Branco que, “com sua pintura densa, espessa e atormentada” (Maciej Babinski), enriquece, honra e dignifica a cultura piauiense. Especial destaque deverá merecer dos leitores da revista o Plano Estadual de Cultura, o 5º já elaborado pelo Conselho de Cultura, em sua nova gestão, pela oferta de sugestões e propostas visando à construção, pelo Governo do Estado, de uma política orgânica e efetiva de Cultura para o Piauí. Fecha-se a revista, belamente ilustrada por Genivaldo Costa, com o instigante cartum de Jota A, o mais premiado dos cartunistas brasileiros. Como se pode constatar, Presença é uma revista plural, na acepção plena do termo. Conselho Estadual de Cultura do Piauí

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Page 1: Miolo-Revista Presença nº 46 4 cs4 2 · 2020. 4. 27. · Lins, Gilberto Freyre e tantos outros. O número, mais uma vez, é de invejar congêneres, com ... Inclusão Social

EditorialNum país em que, como afi rma M. Paulo

Nunes, as revistas culturais morrem do mal do terceiro número, temos bons motivos para co-memorar a 46ª edição da revista Presença, que estamos entregando ao público leitor. E que não se comemore apenas a longevidade da publica-ção, mas também a fi delidade à linha editorial que adotou: a defesa da cultura piauiense, o compro-misso com a verdade e a pluralidade de ideias.

Neste número, a grande homenageada é Teresina que, no seu 159º aniversário, é cantada em prosa e verso pelo romancista e historiador Afonso Ligório e pelo poeta e músico Raimundo de Moura Rego, cujo centenário de nascimento se comemora este ano. Em textos de caráter memorialista Ligório (“Teresina de ontem e de hoje”) e Moura Rego (“Teresina do meu tempo”) nos remetem a uma cidade provinciana, simples e pacata, com ar de vila grande. Uma cidade que só se conserva no plano da memória. A revista visita e homenageia o bairro Vermelha, um dos polos culturais mais expressivos de Teresina, com artigos de Fonseca Neto, Francisca Maria Soares Mendes e Roberson Gramosa.

De Parnaíba, que também aniversaria em agosto, o poeta e historiador Alcenor Candeira Fi-lho nos instiga a localizar a famosa Casa Grande da Parnaíba, com sua história recheada de glórias e lendas. Na seção Vultos Históricos, o escritor M. Paulo Nunes traça um perfi l, breve, bastante rico, de Petrônio Portella, um dos grandes vultos

da política nacional. Contempla-nos também com uma crônica sobre Mário Vargas Llosa, o mais novo ganhador do Nobel de Literatura, e outra sobre o historiador Alexandre Herculano, lembrando o bicentenário de seu nascimento. Na área específi ca da criação literária, a revista traz um conto “O Esfolado”, de Pedro S. Ribeiro.

Na seção destinada à história, publica-se, neste número, o artigo “A guerra sertaneja do Contestado”, um resumo da bela conferência proferida pelo historiador catarinense Enéas Athanázio, na sede do Conselho Estadual de Cultura, no dia 19 de maio. Na seara das artes plásticas, uma oportuna homenagem ao pintor Afrânio Pessoa Castelo Branco que, “com sua pintura densa, espessa e atormentada” (Maciej Babinski), enriquece, honra e dignifi ca a cultura piauiense.

Especial destaque deverá merecer dos leitores da revista o Plano Estadual de Cultura, o 5º já elaborado pelo Conselho de Cultura, em sua nova gestão, pela oferta de sugestões e propostas visando à construção, pelo Governo do Estado, de uma política orgânica e efetiva de Cultura para o Piauí.

Fecha-se a revista, belamente ilustrada por Genivaldo Costa, com o instigante cartum de Jota A, o mais premiado dos cartunistas brasileiros. Como se pode constatar, Presença é uma revista plural, na acepção plena do termo.

Conselho Estadual de Cultura do Piauí

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Meus parabéns por mais um número de Presença , este dedicado a Joaquim Nabuco. Está excelente. Uma publicação que agrada aos olhos e à inteligência. Sinto-me honrado por estar em suas páginas. Agradecendo-lhes pela remessa, desejo sucesso e longa vida à revista, seu editor e articulistas.

Enéas AthanázioEscritor, Balneário Camburiú-SC

Cumprimentando-o cordial-mente, acuso e agradeço o rece-bimento da revista Presença nº 44, órgão desse Conselho Estadual de Cultura, agradecendo a gentileza da lembrança.

Terezinha Alves de OlivaSuperintendente do IPHAN, Aracaju-SE

Recebi, com muito orgulho e proveito, a digna Presença, órgão da mais alta cultura e erudição do Conselho Estadual de Cultura, tão bem dirigida. Em tempos passados, fui agraciado, também, com exemplar desta gloriosa revista que prima por tudo: papel, impressão, literatura em prosa e verso e cultura.Muitíssimo obrigado, desejando recebê-la sempre.

Nonato SilvaEscritor, Brasília-DF

Com satisfação, acabo de re-ceber o último número da conceituada revista Presença, na qual é lembrado o centenário do desaparecimento do extra-ordinário Joaquim Nabuco, sendo a mesma editada pelo Conselho Estadual de Cultura desse Estado. Conforme já demonstrei mais de uma vez, sou um grande admirador da referida revista, não apenas pela sua editoração, mas também pela natureza das matérias abordadas, sempre de conteúdo literário altamente elevado e signifi cativo.

Olemar CastroEscritor, São Paulo-SP

Li todos os textos da revista Presença, Ano XXV, nº 45. Como bem se sabe, sou um leitor cativo desta bela publicação, nesse número dedicado ao autor

de Minha Formação, o grande Joaquim Nabuco, da terra de grandes intelectuais como Álvaro Lins, Gilberto Freyre e tantos outros. O número, mais uma vez, é de invejar congêneres, com destaques para o ensaio “Joaquim Nabuco e O Pioneirismo da Inclusão Social”, de Dagoberto Carvalho Jr.; e mais a resenha dele sobre o livro de Enéas Athanázio; o artigo breve e denso de Moacir C. Lopes, romancista de peso e pessoa agradável que tive o prazer de conhecer aqui no Rio, no Sindicato dos Escritores, o profundo ensaio de Bruno Tolentino sobre a poesia de Álvaro Pacheco, que tão cedo faleceu. Grande ensaísta! O sempre esperado ensaio do Celso Barros Coelho, estudo de um dos mais respeitados pensadores piauienses; a crônica suave e grandiosa de Alberto da Costa e Si lva reunindo semelhanças e coincidências histórico-arquitetônicas da Amarante portuguesa e da Amarante piauiense; o artigo de base científi ca de Lauro Correia contra possíveis devastadores de Amarante; o pequeno e sempre pontuado texto recordando-nos um autor querido e reverenciado como Albert Camus; o bem documentado texto de Diego Iglesias a respeito da Casa da Cultura, que já visitei aí em Teresina; o belo e emocionante artigo “Os Desencantos de Jovita”, de Enéas Athanázio, heroína brasileira de Jaicós; o discurso de Diva Maria Freire Figueiredo, lição de uma arquiteta que tem grande preocupação cultural com o patrimônio piauiense e brasileiro; o discurso de paraninfo proferido por Marília Martins Soares de Andrade, professora de Direito, e last but not least, a página última, de Jota A, a qual, incansavelmente, simboliza, num jogo da velha, a vitória da destruição de nossas matas. Pode até ser a vitória temporária, mas não a vitória derradeira que é o contrário daquela e é um resto implacável contra os inimigos das nossas florestas. Com cumprimentos respeitosos,

Cunha e Silva FilhoEscritor, Rio de Janeiro-RJ

CARTAS

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DESTAQUE NA IMPRENSA

Conselho interage com a comunidadeO Conselho Estadual de Cultura está cada dia mais perto da comunidade. Através de atividades

realizadas dentro e fora da sede, se descobre um mundo de oportunidades.Recentemente aconteceu no espaço uma ofi cina de vestuário com a professora de moda Joana

Lima. Durante as aulas foi desenvolvido o processo de customização de camisetas brancas, sendo utilizadas técnicas para construção de design de superfícies, com inspiração no Bumba-meu-boi, tendo como objeto de estudo a Sala “Fazendas do Piauí”, exposta no Museu do Piauí - Casa de Odilon Nunes.

A ofi cina foi ministrada para um grupo de alunos da Unidade Escolar Gabriel Ferreira, que fi ca localizada no bairro Vermelha. Para desenvolver as camisetas, eles visitaram o museu, onde puderam ver de perto a sala que faz referência ao Boi do Piauí. Ela aconteceu no dia 18 de maio, durante a Semana dos Museus. A partir dessa constatação in loco foi possível desenvolver a ofi cina. (L.P.)

Publicado originariamente no Jornal Meio Norte, Teresina, 07/06/2011.

Escritor visita Conselho Estadual de CulturaCiceroneado pelo professor Manoel Paulo Nunes, presidente do Conselho Estadual de Cultura

do Piauí, o professor e escritor piauiense Cunha e Silva Filho, radicado no Rio de Janeiro, visitou a sede da entidade, ontem.

O escritor, antigo parceiro de Paulo Nunes, esteve acompanhado do fi lho, Cunha e Silva Neto, que também é professor de Direito numa universidade particular no Estado do Paraná.

Paulo Nunes mostrou as novas instalações do CEC, que passou a ter, além das atividades de caráter normativo e consultivo da política cultural piauiense, atividades mais direcionadas à comunidade, desde a inauguração, no ano passado, do CCV – Centro Cultural da Vermelha, que funciona no mesmo local e conta com biblioteca, auditório, entre outros espaços. Ele falou da nova dimensão que a entidade está dando às suas atividades. “Vejo de maneira jubilosa, de forma alegre este Centro, essa nova dimensão do CEC, de abrir-se para a comunidade”, comemorou o piauiense Cunha e Silva.

Para Cunha e Silva, que veio a Teresina participar do lançamento, na Academia Piauiense de Letras, do seu mais recente livro As Ideias no Tempo, a proposta de informatização da biblioteca foi o que mais lhe chamou atenção.

“Vai dar ao CEC a possibilidade de entrar em contato com o mundo e aos jovens a possibilidade de se ligar ao conhecimento. Uma biblioteca aberta à comunidade”, disse Cunha e Silva, acrescentando ainda que fi cou encantado com o amplo pátio o que, segundo ele, é um “espaço aberto para a realização de eventos à luz do luar”.

Cunha e Silva disse que atualmente está se dedicando à tradução de poesias de idiomas como inglês, francês e espanhol. Ele disse que já concluiu alguns ensaios e críticas literárias. O escritor destaca ainda as pesquisas universitárias que está realizando contemplando o tema da literatura ligada a questões como a marginalidade, pobreza e conteúdos afi ns.

Cunha e Silva publicou na internet o artigo “Presença: Uma Publicação Grandiosa”. Ele diz que é leitor assíduo da revista e comenta pormenorizadamente o número 43 da publicação.

Na visita ao CEC, ele disse que a Presença tem características de independência na publicação de matérias e que os textos publicados são um estímulo à leitura e a afi rmação da cultura piauiense na sua forma de artes plásticas, fi losofi a, poesia etc. “Paulo Nunes soube combinar o regional/cultural com o nacional/universal: na generalidade, a contribuição dos brasileiros e piauienses”, concluiu.

Publicado originariamente no Jornal Meio Norte, Teresina, 08/02/2011.

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Capa da edição anteriorrevista PRESENÇA Nº 45

Órgão do Conselho Estadual de Cultura e da Fundação Cultural do PiauíRua 13 de Maio, 1513 – VermelhaCEP: 64.018-825 Fone: (86) 3221-7083 Fax: (86) 3223-5577ANO XXVI, Nº 46 – Teresina, Agosto/2011E-mail: [email protected]

Governador do Estado Wilson Nunes Martins

Secretário de Educação e Cultura Átila Freitas Lira

Presidente do Conselho Estadual de Cultura Manoel Paulo Nunes

Presidente da Fundação Cultural do Piauí Marlenildes Lima da Silva

Conselho Editorial Cineas SantosFrancisca Maria Soares MendesManoel Paulo Nunes

Secretária Ana Maria dos Santos

Projeto gráfico e editoração eletrônicaInterativa Propaganda e Marketing Ltda.Rua Eliseu Martins, 2240 – Sala 301Ed. Espírito Santo – CentroCEP: 64.000-120 Teresina-PIFone: (86) 3223-8266 • Fax: (86) 3223-8266E-mail: interativa@interativapropaganda.com.brwww.interativapropaganda.com.br

IlustraçõesGenivaldo Costa

RevisãoCineas SantosM. Paulo NunesDoroty Amaral

CapaGenivaldo Costa

21 Patrimônio CulturalO Bairro Vermelha e a Paróquia Nossa Senhora de Lourdes

24 NostalgiaVermelha, o Planalto e a Serra

26 NotíciaBairro Vermelha Desenvolve Educação e Cultura

50 Grandes AutoresO Novo Nobel de Literatura

48 MemóriaAlexandre Herculano

52 HistóriaA Guerra Sertaneja do Contestado

07 EspecialTeresina de Ontem e de Hoje

18 EspecialTeresina do Meu Tempo

38 ContoO Esfolado

34 Vultos PiauiensesPetrônio Portella

58 CartumJota A

28 Patrimônio HistóricoOnde Fica a Casa Grande da Parnaíba?

54 Artes PlásticasAs Formas e as Cores em Afrânio

41 CulturaPlano Estadual de Cultura

S U M Á R I ORevista PRESENÇA

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Teresina de Ontem e de Hoje

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Parece que foi ontem! – esta exclamação, gasta, banal, é a única maneira de aferir o tempo- saudade que me separa do passado feliz vivido em Teresina.

É assim que recordo a época de menino, “pés descalços, braços nus…” como identifi cou a sua meninice Casimiro de Abreu. Até meados da adolescência, aqui vivi meus primeiros sonhos e tornei realidade meus primeiros projetos e desejos.

Guardo as imagens daquele passado distan-te, e inversamente cada dia mais vivas, quando minha mãe informou solene, a mim e meus irmãos, que iríamos deixar o Piauí e morar em Pernam-buco. Na semana seguinte viajamos para o Recife, onde meu pai já havia alugado uma casa na praia da Boa Viagem. E tudo mudou para mim.

De repente, como num corte de cinema, eu estava defronte ao mar, que não conhecia. Ou ob-servando da ponte da Boa Vista o rio Capibaribe, com o pensamento no Parnaíba.

O tempo me ensinou a gostar do Recife sem esquecer Teresina. Lá continuei meus estudos, defi ni-me profi ssionalmente, casei-me e tive fi lhos. Teresina e as velhas amizades permaneceram na lembrança como tatuagem na memória. Sempre que tenho oportunidade venho à minha terra, movido pela saudade e pela obrigação de fi lho.

A Teresina de ontem, do meu tempo de menino, pouco lembra o seu presente dinâmico.

Era uma cidade “amorável”, como bem defi niu Paulo Nunes. “… com menos de cem mil

Afonso Ligório Pires de Carvalho*

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ESPECIAL

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habitantes, onde todos se conheciam e um grupo de plumitivos que se intitulava Arcadia, cultivava as belas letras e as boas maneiras.” Desse grupo participavam Paulo Nunes, Hindemburgo Dobal, O.G. Rego de Carvalho, Ribamar Oliveira, eu, Heli Santos Piauilino, Eustáquio Portela, Vitor Gonçalves Neto, Camillo Filho, Edmar Santana, Celso Barros Coelho, José Maria Ribeiro e outros.

A área urbanizada de Teresina limitava-se a poucas ruas calçadas. Começava no rio Parnaíba e se estendia à Estação Ferroviária, onde o arru-amento parava antes de chegar ao rio Poti, que parecia um rio distante, fora das paisagens das nossas memórias. Em outro sentido, o calçamento começava na Praça Saraiva, antes da Vermelha, e se prolongava até a antiga Santa Casa de Mise-ricórdia, local onde também estava o sanatório Areolino de Abreu, que o povo chamava simples-mente de asilo. Naquele espaço, conhecido como Campo de Marte, fi cava ain-da a velha cadeia. Um pouco acima do chamado Largo do Poço, hoje Praça Landri Sales, onde foi construído o Liceu. Na época, havia, também, ali, a padaria de Roldão Castelo Branco.

No Largo do Poço armavam-se os circos e parques de diversões que visitavam a cidade. Circos pequenos, na maioria, às vezes sem lona de cobertu-ra, como o Circo V8. Esse, deveras pobre, com ape-nas um palhaço, o próprio dono, apelidado V8, que, à falta de artistas, preenchia quase toda a primeira parte dos espetáculos, trocando cenas com mala-baristas, que pareciam, quase todos, aprendizes, sem segurança no que faziam. A segunda parte era reservada à representação de peças teatrais num palco improvisado. Em geral, dramas apelativos, luta de pobres contra ricos e a vitória dos pobres, histórias banais, mas que pareciam satisfazer o gosto pouco exigente do escasso público. Lembro-me do galã, rapaz esforçado, com a dentadura superior faltando dentes, detalhe que não fazia parte das peças, nem impedia de ser aplaudido pelo desempenho esforçado. O palhaço V8, este sim, criava situações hilariantes, embora por vezes buscasse apoio em anedotas grosseiras, algumas até escatológicas. Contudo, ele e o galã desdentado salvavam o pobre circo sem lona de cobertura, cortinas rasgadas e pouca frequência. Não sei como sobrevivia.

Em compensação, igualmente visitavam a cidade circos de maior expressão e prestígio na-cional, como um de nome Circo Jardim Zoológico, com coleção de animais amestrados que trouxe, talvez, o primeiro elefante a Teresina, e outras casas ambulantes de espetáculos de qualidade, como os circos Nerino e Fekete.

O circo Fekete esteve por três vezes em Te-resina. A última, mais demorada, devido a atrasos de navios em Fortaleza, por causa da guerra, e, ainda, a morte súbita, no Piauí, do seu secretário, um moço educado, solene, que aparecia de fraque e cartola no centro do picadeiro para anunciar cada parte do espetáculo. Ele chamava a plateia de “respeitável público”, momento em que todos faziam silêncio para ouvi-lo.

O circo pertencia aos irmãos Johnny, Charly, Jimmy, Boby e Billy, que herdaram o negócio do pai, o húngaro Geovanny Fekete. O velho, nas duas

primeiras vezes, esteve em Teresina.

Jovens, cada irmão Fekete respondia por de-terminada área adminis-trativa da empresa, além de desempenharem funções nos espetáculos, seja como trapezistas ou outras acro-bacias, e ainda participar do grupo teatral. Johnny e Charly também se destaca-vam num arriscado número chamado Globo da Morte, no qual se cruzavam peri-gosamente nas evoluções de barulhentas motos em alta velocidade, canos de escape

abertos, “aloprados”, como o povo então chamava, cenas que se passavam no interior de um grande globo metálico prateado.

Como o circo dispunha de orquestra própria, Johnny algumas vezes subia ao coreto levantado na entrada principal, onde cada número do espetácu-lo era acompanhado com trilha musical própria, previamente ensaiada. Nesses momentos, potentes luzes de holofotes dirigiam-se para ele, que executa-va no pistão canções dos americanos Glenn Miller, Tommy Dorsey e Benny Goodman, popularizadas pelo cinema e pelo rádio, como Moonligth Serenade e Stardust. Época de guerra, o sucesso dos america-nos em todos os “fronts” era reproduzido nos fi lmes holywoodianos e, com eles, o suingue e os blues invadiam também todos os salões. A apresentação de Johnny arrancava suspiros das moças presentes e entusiásticos aplausos do público. Os intervalos entre um número e outro eram preenchidos pelo

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ESPECIAL

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palhaço Chimarrão, este sim, com trajes caracterís-ticos: sapatos descomunais em duas cores, calças bastante largas, suspensórios elásticos, camisas de colarinhos enormes que, vez por outra, escondiam a cabeça do palhaço de nariz sempre vermelho a provocar risos, mesmo quando calado.

Os irmãos Fekete casaram-se todos com nordestinas. Johnny mora em Minas Gerais e se casou com uma baiana chamada Normar, de quem é viúvo e com a qual teve uma fi lha de nome Cris-tina, hoje médica.

Tantos anos depois encontro Johnny em Belo Horizonte. O circo havia sido desfeito. Re-lembramos as temporadas do circo em Teresina. Ele tinha uma recordação terna da cidade do seu tempo de jovem, da qual disse, com sinceridade, gostar. Falou da bela ponte metálica sobre o rio Parnaíba. Fez questão de selecionar entre as lem-branças um antigo restaurante popular que existia na Rua Elizeu Martins, nas proximidades da Praça Rio Branco, com o nome pom-poso de Restaurante do Doutor. O elenco costumava ir ali, após os espetáculos, saborear uma leitoa assada, de aspecto dourado, com farofa também cor de ouro e azeitonas pretas, que todos apreciavam. Johnny jamais esquecera o nome do cozi-nheiro e dono do negócio, um negrinho baixote, sem-pre alegre, feliz com a pre-ferência dos artistas por sua casa, chamado Zé Pretinho.

As ruas de Teresina, como hoje, simetricamente traçadas, embora mui-tas, na minha época, ainda sem calçamento, ou asfalto, davam uma visão organizada ao perímetro urbano. Os pedestres transitavam nas largas e bem cuidadas calçadas, onde, à noite, à frente das casas, as famílias tranquilamente se reuniam, sentadas em cadeiras preguiçosas para animadas rodas de conversa, à espera da viração, agradável brisa que em certa época do ano vem do mar pela calha do Parnaíba e, à noite, alcança Teresina.

No livro Outros Tempos, editado em Brasília, eu revi de memória, numa visão sentimental, as casas de dois pavimentos na Teresina de minha meninice, proeza impossível de hoje repetir. Incluí entre essas, as casas de porão, espaço entre o chão e o soalho. Na relembrança inseri os nomes dos seus ocupantes. Como se trata de recordação de mais de sessenta anos, alguns nomes me escaparam, mas consegui compor, rua por rua, essa espécie

de geografia sentimental da cidade. Relembrei residências de alguns antigos moradores, como a da professora Firmina Sobreira, autora da música do hino do Piauí, que morava numa casa térrea contígua ao cinema Rex, cujo dono, Bartolomeu Vasconcelos, era pai do médico Gerardo Vascon-celos, nosso companheiro da APL, que já se foi. Bartolomeu morava na Avenida Antonino Freire, esquina com a Praça Pedro II. Lembro também das casas dos portugueses Antonio Pedro Fernandes, pai da romancista Alvina Gameiro, e a de Domingos José dos Santos; a casa do francês Jean Le Lonné, que morou inicialmente na Rua Elizeu Martins, mudando-se depois para a Avenida Getúlio Vargas. A do sargento Lourival Burlamaque, professor de educação física de várias gerações em Teresina, na Rua Félix Pacheco, esquina com a Praça Saraiva. Na antiga Rua Grande morava o comerciante Thomaz Tajra. Seu irmão Tufi , também comerciante, cons-

truiu um edifício na mesma rua. Continuam vivos na minha memória os locais de residência de Leônidas Mello, Pedro Freitas, Arêa Leão, Adalberto Correia Lima, da célebre professora Maria Dina, do médico João Emílio Falcão, do desembar-gador Mário José Batista, sogro do escritor Carlos Eu-gênio Porto, pessoas que se substituíram no tempo pelos seus fi lhos e netos ilustres.

O Parnaíba sempre foi o rio preferido da juventude para os fi nais de semana, so-bretudo em época de coroas.

Suas águas, sempre ligeiras, eram um permanente desafi o à juventude desportista que gostava dos banhos, embora algumas vezes fatais. Por isso, mi-nha mãe, quando saíamos para aquele rio, repetia o adágio: “Cuidado, água não tem cabelo”, maneira de nos lembrar do perigo.

O Parnaíba é um curso d’água de 1.485 qui-lômetros que se alimenta de mais de 100 outros rios menores entre o Piauí e o Maranhão. O poeta Dobal o chamava carinhosamente de “meu rio” e a ele dedicou belos poemas, um dos quais diz: “Meu rio Parnaíba feito lembrança/não corre mais entre barrancos/é um fi o na memória, um rio esgotado/ no recreio de muitas manhãs…”

Já o Poti, não obstante de águas mansas e pouca profundidade, até certo ponto era desprezado pelos jovens de Teresina do meu tempo. O poeta Dobal chamou o Poti de pobre rio, sem história e sem memória.

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Observem esse tratamento num poema de Dobal sobre o Poti:

Mais na lembrança do que na paisagem, desce no seu caminho vagaroso um rio pobre.

Lento fl uir de águas quase mortas.Rio Poti.

Rio sem lembrança, rio sem memória…

No entanto, quem diria! O Poti compõe, hoje, uma das mais belas paisagens urbanas da capital.

Teresina tinha dessas coisas que, talvez, só nesta cidade aconteciam. A Praça Rio Branco po-dia ser chamada praça de adultos, enquanto a João Luiz Ferreira, da qual estava separada apenas por dois quarteirões, era a preferida da meninada. A Praça Pedro II, à noite, se transformava em ponto de encontro dos jovens. Ali muitos namoros, nas quintas e domingos, ao som da banda de música da Polí-cia Militar, terminaram em casamento. Era uma praça desprezada durante o dia e ponto de encontro à noite.

Dentre as festas re-gionais que ocorriam na cidade, nas décadas de 40 e 50 do século passado, as mais concorridas eram as de São João. Animadas noi-tes juninas aconteciam com grande afl uência popular na Praça João Luiz Ferreira.

Esta praça, que ocu-pa um quarteirão, grupos de senhoras, senhoritas e rapazes cercavam-na no mês de junho. Cheios de entusiasmo, formavam partidos e escolhiam a área ou espaço onde se esforçavam para apresentar o melhor São João. Cada grupo exibia danças ou representações teatrais em animada disputa até o último dia dos festejos, quando era escolhido o que mais se destacara naquelas noites juninas. Cada noite uma novidade. A grande atração estava nas fantasias ou uniformes das moças participantes das barracas, onde serviam, além dos clássicos aluar e cajuína, muita cerveja e saborosos quitutes caseiros próprios da época.

Para a apresentação dos números de arte, havia animados ensaios nas casas das líderes, ocasião em que escolhiam em segredo as fantasias, em geral de bom gosto. A chamada “Hora de Arte” ou das apresentações dos grupos obedecia a um programa previamente distribuído ao público.

Os rapazes também tinham função, porém,

eram menos expostos ao público. Desempenha-vam papel de gerenciamento no interior das barracas, providenciavam o suprimento de gelo e bebidas. Executavam os serviços mais pesados.

Para as moças, as fantasias variavam: oda-liscas, aeromoças, jardineiras, havaianas e outras da moda. Havia pesca de brindes, jogo de argola e até um correio sentimental. As “carteiras”, me-diante uma taxa, levavam bilhetes ou mensagens, geralmente de amor, dos rapazes para as moças. Outras serviam as bebidas. Disputados leilões ocorriam no fi nal, além da escolha, por votação, da “Miss Festa Junina’’. O voto era adquirido mediante compra e depositado em urna junto a cada barraca. Esse pleito proporcionava a maior renda à instituição benefi cente que patrocinava cada barraca.

Por fi m, havia a disputada escolha da “Miss Festa Junina”. Embora todas as candidatas fossem

jovens graciosas, a vitoriosa era a que tivesse maior tor-cida ou padrinho rico.

Naquele tempo, qua-se todos os moradores an-davam compulsoriamente a pé. Era total a ausência de transportes coletivos. Acostumados, ninguém reclamava. Situação que perdurou até o fi nal da II Guerra Mundial. Nesse in-termédio houve tentativas de criar linhas de ônibus adquiridos pela prefeitu-ra, mas as iniciativas não davam certo. Talvez pela falta de usuários. “Planalto

Vermelha” e “Alto da Moderação” eram as linhas mais próximas do centro.

A prefeitura mantinha a cidade limpa. Lixei-ros da municipalidade varriam as ruas e caminhões próprios faziam a coleta diária do, relativamente pouco, lixo domiciliar. Com o passar do tempo, o aumento da produção e do consumo, o volume da coleta e sua destinação transformaram-se em problema, como nas demais cidades brasileiras. Não disponho de estatísticas de Teresina, mas no país (ano de 2010), 59% do lixo produzido ainda são depositados a céu aberto. Espera-se que depois de regulamentada a nova lei dos resíduos sólidos, anunciada ainda para este ano, os aterros sanitá-rios comecem a substituir os chamados lixões. O saneamento básico, à exceção de Brasília, é tam-bém problema nacional. No meu tempo de jovem, porém, havia “mata-mosquitos” fardados, que realizavam visitas periódicas de saúde pública, de

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casa em casa, providência considerada um avanço para a época.

Os automóveis de aluguel, ou carros de pra-ça, hoje táxis, eram em quantidade razoável em Teresina. No entanto, os automóveis particulares ainda se contavam, por assim dizer, nos dedos das mãos, ou um pouco mais. Contudo, uma Delegacia de Trânsito já organizava o tranquilo vai e vem de veículos, com defi nição de mão e contramão nas ruas centrais, louvável providência, mas de pouca serventia naquele momento. Havia pontos de aluguel de bicicletas para a garotada. Quanto aos carros de praça, seus condutores ou motoris-tas tornavam-se familiares na cidade, conhecidos de todos pelo nome, como Setenta e Um, Alemão, Nicanor, Feliciano, para lembrar alguns deles. À falta de taxímetros, cobravam-se por corridas, conforme a distância ou tempo de utilização do veículo, para o que não havia regulamentação oficial. Antes de funcio-nar um serviço de Pronto Socorro, os médicos, nos chamados de urgência em casa, utilizavam carros de praça, que ficavam a esperá-los, estacionados à porta do paciente até o fi nal da consulta. Tudo por conta do cliente.

Não existiam na ci-dade postos de gasolina. O abastecimento de combus-tível para os carros se fazia numa só bomba, como era chamado esse serviço. A bomba funcionava junto à antiga Casa Inglesa, no início da Praça Deodoro. Era um precário serviço manual, tocado a manivela. Não podia ainda ser chamado posto de gasolina como os atuais.

Os engraxates trabalhavam de forma orga-nizada. Os mais famosos de Teresina, dos quais recordo, Fabiano e Capilócio, eram estabelecidos em pequenos salões e corredores na Praça Rio Branco. Aos domingos, depois da missa das 9 horas na Igreja do Amparo, rezada pelo padre Chaves, os frequentadores procuravam seus en-graxates preferidos.

O alfaiate preferido da elite chamava-se Ro-que Cavalcanti. Entre os muitos barbeiros, salien-tava-se Saul, com um salão bastante concorrido.

A sociedade dominante realizava bailes periódicos, reservados aos seus associados, no Club dos Diários.

Havia três cinemas: Rex, Olimpia e Royal. O Rex de frequência maior pelo relativo conforto. Ne-

nhum dispunha de ar-condicionado, que a cidade ainda não conhecia. Posteriormente construíram o cinema São Luiz, nas proximidades do Club dos Diários, com maior capacidade de público.

O Theatro 4 de Setembro recebia periodi-camente companhias teatrais do Rio. Foi lá que eu assisti a algumas representações do grande ator Procópio Ferreira e de outros nomes nacio-nalmente famosos na época, como Luiz Iglesias, Jaime Costa, Joracy Camargo, fi guras míticas, então, do teatro brasileiro que incluíam Teresi-na no roteiro de suas temporadas pelos estados nordestinos.

Muitas vezes assisti, embevecido, a repre-sentações teatrais singelas dos alunos do Colégio Leão XIII, espetáculos que agradavam, criados e dirigidos pelo professor Antilhon Ribeiro So-ares. Numa das peças, o aluno Wener Abreu, representando um cigano, contracenava com a

aluna Aldora Freitas, fi lha do comerciante China Frei-tas. Ela, no papel de uma duquesa que se apaixonara pelo cigano. Inexperientes, como não podia deixar de ser, recitavam mais do que representavam, no entanto faziam sucesso. Em todas as apresentações o teatro lotava e os dois recebiam aplausos de pé.

Quando não estava ocupado com temporadas teatrais, o 4 de Setembro exibia fi lmes cinematográ-fi cos. Como até a metade dos anos 40 não circulavam

jornais, a única banca a vender jornais atrasados e revistas do Rio de Janeiro denominava-se M. A. Tote, estabelecido na Rua Álvaro Mendes. Aos domingos, preferencialmente, M. A. Tote era bastante procurada pelo público leitor.

No livro Outros Tempos, edição Thesaurus, Brasília, 2002, eu falo das brincadeiras da meni-nada da época, que tinha como espaço preferido a Praça João Luiz Ferreira. Exceto jogo de futebol em campos improvisados, a distração dos meni-nos era brincar de mocinho e bandido, imitando as séries que o cinema Royal exibia.

Para essa garotada, independente de posição social, o Royal fi gurava como o cinema preferido. Tratava-se de um “poeira”, como se chamavam as casas de exibição de segunda classe, mas que a meninada elegeu como ponto preferido de fre-quência aos domingos. Localizava-se um pouco adiante da Praça Rio Branco, no rumo do Liceu.

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Os fi lmes, exibidos em duas sessões nesses dias, eram os famosos seriados, cujos enredos violentos vividos por heroicos mocinhos, bonitas mocinhas e odientos bandidos, representavam sempre o bem contra o mal e a eterna vitória do bem. Dividiam-se em séries, como as novelas de TV atualmente. Cada série ou capítulo exibia-se aos domingos e somente no cinema Royal. Daí a preferência da ga-rotada pelo “poeira” que recebia, invariavelmente, expectadores acima de sua lotação.

O Royal, porém, não fazia jus a essa pre-ferência da meninada. Podia ser considerada a casa de projeção de fi lmes, mais desconfortável em todos os sentidos. Impossível que outra a su-perasse em desleixo e descaso para com o público frequentador cativo.

A começar dos assentos de tábuas corridas, inteiriças, sem acabamento, sem encosto. As tábuas eram enfi leiradas e precariamente prega-das sobre rústicos toros de carnaubeiras, na forma de bancos, onde o público se acomodava como podia. O chão da longa sala exibido-ra era plano, num só nível do princípio ao fi m. Os ocu-pantes dos bancos da frente impediam a visão dos que se localizassem logo atrás. Para evitar que assim acon-tecesse, os primeiros a che-gar cuspiam ou (pasmem!) até urinavam nos bancos da frente para não serem ocupados. Em vão. Preve-nidos, os frequentadores levavam jornal ou papelão para forrar o assento sujo, ou fi cavam de pé, mas não perdiam o capítulo anunciado.

A cada mudança de rolos de fi lme, já que o cinema não dispunha de aparelhamento moderno para substituição automática, como os demais, havia um intervalo, quando as luzes se acendiam. Então, os gritos e assobios tomavam conta do ambiente, numa algazarra infernal que só cessava com o apagar das luzes e reinício da exibição. Ain-da bem que pouco demorava o irritante intervalo. Talvez o palavreado de baixo calão e os deboches comuns da plateia enfurecida respondessem pela ausência feminina nas exibições domingueiras de seriados no Royal.

O gerente dessa casa simples, que também desempenhava a função de porteiro, chamava-se Bechara. Árabe, baixote, gorducho, eterna cara de tédio, barba sempre por fazer, pouco se alterava com a algazarra. A plateia, impulsiva, gritava

e xingava. Os palavrões em coro se repetiam em todos os intervalos. Gênio bom e tolerante, Bechara mantinha-se indiferente. Continuava guardando a entrada do cinema, como se tudo continuasse normal.

Para a meninada não interessava a qualida-de boa ou má da casa exibidora, mas a satisfação de suas fantasias que os seriados tornavam rea-lidade momentânea na tela do Royal.

Nos anos 40 do século passado, o número de moradias de alvenaria cobertas de telha somava 3.824, contra 12.711 casas de palha, segundo o IBGE. Havia na cidade uma população de pouco mais de 50 mil pessoas. No decorrer da década, essa população iria atingir 64.641 moradores, incluindo-se a zona rural do município. Viviam na capital 78 estrangeiros, a maioria de origem árabe. Encontravam-se também alemães, judeus, portugueses, russos, franceses, ingleses, italianos

e um chinês. Seus fi lhos ra-pidamente se adaptavam à terra. Alguns descendentes dessas famílias se destaca-riam nas artes e nas profi s-sões de nível superior ou na vida econômica. Das 16.728 casas existentes, 16.640 eram térreas e só 88 de dois pavimentos. Uma ou duas de três andares. Assim, desconheciam-se ainda os elevadores, que só seriam introduzidos em Teresina depois do funcionamento regular do Hospital Getúlio Vargas e, a seguir, com o desenvolvimento da cons-

trução civil, quando apareceram os primeiros “arranha-céus”, nos fi ns dos anos 50 para 60.

Quem vive ou visita Teresina nos dias atuais, não pode fazer ideia do que era a capital do Piauí até os anos 60. Uma cidade, embora traçada na prancheta, como aconteceu com Belo Horizonte, Goiânia e Brasília, as condições do seu desenvolvimento foram mais lentas pela falta de recursos públicos e de indústrias que impulsio-nassem, naquele período, o seu progresso.

No livro Tempos de Leônidas Mello, editado pela Assembleia Legislativa do Estado e Academia Piauiense de Letras em 1994, e reeditado em 2007 pela Universidade Federal do Piauí, eu tentei mostrar o que era a cidade no tempo dos célebres incêndios dos anos 40, quando a população foi tomada, quase, pelo desespero do fogo diário nas casas de palha.

Desde o início da construção de Teresina

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formou-se na periferia um cinturão de palhoças, sem qualquer simetria ou planejamento. Essas casas levantadas além do núcleo central eram de pau a pique ou taipa, algumas de adobe, cobertas de palha. Mas havia outras, totalmente de palha, inclusive as paredes. A grande concentração da palmeira babaçu nas proximidades oferecia, sem maiores despesas, esse material usado pela população carente para levantar suas casas. An-tes a palha era utilizada apenas na cobertura de barracos provisórios para quem trabalhasse na construção da cidade, ou para guardar o material em uso. No entanto, as palhoças foram se perpetu-ando e se adensando, envolvendo o ambiente. Em pouco tempo tornou-se a construção comum nos arredores da capital, que abrigava uma população sem emprego ou subempregada, biscateiros, quase todos abaixo da linha da pobreza.

Claro que a pobreza do Piauí era a do Nor-deste na época, mas o Piauí amargava um isolamento constrangedor, sobretu-do a falta de estradas e a ausên-cia de investidores, o que emperrava o seu de-senvolvimento. A produ-ção industrial limitava-se à Fiação e Tecidos Piauiense, onde havia o maior número de empregos permanentes; uma fábrica de Cigarros, a Ypiranga, do senhor José Camilo, o pai do historiador, uma pequena indústria de Guaraná e refrigerantes, de propriedade do Sr. Álvaro Martins, pequenas ofi cinas artesanais, atividades voltadas ao benefi ciamento do arroz e algodão e um comércio compatível. A exportação da cera de carnaúba era a salvação, pelo valor da arroba do produto no mercado inter-nacional. Contudo, não sufi ciente para atender a crescente despesa do Estado. A busca de trabalho dos que fugiam da seca para a capital, a maioria mão de obra desqualifi cada, crescia a cada ano, acelerando o processo de explosão demográfi ca que iria atingir Teresina. Com eles, o aumento de moradias em palhoças que um dia pegaram fogo.

A periferia começou a arder em chamas, espetáculo triste que se repetia todas as tardes, principalmente em agosto, mês dos ventos. Para o poeta Martins Napoleão, mês do desgosto. Os incêndios eram anunciados apenas pelo dobre continuado dos sinos das igrejas, único meio de comunicação de massa que chamava a atenção da cidade para a ocorrência do fogo nas palhoças.

O governo Leônidas Mello providenciou a criação do corpo de bombeiros, até então inexis-tente, e reforçou a vigilância pública, incluindo a compra de uma caminhonete fechada para conduzir presos, que o povo logo apelidou de “carinhosa”. Introduziu também um batalhão de cavalaria montada para vigilância das ruas. Mas com a providência contra os incêndios, vieram os excessos da polícia despreparada, numa cidade antes pacata. O uso de instrumentos de terror. Muita gente foi presa e muitos sofreram torturas injustamente. Pouco interessa no momento relem-brar nomes de personagens que, na época, apoia-dos pelo poder discricionário da ditadura Vargas, implantaram na cidade, o pânico, a insegurança, o medo, em nome da ordem pública.

Veio o fi m da guerra, a seguir, a redemo-cratização do país. Os acusados transformaram as perseguições do governo em dividendos po-

líticos e se fi zeram líderes partidários. Curioso é que, mesmo depois da fase Le-ônidas Mello, em pleno regime democrático, os incêndios não cessaram. Quais as causas? O mistério que envolvia o fenômeno do fogo nas casas de palha se prolongou e, com ele, uma espécie de trauma, de receio da população em falar sobre o assunto. Mesmo simples referência ao fogo assusta-va. Essa espécie de pavor coletivo perdurou, o que dá a dimensão do seu efeito psicológico nefasto. Senti

isso anos depois, quando procurei entrevistar pessoas testemunhas do período. Notei da parte de alguns entrevistados, com evidentes exceções, um cuidado sem razão em colocar as palavras. Receio de ser mal compreendido. Houve quem preferisse continuar em silêncio, embora nada tivesse com o ocorrido, exceto testemunhado, mesmo de longe, a tragédia das palhoças.

Outra curiosidade relativa a esse período que envolveu e abalou a sociedade teresinense, é não existir uma estatística das casas queimadas. Quem estranhava esse descaso era o ex-prefeito Wall Ferraz.

Na ocasião em que colhíamos material para o livro Tempos de Leônidas Mello, Wall nos disse que o principal diferencial de Teresina nos anos 40 para a capital de hoje (referia-se ao seu tempo de prefeito em 1994) está no crescimento da população. E explicou: “A cidade tinha naquela

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época aproximadamente 50 mil habitantes. Com o acelerado processo da explosão demográfi ca re-gistrada a partir da década de 70, a capital possui hoje (1994), mais de 650 mil moradores. Apesar da expansão da infraestrutura básica, houve uma multiplicação dos problemas, notadamente nas áreas de habitação e de oportunidades de trabalho.

O prefeito Wall queria dizer que o problema da casa de palha persistia. E explicava em nú-meros: “A cidade conta no momento (1994) com mais de 7 mil casas cobertas de palha, conforme censo realizado pela prefeitura de Teresina… Por causa disso – afirmou – ainda se verificam incêndios, mas acidentais, isolados e em pequena quantidade. Jamais nas proporções do que ocor-reu nos anos 40”.

Foi a partir da segunda metade dos anos 50 que começou uma reação desenvolvimen-tista no Brasil, com refl exos no Piauí. Os novos governadores passaram a trabalhar com programas anunciados em comícios, promessas que não fi cavam só nas campanhas. Alguns planos, pela falta de meios, tornaram-se inviáveis.

A criação da SUDENE e o início da construção de Brasília entusiasmavam a todos, com repercussões benéfi cas no Piauí. A piada de mau gosto, que humi-lhava o piauiense: “Visite o Piauí antes que ele se aca-be”, já não era ouvida.

Seguiu-se a instala-ção da Universidade do Piauí. A hidrelétrica da Boa Esperança. Teresina expandia-se e deixava para trás o limitado centro comercial localizado só na Praça Rio Branco. O governador Chagas Rodrigues, ajudado por jovens e entusiastas auxiliares, também sonhadores, mas com os pés no chão, inaugurou um sistema de administrar com intenções desenvolvimen-tistas de base técnica, com planejamento, nos moldes do que começava a executar no Nordeste o economista Celso Furtado através da SUDENE. Um programa de construção de casas populares substituía casas de palha.

Depois de Celso Furtado, o novo superin-tendente da SUDENE, João Gonçalves de Souza, criou um slogan otimista: “Nordeste é bom negó-cio”. Visava, através de campanhas tecnicamente orientadas, dar maior confi abilidade à região para investimentos. Despertar interesse. As ideias de Marshal Mc Luhann, sobre meio e mensagem, co-

meçavam a repercutir na comunicação de massa e João Gonçalves de Souza também acreditava. Sem perder tempo, sobretudo sem interesse político, levou um grupo de técnicos da SUDENE para São Paulo, a fi m de mostrar por que o Nordeste era bom negócio. É evidente que obteve resposta de investidores paulistas, mas que não alcançaram todas as regiões localizadas no polígono das secas.

Não pretendo entrar aqui em considerações sobre os fatores que levaram o Piauí à estagnação, depois de viver o período farto dos ricos currais de gado, responsáveis por muitas lendas, ainda hoje citadas. Os estudos de Raimundo Nonato Santana esclarecem bem essa passagem que até hoje tem refl exo na vida econômica do Piauí.

PUBLICIDADE, JORNAIS E RÁDIOS

Repetindo Anísio Brito, “os jornais do Piauí surgiam e desapareciam ao sabor das

mutações políticas. Ou, eram Folhas de duração efêmeras ou de partidos polít icos”. A imprensa realmente informativa, com características de um exercício profissional per-manente, só iria aparecer em Teresina como ativi-dade diária e duradoura, na segunda metade do século XX.

Houve longos perí-odos em que Teresina não dispunha de um único jor-nal. Apenas revistas de informações culturais liga-das aos grêmios literários,

como Meridiano e Geração, para citar apenas essas duas importantes publicações, numa das quais encontrei um poema de Edson Regis, autor de O Deserto e os Números. Edson, de quem viria a ser um grande amigo no Recife, anos depois, eu já morando em Brasília, tomei conhecimento de que fora uma das vítimas do atentado a bomba no Aeroporto dos Guararapes.

Mesmo durante toda a ditadura Vargas, as atividades culturais jamais deixaram de estar pre-sentes em Teresina e com grande movimentação, a exemplo da criação do Clube dos Novos, fundado pelo então jovem Paulo Nunes, recém-saído da adolescência, nos fi ns da segunda metade dos anos 40, após a Segunda Guerra Mundial. A cultura do Piauí deve muito a este cidadão que não para de engrandecer sua terra. Paulo Nunes tem sempre espaço especial nos principais jornais literários do país, em particular no Distrito Federal, pela

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universalidade que ele dá às ideias escritas, sejam nacionais, regionais, ou internacionais. Por isso é admirado e respeitado.

Lembra Halan Silva os nomes dos presentes à inauguração do Clube dos Novos, a 13 de setem-bro de 1946, no salão nobre da Escola Normal Ofi cial, obra do jovem Paulo Nunes. Também re-gistrou que no dia 25 de maio de 1947, no salão de honra da Biblioteca e Arquivo Público do Estado foi empossado o primeiro colegiado do Clube dos Novos, do qual eu tive a honra de participar, ao lado de Paulo Nunes, Victor Gonçalves Neto, Cel-so Barros Coelho, Paulo de Tarso Melo e Freitas, Alberone Lemos, Aloisio Soares, Edmar Santana, Maria Guadalupe Lima e Wener Abreu. Quatro dias depois mudei-me de Teresina para o Recife.

Antes disso, até a primeira metade de 1945, as notícias de acontecimentos locais diários no Piauí deixaram de existir em veículos de massa durante a ditadura Vargas. Os fatos passavam de boca em boca, com distorções naturais. Talvez Teresina fosse a única capital de um estado brasileiro onde, por tanto tempo, praticamente desapareceu a imprensa informativa, exceto o Diá-rio Ofi cial. Houve um pe-ríodo, em 1945, que surgiu na cidade, um veículo, em formato de jornal, chamado O Autêntico. Ainda adoles-cente, em companhias de outros jovens, entendi que Teresina deveria ter um jornal, embora de intenções literárias. Assim apareceu O Autêntico. Saía em dias incertos e logo parou. Reapareceu em 1947, agora com a colaboração de Hindemburgo Dobal, Edmar Santana, Heli Piauilino, Genésio Pires e outros. Desta vez com aspecto mais jornalístico, porém, de vida igualmente breve.

Na falta de veículos mais adequados, a publi-cidade, então, se fazia nos muros, ou em panfl etos e cartazes. Havia os de melhor elaboração, na for-ma de outdoors, quase todos pintados por Ercínio Fortes, artista piauiense que, na época, dominava o pincel e as cores. Ele retratava os produtos in-dustriais ou comerciais que o encomendassem, sempre com sugestivas mensagens criadas pelo próprio artista.

Percebendo esse vazio na publicidade, um moço baiano, chamado Rodolfo Cavalcanti, in-troduziu na época um tipo de anúncio itinerante, espécie de homem-anúncio, que percorria as

ruas e dava a conhecer as lojas ou armazéns que ofereciam na ocasião certos produtos a preços convidativos. A Praça Rio Branco era o ponto cen-tral de suas atividades, onde fazia a propaganda ambulante através de um porta-voz de fl andre, no qual ampliava o alcance das mensagens. Des-se modo, queimas ou produtos novos chegados, as lojas davam a conhecer por meio de Rodolfo Cavalcanti que, para isso, vestia roupas exóti-cas, chamativas e subia em pernas de pau para destacar-se. Também poeta de cordel, Rodolfo Cavalcanti vendia histórias em versos, enquanto anunciava os queimas e os produtos novos, a preços vantajosos.

Na época dos incêndios, embora fosse proi-bida pela polícia qualquer forma de comentário sobre o fogo nas casas de palha, Rodolfo era li-berado, porque no decorrer das suas informações elogiava o papel desempenhado pelo governo

através do seu chefe de po-lícia, o coronel Evilásio Vi-lanova. Os elogios, porém, saiam contraditórios pela ênfase dada à ação da polí-cia, de tal forma que o povo entendia como zombaria e terminava rindo. Assim Ro-dolfo driblava a censura e anunciava em praça pública a ocorrência dos incêndios, o que ninguém podia fazer.

Não sabemos se a Biblioteca Pública guarda um dos cordéis de Rodolfo Cavalcanti dessa época, tal-vez o que ele mais vendeu, com o título Os Clamores

dos Incêndios em Teresina, no qual narra, em versos, episódios dramáticos sobre as casas de palha queimadas… sem esquecer de incluir “as providências da polícia”.

Realmente, recordando-se hoje, as medidas repressivas impostas pela polícia da ditadura getulista feriam a inteligência e a sensibilidade do povo. Por isso, se transformavam em gozação. Uma delas proibia falar na rua ou recinto públi-co na palavra fogo. O povo logo a substituiu por chuva. Outra providência proibia os fumantes de conduzir caixa de fósforos ou isqueiro.

Um poeta, rapaz pobre, conhecido e esti-mado pelos estudantes, bacharel em Direito, que sofria perturbações mentais, chamado Godofredo Cavalcante, foi uma das vítimas. A polícia o fl a-grou defronte à sua casa, num subúrbio, a sacar do bolso uma caixa de fósforos para, indiferente, acender o cigarro. Preso, na delegacia, alegou que

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era formado em Direito, porém, não portava na hora documentos. Mal trajado, barba por fazer, o delegado, que não era formado, nem conhecia o poeta, não acreditou e o meteu numa prisão comum onde estavam vários meliantes, para interrogatório no dia seguinte. Inicialmente, Godofredo mostrou-se quieto, reservado. De madrugada, insone, o poeta entrou em delírio e, de repente, passou a recitar seus poemas aos brados, agitado. Ninguém mais na delegacia con-seguiu dormir. O delegado foi chamado às pressas e chegou sem demora. Godofredo, indiferente, olhos esbugalhados, continuou a recitar, como se estivesse numa tribuna. A autoridade, depois de adverti-lo energicamente e ameaçá-lo em vão, concluiu que o melhor seria mandar o poeta em-bora, sem mais perguntas, antes que arranjasse encrenca para o próprio delegado. Isto depois que o preso revelou haver sido aluno do governador Leônidas Mello, no Liceu. Na manhã seguinte, cedo, estudantes de Direito compareceram à po-lícia em socorro a Godofredo, que já havia saído pela força dos seus versos.

Outra novidade dessa época foi a instalação de um serviço de alto-falante, chamado Ampli-ficadora de Teresina. No Piauí não havia ainda estação de rádio transmissora. A Amplificadora tinha estúdio numa pequena sala da Rua Barroso. Os alto-falantes (progresso para a época) eram pregados num pé de oiti na Praça Rio Branco, com extensão para outro aparelho instalado num poste de iluminação pública na Praça Pedro II.

A Amplificadora de Teresina tinha como modelo nada menos do que a, então famosa, Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a maior do país. Levava ao seu limitado público da Praça Rio Branco, durante o dia, e da Praça Pedro II, à noite, anúncios de lojas, armazéns e serviços de utilidade pública, além de música. Às vezes apresentava programas ao vivo, como aconteceu quando esteve de passagem pela cidade a dupla humorística Alvarenga e Ranchinho.

Um dos precursores da transmissão através de alto-falantes em Teresina chamava-se João Cursio Laguárdia, ou simplesmente Laguardía, como era mais conhecido. Suas inflexões gutu-rais e o emprego correto da língua lembravam os melhores locutores, sugeriam seriedade e ele logo ganhou respeito e fama na cidade. O serviço de alto-falantes passou a ser conhecido sim-plesmente como “Amplificadora” e, realmente, criou, numa cidade sem jornal, um novo espaço na publicidade, antes limitada aos outdoors do Ercínio Fortes, anúncios de parede ou à propa-ganda direta de Rodolfo Cavalcanti.

Com o aparecimento da “Amplifi cadora”,

logo seguido por serviço igual da loja Rianil, na Praça Rio Branco, começava em Teresina a surgir uma nova profi ssão, a dos chamados corretores de anúncios para os serviços de alto-falantes. Outro meio de comunicação de grande utilidade pública, o telefone automático, foi introduzido no governo Leônidas Mello. Antes, no Piauí, o telefone só era conhecido através do cinema. Inicialmente foram adquiridos mil aparelhos, mas nem todos entra-ram em uso imediato. Assim, os números em fun-cionamento não passavam, na fase inicial, de três dígitos. Nessa época, também, Teresina conheceu o trote telefônico, porém, ainda de natureza in-gênua, pura hilaridade, sem acarretar prejuízo. Ninguém seria capaz de ligar para a polícia, corpo de bombeiros ou pronto socorro e mobilizar esses serviços inutilmente como agora é costume.

O aparelho instalado em minha casa tinha o número 400. A farmácia de D. Lili, a mais conhecida da cidade, atendia pelo número 200. Longe ainda dos computadores, um servidor público designado para prestar informações a quem solicitasse, sabia de cor o número e nome completo, além do endereço de cada assinante. E repassava na hora.

Assim era Teresina de ontem. A Teresina de hoje é diferente. Faz parte da área regional que mais cresceu no primeiro trimestre deste ano (2010), o Nordeste. Segundo o Boletim do Banco Central, a economia da região Nordeste “teve uma expansão de 3,3% no trimestre encerrado em maio último, em relação aos três meses anteriores”. “A desaceleração da economia a partir do segundo trimestre atingiu todas as regiões do país, com exceção do Nordeste”. Claro que no Nordeste está o maior número de pessoas que recebem bene-fícios sociais como o Bolsa Família. Refi ro-me a todo o Nordeste. Além desses benefícios sociais, a região foi contemplada por ter uma indústria que prospera voltada para o consumo. “Com a manu-tenção da renda e do emprego, a região também exibiu – segundo o jornal Folha de São Paulo de 4 de agosto deste ano – os maiores indicadores de vendas no varejo e no crédito a pessoas físicas e empresas no período”. O velho sonho de João Gonçalves de Souza, referido acima, ao assumir a SUDENE há quarenta anos, só agora torna-se realidade: “Nordeste é bom negócio. Como parte do Nordeste, chegou a vez do Piauí”.

__________________________________ *Afonso Ligório Pires de Carvalho é membro da Academia Piauiense de Letras, da Academia

Brasiliense de Letras, da Associação Nacional de Escritores e do Instituto Histórico

e Geográfi co de Brasília.

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Quando cheguei a Teresina, no início de 1923, para continuar os estudos iniciados na fazenda, frequentei o Ateneu Teresinense, do Padre Cirilo Chaves, e os cursos particulares dos professores B. Lemos, Douville Leal e José Amável, e ainda, paralelamente, tomei aulas de música e de violino. Por isso, apesar da pouca idade, pude de certo modo acompanhar o que se passava nos meios artísticos e intelectuais da cidade, os quais, olhados hoje da janela do tempo – é bom que se saiba – parece não terem nada a dever aos dos dias que atravessamos.

Teresina, por essa época, era uma cidade tipicamente provinciana, com seus costumes, seus preconceitos, seus mexericos, seus modos de terra pequena ainda cheirando aos matos onde a encravara, no meado do século anterior, o Conselheiro Antônio Saraiva. Mas possuía já uma vida artística, musical, literária, bastante intensa. As “Horas de Arte”, festas domingueiras nas quais se apresentavam os amadores locais, – A Prata de Casa – em geral elementos da própria sociedade teresinense, se repetiam com frequência e agrado. Nessas reuniões, realizadas ora pela manhã, no Cinema Olímpia, depois da missa das 9 na Igreja de Nossa Senhora do Amparo, ora à noite, no Theatro

4 de Setembro, ouviram-se solos instrumentais – piano, violino, fl auta, bandolim, violão – números de canto e de dança. Poesias eram declamadas, muitas vezes pelos próprios autores, e não faltavam os discursos nas festas comemorativas e cívicas. Ainda estavam em moda as conferências literárias, pronunciadas pelos intelectuais em evidência, sob os mais variados e inusitados temas: “A Tesoura”, “As Mãos”, “A Luz”, “As Estrelas”. Eu mesmo (naturalmente bem mais tarde) cheguei a escrever uma, jamais pronunciada e fi nalmente perdida, sob o título “O Elegio da Lágrima”. Talvez infl uenciado pela tese de doutoramento de Alcides Freitas, médico e poeta piauiense cedo desaparecido, versando o mesmo assunto, embora até então dela só tivesse notícias, por constituir verdadeira raridade bibliográfi ca.

Já haviam desaparecido, no meu tempo, os grupos teatrais “Clube Recreio Teresinense”, “Os Amigos do Palco”, “Os Talianos” e outros que, com certa regularidade, ofereciam dramas e comédias no Theatro 4 de Setembro. São dessa época as revistas O Bicho, Frutos e Frutas, O Coronel Pagante e Jovita, todas de Jônatas Batista com músicas de Pedro Silva. Ainda alcancei os “Amantes

Raimundo de Moura Rêgo*

Teresina do meu Tempo

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ESPECIALESPECIAL

da Cena Viva”, grupo dirigido ou orientado por Antônio Prado de

Moura, o popular cantor Pintassilgo. Creio que foi por esse conjunto que assisti ao drama Mariazinha, também da conhecida dupla, peça que muito me comoveu quando um dos personagens, em violenta cena de ciúme, enfi ou uma faca no peito do rival e o sangue jorrou ensopando-lhe a roupa, enquanto este, cambaleando e sempre cantando com a mão no ferimento (ai, ai, ai) se estatelando no chão...

Os maiores animadores desses movimentos artísticos foram inegavelmente Pedro Silva e Jônatas Batista. Isso sem falar dos intelectuais e poetas, como Higino Cunha, Mário Batista, Zito Batista, Celso Pinheiro, Antônio Chaves, Édison Cunha, os quais ainda que em outros gêneros, emprestaram o concurso do seu talento para o sucesso dessa fase brilhante da capital piauiense.

Convém lembrar também, com a homenagem do nosso louvor, D. Zilá Paz, pianista, notável acompanhadora; Agripino Oliveira e Eudóxio Neves, flautistas; Alfredo Mecenas, Zenaide Cunha e Alzira Gomes, violinistas; Durcila Batista e Amália Pinheiro, bandolinistas; Carlindo Freire de Andrade, contrabaixista; Napoleão Teixeira, arranjador e regente. D. Adalgisa Paiva e Silva é outro nome que reverencio, de assídua e brilhante colaboradora, como pianista e diretora de bailados organizados com moças da sociedade, nos referidos momentos de arte. Os músicos que formavam os conjuntos orquestrais, muitas vezes de mistura com elementos amadores, eram requisitados dentre os melhores (e havia-os muitos) das bandas da Polícia Militar e do Batalhão do Exército.

Era também a época em que as principais residências tinham sempre um piano na sala de visitas, onde um ou outro membro da família ou visitantes faziam músicas tocantes, valsinhas seresteiras e tangos argentinos ou acompanhando improvisados cantores. Redagásio Maranhão e, um pouco mais tarde, Dionísio Brochado, são dois dos pianeiros mais conhecidos a brilhar nos saraus familiares de Teresina. O aperfeiçoamento do rádio e algum tempo depois a televisão acabaram com essa louvável tradição.

As bandas musicais da Polícia e do Exército revezavam-se às quintas e domingos à noite nos coretos das praças Rio Branco e Pedro II. Ah! A poesia das retretas! A música a serviço da comunidade nas cidades pequenas... A música congregando, unindo, reunindo, divertindo o povo nas pracinhas acolhedoras... A música gerando amizade, conservando as já existentes, distribuindo paz e alegria... O footing animado ao redor do coreto, os namoros que aí se iniciavam ao som dos dobrados patrióticos, das marchinhas festivas, das melodias cativantes pela própria beleza e não pela agitação frenética dos ritmos... Quantos casamentos resultaram desses namoros sob o feitiço misterioso da música! Depois da retreta, a cidade tranquila, sem automóveis e sem bondes, sem a trepidação da vida dispersiva e barulhenta de hoje, se recolhendo para dormir, mergulhada no mais profundo silêncio...

Teresina... Cidade Verde... Cidade Menina... Cidade Coração... Quanta saudade! Os banhos no velho Parnaíba... Os passeios de barco no Poti... As novenas de maio... Os saraus familiares onde o meu violino alcovitava, falando ou cantando baixinho

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ESPECIAL

aos ouvidos e ao coração das namoradas: Rosilda... Lourdinha... Maria Luisa... Maria Ai, violino amigo, há outras Marias sim, mas não sejamos indiscretos. Engraçado, quando foi para casar, o violino fechou-se no seu estojo e nada fez. Nenhuma palavra. Melhor dizendo, nenhuma nota. Foi Santo Antônio, o casamenteiro, e na vizinha Flores, quem me arranjou aquela joia morena que enfeitou e enriqueceu a minha vida durante cinquenta anos e que, para desconsolo no fi nal da jornada, acabo de perder. Mas, com licença, o assunto é outro.

A descrição desses fatos e a citação desses nomes me deixam feliz pela oportunidade de fazer justiça àqueles que inegavelmente terão infl uído na minha formação musical e decisivamente concorrido para elevar o meio artístico e cultural da capital piauiense, onde passei boa parte da minha vida. Eis por que transcrevo a seguir os versinhos que um dia me brotaram do coração e com que homenageei o confrade e amigo A. Tito Filho pela publicação do seu delicioso livro Teresina meu Amor.

Rondó à Amada AusenteNão quero fl or nem brilhante,Quero carinho de amantePara o mais fi no louvorA quem já nasceu prendada– A ti minha namorada,Teresina meu amor!

Quando nós nos encontramos, Logo nos apaixonamos,Tu – princesa, eu – trovador.Atirei-me nos teus braçosE me cobriste de abraços,Teresina meu amor.

Amor à primeira vista,Não perdeu tempo em conquista, Já nasceu triunfador.– Formosa rosa trigueira,Flor da raça brasileira,Teresina meu amor.

Foi grande o amor que me deste,E outro amante não tivesteCom minha paixão e calor.Em noites de serenatasDediquei-te mil oblatas,Teresina meu amor.

Minha música, meu verso,Cantasse o céu, o universo,Tinha teu mel, tua cor.Vivi de ti impregnado,– Garotão apaixonadoTeresina meu amor...

Assim vivemos, querida,A quadra melhor da vidaQue me deu nosso Senhor.Mas em busca de outros ares, Perdi-me noutros lugares,Teresina meu amor.

Vaguei, sofri duramente,Envelheci de repente,Do azar da sorte ao sabor.

Tu continuas menina,Áurea estrela matutina, Teresina meu amor.

Tão bonita e tão faceira,És muito namoradeira,De amantes possuis um rorSei de um, escritor de fama,Que em belo livro te chama“Teresina meu amor”.

Vivo morrendo de ciúmes,Da saudade subo ao cumes,Desço aos socavãos da dor...Mas não te esqueço um momento,Vives no meu pensamento,Teresina meu amor.

Ó dona dos meus desejos,Mando-te um montão de beijos,Pois te amo seja onde for.– Minha cidade menina,Minha linda Teresina,Teresina meu amor!

*Quem foi Moura Rego?Raimundo de Moura

Rego nasceu na cidade de Matões no Maranhão em 28/06/1911 e faleceu no Rio de Janeiro em 12/03/1988. Fez os primeiros estudos em Teresina, foi professor da Escola Técnica Federal do Piauí, Agente Fiscal do Imposto do Consumo, Assessor do Ministério da Fazenda. Poeta, pintor, mú-

sico e memorialista, ocupou na Academia Piauiense de Letras, a cadeira nº 7.

Obras publicadas: Ascensão de Sonhos, 1936; Trovas, 1942; Gritos Perdidos, 1942; Em Surdina, 1978; Contraconto, 1979; As Mamoranas estão Florindo, 1985 e Notas Fora de Pauta.

A. Tito Filho em sua obra Teresina meu Amor, publicou versos de Moura Rego criados especialmente para o seu livro:

Moura Rego, poeta como poucos na arte de transmitir emoções, mágico no violino, encantava as noites teresinense no Theatro 4 de Setembro. Antes de morrer, no Rio de Janeiro, saudoso de Teresina, ainda pôde cantá-las nos soluços derradeiros, nos versos ternos e carinhosos, doridos, como se soubesse que não a via mais. E compôs o Rondó à Amada Ausente (os versos fazem parte da crônica publicada originariamente no suplemento ofi cial do Diário Ofi cial, em 31/01/1988).

A Academia Piauiense de Letras prestou homenagem a Moura Rego, no seu primeiro centenário de nascimento. A solenidade ocorreu antecipadamente, dia 18/06/2011, com a presença de familiares, acadêmicos e admiradores da obra do grande intelectual, no Auditório Acadêmico Wilson de Andrade Brandão daquela Academia. O elogio acadêmico do homenageado foi feito pelo atual ocupante da sua cadeira, acadêmico Humberto Soares Guimarães.

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O solo é formado por barro vermelho, por isso chamou-se Quinta Vermelha o terreno de Laurindo Veloso, o mais antigo morador da região. Com o povoamento, manteve-se o nome Vermelha.

É um dos bairros mais antigos e tradicionais de Teresina. Era predominantemente residencial. O comércio existente supria apenas as necessidades básicas dos seus moradores. Ao longo do tempo inverteu essa característica, transformando-se em bairro comercial e sede de serviços públicos –

O Bairro Vermelha e a Paróquia Nossa Senhora de Lourdes

Francisca Maria Soares Mendes*

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Centro Administrativo. Informação comprovada pelo decréscimo de sua população: 8.001 habitantes em 1991; 7.787 em 1996; 6.728 em 2000; e 5.963 em 2007, conforme dados do IBGE.

Tem como limites no sentido norte-sul as Avenidas Joaquim Ribeiro e Valter Alencar e de leste a oeste as Avenidas Miguel Rosa e Maranhão à margem do rio Parnaíba.

Na década de vinte, as famílias já recebiam as bênçãos de Nossa Senhora de Lourdes, através de uma simples capela edifi cada em um largo, trans-formado em uma praça que recebeu vários nomes: Artur Bernardes, Nossa Senhora de Lourdes, mas a população denomina Praça da Igreja Nossa Senhora de Lourdes.

No largo, ao lado da capela, havia um pequi-zeiro centenário que abrigava, na sua sombra, os moradores que ali se encontravam para prosear e saborear as guloseimas ali vendidas.

O pequizeiro era referência, pois além de local de encontros era ponto fi nal de ônibus urbanos e parada dos ônibus que faziam linha para os muni-cípios do interior do Estado.

Ao redor do pequizeiro instalaram-se bancas para vender alimentos e bebidas. Mingau mara-nhense, pirulito, cocada, milho assado e cozido, gelado (raspadinha), fígado de porco assado, frito de tripa de porco, língua de boi, piaba frita e o fa-moso frito de cabeça de porco da D. Aurora.

A construção da segunda pista da Avenida Barão de Gurgueia determinou o sacrifício do secular pequizeiro. Fato que dividiu a população. De um lado os que defendiam a sua preservação e do outro os progressistas que queriam a execução da obra. Venceram os progressistas. A árvore foi derrubada, mas na sua despedida presenteou os moradores, principalmente as crianças, com grande quantidade de mel, guardado no seu tronco. Foi um sentido e doce adeus.

O Presidente do Conselho Estadual de Cultu-ra, Prof. Manoel Paulo Nunes, no dia 28 de agosto de 1967, em seu discurso de posse na cadeira trinta e oito da Academia Piauiense de Letras, que tem como patrono o poeta João Ferry, citou trechos do livro Meu Brasil do ilustre poeta. Referiu-se ao Soneto “O Pequizeiro”, evocativo do tempo em que o velho pequizeiro era bem integrado à paisagem do bairro: “e que há de fazer-se em breve em cinzas comburido”. Na expressão do poeta possuía “em cada fl or o zumbir de uma abelha e à sua sombra um mundo agasalhado e vivo”.

Finaliza com uma sátira velada à obra demo-lidora dos que, em nome do progresso, tudo levam de vencida, inclusive as pobres e indefesas árvores da rua, refúgio dos que sofrem à inclemência do sol abrasador e motivo de inspiração do poeta:

“As gengibirras, pães, cocadas e badernastudo, tudo se foi, cercado pelas vigas

do progresso que trouxe as construções modernas”.

Antigos moradores da Vermelha: Laurindo Veloso, Elias e Manoel Gran-jeiro, Solon Nogueira, D.Maria Batista, Maria Antônia, Murilo (Boca Bonita), Beatriz Borges, Gil Barbosa, Gil Santana, Benedito Luz, Gonçalo e Candido Ayres, Jesus Tajra, Raimundo e João Campos, Aurino Moura, Antônio Mulato, Sr. Neto, Sr. Nequinha, Antonio Tor-quato, Sr. Barradas, Cel. Raimundo Lopes, João Brito, Chico Bento, Antônio Tataia, Absalão Soares, Cícero Soares, José Tataia, Pe. Luis Soares de Melo, Floro Soa-res, Francisco Tataia, Luzimar (tio Luza), Capitão Valentim, Clodomir, Galdino, Antonio Borges, Sr. Clovis, Sr. Cortez, Sr. Noca, Francisco José, Valdir Nogueira, Chagas Melo, Joel Loureiro, José da Silva, Afonso Cam-pos, Benedito Ramos, Prof. Virgulino, Prof. Diociesio Igreja, Sr. Estanislau, Sr. Augusto e Bento Moraes, Renato Barreto de Moraes, D. Chiquinha, D. Nazaré, D. Graça, Sr. Tiburcio, Sr. San-tos, Sr. Freitas, Sr. Chiquito e Mestre Dezinho.

Em 1928 foi inaugurado o Grupo Escolar Gabriel Ferreira, tendo como primeira diretora a Profª. Ana Cordeiro. No pátio dessa escola existia outro secular pequizeiro, que tom-bou em uma noite de tempestade, talvez até de saudade do velho companheiro.

O Bairro conta hoje com várias esco-las de ensino infantil, fundamental e médio, além de instituições de ensino técnico e superior, dos setores público e privado.

A comunida-de da Vermelha deve muito ao Padre Car-valho, que assumiu a Paróquia Nossa Senhora

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PATRIMÔNIO CULTURAL

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de Lourdes – criada no dia 08 de setembro de 1960 – no dia 25 de outubro do mesmo ano.

Ao tomar posse na recém criada paróquia o Padre Carvalho procurou, com muito cuidado, tomar

conhecimento dos múltiplos problemas do bairro. Identifi cou como urgente a necessidade de

uma nova sede da matriz. Sentiu que as famílias católicas eram acolhedoras e de-sejavam demonstrar a sua fé construindo a sua igreja. Início certo de uma vida re-ligiosa mais intensa e de uma assistência social mais concreta às famílias e à classe trabalhadora desse pedaço de chão.

No dia 25 de dezembro de 1960, às 10 horas, realizou-se a benção solene e o lançamento da pedra fundamental da nova igreja.

A ideia do Padre Carvalho era construir um templo rústico, sem mui-tos adornos, uma “ofi cina de almas”, um

espaço em que a comunidade se sentisse em casa, que fosse amplo o sufi ciente para abrigar um grande número de fi éis, sim-

ples, despojado e propício ao recolhimento e à oração.

Padre Carvalho permaneceu na paró-quia até 31 de outubro de 1991. Foi um grande

pastor. Deixou gravado no coração de cada paroquiano a grandeza do seu amor a Deus e

ao próximo. Construiu a igreja que idealizou. Fez a comunidade crescer espiritualmente, mas

descobriu também muitos talentos.Lançou para o bairro, para a cidade

e para o mundo o artesão José Alves de Oliveira “Mestre Dezinho”, autor

das imagens da igreja.No interior da igreja, que

adquiriu, também, caráter mu-seal, chamam atenção as obras de arte: as esculturas do Mestre Dezinho, as peças de mobiliários e talhas do Mestre Expedito, as telas a óleo do artista plástico Afrânio Castelo Branco e o retábulo feito pelos mestres de obra Pedro Lopes, Venceslau e Manoel Assunção. Atualmente foram acrescidas peças do Mes-tre Kim, Ademar e um painel do artista Nonato Oliveira.

Depois do afastamento do Padre Carvalho, outros pa-dres passaram pela paróquia, deixando as suas marcas no cumprimento da missão evan-gelizadora a eles confi ada.

Em 11 de janeiro de 2003,

o Padre Antônio Francisco dos Santos Cruz as-sumiu o trabalho da paróquia, impondo a sua grande marca que é o acolhimento, a união, a dedicação aos idosos e o respeito à memória do Padre Carvalho.

O trabalho de evangelização da Paróquia Nossa Senhora de Lourdes tem rosto próprio, um agir diferente que leva as pessoas a se encontrarem com Deus e com o próximo. Resultado das manhãs de Oração que congrega e incentiva a partilha, pois desperta em cada participante a vontade de levar ao outro a alegria e emoções sentidas.

A Paróquia Nossa Senhora de Lourdes completou em 08 de setembro de 2010, cinquenta anos, com uma linda história. O caminho percor-rido foi longo, cheio de sacrifícios, de alegrias e de tristezas, mas repleta de esperança, fé e muito amor ao Deus pleno e vivo instalado no coração de cada paroquiano.

O progresso chegou à Vermelha e com ele, além dos benefícios, os seus inúmeros problemas, exigindo uma participação mais ativa e compro-metida de todos os moradores.

Todas as vantagens e desvantagens do pro-gresso, tenho certeza, não conseguiram tirar da nossa memória as lembranças dos velhos e bons tempos. O pequizeiro, os festejos, as brincadeiras e as histórias dos antigos moradores estão bem enraizadas na alma de cada um.

Atualmente, há uma perspectiva de mudan-ças signifi cativas no bairro Vermelha. O Conselho Estadual de Cultura ganhou, em dezembro de 2009, sede própria, na Rua 13 de Maio, n° 1513, e nela foi instalado, em 25 de agosto de 2010 o Centro Cultural da Vermelha. Espaço dedicado à discussão, ao incentivo e promoção de atividades educativas e culturais. Conta com a Biblioteca Co-munitária Professora Auristela Lima, que oferece um acervo de mais de 5.000 livros, disponíveis para consulta e empréstimo, com um auditório para realização de palestras e outros eventos, e uma sala de informática que possibilitará a inser-ção de jovens e adultos mais carentes no mundo digital. Com esse espaço, os moradores da Verme-lha foram presenteados e, em breve, voltarão aos velhos e bons tempos de efervescência cultural.

Nota: Algumas informações foram prestadas pelo Sr. Em-manuel dos Santos Costa, fi lho do antigo morador da Vermelha, Sr. Luzimar (Tio Luza), proprietário de um bar na Avenida Barão de Gurgueia. Nesse local se reuniam caçadores, pescadores e outros mentirosos.

__________________________________*Francisca Maria Soares Mendes é professora

e Vice-presidente do Conselho Estadual de Cultura do Piauí.

Revista Presença 23

PATRIMÔNIO CULTURAL

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Sabiam que o Conselho Estadual de Cultura saiu do centro velho de Teresina e subiu o planalto da Vermelha e ali está fazendo e acontecendo?

O bairro Vermelha e arredores ganharam, assim, um portento cultural. Explique-se: o Conselho chegou e transformou sua sede e lugar de suas funções num valioso instrumental de ação cultural da comunidade, assim se dando a conhecer como Centro Cultural da Vermelha, situado à Rua 13 de Maio, n° 1513.

Instalado ali em dezembro de 2009, agora está pronto o dito Centro: além dos espaços de exercício das funções do Conselho, dispõe

de bom Auditório, Biblioteca com milhares de títulos e Núcleo de Informática, todos abertos aos moradores do bairro e da própria capital. Há também espaços para exposições.

A inauguração se deu com a realização da Semana Cultural da Vermelha, evento com várias atividades, entre palestras, mesas de debate, ofi cinas de arte e leitura, apresentações várias e até uma luarada, aos auspícios da brilhante e agostina lua cheia da quarta-feira, dia 25. Tributo a Dezinho, Liz Medeiros e Nonato Oliveira (presente à abertura).

O presidente do Conselho é o acadêmico

Vermelha, o Planalto e a Serra Fonseca Neto*

NOSTALGIA

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Manoel Paulo Nunes. É dele a liderança que fez confl uírem os esforços de muitos na consecução dessas iniciativas chegadas em tão boa hora. Da lua já se disse mamorar as danações de noites trevosas, pois Paulo Nunes é um raio luminoso a atiçar a clarividência quando periga sob os sóis do nosso tempo. A ele coube a honra de receber, agitar novas ideias e instigar, sobretudo os novos, que sustentem o conjunto de iniciativas dadas. Com ele nesses cometimentos de apoios mútuos, duas dandaras idealistas: professora Maria Xavier, secretária estadual de Educação e Cultura e Sônia Terra, presidente da FUNDAC.

Um dos objetivos mais intensamente pretendidos é a acorrência dos moradores do bairro ao Centro Cultural. Nesse sentido, teve eco maior a fala que fez a Vice-preseidente do CEC Francisca Maria Mendes, fi lha da Vermelha e pessoa antenada à vida e memória do bairro, especialmente naquilo que diz respeito à Igreja Matriz de Lourdes.

Ouviu-se dela que a igreja foi erguida há quase cinquenta anos, próximo do lugar de uma capelinha antiga então demolida. Lembrou, em justa evocação, o Padre Francisco Carvalho, ide-alizador da nova igreja, como “ofi cina de almas”, e também deu testemunho sobre José Alves de Oliveira, mais conhecido como “mestre Dezinho”, artesão-artista que fez a maioria das esculturas dadas à veneração no dito templo. Acentuou o episódio da derrubada de um centenário e famoso pequizeiro existente no antigo largo de Lourdes, sacrifi cado, sob protestos, no fi nal dos anos 60, para alargar-se a, hoje, Avenida Barão de Gurgueia.

Esse “pequizeiro era referência, pois além de local de encontros era ponto fi nal de ônibus

urbanos e parada dos ônibus que faziam linha para os municípios do interior do Estado [e ao redor dele] instalaram-se bancas para vender alimentos e bebidas. Mingau maranhense, pirulito, milho assado e cozido, gelado (raspadinha), fígado de porco assado, frito de tripa de porco, língua de boi, piaba frita e o famoso frito de cabeça de porco da D. Aurora”.

Acrescenta Francisca Maria que o pequizeiro foi derrubado, “mas na sua despedida presenteou os moradores, principalmente as crianças, com grande quantidade de mel, guardado no seu tronco”. E pequizeiro tem muito nó e gondó.

Imagine o leitor a dramacidade da cena: aquele tronco envelhecido, e ainda mais rijo, tombando golpeado a machadadas e tromba de trator, e de cada ferida aberta o mel da divina Apia untando docemente as lâminas que o feriam. Em nome do progresso.

Lembrar a tragédia desse irmão pequizeiro do planalto da Vermelha é assaz oportuno. Quem sabe chame a atenção para outros agora criminosamente derrubados para o fogo carvoeiro lá naquele paraíso também rubro, fi lho de outro Gurgueia, na serra Vermelha.

Mestre Paulo Nunes, a bairraria e a natureza gurgueias têm graça, tragédia e histórias que a própria História se recusa a conhecer – e conceda o perdão por essa parafraseação forçada.

Publicad0 originariamente no Jornal Diário do Povo, Teresina, 30/08/2010.

__________________________________*Fonseca Neto é professor, historiador e

diretor do Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Piauí.

NOSTALGIA

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O bairro Vermelha, localizado na zona sul de Teresina, tornou-se o mais novo ponto de desenvolvimento da Cultura do Piauí. Desde fevereiro, o Conselho de Cultura do Piauí promove uma série de atividades socioeducativas e culturais visando o desenvolvimento da comunidade em temas relacionados à escola, mercado de trabalho, teatro e comunicações.

Diversas palestras foram realizadas com professores, mestres, doutores, advogados, arqui-tetos e jornalistas, que repassaram suas experiências nas mais diversas áreas. Bons exemplos disso foram as explanações dos professores Cineas Santos e Jeiel Maira Lucena, onde os participantes puderam aprender mais a respeito de incentivo à leitura e escrita e à avaliação dos métodos de ensino contem-porâneos. Temas da maior importância para quem atua na Educação. Com a palestra do Prof. Dr. Francisco Soares Santos Filho, Vice-presidente do CEE (Conselho Estadual de Educação do Piauí), o Sistema Nacional de Educação foi posto em pauta.

A palestra sobre A Guerra do Contestado, com o escritor catarinense Enéas Athanázio, também foi bastante prestigiada. Assim como, a do supervisor da Fazenda da Paz, Belisário Gomes Pena que abordou o tema: “Vida sim! Drogas não!”. Houve ainda, a palestra dos formandos da primeira turma do curso de Arqueologia e Conservação Rupestre da UFPI, Jurandir Barros, Herla Freitas e Cássia Mateus. Os alunos também pertencem ao núcleo de Antropologia e Pré-História-NAP, e foram orientados pela Profª. Drª. Jóina Freitas Borges, do Departamento de Arqueologia do CCN (Centro de Ciências da Natureza da UFPI). Aproveitando o momento, foi

realizada uma exposição de Arqueologia e Educação Patrimonial.

Igualmente importante para a área educacional foram os lançamentos dos livros: Descrição do Sertão do Piauí, do Padre Miguel de Carvalho; Chão de Meu Deus, Fontes Ibiapina; Etno-história Indígena Piauiense, João Gabriel Batista; A Tragé-dia Ocular de Machado de Assis, Hermínio Conde; e As Aventuras de Heliotero, Jonas Piauí realizados nesse período.

Durante os meses de atividade o Conselho recebeu várias visitas ilustres, como a do professor e escritor piauiense Cunha e Silva Filho; do secretário de Educação do Piauí, deputado Átila Lira; do acadêmico e ex-presidente da Academia Maranhense de Letras, escritor Jomar da Silva Moraes e sua fi lha Júlia Moraes. O presidente da Academia Piauiense de Letras, Reginaldo Miranda e

os acadêmicos Hardi Filho e Pedro da Silva Ribeiro também passaram pelo CEC; e por fim, a visita do secretário de Governo, Wilson Brandão.

Os alunos do Colé-gio Gabriel Ferreira par-ticiparam de oficina de customização de cami-setas, através do Design de Superfície, ministrada pela Profª. Joana Lima (IFPI - NOVAFAPI).

A literatura de cor-del também foi lembrada,

com a palestra do conselheiro Pedro Costa. Assim como a cultura indígena e seus descendentes no Piauí, através da explanação de Jóina Freitas Borges.

As defi nições do Escotismo e como funcionam os grupos de escoteiros do Piauí foram tema da palestra da Profª. Genuína Lima, presidente do 12º Grupo de Escoteiros de Teresina – Dom Severino Vieira Melo. Teve ainda a veiculação dos vídeos

Bairro Vermelha Desenvolve Educaçãoe Cultura

Acadêmico Reginaldo Miranda da Silva (Presidente da APL/PI), Enéas Athanázio (Escritor/SC), Presidente do CEC Manoel Paulo Nunes e Vice-presidente do CEC Francisca Maria Soares Mendes

Roberson Gramosa*Fotos: Arquivo Conselho Estadual de Cultura

NOTÍCIA

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“ABC da Ecologia”, do Prof. Cineas Santos e “Serra da Capivara”, ambos abordando o tema do meio ambiente.

Várias exposições fizeram parte das atividades. Novamente Cineas Santos dá a sua contribuição com a exposição Flores do Monturo e, posteriormente, foi a vez do jornalista Raimundo Alves de Lima, também conhecido como Ral, expor o seu trabalho intitulado Batuques, Confetes e Serpentinas. Jóina Freitas Borges e os alunos do curso de Arqueologia – UFPI, também marcaram presença com mais uma Exposição de Arqueologia e Educação Patrimonial.

A mulher também foi homenageada com a advogada Maria Vilma Alves, da Delegacia da Mulher de Teresina, que ministrou palestra sobre a inserção feminina no mercado de trabalho e com a peça teatral Dona Flor e Seu Único Futuro Marido, do Grupo Sino de Teatro de Rua, sob a direção de Jean Pessoa.

O meio artístico foi prestigiado com mesa redonda para avaliar o panorama do teatro piauiense atual. Participaram dessa discussão o ator, conselheiro do CEC e coordenador do evento, Jimmy Charles; a presidente do SATED (Sindicato dos Artistas do Piauí), a atriz Lari Sales e o diretor da Escola Técnica de Teatro Gomes Campos, Acy Campelo.

“A Paisagem Urbana e o Inventário de Proteção do Acervo Cultural de Teresina” foi tema da palestra do arquiteto e urbanista Olavo Pereira da Silva, especialista em restauração e conservação de monumentos históricos e coordenador do projeto IPAC-TE (Intervenção de Proteção do Acervo Cultural de Teresina). Ministrou ele palestra sobre a destruição do patrimônio arquitetônico piauiense.

A evolução e desenvolvimento das comuni-cações no Piauí também foram assunto para a palestra do jornalista Zózimo Tavares, editor-chefe do Jornal Diário do Povo e integrante da Academia Piauiense de Letras.

Além dessas atividades internas, o CEC também participou de atividades externas como a caminhada contra as drogas da Comunidade Escolar Gabriel Ferreira, percorrendo as Avenidas Barão de Gurgueia, Nações Unidas, Pedro Freitas e Joaquim Ribeiro.

Com todas essas grandes atividades e eventos, o Centro Cultural da Vermelha fi rma-se como um novo polo cultural do Estado do Piauí. Onde todos se encontram para desenvolver o melhor em educação, a cultura e as artes.

__________________________________*Roberson Gramosa é publicitário.

Profª. Joana e alunos na Ofi cina de Customização

Alunos apresentam peças customizadas

Exposição após a palestra sobre Arqueologia e Educação Patrimonial

Belisário Gomes, Carmen Teles, Lucimar Carvalho, M. Paulo Nunes, Francisca Mendes e Jimmy Charles da S. Gomes durante a Palestra “Vida Sim, Drogas Não”

NOTÍCIA

Revista Presença 27

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Onde fi ca a Casa Grande da Parnaíba? Que edifício corresponde a ela?

Não, não se trata de brincadeira ou pegadinha. A indagação é pertinente porque as respostas ou esclarecimentos sobre o assunto são tão confl itantes que saí das minhas pesquisas de fi m de semana cheio de dúvidas.

O leitor, portanto, deve cessar agora a leitura se imaginar que darei a resposta.

Em verdade, pretendo apenas mostrar e demonstrar como os livros, revistas, jornais e documentos por mim (re)lidos recentemente tratam do tema de forma contraditória.

A confusão começa com a variedade de denominações usadas para designar o sobrado construído em duas etapas, entre 1758/1770, para servir de residência de Domingos Dias da Silva: Casa Grande da Parnaíba, Solar dos Dias da Silva, Casarão de Simplício Dias, Casarão dos Dias da Silva, Solar Casa Grande.

A pergunta – qual o sobrado que representa a Casa Grande da Parnaíba? – vem sendo respondida pelos pesquisadores e historiadores de três maneiras:

1ª) é o edifício voltado para a Rua Grande, atual Avenida Presidente Vargas, com as linhas arquitetônicas razoavelmente preservadas;

2ª) é o edifício descaracterizado nas linhas arquitetônicas e situado na Rua Monsenhor Joaquim Lopes (antiga Rua da Glória), próximo da Igreja de Nossa Senhora da Graça;

3ª) é o conjunto dos dois edifícios, funcio-nando o da Avenida Presidente Vargas como dependência ou anexo da Casa Grande.

OPINIÕES VAGAS E/OU CONTRADITÓRIASExistem autores que não primam pela clareza

ao opinarem sobre o assunto e até os que caem em contradição, como se observa nos seguintes exemplos:

Em 1884, de passagem na cidade da Parnaíba, visitamos a casa solarenga de Simplício Dias da Silva, um vasto prédio de sobrado, situado na Rua Grande, com comunicação interna para a Igreja Matriz …(COSTA, F. A. Pereira da. Cronologia Histórica do Estado do Piauí, p. p. 225/226).

a memória é fraca e tênue como o corpo;o que reluz d’outrora agora, muito pouco...

A voz d’antanho tange numa voz de morto...

O poema é faca de ponta que escava em vão.A lua, no entretanto, que no céu circula,

é a mesma d’outrora e na lâmina tremula.

Memorial da Cidade Amiga – A. C. F.

Onde Fica a Casa Grande da Parnaíba?

Alcenor Candeira Filho*

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PATRIMÔNIO HISTÓRICO

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Data desta época o esplêndido nicho, trabalho português, em pedra de Dioz, colocado na quina da Casa Grande (…)

Próxima à Casa Grande erguia-se a Igreja Matriz, construída pelos Dias da Silva e a ela ligada por uma galeria. (BRANCO, Renato Castelo. Tomei um Ita no Norte. São Paulo, L. R. Editores Ltda., 1981, p. 24).

Os dois renomados escritores reportam-se à Casa Grande como sendo o prédio localizado na Rua Grande (Avenida Presidente Vargas), ao tempo em que ressaltam a comunicação interna entre ele e a Igreja de Nossa Senhora da Graça, situação difícil de ser concebida, se se considerar o fato de que entre o prédio da Rua Grande e a Igreja existe o sobrado da Rua Monsenhor Joaquim Lopes.

Sem referir-se ao nome da rua em que está situado, Carlos Eugênio Porto fornece uma só pista a respeito do prédio famoso – a ligação interna entre ele e a Igreja:

Simplício Dias (…) era dado a extrava-gâncias asiáticas como a construção daquela galeria ligando a igreja ao palá-cio, a respeito do qual se teciam lendas maravilhosas. (PORTO, Carlos Eugênio. Roteiro do Piauí. Rio de Janeiro, Editora Artenova S. A., 1974, p.76).

TRÊS INDICAÇÕES SOBRE A LOCALIZAÇÃO DA CASA GRANDE

Voltemos às três propostas de esclarecimento sobre qual é exatamente o sobrado que representa a Casa Grande da Parnaíba.

De modo objetivo vejamos transcrições e comentários que abonam cada hipótese:

1ª HIPÓTESE: Casa Grande = sobrado da Avenida Presidente Vargas.

Este é o entendimento que prevalece no Instituto Histórico, Geográfi co e Genealógico de Parnaíba – IHGGP e no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.

No âmbito do IHGGP posso citar como defensores da ideia de que a Casa Grande é representada pelo sobrado da Avenida Presidente Vargas: Mário Pires Santana, Reginaldo Pereira do N. Júnior, Régis de Athayde Couto, Sólima Genuína, Vicente de Paula Araújo Silva, Dederot Mavignier, Renato Neves Marques e outros.

Coincidentemente esse grupo de intelectuais do IHGGP é o mesmo que vem liderando o movimento que defende a ideia de se comemorar

300 Anos de História da Parnaíba, correspondente ao período de 11/06/1711 a 11/06/2011, com base na criação, fundação ou instalação da denominada e imaginária Vila Nova de Parnaíba, que nunca existiu, pois é uma ficção do baiano dono de sesmarias – Pedro Leal Barbosa –, inexistindo qualquer documento, ato ou lavratura ofi cial a respeito, e simplesmente trecho corroído pelo tempo, com palavras ilegíveis, de mero traslado de carta, dirigida ao Bispo do Maranhão, autoridade eclesiástica não competente, pois o território do Piauí estava ainda subordinado à Diocese de Pernambuco, o que torna o “documento nulo de pleno direito”. No mencionado traslado de carta, de junho de 1711, é feito pedido de autorização para construção de igreja ou capela não construída.

É importante salientar que há uma evidente confusão entre história administrativa (vila) e história eclesiástica (freguesia ou paróquia), pois a data da carta, se realmente histórica e verdadeira, pertence à Diocese de Parnaíba, que já possui e consagra 8 de setembro como sua data magna, e não teria como abrigar outra data, no caso 11 de junho, a qual já pertence à Marinha do Brasil.

Na mesma linha de pensamento do IHGGP, no que diz respeito à Casa Grande, posiciona-se o IPHAN, como se verifi ca no livro Conjunto Histórico e Paisagístico de Parnaíba (Superintendência do IPHAN no Piauí. Teresina, 2010, p. 50):

Outra edificação de destaque, talvez a mais importante delas, é a antiga Casa Grande, ou Casa de Simplício Dias, como é atualmente conhecida (…). Apesar de bastante modifi cada no pavimento térreo, o casarão ainda conserva praticamente intactos elementos característicos nos dois pavimentos superiores (…). Outro elementointeressante é o pequeno nicho aplicado ao cunhal.

O texto acima é seguido de duas fotografi as da Casa Grande, com esta legenda:

Vista da Casa de Simplício Dias, antiga Casa Grande, a partir da Av. Presidente Vargas e do terraço do Hotel Delta.

2ª HIPÓTESE: Casa Grande = sobrado da Rua Monsenhor Joaquim Lopes.

Aqui a opinião predominante na Academia Parnaibana de Letras – APAL, que vem lutando desde a sua fundação em 1983 pela conservação e restauração da Casa Grande e do Palacete Vista Alegre.

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A partir de 1985, a Academia recebeu e expediu diversos documentos (ofícios, memoriais, cartas, relatórios) que tratam do assunto em tese.

Em fevereiro de 1985, o então Secretário Geral do Ministério da Educação, Coronel Sérgio Pasquali, enviou uma carta (01/02/1985) ao Secretário de Cultura, Desportos e Turismo do Piauí, deputado Jesualdo Cavalcanti Barros, e outra destinada ao escritor parnaibano e membro da APAL Renato Castelo Branco (15/02/1985), das quais transcrevo os seguintes trechos:

Brasília, 01 de fevereiro de 1985. Dep. Jesualdo:

(…)Informo que o MEC, através do FNDE, está liberando 350 milhões de cruzeiros para reequipamento da Fundação Cultural do Piauí e compra e restauração da Casa Grande de Simplício Dias, em Parnaíba.

Brasília, 15 de fevereiro de 1985. Meu caro Renato:

(…)É também grande minha satisfação informar-lhe que estamos liberando para a Secretaria de Cultura, Desportos e Turismodo Piauí a importância de 200 milhões de cruzeiros para a aquisição e restauração da Casa Grande de Simplício Dias (Parnaíba), atendendo a uma antiga aspiração sua, e mais 150 milhões para reequipamento da Fundação Cultural do Estado.

Em razão das correspondências assinadas pelo Coronel Sérgio Pasquali, a APAL elaborou em 1985 um memorial dirigido ao Secretário de Cultura, Desportos e Turismo, deputado Jesualdo Cavalcanti Barros, nos seguintes termos:

Senhor Secretário:

A Academia Parnaibana de Letras, por sua Diretoria infraassinada, toma a liberdade de expor a V. Ex.ª. o seguinte:(…)

4. Que a Casa Grande dos Dias da Silva, localizada ao lado da também histórica Catedral de Nossa Senhora da Graça, na Rua Monsenhor Joaquim Lopes, às proximidades da Avenida Presidente Vargas, é, assim, o local ideal e oportuno para transformar-se no Centro de Cultura de Parnaíba, em

cujas dependências poderão ser abrigados o museu da cidade, um auditório, a sede da APAL e biblioteca pública.

(…)7. Por oportuno, segue em anexo a atual proposta de venda do mencionado imóvel. O novo preço, traduzido em moeda corrente,está expresso também em ORTN’s.

8. O nosso confrade Renato Castelo Branco assegurou aos companheiros Alcenor Rodrigues Candeira Filho e Cândido de Almeida Athayde que tem todas as condições para conseguir da Fundação Roberto Marinho os valores necessários para fazer face às despesas com restauração, adaptação e pintura da Casa Grande.

Em 11/03/1985, uma Comissão da APAL, integrada por Cândido de Almeida Athayde, Salmon Noronha Lustosa Nogueira e Lauro Andrade Correia, apresentou ao Presidente João Nonon de Moura Fontes Ibiapina relatório com dados e informações sobre a Casa Grande. Eis parte do teor desse documento:

(…)A visita ao local nos levou a confirmar a existência e separação nítida de dois edifícios, a saber:a) Sobrado da atual Rua Monsenhor Joaquim Lopes, nº 629, com 3 pavimentos, próximo à Catedral, identificado como CASA GRANDE dos Dias da Si lva, construído por Domingos Dias da Silva em 1770, e que serviu também de residência de seu filho – Simplício Dias da Silva. O sobrado foi reformado e conservado, certo que a reforma principal foi empreendida pelo então proprietário Sr. Rodrigo Ricardo Coimbra.

b) Sobrado de esquina da Avenida Presidente Vargas com a Rua Monsenhor Joaquim Lopes, próximo ao anterior, mas mais distante da Catedral, identificado como Sobrado Vista Alegre, construído pela família Silva Henriques, representada por Manoel Antônio Silva Henriques, sobrinho de Domingos Dias da Silva, e seu fi lho Domingo Dias da Silva Henriques. O sobrado, além de residência da família Silva Henriques, foi residência de José Francisco Miranda Osório, casado, primeiras núpcias, com Angélica da Silva Henriques, fi lha de

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Manoel Antônio da Silva Henriques. Ambos os edifícios possuem 3 pavimentos, mas facilmente se verifi ca que a Casa Grande tem altura superior a 1,50m mais que o sobrado Vista Alegre.

(…)Não temos dúvida, em poder reafirmar que a CASA GRANDE é o sobrado colonial, contíguo à Catedral, com 3 pavimentos, construído em 1770, se constituindo no mais importante patrimônio histórico-cultural da cidade.

Em 14/06/1986, novamente a Academia se dirige à Secretaria Estadual de Cultura, Desportos e Turismo, agora com novo titular, o Secretário Monsenhor Solon Correia de Aragão.

O documento entregue ao Secretário Solon praticamente reproduz o teor do ofício anteriormente encaminhado à mesma Secretaria e é assinado por toda a Diretoria da APAL, a saber: José de Anchieta M. de Oliveira (Presidente), Caio Passos (Secretário-Geral) Bernardo Batista Leão (1º Secretário) Raimundo Fonseca Mendes (2º Secretário), Maria da Penha F. e Silva (1ª Tesoureira), José de Lima Couto (2º Tesoureiro)e Raul Furtado Bacelar (Bibliotecário).

Em ofício datado de 06/08/1987 e destinado ao governador Alberto Tavares Silva, a APAL insiste na questão do tombamento da Casa Grande dos Dias da Silva.

Desse ofício constituído de cinco folhas e assinado por Lauro Andrade Correia como presidente da Academia e pelo secretário-geral Alcenor Rodrigues Candeira Filho, destaco este trecho:

Que assim, esta Academia tem opinião fi rmada no sentido de que a Casa Grande dos Dias da Silva, localizada ao lado da também histórica Catedral de Nossa Senhora da Graça, na atual Rua Monsenhor Joaquim Lopes, nº 629, nas proximidades da Avenida Presidente Vargas, é o prédio de maior valor histórico de Parnaíba, com três pavimentos e construído na segunda metade do século XVIII por Domingos Dias da Silva, para sua residência.

Em 1997, a APAL encaminhou ao prefeito Antônio José de Moraes Souza Filho dois memoriais. O primeiro focaliza três assuntos: Biblioteca Municipal, Museu da Cidade e Arquivo Público Municipal; o outro trata do Sobrado Vista Alegre.

Em ambos os documentos a APAL insiste em

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distinguir a Casa Grande do Sobrado Vista Alegre. Esses memoriais foram assinados praticamente por todos os acadêmicos residentes em Parnaíba: Lauro Andrade Correia, Alcenor Rodrigues Candeira Filho, Carlos Araken Correia Rodrigues, Edmée Rêgo Pires de Castro, Francisco Iweltman Vasconcelos Mendes, Francisco Pereira da Silva Filho, Israel José Nunes Correia, José de Anchieta Mendes de Oliveira, Renato Neves Marques, Rubem da Páscoa Freitas, Salmon Noronha Lustosa Nogueira e Cândido de Almeida Athayde.

As acadêmicas e historiadoras Maria Luíza Mota e Maria da Penha Fonte e Silva externam com muita clareza as suas convicções sobre o tema. Do livro Parnaíba, Minha Terra, da Maria da Penha (Parnaíba, 1987), transcrevo trechos das páginas 41 e 50:

Na Rua Monsenhor Joaquim Lopes, antiga Rua da Glória, esquina com a Avenida Presidente Vargas fi ca situada a Casa Grande da Parnaíba (…) com três pavimentos (…). É preciso não confundir. A casa solarenga com frente para a Avenida Presidente Vargas é o sobrado Vista Alegre e não faz parte do histórico sobrado dos Dias da Silva, que é um só bloco com 06 janelas de sacada e uma porta larga e é a mais alta. (p. 41).

O sobrado colonial Vista Alegre está situado

na Avenida Presidente Vargas, ao lado da suntuosa Casa Grande da Parnaíba. O Vista Alegre ainda conserva autêntica a sua arquitetura; é mais baixo e pertencia a Manoel Antônio da Silva Henriques, parentebem próximo de Domingos Dias da Silva (…). A fachada do sobrado Vista Alegre não foi reformada como a Casa Grande e conserva suas características coloniais (p. 50).

Por sua vez, Maria Luísa Mota declara nos livros de sua autoria José Francisco de Miranda Osório e seus Descendentes (Editora Henriqueta Galeno, Fortaleza, p. 60, 1980) e Parnaíba no Século XX (Gráfi ca Aley, Fortaleza, 1994, p. 62):

Sobrado Colonial Vista Alegre, ao lado da suntuosa e secular Casa Grande de Simplício Dias. Aí morou Miranda Osório… Na Avenida Presidente Vargas o bicentenário sobrado Vista Alegre, que pertenceu à família Miranda Osório …

Cito, finalmente, como defensor dessa segunda corrente de pensamento Cláudio Bastos, em cuja gigantesca obra Dicionário Histórico e Geográfi co do Estado do Piauí, produto de 32 anos de pesquisas, está escrito sobre os dois sobrados em questão:

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PARNAÍBA: Os prédios mais antigos são: Casa Grande da Parnaíba – sobrado de 3 pavimentos, construído entre 1768/70, por Domingos Dias da Silva para sua resistência. Fica na Rua Monsenhor Joaquim Lopes, 129, junto ao sobrado Vista Alegre, que tem frente a antiga Rua Grande atual Avenida Presidente Vargas (…). Sobrado Vista Alegre – 1740. Era propriedade de Manuel Antônio da Silva Henriques. Ao lado da Casa Grande. Esquina da Rua Grande (Av. Presidente Vargas) com Rua Monsenhor Joaquim Lopes. 3 andares. Nicho no 2º andar, com a imagem de Nossa Senhora da Conceição (…) (BASTOS, Cláudio. Dicionário Histórico e Geográfi co do Estado do Piauí. Teresina, Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1994, p. 47).

3ª HIPÓTESE: Casa Grande = o conjunto dos dois edifícios, sendo o da Av. Pres. Vargas dependência ou anexo do outro.

Destaco como defensores do ponto de vista acima os intelectuais parnaíbanos Orfila Lima dos Santos, Elita Araújo e José de Nicodemos Alves Ramos, como se constata nas seguintes transcrições:

Outro marco foi o Solar Casa Grande, residência dos Dias da Silva, localizado ao lado da igreja (…) Raimundo foi assassinado aos trinta e nove anos, sendo que no anexo do Solar Casa Grande, o edifício voltado para a atual Avenida Presidente Vargas, na esquina, ainda temos o símbolo instalado relacionado ao assassinato. (Parnaíba e A Nossa História – trabalho de Orfi la Lima dos Santos encaminhado a APAL através da carta datada de 05/11/1997).

Existe ainda um sobrado de aspecto bem antigo que está carcomido pelo tempo, anexo à Casa Grande de Simplício Dias – Vista Alegre, que pertenceu a Manoel Antônio da Silva Henriques, situado na Presidente Vargas. Alguns o consideram casarão; outros, não. Sua entrada principal é para a referida avenida. É quase certo que esse sobrado pertencia à Casa Grande. (ARAÚJO, Maria Elita Santos de. Parnaíba: O Espaço e O Tempo. Parnaíba. Gráfi ca Sient, 2002, p. p. 52/53).

Aqui começou a construir o complexo arquitetônico da Casa Grande, formado

por dois edifícios contíguos, ambos com três andares: o térreo, destinado ao comércio; e os outros dois, à família. Um virado para a Rua Monsenhor Joaquim Lopes, atualmente bastante descaracterizado. O outro voltado para a Rua Grande, que se encontra destroçado, mas permanece com muitas de suas características, entre elas um pequeno nicho para colocação de santo protetor. (RAMOS, José de Nicodemos Alves. Parnaíba de A a Z – Guia Afetivo. Brasília. Multicultural Arte e Comunicação Ltda., p. 78).

Mais importante do que discutir sobre qual prédio representa verdadeiramente a Casa Grande – são as conquistas que estão sendo alcançadas no presente, com o tombamento do centro histórico e paisagístico de Parnaíba e com o início e andamento das obras de recuperação do sobrado voltado para a Avenida Presidente Vargas.

Com a conclusão da obra, resta saber o que será instalado no prédio reformado: Museu da Parnaíba? Biblioteca Municipal? Centro Cultural? Arquivo Público Municipal?

Eis aí um assunto pelo qual os parnaibanos devemos nos interessar.

Para facilitar a decisão sobre o uso do edifício em restauração pelo IPHAN na Avenida Presidente Vargas, lembro que a Esplanada da Ferrovia tem ao seu derredor a Secretaria Municipal de Educação, a Secretaria Municipal de Cultura, a Secretaria Municipal de Turismo, o Centro de Eventos Mandu Ladino, o Museu do Trem e a Faculdade de Direito da UESPI, e para a Esplanada da antiga Estrada de Ferro Central do Piauí estão projetadas duas obras básicas para a nossa cidade: Biblioteca Pública Municipal, moderna, com capacidade para 50.000 livros; Arquivo Público Municipal, moderno, com ar condicionado para a conservação dos documentos e papéis antigos, desgastados pelo tempo.

Lembro, fi nalmente, que Parnaíba – Cidade Polo, Rainha do Delta e Cidade Universitária, com mais de 145.000 habitantes, dos quais 10.000 universitários, não conta ainda com seu Museu Municipal.

Parnaíba, abril de 2011.

__________________________________*Alcenor Candeira Filho é professor, ensaísta,

poeta e membro das Academias Piauiense e Parnaibana de Letras.

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Os que escrevemos, vivemos praticamente de lembranças. E é exatamente em função delas que povoamos o nosso universo espiritual. Não é sem razão que as grandes obras literárias, patrimônio comum do legado espiritual dos povos, resultam todas da expressão, sob a forma artística, desse universo de lembranças, guardadas intactas na memória involuntária de seus geniais criadores. Tal o que ocorre com um Marcel Proust, ao recriá-las em sua obra monumental, Em Busca do Tempo Perdido que, em francês, possui um nome poético, A La Recherche du Temps Perdu, e ao reconstituir a vida da alta burguesia francesa do fi nal do século XIX, realizou o maior romance de todos os tempos; ou o genial romancista Gabriel García Márquez, transformando seu mundo de lembranças em obras geniais que a gente lê e relê a vida inteira, como Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera; ou o grande Balzac, imprimindo a nota justa da realidade transitória, em sua Comédia Humana; ou ainda o divino Flaubert, emprestando a nota sublime da realidade eterna a obras primas como A Educação Sentimental. Que sei mais? E Tolstoi, com o inadjetivável Guerra e Paz? E assim Eça de Queiroz, com Os Maias e A Ilustre Casa de Ramires; ou Machado de Assis, com Memórias Póstumas de

Braz Cubas, Dom Casmurro e Quincas Borba, com os quais empreende a renovação do romance brasileiro; Graciliano Ramos, com Angústia e Vidas Secas; ou Lúcio Cardoso, com a Crônica da Casa Assassinada, (não morram, por favor, antes de ler esta obra prima!). Seria, enfi m um desfi lar de obras e autores famosos que entretêm de imagens e lembranças o mundo policolor de um leitor compulsivo, ao longo de uma vida extensa que já se aproxima, segundo o romancista Pio Baroja, “de la ultima vuelta del camino.”

Em Brasília, como já o disse uma vez, logo após o seu passamento, integrando aquela diáspora piauiense que vinha mantendo, em torno de nossa terra, na solidão do Planalto Central, constituíamos, em torno de Petrônio, pequeno grupo fechado que se reunia, quase sempre nas tardes de sábado, nos arredores da Capital, levados talvez pela presença daquelas afi nidades eletivas que Raissa Maritain, em um livro que marcou fundamente a nossa geração, caracterizaria com o próprio título daquela obra – As Grandes Amizades. A essas reuniões presidia a simplicidade encantadora e a graça amorável de D. Iracema, sua dileta companheira e amiga de todas as horas.

H. Dobal, o saudoso e excelso poeta de nossa

Petrônio PortellaM. Paulo Nunes

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VULTOS PIAUIENSES

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geração e animado partícipe daqueles encontros, em artigo da mais tocante inspiração, em memória de Petrônio, exprime o desalento que a todos afetou naquele momento ao assinalar:

“O grupo reduzido da Chácara Valença, o fechado clube familiar a quem ele servia um vinho alegre e o brilho, a agilidade de suas conversas, é agora apenas uma lembrança de sábados passados”.

Repovoando o meu mundo de lembranças, penso às vezes que talvez não. E evoco aquele passado distante no tempo, não como def ini t ivamente passado, mas guardado intacto na memória, como imagens inapagáveis de um tempo interior, quais aquelas do nosso poeta maior, Manuel Bandeira, em seu poema sempiterno “A Última Canção do Beco”:

“Vão demolir esta casaMas, meu quarto vai fi car.

Não como forma imperfeitaNeste mundo de aparências:

Vai fi car na eternidadeCom seus livros, com seus quadros,

Intacto, suspenso no ar”.

Ao longo de tanto tempo decorrido, mais de trinta anos, quando a Indesejada das Gentes da imagem do velho bardo, já recolheu a sua impiedosa safra de sobreviventes daquela geração, daquela turma gloriosa do velho Colégio Diocesano, eis que a enérgica fi gura de Petrônio parece emergir da pátina do tempo, para instaurar-se defi nitivamente entre seus contemporâneos e os que ainda hão de vir, restituindo à história e a seu lugar de relevo aquela fi gura emblemática, na “austera, apagada e vil tristeza”, como sabe o poeta excelso, que constitui hoje a nossa vida pública.

Zózimo Tavares, jornalista brilhante, independente e lúcido como os que mais o sejam, figura de relevo de nossa Academia de Letras, a velha Casa de Lucídio Freitas, em um livro marcante e defi nitivo, em bela edição do Senado Federal, Petrônio Portella, o restitui, íntegro e altaneiro, à nossa história republicana.

Trazendo-o vivo de suas raízes valencianas, cidade matriz da história piauiense que com ele

mais ainda se engrandece, desde aquela inquieta criança que pronunciava tão mal as palavras, de tal maneira que às vezes as deturpava em inconvenientes associações; nascido no seio de uma família numerosa, como ocorria com nossas antigas famílias, presidida por um patriarca íntegro e digno, Eustachio Portella Nunes, também figura de projeção em sua terra, da qual seria duas vezes prefeito, até colocá-lo, através de sacrifícios e vicissitudes, no patamar dos luminares da República, realiza obra das mais significativas para a nossa memória histórica.

Adotando a técnica do “fl ashback”, como no romance moderno ou no cinema de vanguarda, o livro vai do fi m para o começo, abrindo com a morte do personagem para, a seguir, reconstituir-lhe a personalidade de escol, do cavaleiro andante, na tentativa que para muitos parecia vã ou ensandecida, com a anistia ampla, geral e irrestrita, com que restauraria no país os pressupostos do regime democrático e republicano. O painel está perfeito em sua moldura. Fez ele desfi lar, com suas grandezas e misérias, os personagens do drama e às vezes da tragédia da condição humana. Grande Zózimo, muito lhe deve o país por esta obra!

O livro está dividido em três partes ou blocos: 1. O Arquiteto da Abertura, que começa com “Os Últimos Dias de Petrônio”, como já foi dito, culminando com a Anistia e dois capítulos que incluem ainda a reforma partidária e a reação à abertura, com o terrorismo dos insatisfeitos com a abertura. 2. A Missão Portella, com os avanços e recuos da abertura, como o retrocesso, com o chamado Pacote de Abril. 3. Finalmente, a última parte, a que o autor intitulou, talvez impropriamente, a meu ver, O Gênio da Raça, com a sua consagração, como “o piauiense do século” e a descrição do cenário piauiense de sua atuação política.

Tudo realizado com o maior critério e exação, de uma fi delidade estreme às fontes consultadas, com a probidade e a isenção de um historiador de peso e medida. Nunca, talvez, em nosso país, a crônica política se alteou tanto e tão dignamente. Lembra, em certos aspectos, o pai da historiografi a portuguesa, feita em bases científicas, cujo bicentenário de nascimento comemoramos no ano passado, o celebrado autor da História de Portugal, Alexandre Herculano.

Não iremos contar fatos signifi cativos que defi nem neste livro a personalidade de Petrônio Portella, mas apenas citar um episódio, a meu ver emblemático, ocorrido logo após assumir ele a função de ministro da Justiça no governo do presidente Figueiredo. Foi uma espécie de teste da validade da Lei da Anistia, que proporcionou a volta dos exilados políticos ao país, cuja inspiração é de sua autoria.

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É o ministro chamado por sua secretária, ao telefone, anunciando o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, Luís Inácio Lula da Silva, que lhe deseja falar, em caráter de urgência. Ao atendê-lo, este o informou que a Câmara Municipal de Porto Alegre fora impedida de dar posse a um vereador cassado pela Revolução de 1964 e agora eleito novamente, mas impedido de tomar posse pelo comandante do III Exército, general Antônio Bandeira, famoso representante da mais dura fase da repressão.

O ministro pega o telefone vermelho, com que se comunica diretamente com o presidente da República e lhe comunica a fato. Este lhe pergunta o que deveria fazer. Responde-lhe então o ministro:

“O senhor liga para o general Bandeira e lhe manda cumprir a decisão da Justiça que é dar posse ao vereador, em Porto Alegre”. Imediatamente, assim foi feito. Esse teste serviu para dar força a Petrônio Portella para que se ampliasse o seu projeto de anistia e, assim, todo o seu projeto de abertura. Aí começou no país um grande movimento sindicalista com independência e coragem. (Informações transmitidas ao autor pelo deputado Paes Landim, amigo pessoal do biografado. Ob. cit., pp. 55-56).

Nabuco dizia que um gesto, por si só, defi ne uma personalidade. Atitudes intimoratas como esta, de Petrônio, defi nem seu caráter e a personalidade de exceção, ao longo de sua vida pública, como disse uma vez, no fi nal de seu discurso de posse, ao assumir a função de ministro da Justiça do país, no processo de abertura política:

“Há homens que gostam da luta. Eu sou um deles. Caem e logo se levantam com as armas na mão e a fé renovada”.

Uma figura histórica, como Petrônio, geralmente se engrandece ainda mais com a biografia que dela se traça. Eça de Queiroz deve muito de sua projeção literária e da alta compreensão de sua obra admirável à biografi a que lhe dedicou o eminente crítico e historiador da literatura portuguesa João Gaspar Simões. A fi gura de D. Pedro I cresceu mais ainda na admiração

dos pósteros com a biografia monumental que lhe traçou Octavio Tarquínio de Sousa, em obra extraordinária, A Vida de D. Pedro I. Assim, a fi gura de Petrônio adquire em nossos dias maior grandeza e compreensão com este livro de Zózimo Tavares. Um livro feito com amor, seriedade e simpatia. Daí a importância e grandeza que ele ganha em nossa bibliografi a política.

Mas é o historiador José Honório Rodrigues quem lhe ressalta o papel de homem de visão prospectiva, ao destacar-lhe a contribuição excepcional prestada à cultura brasileira, ao editar, mediante o exercício de suas duas gestões na presidência do Senado Federal, em 1971/72 e em 1977/78, obras do mais alto valor historiográfi co e político e da maior signifi cação para a nossa cultura. Além de prestar signifi cativa homenagem a um poder que vivia seu momento de atrofi a, procura ele salientar a ação do Parlamento Brasileiro na obra de construção do país, com uma rica

bibliografia: O Parlamento e a Evolução Nacional , enriquecida com a luminosa Introdução do já citado José Honório Rodrigues, as Atas do Conselho de Estado, a 2ª série de O Parlamento e a Evolução Nacional, que não pôde ser concluída, os Anais do Senado do Império do Brasil, dos quais foram ainda editados 45 volumes, para não falarmos nas publi-cações da coleção por ele inti-tulada Bernardo Pereira de Vasconcelos, político de sua particular admiração.

Por esse admirável empreendimento, que honra a cultura nacional, foi ele agraciado, muito justificadamente, pela Academia Brasileira, com a Medalha Machado de Assis, o mais alto galardão daquele sodalício.

Ao rememorar-lhe a atuação política e parlamentar, logo após o seu desaparecimento, pergunta aquele historiador, intérprete e reformador da teoria da História do Brasil:

“Quem fez isto antes dele? Houve, eu sei, parlamentares sem igual: não digo Bernardo Pereira de Vasconcelos, mas um Visconde do Rio Branco, o maior de todos; houve grandes presidentes, mas tenho poucas dúvidas em dizer que Petrônio Portella foi um dos maiores presidentes que o Senado possuiu. Era um político por vocação, com extraordinária percepção política, grande sensibilidade histórica, habilíssimo negociador, conciliador nato, que abafava

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em seu peito quaisquer ressentimentos. Ele reuniu, acolheu, acumulou uma grande experiência política, sobretudo para o mo-mento histórico que seguíamos. Será muito difícil substituí-lo, nessa quadra, pois ele era destituído de rancores, tinha sentimento de grandeza, intimidade pessoal e política com a situação contemporânea, podendo assim ajudar a missão de redemocratização. Tudo aos poucos, lenta e gradativamente, como foi sempre o costume das lideranças brasileiras nas sucessivas gerações.”

Saudando o agraciado na Academia Brasileira, na condição de historiador e acadêmico, disse ele, em nome da instituição:

“Ela representa, em conjunto, uma afi rmação da crença do Senador Petrônio Portella no poder das ideias, no valor da cultura, da fé na inteligência do país. Ele criou e cultivou no Congresso Nacional um ambiente de estímulo à cultura, e a Academia Brasileira de Letras, ao reconhecer esse seu serviço, pratica um ato de manifesta justiça e inspirada sensibilidade.”

Esse capítulo se insere nas preocupações que Petrônio sempre teve em sua vida pública, tão curta e tão prodigiosamente densa em experiência humana e vivência dos problemas essenciais, com as graves afl ições da condição humana.

Ainda no Piauí, como prefeito, inicialmente e depois, como governador, seria ele despertado para os problemas da educação e da cultura.

Ao assumir a Prefeitura, fui por ele convocado a organizar um ginásio modelo em um bairro popular, o do Marquês, na zona Norte da capital, densamente povoado e sem uma escola daquele nível. Criou-se, assim o Ginásio, depois Colégio Eurípides de Aguiar, que depois se instalaria em prédio modelar, hoje também ocupado, mediante novas ampliações, pelo Centro de Formação Professor Odilon Nunes, destinado à preparação de professores para o ensino médio e fundamental.

Como governador, preocupado com o défi cit espantoso de escolarização em nível básico, que lhe apresentara, com estudo feito a seu pedido, realizou, mediante a aplicação de recursos obtidos através da Aliança para o Progresso, em convênio com o governo norte-americano, bem como por conta de subsídios decorrentes do Plano Trienal de Educação, no governo do presidente João Goulart, de que fui coexecutor no Estado, na condição de representante do Ministério da Educação, um programa de ampliação da escolaridade no nível básico, de tal modo que cada município pudesse contar com o seu ginásio, com

o qual pretendera atender àquele desafi o de nossa realidade educacional.

No âmbito da cultura, também lhe deve o Estado iniciativa do maior relevo, qual o da criação do Conselho Estadual de Cultura, em 12 de outubro de 1965, antecipando-se à criação do próprio Conselho Federal de Cultura, em 1966. Hoje é o segundo instalado no país em sede própria. É também da responsabilidade do Conselho a edição da revista Presença, já em seu nº 45 (este que aqui exibimos), uma revista de cultura que hoje se emparelha às melhores do gênero, no país, no julgamento das pessoas doutas, e de grande aceitação no Brasil e em Portugal. Conta ainda, o Conselho, com uma biblioteca comunitária, de cinco mil volumes, em pleno funcionamento, e um centro de informática em fase de instalação e já disponho para isso do indispensável equipamento básico, localizada no bairro Vermelha, nesta capital. Igualmente, foi de sua iniciativa, por intermédio daquele Conselho, a primeira edição da obra básica do historiador Odilon Nunes, Pesquisas para a História do Piauí, já na 3ª edição.

Por todas essas iniciativas foi ele agraciado com o título de “piauiense do século” e, num gesto da maior grandeza de seus pares, eleito post-mortem membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, de que trata o seu biógrafo, na obra que ora lançamos, com pompa e circunstância.

Somente lendo-a integralmente poderemos sentir e analisar a dimensão dessa personalidade de exceção que foi Petrônio Portella.

No final do livro antes mencionado, de Octavio Tarquínio de Sousa, A Vida de D. Pedro I, ao assinalar os lances emocionantes de uma vida tão breve e tumultuada, daquele homem de escol que foi o nosso primeiro Imperador, que teve a coragem e a determinação de deixar nas mãos débeis de uma criança um trono que ajudara a construir, valendo-se da proteção do patriarca da nossa independência, José Bonifácio, para dar combate, em sua terra, ao absolutismo, na pessoa de seu irmão e usurpador, o malfadado rei D. Miguel, lutando, ao mesmo tempo, pelas conquistas liberais para o povo português, mereceu do seu biógrafo um comentário exemplar:

“D. Pedro não foi um homem de ordinária medida”.

Da mesma forma, valendo-nos daquelas palavras do mestre de nossa historiografi a, também poderemos repetir aquele juízo exemplar: Petrônio Portella não foi um homem de ordinária medida.

Discurso no lançamento do livro de Zózimo Tavares– Petrônio Portella, no Teatro da Assembleia

Legislativa, em 28 de fevereiro de 2011.

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De uma velha história, quase lenda, muito conhecida nas barrancas do Gurgueia.

O Esfolado, um desses riachos

meio secos, dito temporário, corre da Ser-ra Vermelha, onde nasce, ao Gurgueia. Às

sua margens fi ca Bertolínia, antiga Apare-cida. Ali, um viageiro qualquer, ignorado,

deixou, à sua passagem, a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Achada, seguiram-se os

milagres, a festa religiosa, o lugarejo e, com o tempo, a cidade.

A pobreza acompanha as suas mar-gens da nascente à foz. Pontilham, a espaços

de léguas, alguns redutos, retiros, apêndices dos currais levantados pelos sertanistas, os

desbravadores, disputando o chão aos bugres na ponta da espada.

Chão de jurema, dessa baixa, rasteira e espinhenta, que atropela o romeiro mais que a fome, a sede e a mutuca. Dir-se-ia ali a morada do

cão, o fi m do mundo, não compusessem o cenário, a espaços perdidos, os carnaubais, nas várzeas, e o mimoso, o pasto natural das cabras, aclimatadas ao

meio, partilhando com o homem os parcos campos prestáveis à lavoura.

Poucas léguas acima da cidade, à margem do riacho, moravam o velho Genivaldo, viúvo, e, na sua companhia, o Aprígio, seu fi lho. Extraíam do meio, semiárido, o necessário à mesa, com sobras à pinga e aos forrós. Plantavam o milho e o arroz nas costa-

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O Esfolado

Pedro S. Ribeiro*

CONTO

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neiras e, mal abaixavam as águas, preparavam os lastros ao feijão. À noite, se chovia, saiam à caça aos tatus. Entrada a seca, subiam à chapada às ca-çadas de espera.

Aprígio mantivera um pé-de-conversa com a fi lha do velho Gabriel, a Clarice, cortada em má hora por ação do Coronel Jesuíno. O velho recru-tara a moça aos serviços da fi lha, casada, em Flo-riano. Mais de uma vez Aprígio preparou a trouxa disposto a matar as saudades. Não fosse a distân-cia e o pai, estropiado pelo reumatismo, botaria o pé na estrada à procura da moça.

Gabriel, avesso ao rapaz, esfriou a cabeça. Reservava a fi lha a um partido melhor. De outra parte, tinha as suas razões, que entendia justas e não abria mão: jovem, muito jovem, botara os olhos na irmã do Genivaldo, a Carolina, um quar-tau de encher as medidas. O pai, sisudo, lhe fechou a porteira. Do encontro, o terceiro, ao pé da inga-zeira, o danado do velho os apanhou. Despachou a fi lha à casa, onde ajustaria as contas e, mal su-miu a moça no alto da barranca – não fi cava bem a disciplina aos olhos de mulher –, empunhou o chicote. Só de recordar, Gabriel sentia nas costas o arrepio. Relho cru, trançado, desses com que se preparam as alças dos surrões. Pois bem, se ele não servira à Carolina, não serviria, igualmente, o Aprígio à Clarice. E, não satisfeito, atiçou o Do-mingão, seu fi lho, contra o rapaz. Arruaceiro e per-verso, tipo de má fama, Domingão assegurou-lhe: na primeira conversa, abriria a pança do Aprígio.

Ausente a moça, sem considerar a ameaça e sem resguardo, cuidava o Aprígio da lavoura e das caçadas com o pai. Este, prevenido advertiu:

– Esse Domingão não é fl or que se cheire. Deixe em paz a fi lha do velho Gabriel. Aproveite a ausência e trate de esquecer.

– Cão que ladra...– Sei disso não, meu fi lho.– Faz quase um ano, a Clarice se mudou e,

pelo visto, eu creio que não volta.– Volta sim, meu rapaz.– Quem lhe garante?– A vida na cidade incomoda. Sei como é.

Não baste o trabalho, a tempo e hora, no relógio, o descanso, no fi nal de semana, enfastia.

– E aqui, meu pai?– Aqui, a bem da verdade, a gente pega no

pesado. Mas, pelas festas, todo fi m de semana, a cana é sem medida. As moças, no cabo da enxada, na apanha do algodão, as mãos calosas, não perdem uma festa. Qualquer dia, a Clarice se toca de volta a Aparecida e recomeça o xamego. Juízo, meu rapaz!

– Importe não, pai.– Domingão é um perverso e o pai, quando

novo, não fi cava atrás.– O velho Gabriel?

– O cujo! Quando os revoltosos, em vinte e seis, de volta da Bahia, subiram o Gurgueia, o Ga-briel atocaiou muita gente nestes beiços de serras e a culpa fi cou por conta da Coluna. Já o Gabriel, pobre como eu, rasgava o HJ e mantinha a conta aberta na loja do patrão, o Coronel Jesuíno.

– Fosse verdade, tinham apurado.– A quem interessava? O Coronel, por sua

vez, tinha os seus inimigos. Para isso, também ser-via o Gabriel. Cuide-se bem, meu rapaz.

Passado o ano, iniciaram-se as festas de Nossa Senhora Aparecida. Gente, em romaria, de-mandava à cidade. Lotadas as pensões, fervilhavam os fi éis a acorrerem às missas e às novenas. Nove dias de rezas, cantorias, batismos, casamentos, for-rós, leilões... Aprígio, de olho na estrada, conferia os romeiros. Nenhum sinal da moça. Findaram-se as festas. Aguardaria o fi nal da estação. Viriam as chuvas em seguida.

De volta ao lar – a fl or dos pequizeiros a cair –, subiu à chapada às esperas. Tempo das caçadas. Final de outubro, limpo o chão à lavoura e restau-radas as cercas, fechado o céu, cairiam as chuvas. A caça graúda rareou; não descia à bebida. As de penas sumiram na chapada a procriar. Aprígio, ao cabo da enxada, esquecida, em parte, a Clarice, avistou o Lisandro trepado no mourão, a guieira no canto do cercado.

– Aprígio, chega até cá!– Vou indo.– Sabes quem eu vi, agora, na cidade?– Diz.– A Clarice, rapaz!– A Clarice?– Me perguntou até...– O quê? – Se tu continuas solteiro.– Brincadeira tem hora.– Verdade! – Voltou de vez?– Me parece que sim. Por falar na Clarice,

tem baile no Gervásio pela festa de Reis. Prepara a fatiota.

– Passa por cá e a gente sobe junto.– E o Domingão?– Eu não gosto de homem. Ele que fi que

com o pai. Eu prefi ro a Clarice.– Sendo assim, me aguarde.A festa houve e o encontro. Gabriel engoliu

em seco o desaforo. O fi lho, esquentado, rosnou: não fi caria assim e mais não fez pelo pai a ponderar contra o momento inoportuno. A desfeita ajustaria a seu modo. Nada aconteceu.

Findaram-se as águas. Aprígio pensava já em casamento. Falara a Clarice da fuga pelas festas de Nossa Senhora Aparecida ou, se possível, antes, as de Santo Antônio em Jerumenha. Tomando por

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CONTO

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consentimento o silêncio do velho Gabriel, relaxou a cautela às palavras do pai. Não fora isso, notaria os sinais das visitas e os rastos mal percebidos à beira dos caminhos. Caíram no laço, ele e o pai. Banhavam-se os dois no Esfolado, Domingão se aproxima e lhes mete nas ventas a lazarina. Reagis-sem, abriria fogo ali mesmo. Gabriel apontou em seguida descendo a barranca pela margem contrá-ria e tratou de amarrá-los, atando-os fortemente, em cruz, os pés e as mãos, ao tronco de ingazeira que dava nome ao poço.

– Se preparem! – antecipou-se o velho Gabriel.

– O que pretendem vocês? – interrogou Genivaldo.

– Um servicinho reservado ao seu fi lho, mas, pelo testemunho, a você, igualmente. Não era a nossa intenção. Bastava o rapaz. Andava por aí a se esfregar com Clarice. Não foi por falta de aviso. – dirigindo-se ao fi lho, prosseguiu – Ao trabalho, Domingos, antes que escureça.

– Liquide Gabriel, duma vez, se este é seu pro-pósito.

– Não temos teste-munhas, Genivaldo.

– Temos sim, Ga-briel.

– Quem?– Deus é testemu-

nha. Não esqueça.– Metidos nesta bre-

nha, nem Deus... Asseguro a você.

– Veja, pai, as nossas testemunhas.

– Quais?– Aquelas duas araras. As aves cortavam o

espaço a grande altura. – Conversa mais sem rumo! – retrucou Do-mingão – Onde se viu um bicho brabo como arara servir de testemunha? Acabemos com isso, meu pai. Já estou enfarado.

O mau cheiro e os urubus ao redor atraíram os vizinhos. Os rastos, o vento apagou. Clarice não atinou contra o pai. Por que mataria o velho Geni-valdo? A polícia vasculhou a casa e o local ao redor. Tudo no lugar. Passional, concluiu o delegado. Al-guma rixa. Moça posta na rua. Pelo rapaz, talvez... O Genivaldo, porém... Coronel Jesuíno, informado, aguardou a perícia. Tamanho crime, se praticado por alguém do seu conhecimento, não tinha a menor dúvida, na redondeza, somente o Gabriel... Aguardaria o momento oportuno.

Findou-se o mês. Entrou julho e o povo, meio esquecido, aguardou o festejo. Muita gente

acorreu, agora, pela novidade. Ficava perto o local, dito Esfolado, pelo crime. No último dia, presentes o Gabriel e o seu fi lho, celebrada a missa e o povo a deixar o local, duas araras pousaram nos braços do cruzeiro diante da igreja. Os fi éis se aproxi-maram, aos poucos, a seu redor. Permaneceram tranquilas as duas aves. Domingão, acovardado, cutucou Gabriel.

– Veja, pai, as araras.– Cala a boca, rapaz!– É Deus que nos castiga!– Aguenta firme, Domingos! Antes que

alguém desconfi e.– Desconfi e de quê? – falou o coronel, às

duas costas, atento ao diálogo.– Nada, Coronel. Falava por falar. – Tenho minhas dúvidas. Conheço-o muito

bem, Gabriel. Essas duas araras... Veja o Domingão, parece vara verde.

– Não sei de nada, Coronel. Se vosmicê me permite...

– Sargento! – gritou o Coronel ao delegado – Prenda estes homens e ar-ranque dos dois a confi ssão.

Feita a prisão, as duas araras levantaram voo e prosseguiram. Os presos, às primeiras unhas extra-ídas, confessaram o crime e outros mais ignorados. Transcorreu o processo em Jerumenha, a sede da co-marca. Ali, cumpriram, os dois, parte da sentença na cela, a mesma onde falecera, antes, a Santa Cota, a beata que induzira um casal de

lavradores, a troco da morada celeste, a trucidarem os fi lhos, conforme doutrinava.

O lugar do homicídio e também o riacho – este, antes, Riacho da Vermelha, pela serra, o local da nascente –, passaram os dois a Esfolado. Clarice, o coronel despachou de volta a Floriano. Afora o xodó, culpa nenhuma teve pelo crime. No “Dois de Ouros”, o velho cabaré às margens do Rio Parnaíba, fi xou a morada e muita cabeça virou de embarcadiços. Essa, porém, é outra história, que não vem ao caso, certamente.

___________________________________*Pedro S. Ribeiro é piauiense, bacharel em Direito e

licenciado em História, ocupa a cadeira nº 13 na Aca-demia Piauiense de Letras. De sua autoria: os roman-ces Vento Geral e A Divisa, Sol Poente, contos, e Club

dos Diários, crônicas.

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O presente trabalho resultou de debates e do estudo das propostas das Conferências Muni-cipais, Estadual e Nacional de Cultura. Dos deba-tes, realizados no plenário do Conselho Estadual de Cultura, participaram representantes dos dife-rentes setores da cultura piauiense, quais sejam: o patrimônio cultural, inclusive o edifi cado; a lite-ratura e as artes, em geral, nas suas variadas ma-nifestações; o teatro, as artes plásticas, a música, a dança; a literatura, a programação editorial, bi-bliotecas, arquivos e museus; a política estadual do livro e da leitura; os meios de incentivo à cultu-ra, dentre outros.

Toma-se por Cultura, na dimensão antropo-lógica, tudo o que aprimora a vida dos cidadãos e amplia a qualidade do quadro social. Cultura pro-porciona felicidade, melhora as condições de vida, age diretamente na autoestima do cidadão, abre perspectivas inovadoras, gera emprego e renda, in-terferindo no ambiente socioeconômico e político.

As estratégias, propostas e projetos que aqui se defi nem demarcam roteiros de ação e sinalizam caminhos que hão de ser percorridos mesmo de-pois de cumprido o presente triênio. São temas fundamentais da contemporaneidade, merecedo-res da atenção do Poder Público, do cidadão e da sociedade, tanto para a conquista de realizações importantes e essenciais no período, quanto para a melhor sensibilização e compreensão de fenô-menos decisivos no processo permanente de de-senvolvimento do Piauí e do Brasil.

A viabilização deste Plano exige a implanta-ção do Sistema Estadual de Cultura, integrado aos Sistemas Municipais e Nacional de Cultura, com ênfase na participação da sociedade civil, conforme as características de cada Estado e Município. É fundamental, também a implantação dos Sistemas de Informação, de indicadores de avaliação, mecanismos de regulação de mercado e de territorialização das políticas culturais. Além disso é necessário, ainda, o aprimoramento das regras de fi nanciamento das atividades culturais via fundos públicos, orçamento e leis de incentivo fiscal, remetendo ao pacto federativo para a divisão das prerrogativas e responsabilidades entre os governos federal, estadual e municipal.

1 – PIAUÍ, BERÇO DAS AMÉRICASA História do Piauí começa na Pré-História,

em períodos bem anteriores à chegada do coloni-zador no Estado. A pesquisa arqueológica desen-volvida na região do Parque Nacional da Serra da Capivara, há mais de trinta e cinco anos, tem pro-vado que o homem já habitava o Piauí há mais de 50.000 anos.

Essa pesquisa evidenciou também a rique-za cultural desses primeiros habitantes, que vi-viam em harmonia com o meio ambiente e dele retiravam apenas o essencial para o seu sustento ou para as suas manifestações artísticas. No iní-

cio eram seminômades, viviam da caça, pesca e coleta de frutos e raízes. Fabricavam instrumen-tos de pedra lascada e polida e pintavam a parede e o teto de abrigos com tintas fabricadas a partir de argilas naturais, nas cores vermelha, marrom, amarela, cinza, branca e preta. Depois passaram a cultivar suas plantas e domesticar animais para o seu sustento, e fabricaram os primeiros utensílios em cerâmica.

O Estado do Piauí possui hoje um dos maio-res e mais diversifi cados conjuntos de arte rupes-tre do País, com representações fi gurativas e não fi gurativas. Algumas encontram-se associadas, formando cenas da vida cotidiana dos grupos que a elaboraram, como cenas de dança, de caça, de luta, de sexo, de parto, acrobacia, combate etc. Esta riqueza coloca o Piauí em posição de desta-que no cenário nacional e internacional.

Plano Estadual de Cultura

Uma Contribuição do Conselho Estadual de Cultura

Inscrições rupestres no Parque Nacional Serra da Capivara em São Raimundo Nonato

Fotos: Arquivo Conselho Estadual de Cultura

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2 – COLONIZAÇÃOAo contrário dos demais estados nordesti-

nos, o Piauí foi colonizado do interior para o lito-ral. Nasceu com as trilhas do gado tocado por va-queiros da Casa da Torre, de Garcia d’Ávila, sendo o mais importante deles Domingos Afonso, um português de Mafra. Daí o Mafrense associado ao nome. A conquista do sertão ocorreu lá pelos anos setenta do século XVII.

A primeira fazenda chamava-se Cabrobó, situada à margem direita do Mocha, riacho tri-butário do Canindé, em cujo vale outras fazendas surgiram. Assim teve início o que fi cou conhecido como a civilização do couro. Posteriormente, che-gou a Igreja, através do Padre Miguel de Carvalho, em novembro de 1696, trazendo a ordem do Bispo de Olinda, Pernambuco, para criação da primeira freguesia, com a invocação de Nossa Senhora da Vitória, cuja imagem também trouxe, além do pri-meiro vigário, Padre Thomé de Carvalho e Silva.

Em junho de 1712, criou-se a Vila, com o Se-nado da Câmara. A instalação se deu somente em dezembro de 1717. Pela Carta Régia de 29 de julho de 1758, Dom José I criou a Capitania do Piauí. Em 13 de novembro do mesmo ano tomou pos-se o primeiro governador, o Coronel de Cavala-ria João Pereira Caldas, que deu à Vila do Mocha, já capital, o nome de Oeiras, em homenagem ao poderoso ministro do Rei, Sebastião José de Car-

valho e Melo, Conde de Oeiras e futuro Marquês de Pombal. Em honra de sua majestade, D. José I, deu-se à Capitania nascente a denominação de São José do Piauí.

3 – CONSOLIDAÇÃO DA VIDA CULTURALO Estado do Piauí está dividido em 223 mu-

nicípios, agrupados em 4 mesorregiões e 15 mi-crorregiões geográfi cas, segundo o Instituto Brasi-leiro de Geografi a e Estatística – IBGE. Possui uma área de 251.529 Km2 e uma população residente de 3.145.325 habitantes.

É fundamental que se estabeleçam as estra-tégias que venham promover a revolução que se prenuncia na realidade piauiense, de modo a fazer

da cultura um dos principais eixos de desenvolvi-mento da vida do Estado.

A questão cultural deve ser tratada como ponto decisivo para a afi rmação da cidadania e da ação comunitária, da felicidade individual

e coletiva, da melhoria da qualidade de vida do cidadão e da sociedade. A cultura é portadora do lazer e do entretenimento, da satisfação e da consciência crítica, da autoestima e do compro-metimento social.

4 – UMA NOVA DIMENSÃOComo meta principal deste plano propõe-se

a recriação da Secretaria de Cultura do Estado do Piauí, Secretaria esta que se empenhará em im-plantar uma política pública de cultura, assumida corajosamente pelo Governo do Estado, que deve-rá ter o compromisso de buscar profundas trans-formações, a partir da mudança de objetivo, méto-do, estilo e desempenho, nesse trabalho.

Este plano deve promover o desenvolvi-mento intelectual, espiritual e material do povo piauiense, através do fortalecimento de sua iden-tidade cultural e do processo de aquisição de no-vos elementos que possam contribuir para sua valorização e promoção, num contexto social mais amplo.

Estado não produz cultura, mas é responsá-vel por uma série de programas públicos, sem os quais o cidadão e a sociedade não terão meios de gerar ou fruir o fato cultural, de produzir e consu-mir cultura.

A circulação e a projeção da produção cul-tural piauiense no Estado, no País e no exterior dependem da ação do Governo do Estado. Ao Governo cabe incentivar e fomentar a criação e o intercâmbio, além de prestigiar os autores, asse-gurando-lhes acesso efetivo aos benefícios fi scais e à difusão.

A Política Estadual de Cultura, em síntese, precisa enfatizar a valorização do indivíduo e da sociedade, o fortalecimento da identidade e da imagem do Piauí e sua projeção nacional e inter-nacional, a qualifi cação da vida e do espaço urba-

Casarão típico do início da colonização do estado

Porto das Barcas Parnaíba

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no, a geração de empregos e receitas, a proteção do artista, a democratização do acesso aos bens culturais e a valorização da diversidade étnica.

5 – RECURSOS PARA A CULTURAA questão dos recursos é o primeiro ponto

decisivo a ser enfrentado com objetividade e deter-minação. A aplicação em cultura é um investimen-to com retorno. Portanto o Estado deve destinar um mínimo de 1,5% do seu orçamento à cultura, a fi m de obter resultados mais signifi cativos.

Em segundo lugar, é preciso aprimorar a le-gislação do Estado, em matéria de benefício fi scal, de maneira a assegurar amplo acesso aos produ-tores. Torna-se fundamental que a Secretaria de Cultura promova intensa divulgação dos meca-nismos da lei, bem como a legislação federal, am-pliando a captação de recursos para o Piauí.

O envolvimento da iniciativa privada, das or-ganizações não-governamentais, das Universidades, das associações de amigos e das entidades culturais variadas deverá permitir o aumento dos recursos disponíveis para o setor. Parcerias e convênios com os Governos Federal e Municipais contribuirão para

a viabilização fi nanceira de projetos e programas, sobretudo para a formação e qualifi cação de pessoal, melhoria do produto artesanal, artístico etc.

Recursos devem ser captados também no exterior. Os Bancos Mundial e Interamericano

dispõem de programas de apoio à cultura, ao ar-tesanato, ao patrimônio histórico, às áreas de pro-teção ambiental, entre outros, ainda não devida-mente aproveitados no Piauí. As interfaces com o turismo, lazer, esporte, meio ambiente e trabalho devem ser intensamente exploradas, visando a multiplicação de programas e recursos.

O plano do turismo arqueológico deverá ser implantado e a curto prazo fornecer uma resposta econômica positiva, gerando novas oportunidades de emprego e renda e garantindo lugar de desta-que ao Piauí no cenário nacional e internacional.

6 – UM PROGRAMA INOVADORO programa de cultura deve ser inovador

e dinâmico, envolvendo todos os setores da so-ciedade, articulado com as propostas para a edu-cação, para a ciência e a tecnologia, para o meio ambiente, para o comércio e o turismo e deve es-tar atento à identidade de cada município como potencial primeiro para o desenvolvimento local e, por conseguinte, regional. Tal política terá um impacto imediato na imagem do Estado e contri-buirá para a aceleração do processo de desenvol-vimento econômico e social, como um todo, por sua força indutora.

Infelizmente, desde a nossa colonização, arte, educação e cultura nunca foram priorida-des. Hoje, no cenário nacional, alguns estados se destacam como exemplo em que o apoio à cultura conseguiu interferir na realidade social, melho-rando a autoestima de seus cidadãos e elevando seu padrão de vida.

O Governo do Piauí deve valorizar a cultura como ponto fundamental de sua meta de restau-rar a expressão histórica e política do Estado na vida brasileira.

7 – ARTE E CULTURA DO PIAUÍAs expressões culturais do Piauí remontam

ao berço do homem americano, grafando na rocha as impressões individuais do psiquismo coletivo da sociedade primeva. Da observação dos fenô-

Apresentação Folclórica

Obra da artista plástica Liz Medeiros

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CULTURA

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menos naturais e incompreensíveis à absorção dos arquétipos sacros e profanos, das festas religiosas e comemorativas das colheitas, o homem legou aos nossos dias a história oral e descritiva do ser cultu-ral representado em cada um de nós.

O caldeirão de riquezas expressas em nossa cultura é mapeado nas manifestações do teatro, desde os recitais líricos das tertúlias familiares da sociedade, nos séculos XIX e começo do XX, aos ensaios no fundo de quintal (década de 1950), ao movimento do teatro do estudante (década de 1960); ao CEPI - Centro Integrado de Arte do Piauí (década de 1970), reforçando o teatro dos anos de 1980 e ao premiado e respeitado, tam-bém internacionalmente, movimento dos anos de 1990 e século novo.

A música e os compositores locais também redefi niram sua pauta, penetrando cada vez mais no mercado competitivo. As artes plásticas têm criado personalidade e nomes de destaque irre-preensíveis. A dança de formação e transformação conseguiu romper os limites do Estado, represen-tando esse segmento artístico com muito louvor. A literatura e os autores, em todos os momentos e escolas, manifestaram em letra de forma o homem de espírito universal e contemporâneo. E por fi m, as raízes da cultura popular, inspiradas na colo-nização, na história do ciclo do gado, nas lendas e mitos religiosos, nas heranças trovadorescas ibé-ricas e todo um manancial de tradições presentes no bumba meu boi, no reisado, no cordel etc., feito história viva, mantêm relação intrínseca com toda manifestação de cunho cultural.

É essa riqueza de cultura e expressão que o Piauí deve ratifi car como linguagem que desenvol-va o homem e, por conseguinte, a sociedade.

É preciso que a imagem do Piauí seja associa-da a esse patrimônio. Que se torne cada vez mais o símbolo de riqueza arqueológica e manifestações artísticas, na dança, na música, nas artes plásticas, na literatura, e não mais na seca, na fome, no cri-me organizado, no desperdício de água do subsolo, no desvio de recursos públicos, entre outros.

8 – DIRETRIZES E AÇÕES PARA CONSOLIDAR UMA NOVA DIMENSÃO CULTURAL

8.1 – Planejar e executar políticas públicas de cultura que venham fortalecer as ações do Estado:

• Recriar a Secretaria Estadual de Cultura; • Valorizar as atividades culturais como força di-

nâmica da vida social, política e econômica do Estado e fator de bem-estar individual e coletivo;

• Comprometer-se com o criador e produtor piauiense em sua promoção no Piauí, no País e no Exterior;

• Integrar a arquitetura, as artes plásticas, gráfi cas e visuais, da moda, da gastronomia como setores decisivos na articulação da política cultural, ao

lado da música, do teatro, da dança, do canto, do cinema, da literatura, do artesanato e das mani-festações da cultura popular;

• Integrar as políticas públicas de cultura com as políticas de educação, de turismo, de meio ambiente, de comércio e indústria, de ciência e tecnologia e de geração de emprego;

• Expandir os projetos de apoio à ação local, à in-teriorização e a formação de gestores culturais;

• Apoiar a continuidade do Projeto de transformar a antiga Estação Ferroviária em um Polo de Arte e Cultura, com espaço para a música, para a nova biblioteca, para exposições temporárias e perma-nentes e o Museu de Arqueologia;

• Construir, em local de fácil acesso, a Biblioteca Estadual e equipá-la com todos os recursos ne-cessários ao seu pleno funcionamento;

• Viabilizar o funcionamento dos Sistemas Esta-duais de Biblioteca, Museu e Arquivo, priori-zando a recuperação dos espaços físicos e das ferramentas públicas estaduais com ampliação e modernização do acervo, informatização e acesso à Internet;

• Incentivar as artes cênicas, a escola de teatro e a interiorização do teatro, recuperando espaços cênicos do interior e criando novos espaços;

• Apoiar o projeto de transformação das escolas de música e de dança do Estado em instituições de nível técnico e superior;

• Consolidar o Programa Mais Cultura, am-pliando as suas ações em municípios ainda não benefi ciados;

• Apoiar a edição, reedição e divulgação de obras relevantes de autores piauienses e/ou sobre o Piauí;

• Prestar assessoria técnica e treinamento a res-ponsáveis por bibliotecas municipais, intensi-fi cando os programas do livro e da leitura do Ministério da Cultura - MINC;

• Apoiar a realização de cursos de qualifi cação

Apresentação de Reisado

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CULTURA

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e atualização dos funcionários de arquivos, museus, bibliotecas e demais espaços culturais;

• Implementar a lei que assegura o registro dos mestres da cultura popular e recursos fi nancei-ros para que eles possam transmitir a sua arte a outras pessoas da comunidade;

• Apoiar a participação de artistas piauienses em eventos culturais nacionais e internacionais;

• Apoiar a realização de eventos culturais de âm-bito internacional, como o Salão Internacional de Humor, o Festival Internacional de Arte, na Serra da Capivara, o Festival de Inverno de Pe-dro II, o Festival Regional de Cultura de Oeiras, o Salão do Livro e outros;

• Promover políticas públicas que venham des-pertar no cidadão e na sociedade a capacidade de inserção no processo cultural;

• Promover a produção e a circulação dos bens culturais no Estado, no País e no exterior;

• Destinar no mínimo 1,5% do orçamento do Es-tado à cultura.

8.2 – Estimular a refl exão e criar mecanismos de preservação, conservação, valorização e divulga-ção do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Estado:

• Fazer parceria com o Diário Ofi cial do Estado para publicação de ensaios sobre temas ligados à cultura e à sociedade piauienses;

• Incentivar a publicação de obras sobre a histó-ria dos municípios do Estado, em articulação com as Prefeituras, as Secretarias de Educação e de Ciência e Tecnologia e com o Diário Ofi cial do Estado;

• Instalar o Memorial Leonardo de Carvalho Cas-telo Branco, em cumprimento a Lei Estadual nº 4.993/97;

• Implementar o Memorial das Nações Indígenas, de acordo com a Lei nº 5.234, de 03/04/2002;

• Instalar o Memorial Francisco Pereira da Silva, em cumprimento a Lei Estadual nº 5.445, de 25/05/2005;

• Cadastrar as diferentes manifestações de cultu-ra imaterial do Estado;

• Apoiar a revitalização da cultura típica das dife-rentes regiões do Estado, incentivando a reali-zação de festivais gastronômicos;

• Apoiar a criação da Enciclopédia Eletrônica de Cultura, via lnternet, nas áreas de: artes visu-ais, artes cênicas, música, artesanato, literatu-ra, manifestações populares e equipamentos culturais, contendo informações sobre auto-res, principais obras, críticas, comentários e opiniões;

• Incentivar programas de formação profi ssional para as áreas culturais, mediante a realização de convênios com instituições públicas e priva-das, nacionais e internacionais;

• Incentivar programas de ação conjunta das en-tidades de ensino para a criação de cursos de gestão cultural, nas áreas de política cultural, planejamento e marketing cultural, visando a melhor capacitação dos gestores governamen-tais e não-governamentais;

• Incentivar a criação do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico, Artístico e Ambiental (IEPA-PI);

• Promover a integração, no âmbito do Go-verno, das Secretarias de Educação, da In-dústria e Comércio, Ciência e Tecnologia, do Trabalho, da Assistência Social, do Meio Ambiente e PIEMTUR com a Secretaria da Cultura, em articulação com as organizações não-governamentais;

• Buscar ação integrada com as prefeituras mu-nicipais, com entidades da sociedade civil, com organizações não-governamentais, com asso-ciações comunitárias e grupos culturais diver-sos existentes no Estado, para maior sintonia com sua política de cultura, visando estabele-cer uma programação e cronograma de ativida-des e ações conjuntas;

• Promover a articulação com a iniciativa priva-da, especialmente com as entidades represen-tativas das classes produtoras para uma par-ticipação compartilhada no fi nanciamento de projetos, utilizando-se dos benefícios das leis de incentivo à Cultura;

• Promover a divulgação e conscientização do va-lor do patrimônio histórico do Estado;

• Apoiar o cadastramento e estudos referentes a antigos quilombos, em cooperação com os ór-gãos públicos e privados de defesa das comuni-dades negras;

• Promover a integração aos Fóruns Nacional de Secretários de Estado da Cultura e de Conse-lhos Estaduais de Cultura, particularmente nas ações de intercâmbio cultural dentro do País;

• Incentivar a reestruturação da Administração Ofi cina de artes plásticas no Museu do Piauí

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Pública Estadual, no que se refere a arquivos e museus;

• Viabilizar pesquisas para documentação do acervo do Museu do Piauí - Casa de Odilon Nu-nes, e demais casas de cultura, incluindo cole-ções particulares;

• Informatizar o Museu do Piauí - Casa de Odilon Nunes e as demais casas de cultura do Estado;

• Implantar o Setor de Arte Contemporânea no Museu do Piauí - Casa de Odilon Nunes;

• Promover a articulação entre o Museu do Ho-mem Americano e o Museu do Piauí - Casa de Odilon Nunes com as casas de cultura do Esta-

do, a fi m de promover exposições temporárias em todo o Estado;

• Incentivar a articulação com as prefeituras muni-cipais, no sentido de restaurar, reabilitar e man-ter as casas de cultura do interior, ampliando seu leque de atuação e implantando novos espaços culturais em polos ainda não assistidos;

• Realizar levantamento, pesquisa, documenta-ção e cadastro do acervo de arte de proprie-dade do Estado do Piauí para conservação e divulgação;

• Dotar os museus e demais espaços culturais existentes de recursos fi nanceiros indispensá-veis a sua manutenção e funcionamento;

• Identifi car os museus existentes no Estado, com os respectivos acervos e características, e implementar ações conjuntas para uma políti-ca estadual de museus;

• Incentivar a criação de cursos de museologia;• Apoiar a implantação do Museu da Imagem e

do Som do Piauí - Casa de Torquato Neto;• Promover a modernização do Arquivo Público

do Estado: informatização do acervo, criação de laboratórios de microfi lmagem e restauração, além de climatização do espaço físico;

• Apoiar o desenvolvimento de projetos de ar-queologia pré-histórica nos parques nacionais da Serra da Capivara, Serra das Confusões e Sete Cidades;

• Desenvolver o programa de defesa e proteção do patrimônio histórico em articulação com as

prefeituras municipais, com os órgãos federais e com organizações não-governamentais;

• Incentivar a restauração e conservação de monu-mentos e edifi cações de importância e signifi ca-do histórico, cultural e artístico, de propriedade do Estado, criando infraestrutura adequada à exploração turística;

• Promover ação junto aos Institutos e Conse-lhos de Engenharia Civil e Arquitetura para o estabelecimento de padrões de qualidade na construção e organização do espaço urbano e na preservação de bens edifi cados de valor ar-tístico e cultural;

• Implementar a política de preservação do patri-mônio documental;

• Apoiar a oficina de Conservação e Restaura-ção de Bens Culturais Móveis, no sentido de dotá-la de recursos necessários ao seu pleno funcionamento;

• Manter a editoração da revista Presença, inclu-sive, ampliando-lhe a divulgação no sentido de atingir o maior número de público ledor.

8.3 – Capacitar e estimular o trabalhador da cultura ampliando a sua participação no desenvolvimento socioeconômico sustentável:

• Criar um instituto destinado a formação profi ssional de agentes, produtores e gestores culturais;

• Regulamentar os direitos sociais dos tra-balhadores da cultura, promovendo acordos entre o Estado, empresas e trabalhadores;

• Observar o cumprimento da legislação tra-balhista, tributária e de direitos autorais rela-cionadas à cultura;

• Apoiar os criadores e promotores culturais, com o aprimoramento da legislação estadual de benefício fi scal;

• Acompanhar o execução do Decreto nº 11.387, de 20 de maio de 2004, que institui a Comissão de Avaliação de Projetos Culturais (Conta-Cultura);

• Incentivar o desenvolvimento de ações de geração de emprego e ainda pugnar pela consolidação das respostas econômicas dos fazeres culturais;

• Identifi car e cadastrar as vocações peculiares de cada município;

• Apoiar grupos culturais na elaboração de projetos e na regulamentação de suas entidades a fi m de que possam captar recursos indispensáveis às suas atividades;

• Apoiar a realização de eventos culturais: Feiras, Salões, Festivais etc.;

• Captar recursos junto aos Ministérios da Cultura e do Programa do Trabalho, particu-larmente no que tange ao Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT;

Museu do Piauí - Casa de Odilon Nunes

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• Fiscalizar a aplicação dos recursos destinados à manutenção e à preservação do patrimônio cultural.

8.4 – Criar fl uxos de produção e formação de públi-co, universalizando o acesso do cidadão à fruição e à produção cultural:

• Fomentar a formação e a manutenção de grupos e organizações coletivas de pesquisa, produção e difusão das artes e expressões culturais, espe-cialmente em locais habitados por comunidades afro-brasileiras, indígenas e de outros grupos marginalizados;

• Estabelecer uma rede pública integrada de centros culturais multiuso de gestão muni-cipal ou comunitária, dotados de espaços e dispositivos técnicos adequados à produção e ao intercâmbio;

• Difundir em diferentes mídias a importância da diversidade cultural e ampliar o reconhe-cimento das produções artísticas e culturais não inseridas na indústria cultural, como as lingua-gens experimentais e as expressões populares e tradicionais;

• Utilizar a TV e Rádio Antares como veículos mo-dernos, inovadores e dinâmicos de comunicação da cultura;

• Apoiar a normatização das rádios comunitárias;• Identifi car e cadastrar as potencialidades e as

atividades culturais dos diferentes municípios;• Incentivar as rádios comunitárias à realização de

programas referentes as ações culturais de suas comunidades.

8.5 - Consolidar os sistemas de participação social na gestão das políticas culturais, organizando ins-tâncias consultivas de participação direta do setor privado e da sociedade civil:

• Consolidar os sistemas nacionais de imple-mentação, acompanhamento e avaliação das políticas públicas de cultura, de modo a integrar as ações dos órgãos competentes dos três níveis de governo e a participação social direta;

• Aprimorar os mecanismos de comunicação entre os órgãos e instituições que compõem o Sistema Estadual de Cultura e a sociedade, de modo a disseminar as informações referentes a experiência acumulada em diferentes setores do governo, iniciativa privada e organizações civis;

• Valorizar as diferentes manifestações culturais de cada município, promovendo a sua divul-gação, continuidade e a participação de todos;

• Promover o intercâmbio e a projeção dos produ-

tos culturais piauienses no interior do Estado, no País e no exterior;

• Apoiar a edição de autores piauienses e a sua circulação nacional e internacional;

• Incentivar o intercâmbio e integração com as universidades públicas e particulares do estado do Piauí;

• Incentivar programas voltados para a cultura afro-brasileira e indígena, em sintonia com as organizações representativas de cada grupo com as propostas da sociedade;

• Apoiar a implementação de Conselhos Munici-pais de Cultura;

• Apoiar ações e programas de difusão da leitura, no sentido de despertar na comunidade o gosto pela literatura e oportunizar à população local o contato com a literatura nacional e universal;

• Criar e aproveitar os espaços existentes com oficinas de artes plásticas, música, teatro e dança, em polos que favoreçam o maior nú-mero de municípios piauienses, sua identidade local, e que tenham programação continuada em cada segmento;

• Apoiar a utilização de todo e qualquer espaço público, tais como: escolas, centros sociais, praças e áreas de lazer, nos seus horários dispo-níveis, para a produção, manifestação artística e sociocultural organizadas pela comunidade, de acordo com a agenda cultural do município, garantindo a universalização do acesso à cultura;

• Apoiar programas que visem retirar das ruas as crianças e adolescentes, dando-lhes oportunida-des na utilização de ofi cinas artísticas;

• Apoiar as manifestações tradicionais de cultura: Artesanato, Bumba Meu Boi, Reisado, Cavalo Piancó etc.;

• Desenvolver, em cooperação com a Secretaria da Educação, programa de formação artística de crianças e jovens, através das escolas de música, dança e teatro;

• Incentivar a criação de bandas mirins munici-pais e apoiar a melhoria das existentes, com o objetivo de dar oportunidade a novos talentos musicais, promover a arte e divulgar a música;

• Incentivar a criação de corais, como manifesta-ção socializante e um meio simples de divulgação dos conhecimentos musicais, de grande valia para o resgate da autoestima;

• Reativar a Orquestra Sinfônica Infanto-Juvenil do Estado;

• Apoiar o cumprimento e fi scalização da Lei de Direitos Autorais;

• Implementar ações de integração com as comu-nidades e com os países de língua portuguesa.

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MEMÓRIA

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Sábado passado foi dia de festa em nossa Academia. Ao chegarmos ali para a sessão ordi-nária semanal, deparamo-nos com a presença contagiante de alunos e alunas da Escola Municipal Lídia Ribeiro, do novo município de Nazária, que após visitar a Casa e suas dependências, como a Biblioteca e o Auditório, fi zeram também questão de participar da reunião acadêmica, em compa-nhia de seus professores. Motivado por este fato inusitado, fi z ali uma breve palestra, de improviso, sobre Alexandre Herculano, cujo bicentenário de nascimento, em março deste ano, ocorreu-me de pronto à lembrança, conforme resumo a seguir.

Há poucos dias, o Instituto Federal de Ciên-cia e Tecnologia, por iniciativa dos professores do Departamento de Língua Portuguesa, à frente o Prof. Hugo Lenes Menezes, realizou um seminário, em homenagem àquele escritor, dos maiores da Literatura Portuguesa e de seu tempo, contando ainda com a presença do ilustre mestre Paulo Fran-chetti, da Universidade de Campinas-SP, de quem assistimos notável abordagem sobre o romance O Monge de Cister.

Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo nasceu em Lisboa, em 28/03/1810 e faleceu em Val-de-Lobos (Santarém) em 13/05/1877.

Renovador dos estudos históricos em Portu-gual, distinguiu-se, no gênero, com a sua obra fun-damental História de Portugal, em quatro volumes, publicada de 1846 a 1853, que provocaria grande celeuma entre o clero português, pelo fato de con-frontar alguns temas polêmicos consagrados pela historiografi a ofi cial, como o daquele fato lendário, segundo o qual teria Cristo aparecido ao rei Afonso Henriques na famosa batalha de Ourique que irri-taria o clero. Isto o levou a fazer sua defesa, com a energia que lhe era notória, em alguns opúsculos como Eu e o Clero, Solemnia Verba, e sobretudo um livro de vingança, Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1854-1859), contando aquele drama de horrores que decorreu da criação do sinistro tribunal na pátria de Camões.

O romance histórico seria iniciado em Por-tugal, no romantismo, por seu contemporâneo, Almeida Garrett, com o Arco de Santana, que igualmente renovaria a poesia e o teatro, com os poemas Camões e Dona Branca e as peças dramá-ticas Um Auto de Gil Vicente, Frei Luis de Sousa e O Alfageme de Santarém. Mas foi Herculano quem

deu ao romance a dimensão maior com Eurico, o Presbítero, O Monge de Cister e O Bobo e ainda as Lendas e Narrativas, um dos livros mais belos daquela literatura e que eu aconselharia aos leitores que o lessem, pelo menos uma vez, antes de morrer.

Não vamos comentá-los agora que o tempo não comporta. Diria apenas que Eurico, o Presbí-tero, tão bem analisado pelo ilustrado professor daquele Instituto, Hugo Lenes, que lhe destacou o infl uxo da paixão amorosa e impossível que domina seus dois protagonistas, Eurico, o Presbítero de Carteia e Hermengarda, é obra seminal naquela li-teratura. Quanto ao O Monge de Cister, assinalaria ainda, como contribuição à renovação do romance moderno, que entre nós tem início com Machado de Assis, o diálogo do narrador com o leitor ou a leitora, como faz o mestre de Memórias Póstumas de Brás Cubas, técnica com o qual se antecipa Herculano à criação do romance moderno, con-forme salientou em sua fala erudita e instigante o professor Paulo Franchetti.

Outro aspecto a destacar na personalidade de Herculano é o seu espírito público e seu compro-misso com os ideais de liberdade, o que o levaria, primeiro, a exilar-se na França em razão de opor-se ao absolutismo de D. Miguel e a alistar-se, em 1832, nas hostes de D. Pedro IV (Dom Pedro I do Brasil), na campanha da reconquista do trono português usurpado por aquele rei, batendo-se em várias ações militares, notadamente no cerco do Porto, cuja biblioteca foi por ele organizada durante o cerco daquela cidade, e da qual se tornaria conser-vador. Nomeado, após a restauração do trono, na pessoa da Rainha D. Maria II, fi lha de D. Pedro, para a direção da Biblioteca da Ajuda, dali sairia por uma revolução palaciana, de caráter demagó-gico, cujos propósitos políticos de que discordara, vinham contrariar seus ideais de liberdade.

Sua obra de historiador se enriqueceria mais ainda com o aparecimento da coleção intitulada Portugaliae Monumenta Histórica, com a qual trouxe à luz documentos da maior importância para a história portuguesa.

Desgostoso com a vida pública, recolheu-se à sua quinta de Val-de-Lobos, em 1867 praticando a agricultura até morrer, dez anos depois.

Publicado originariamente no Jornal Diário do Povo, Teresina, 25/11/2010.

Alexandre Herculano

M. Paulo Nunes

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Após a reunião do Conselho de Cultura, na última 5ª feira, dia 7 do mês em curso, recebi a alvissareira notícia da premiação do escritor peruano Mário Vargas Llosa, seguramente, um dos maiores romancistas da fase contemporânea, com o Nobel de Literatura de 2010.

Depois da concessão daquele prêmio ao romancista José Saramago, numa justificada homenagem à Língua Portuguesa, confesso que me havia desinteressado das premiações subsequentes da Academia Sueca, naquela categoria, uma vez que aquele galardão havia recaído em escritores absolutamente desconhecidos, pelo menos em nosso meio cultural. Uma sorte de escolhas que, conforme ironicamente a ela se referiu o autor de Conversación en la Catedral, ao receber, com surpresa, a notícia de ter sido o novo agraciado, as últimas premiações teriam supostamente o propósito deliberado, não de escolher autores consagrados à arte literária, como seria normal, mas transformando a escolha do Nobel em um estímulo à atividade literária de principiantes.

Para mim, que o tenho lido, de forma con-tínua, há já bastante tempo, de tal modo que, ao que suponho, nenhum dos seus livros publicados haja escapado ao meu exame, desde as suas obras iniciais até as últimas, como O Paraíso na Outra Esquina, Aventuras da Menina Má e Cadernos de Dom Rigoberto, a satisfação foi como que redobrada.

Um dos fenômenos literários mais surpre-endentes na romancística moderna foi o “boom” do romance hispano-americano que, por mais de uma década, dominou a literatura latino-americana e revelaria escritores do porte de um

Gabriel García Márquez, sobretudo, a partir de Cem Anos de Solidão, e cujo processo de composição literária culmina com esta obra capital do romance contemporâneo – O Amor nos Tempos do Cólera; de um Júlio Cortázar (1914-84), de quem poderemos destacar o contista com os contos-poemas, quase ensaios, de Bestiário, e o romancista de Os Prêmios, Rayuela e Modelo para Amar; de Ernesto Sábato, com Heróis e Tumbas, e finalmente, de Mário Vargas Llosa, de quem falaremos a seguir.

Tendo estreado em 1958, com um livro de contos, Os Chefes, sua carreira literária se afi rmaria a partir de 1962, com o romance Batismo de Fogo, tradução brasileira de La Ciudad y los Perros, que obteve o “Prêmio Biblioteca Breve”, da Editora Seix Barral para obra inédita e constitui a mais corajosa denúncia sobre o ensino militar na América Latina. Publica, a seguir, a Casa Verde, que obtém o “Prêmio de Crítica”, de 1966, e o “Prêmio Internacional de Literatura Rómulo Gallegos”, no ano subsequente, destinado ao melhor romance em língua espanhola, aparecido nos cinco anos precedentes. É de 1970 Conversa na Catedral, tradução brasileira do romance Conversacíon em la Catedral, considerada sua obra-prima, de que trataremos nessa nota.

Segue-se Pantaleão e as Visitadoras, sátira também ao ambiente peruano dos quartéis militares, em 1973 e em 1975, um exaustivo ensaio sobre a obra de Flaubert, dos melhores que já nos foi dado ler, pela profundidade do tema, pela riqueza das ideias e pela beleza do estilo – A Orgia Perpétua; A História de Maíta, denso romance sobre a revolução peruana, uma das mais violentas da América Latina; o romance policial dos mais bem

O Novo Nobel de Literatura

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GRANDES AUTORES

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urdidos, Quem Matou Palomino Molero; A Guerra do Fim do Mundo, tendo como quadro social o drama de Canudos e inspirado n’Os Sertões do genial Euclides da Cunha; Tia Júlia e o Escrevinhador em que o autor conta seu relacionamento amoroso com a tia, com quem viria posteriormente a casar-se, não obstante a diferença de idade entre os dois; e A Festa do Bode, denso romance sobre a era infame de Trujilo na República Dominicana, enfi m, uma saga dos melhores romances característicos dessa temática riquíssima – a da realidade social em nossa América ao sul do Rio Grande, em que o domínio dos interesses monopolísticos da grande potência do Norte sempre se fez presente.

Em Conversa na Catedral, ao lado da utilização de uma técnica literária original e profundamente revolucionária, especialmente pela tentativa de captar a passagem do tempo, na obra literária, à maneira de Proust, constitui ela, como temática, um pano de fundo da realidade política e social do Peru, no espaço de dez anos. A propósito da conversa de um jornalista – Sebastião

Zavalla, o Zavallita, fi lho de uma aristocrática família limenha e dela separado por fi delidade aos ideais da juventude, com o ex-motorista da família – Ambrósio Fernandes, em um boteco de Lima, denominado La Catedral, desfilam representantes de todas as classes sociais daquele país, desde as mais altas, com os seus requintes de donos do poder e do destino das pessoas, até as mais baixas, com os seus políticos e policiais corruptos, com suas prostitutas, seus malandros, o rico idealismo de seus estudantes e os deserdados de toda sorte. Em suma, um livro, que pela sua técnica e pela dimensão dos fatos sociais que aborda, lembra, sob certos aspectos, o Ulisses, a obra prima de James Joyce.

Já o dissemos em outra oportunidade, a propósito do problema do tempo na obra literária, que o passado inexiste, como categoria existencial, na obra de arte. Passado e presente se imbricam de tal forma que um se contém no outro. Marcel Proust, em A la Recherche du Temps Perdue, ao reconstituir o passado, o faz captando o tempo interior, ou a “durée”, conforme

a lição do fi lósofo Bergson e abolindo a categoria do tempo cronológico. Vargas Llosa o faz, sobretudo neste livro admirável, misturando, inclusive nos diálogos, presente e passado de tal forma que às vezes não sabemos mais o que é passado e o que é presente, tal o liame profundo entre um e outro.

O livro em exame, pelas lições que nos deixa, pela abordagem profunda da condição humana, pela técnica superior de composição literária, pelo sabor de obra-prima que dele emana e pela evocação de uma realidade social densa e humana, é daquelas obras literárias destinadas a fi car como testemunho e perfeita reconstituição de uma época histórica que vai demorar ainda por muito tempo a entrar, talvez para desgraça nossa, em processo de transformação.

Publicado originariamente no Jornal Meio Norte, Teresina, em 15/10/2010.

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Segundo os historiadores, a chamada Guerra do Contestado foi a maior revolta popular da história nacional, exigindo a mobilização de grandes contingentes do exército e das polícias militares de Santa Catarina e do Paraná. A extensão do território sob o domínio dos revoltosos, em sua maior parte em nosso Estado, a quantidade de pessoas envolvidas, o número e a forma dos combates, a quantidade de vítimas, até hoje não estabelecida com precisão (estimadas em cerca de 30.000), as causas remotas e recentes, tudo isto tem impedido uma visão panorâmica precisa e completa dos acontecimentos, razões pelas quais não teria surgido ainda o Euclides da Cunha do Contestado. Com efeito, para a deflagração do confl ito concorreram circunstâncias diversas que fizeram dele um episódio histórico de grande complexidade. O messianismo inoculado na religião do planalto pelos dois “monges” João Maria, o primeiro perambulando pela região no Século XIX e o segundo no início do Século XX, fi guras hoje unifi cadas numa só personalidade no

imaginário popular, e o posterior surgimento de José Maria, o “monge guerreiro”, prepararam o caldo messiânico que contribuiria de forma decisiva para a eclosão do movimento. A esse ingrediente se somaram o ostensivo poder do latifúndio, as lutas políticas entre os chefes regionais, o desemprego provocado pela dispensa dos trabalhadores após a conclusão da ferrovia São Paulo-Rio Grande, no trecho entre Porto União e Marcelino Ramos, os chamados arigós, o despejo dos posseiros das terras que marginavam a estrada de ferro e a questão de divisas entre Santa Catarina e o Paraná que ensejaram o aparecimento de líderes carismáticos que comandaram os revoltosos numa guerra que perdurou de 1912 a 1916, deixando marcas indeléveis no povo da região.

Iniciaram as hostilidades em 22 de dezembro de 1912 no chamado Combate do Irani, ocasião em que pereceram os chefes das duas forças combatentes. Morreram o coronel João Gualberto, comandante das tropas ofi ciais, e o “monge” José Maria, líder dos revoltosos. Esses fatos semearam o

A Guerra Sertaneja do Contestado

Enéas Athanázio*

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HISTÓRIA

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ódio e o incontido desejo de revanche, estendendo-se a guerra pela região, surgindo os conhecidos redutos, com suas cidades e quadros santos e os renhidos combates em que se destacaram os denominados Pares de França. Profundos conhecedores da região, os revoltosos adotaram um sistema de guerra móvel, atacando de surpresa e recuando para novamente atacar, o que permitiu a sobrevivência do movimento por tantos anos. Só o cerco rigoroso de toda a região, sufocando os revoltosos pela falta de munições e suprimentos, permitiu a vitória das forças legais à custa de vidas e sacrifícios incontáveis. No correr da guerra várias fases se sucederam, difi cultando ainda mais a sua análise. Inúmeras figuras se projetaram durante as hostilidades, como as “virgens santas” do Contestado, os heróis e heroínas sagrados pelo povo, os líderes implacáveis que sobrevivem até hoje na memória coletiva, a exemplo de Adeodato ou Leodato, objeto de um misto de temor e admiração.

O capitão Matos Costa, pacifi sta que entendia as razões dos revoltosos, pereceu de maneira inesperada e injusta. Os incêndios das vilas de São João dos Pobres, hoje Matos Costa, e de Calmon também se tornaram episódios imorredouros. Nessa última, o incêndio da Serraria da Companhia Lumber, pertencente ao Sindicato Farquhar, com todas suas instalações, madeira em estoque e toras que aguardavam serragem ardeu por dias e noites, iluminando o sertão em derredor. Toda a região é pontilhada de eventos maiores ou menores ligados à guerra.

Apesar de sua magnitude, a Guerra do Contestado é pouco conhecida fora de nossas fronteiras. Episódios menos complexos, como Canudos, Caldeirão, Pau-de-Colher e outros movimentos messiânicos são mais conhecidos e comentados, propiciando extensa bibliografi a e até fi lmes com ampla exposição. Talvez tenha contribuído para isso o fato de que a Guerra do Contestado, designada pelo povo como Revolta dos Jagunços, foi vítima de um silêncio que perdurou por longos anos. Considerada um movimento de gente atrasada e fanática, havia certo pudor em tratar do assunto, de forma que o tempo se encarregou de eliminar muitas fontes informativas que poderiam ser esclarecedoras. Hoje, porém, o movimento vem despertando interesse e já existe copiosa bibliografia a respeito, tanto de fundo histórico como fi ccional, assim como fi lmes, vídeos, peças teatrais e incontáveis matérias jornalísticas. Pela sua importância histórica, sociológica e política, no entanto, ela mereceria uma divulgação abrangente, tornando-a conhecida em todo o país. Com isso, era bem provável que viesse a despertar o interesse de pesquisadores, historiadores, escritores, cineastas e autores teatrais, além dos grandes jornais e redes de televisão.

__________________________________*Enéas Athanázio é escritor e advogado catarinense.

Resumo de palestra realizada em sessão do Conselho Estadual de Cultura do Piauí,

no dia 19 de maio de 2011.

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CULTURAHISTÓRIA

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Na história das artes plásticas piauienses, 17 de março de 2011 será lembrado por acontecimento muito especial: abertura da primeira exposição realizada pelo pintor Afrânio Pessoa Castelo Branco em Teresina. Desde o início da década de 60, o artista vem-se fi rmando como uma das fi guras mais representativas das artes plásticas brasileiras. Em 1960, participou do Salão Nacional de Belas Artes e foi premiado. Ao longo de sua trajetória, expôs em várias capitais brasileiras – Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Fortaleza – e no exterior. Suas obras estão presentes nos acervos da Bienal de São Paulo, no Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro), no Museu de Arte Moderna da Bahia e, naturalmente, no Museu do Piauí.

Sobre a pintura multifacetada de Afrânio, muitos críticos já se manifestaram:

A pintura de Afrânio nos prende pela fecunda imaginação que refl ete: cada quadro tem sua fabulação resolvida perfeitamente, quer em termos de cor ou de composição, quer na motivação dos personagens que dão vida ao fato retratado. - Harry Lans (1966).

As Formas e as Cores em Afrânio

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Afrânio Castelo Branco - Artista plástico

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Fotos: Arquivo do artista

ARTES PLÁSTICAS

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Uma pintura densa, espessa e ator-mentada, onde se impõe uma poética pes-soal, individualista, voltada para dentro. Obra que contrasta violentamente com o gênero ligeirinho-decorativo-tropicalizante que costuma passar por pintura em boa parte do território nacional. Uma obra nada fácil, feita por um artista maduro, vivendo sua solidão Equador-abaixo. - Maciej Babinski (1998).

Afrânio pinta imagens oníricas, algumas de sonho, outras de pesadelos, todas, porém, ricas de poesia porque não intencionalmente folclóricas, mas cheias de cores e poesia, porque são vividas inte-riormente. - Vera Pacheco Jordão (1972).

Pintor de alta qualidade, nome nacio-nalmente conhecido, festejado pela crítica especializada, Afrânio Castelo Branco possui, a meu ver, outro motivo para aplauso e louvação: refi ro-me ao fato de ter permanecido em sua terra natal, na

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cidade de Teresina, e ali realizado sua obra admirável, dando assim ao Piauí marcante presença no panorama da plástica brasileira. - Jorge Amado (1974).

Um observador atento, ao contemplar uma tela de Afrânio Pessoa, entenderá perfeitamente a afirmação de Buffon: “O estilo é o próprio homem”. Para Afrânio, a arte de pintar nunca está dissociada do ato de viver. Vida e obra se fundem com tal intensidade como se uma não pudesse existir sem a outra. Alheio às badalações do meio artístico, sem fazer concessões às exigências do mercado, Afrânio constroi uma obra instigante sob todos os aspectos, rica e multifacetada e, principalmente, verdadeira, porque calcada nas experiências vividas.

Uma série de fatores contribuiu para que a exposição se realizasse na capital do Piauí. Afrânio está completando 80 anos de idade e, num gesto de generosidade, resolveu presentear sua cidade com uma exposição de altíssimo nível. Acrescente-se a isso o empenho dos professores Fernando Dib Tajra (curador), Cineas Santos (organizador) e Aldenora Mesquita (madrinha). A Galeria Azurra, por seu turno, propiciou os meios para que tudo se realizasse conforme o planejado. O resultado não poderia ter sido diferente. Um fato para não ser esquecido.

cidade dde Teresina e ali realizado sua

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CARTUM- JOTA A