minoria versus maioria emma goldman

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    emma goldman*

    Se eu fosse resumir a tendncia de nossos temposeu diria: quantidade. A multido, o esprito de massa,

    domina tudo, destruindo a qualidade. Nossa vida toda produo, polticas e educao , baseia-se em quanti-dade, em nmeros. O trabalhador, que antes se orgu-lhava da qualidade e da mincia de seu trabalho, subs-titudo por autmatos incompetentes e descerebrados,que despejam enormes quantidades de coisas, sem qual-quer valor para eles, e geralmente prejudiciais para oresto da humanidade. Deste modo, ao invs de trazer

    paz e conforto para a vida, a quantidade apenas ampliouo fardo do homem.

    * Emma Goldman, russa, anarquista e feminista, chegou nos Estados Unidoscom a irm indo trabalhar como operria txtil. Em pouco tempo tornou-se umamilitante combativa juntamente com o seu companheiro Alexandre Berkman,

    o que lhe valeu alguns encarceramentos, um deles por ensinar publicamente ouso de contraceptivos. Emma Goldman participou criticamente da RevoluoRussa, da Guerra Civil Espanhola e morreu em 1940, no Canad. Seu corpo foisepultado em Chicago, junto com os dos anarquistas de Haymarket.

    verve, 13: 123-133, 2008

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    Na poltica, somente a quantidade importa. Propor-cionalmente a esse aumento, porm, os princpios, os

    ideais, a justia e a honradez so engolidos por um marde nmeros. Na luta pela supremacia, os vrios parti-dos se superam em mentiras, fraudes, astcias e tra-mas duvidosas, seguros de que, aquele que obtiver xitoser aclamado pela maioria como o vencedor. Este seunico deus, o Sucesso. s expensas do qu? A qualterrvel custo do carter? Esse o ponto crucial. No preciso ir muito longe para comprovar esse triste fato.

    Nunca antes a corrupo, a completa podrido de nos-so governo, se exps to claramente; jamais foi to ex-plcito ao povo americano o carter prfido do corpo pol-tico, o qual por anos reivindicou estar acima de qualqueracusao, ser a base de nossas instituies e o verda-deiro protetor dos direitos e liberdades do povo.

    Contudo, quando os crimes deste grupo se tornaramto descarados que at um cego poderia enxerg-los, foipreciso apenas que se convocassem seus agentes paraassegurar a sua supremacia. Assim, as vtimas, enga-nadas, tradas e ultrajadas uma centena de vezes, secolocaram, no contra, mas a favor do vencedor. Perple-xos, alguns questionaram: como a maioria pde trair astradies da liberdade americana? Qual o critrio, qual

    a lgica? Mas exatamente isso, a maioria no podejustificar, no h discernimento. Sem qualquer origi-nalidade e valor moral, a maioria sempre colocou o seudestino nas mos de outros. Incapazes de assumir res-ponsabilidades, preferiram seguir seus lderes ainda quepara a destruio. Dr. Stockmann2estava certo: Os ini-migos mais perigosos da justia e da verdade em nossomeio so as maiorias compactas, as malditas maiorias

    compactas. Sem ambio ou iniciativa, a massa com-pacta odeia a inovao mais do que tudo. Sempre se ops,

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    boa vendagem. Servir ao paladar do povo? Ah! Esse pa-ladar um depsito de lixo; saboreia-se qualquer coisa

    que no exija esforo mental. Como resultado, o medo-cre, o banal, o lugar comum estabelecem a maior parteda produo literria.

    Preciso dizer que o mesmo ocorre com as artes pls-ticas? Basta observar os parques e vias pblicas paraperceber o horror e a vulgaridade da arte industrializa-da. Certamente somente o gosto da maioria poderia su-

    portar tamanho insulto arte. Falso em sua concepoe primitivo em sua execuo, os monumentos que infes-tam as cidades americanas tm com a arte, a mesmarelao de um totem com Michelangelo. No obstante, a nica arte que tem algum reconhecimento. O verda-deiro gnio artstico, aquele que no sustenta as no-es estabelecidas, que exercita sua originalidade e sepreocupa em ser verdadeiro diante da vida, segue uma

    existncia obscura e miservel. Talvez algum dia seutrabalho caia no gosto da multido, mas no antes quese tenha esgotado o sangue em suas veias; que tenhacessado o seu esprito desbravador, e um amontoado degente sem viso nem ideais tenha matado a heranado mestre.

    Diz-se que o artista de hoje no pode criar pois um

    Prometeu acorrentado pedra da necessidade econ-mica. Isso, porm, sempre ocorreu em todas as pocas.Michelangelo era dependente de seu mecenas tantoquanto um pintor ou escultor hoje em dia. A diferena que os peritos em arte daquela poca estavam longe damassa confusa. Sentiam-se honrados em poder reve-renciar o altar do mestre.

    O mecenas de nosso tempo conhece apenas um cri-trio, um valor, o dlar. No est preocupado com aqualidade de nenhum grande trabalho, mas apenas

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    na quantidade de dlares que sua transao pode lhe ren-der. Assim, como o homem das finanas, em Les Affaires

    sont les Affaires,de Mirbeau,3

    aponta para alguns ar-ranjos de cores borradas dizendo: Veja como maravi-lhoso; custa 50.000 francos. Exatamente como nossosnovos-ricos. As quantias exorbitantes que pagam por suasdescobertas artsticas pretendem compensar a pobrezado seu gosto.

    O pecado mais imperdovel na sociedade a inde-

    pendncia do pensamento. Que isso possa ser to evi-dente em um pas cujo smbolo a democracia, muitosignificativo do tremendo poder da maioria.

    Wendell Phillips disse cinqenta anos atrs: Emnosso pas de absoluta igualdade democrtica, a opiniopblica no somente onipotente, mas tambm oni-presente. No h refgio para sua tirania, no h comose esconder de seus objetivos, e o resultado que se forusada a velha lanterna grega para procurar entre amultido, no se encontrar um s americano que notenha, ou no tenha imaginado ao menos, algo a ga-nhar ou perder, seja em sua ambio, vida social, ounegcios, da boa opinio e dos votos daqueles ao seu re-dor. A conseqncia que, ao invs de ser uma massade indivduos, onde cada um fala de suas convices sem

    medo e sem hesitao, somos na verdade, uma massade covardes se comparados a outras naes. Mais do quequalquer um, temos medo uns dos outros.4Evidente-mente no avanamos muito longe desta condio en-frentada por Wendell Phillips.

    Hoje, como antes, a opinio pblica o tirano onipre-sente; hoje, como antes, a maioria representa uma

    massa de covardes ansiosa para aceitar aquele que es-pelhe a misria de sua prpria mente e alma. Isso ex-plica a ascenso sem precedentes de um homem como

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    Roosevelt. Ele encarna o pior elemento da psicologia dopopulacho. Como poltico, ele sabe que para a maioria

    pouco importam ideais ou integridade. O que ela exige o espetculo. No importa se uma exposio de ces,uma luta por prmios, o linchamento de um criolo5, ocerco a algum infrator insignificante, o casamento dealguma herdeira, ou as palhaadas de algum ex-presi-dente. Quanto mais abominvel a contoro mental,melhor o deleite e aplausos da massa. Assim, ainda quede pobres ideais e alma vulgar, Roosevelt continua a

    ser o homem da vez.

    Por outro lado, os homens que se elevam sobre ospigmeus da poltica, homens de refinamento, cultura,habilidade so ridicularizados como efeminados e as-sim, silenciados. absurdo dizer que a nossa uma erade individualismo. A nossa apenas a mais pura repe-tio de um fenmeno da histria: todo esforo para o

    progresso, para o esclarecimento, para a cincia, para areligio, liberdade econmica e poltica, tudo isso emanada minoria, e no da massa. Hoje, como sempre, estespoucos so mal compreendidos, desprezados, aprisiona-dos, torturados e mortos.

    O princpio da fraternidade, exposto pelo agitador deNazar, preservou o germe da vida, de justia e liberda-

    de, enquanto este era o farol luminoso para uma mino-ria. No momento em que a maioria tomou posse, este gran-de princpio passou a ser uma senha e um estandarte desangue e fogo, espalhando sofrimento e desastre. O ata-que onipotncia de Roma, liderado pelas figuras colos-sais de Huss, Calvino e Lutero, foi, por um instante umraio de luz na escurido. Mas to logo Calvino e Luterose tornaram polticos e comearam a abastecer os pe-

    quenos potentados, a nobreza e o esprito popular, com-prometeram as grandes possibilidades de Reforma. Elesganharam prestgio e conquistaram a maioria, mas esta

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    maioria se mostrou to ou mais cruel e sanguinria naperseguio do pensamento e da razo como fra o mons-

    tro Catlico. Infortnio dos hereges, da minoria que nose curvou s suas ordens. Aps tanto empenho, resig-nao e sacrifcio, a mente humana se v, ao menos,livre do fantasma da religio; a minoria segue em bus-ca de novas conquistas, enquanto a maioria se arrastaincapacitada pela verdade que se torna falsa com o tem-po.

    De uma perspectiva poltica, se no fosse por JohnBalls, Wat Tylers, os Tells e outros incontveis indiv-duos excepcionais, que brigaram passo a passo contra opoder dos reis e tiranos, a raa humana ainda estariana mais absoluta escravido. Se no fosse por estes des-bravadores, o mundo no teria sentido o abalo da Revo-luo Francesa. Grandes acontecimentos so geralmen-te precedidos de coisas aparentemente pequenas. Desta

    forma, a eloqncia e o fogo de Camille Desmoulins foicomo a trombeta diante de Jeric, arrasando as terrasque simbolizavam a tortura, o abuso e o horror: a Basti-lha.

    Sempre, em todos os tempos, as minorias foram res-ponsveis por sustentar uma grande idia, de foras li-beradoras. Por outro lado, as massas foram sempre o

    peso morto que no permitia o movimento. Na Rssiaisso ficou mais claro que em qualquer outro lugar. Mi-lhares de vidas foram consumidas por aquele regimesanguinrio, e no entanto o monstro no trono ainda noficou satisfeito. Como possvel que tal atrocidade acon-tea quando as idias, a cultura, a literatura, as emo-es mais delicadas e profundas fervem em baixo de umamo de ferro? A maioria, esta massa compacta, imvel,

    adormecida, o campesinato Russo, aps um sculo delutas, de sacrifcios, de misrias inenarrveis, conti-

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    nua a acreditar que a corda que estrangula o homemdas mos brancas6traz sorte.

    Na luta americana pela liberdade, a maioria no foinada mais do que um bloco hesitante. A partir da asidias de Jefferson, Patrick Henry, Thomas Paine, fo-ram negadas e tradas pela posteridade. A massa noquer nada deles. A grandiosidade e coragem admiradasem Lincoln, foram esquecidas nos homens que criarama base para o panorama daquele tempo. Os verdadeiros

    santos protetores dos negros estavam representados poralguns poucos guerreiros de Boston, por Lloyd Garrison,Wendell Phillips, Thoreau, Margaret Fuller e TheodoreParker, cuja coragem e vigor culminaram neste gigan-te sombrio que foi John Brown. Seu incansvel cuidado,sua eloqncia e perseverana abalaram a fortaleza dossenhores sulistas. Lincoln e seus partidrios prossegui-ram apenas quando a abolio j se tornara uma prti-

    ca habitual.H mais ou menos 50 anos, uma idia meterica

    apareceu no horizonte social do mundo, uma idia todistante, to revolucionria, e que foi acolhida por todospara terror dos tiranos em toda a parte. Por outro lado, aidia era um anncio de alegria, celebrao e esperanapara milhes. Seus precursores sabiam dos obstculos

    de seu caminho, sabiam das resistncias, perseguies,das dificuldades que enfrentariam, mas orgulhosos edestemidos, comearam sua marcha adiante, sempreadiante. Agora aquela idia se tornou um mote popular.Quase todos so socialistas hoje: tanto o rico, quantosua pobre vtima; os defensores da lei e da ordem, e seuscriminosos desafortunados; os livre-pensadores, assimcomo os perpetuadores de mentiras religiosas; a senho-

    ra elegante, e a garota mal vestida. Por que no? Agoraque a verdade de cinqenta anos atrs se tornou umamentira, agora que foi apartada de sua vigorosa imagi-

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    nao e despojada de seu entusiasmo, de sua fora, deseu ideal revolucionrio, por que no? Agora que no

    mais uma bela viso, mas um esquema prtico e fun-cional, pautado pela vontade da maioria, por qu no?As artimanhas polticas sempre fazem uma apologia massa: a pobre maioria, ultrajada, violentada, a gigan-tesca maioria, se ao menos pudessem nos seguir.

    Quem no ouviu esta ladainha antes? Quem no co-nhece este refro repetitivo de todo poltico? Que a mas-

    sa sofre, que vem sendo extorquida e explorada, isso euconheo tanto quanto os engodos do voto. Mas insistoque no um punhado de parasitas, e sim a prpriamassa que responsvel por esta situao horrvel.Prendem-se aos seus mestres, amam a chibata, e soos primeiros a clamar Crucifiquem! no momento em quesurge uma voz contra a sagrada autoridade capitalistaou qualquer outra instituio decadente. No obstante,

    quanto tempo mais poderia se manter a autoridade ea propriedade privada, se no fossem a vontade e dis-posio da massa de se tornarem soldados, policiais,carcereiros e algozes. A demagogia socialista sabedisso tanto quanto eu, mas mantm o mito da virtudeda maioria pois seu projeto de vida est fundado naperpetuao do poder. E como essa perpetuao podeser alcanada sem nmeros? Sim, autoridade, coeroe a dependncia se pautam na massa, mas nunca naliberdade ou na livre determinao do indivduo, nuncano nascimento de uma sociedade livre.

    No porque eu no sinta como os oprimidos, como osdeserdados da terra; no porque no saiba a vergonha, ohorror, a indignidade da vida levada pelo povo, que eurepudio a maioria como fora criativa. Oh, no, no! Mas

    porque eu sei que a massa compacta nunca lutou porjustia e igualdade. Ela suprimiu a voz dos homens, sub-jugou o esprito humano, acorrentou o corpo humano.

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    Como massa, seu objetivo foi sempre uma vida mais uni-forme, cinzenta e montona, como o deserto. Como mas-

    sa, ser sempre o exterminador da individualidade, da li-vre iniciativa, da originalidade. Assim como Emerson,acredito que as massas so grosseiras, coxas, pernicio-sas em suas demandas e influncias, e no precisam serelogiadas, mas educadas. Eu desejaria no ter que con-ceder nada a elas, mas ensinar, dividir, quebr-las etransform-las em indivduos. Massas! A calamidade soas massas. Eu no desejo massa alguma, mas apenas

    homens honestos, e mulheres doces, amveis e com-pletas.

    Em outras palavras, a verdade viva e vital do bem-estar econmico e social s se tornar realidade diantedo zelo, coragem, determinao sem obrigaes, de mi-norias inteligentes, e no por meio da massa.

    Traduo do ingls por Eliane Knorr e reviso tcnicapor Beatriz Scigliano Carneiro.

    Notas

    1Publicado em:Anarchism and other Essays. Second Revised Edition. NewYork & London, Mother Earth Publishing Association, 1911. pp. 75-84.

    2Dr. Stockmann um personagem da pea O inimigo do povo, de 1882, escritapelo poeta e dramaturgo noruegus Henrik Ibsen. (N.T.)

    3Comdia de 1903, do escritor anarquista francs Octave Mirbeau. (N.T.)

    4Wendell Phillips (1811-1884) nasceu nos Estados Unidos e foi um advogadoabolicionista. (N.T.)

    5No original, Emma Goldman usa a forma pejorativa da palavra, nigger.(N.T.)

    6Os intelectuais.

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    RESUMO

    Defende-se hoje, que vivemos num tempo de minorias e individua-

    lismo. No entanto, se a riqueza est nas mos de poucos, se so

    homens mesquinhos e sem carter que ocupam o lugar do gover-no, porque a maioria permite e os sustenta. Preferem seguir como

    rebanho ainda que para um abismo. Alm disso, hoje, o que se

    produz com base no gosto vulgar desta maioria. No h lugar

    para delicadezas e singularidades. Vivemos sob a tirania de uma

    maioria covarde, que aprisiona e destri as singularidades inven-

    tivas.

    Palavras-chave: massa-opressiva, indivduos-livres, anarquismo.

    ABSTRACT

    These days are known as a minority and individualism era. Al-

    though, if only a few accumulated the wealth of the world, and

    just the miserly and honourless men are in the government, its

    because the majority support them. They prefer to be leaded, even

    to destruction. Besides, the production today is based in the tas-

    teless majority. There is no place to singularities and delicacies.

    We live under the tyranny of a coward majority that imprison and

    annihilate inventive singularities.

    Keywords: oppressive-mass, free individuals, anarchism.

    Recebido para publicao em 12 de setembro de 2006.Confirmado em 12 de fevereiro de 2007.