hotelles - livro 1 - emma mars

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Um ano antes, 3 de junho de 2009, no mesmo quarto de hotel

Nesse dia, eu tinha os movimentos livres, enroscada nos lençóis desfeitos do Joséphine. Livres, porém acanhados. Só conhecia o homem com quem dividiria minha cama há três horas, quatro no máximo. Significa dizer que eu não sabia muito sobre ele, a não ser o estado civil, o tamanho da carteira – em breve o de outra coisa também. No período que precedera esse momen-to preciso, eu não escutara uma mísera palavra de sua conversa com nossos vizinhos de mesa. Eu não participara dela, a não ser com sorrisos esparsos e dóceis meneios de cabeça. Parecia uma bela planta, como se esperava de mim. O que ele fazia na vida exatamente? Banco? Importação-exportação? Ou fora eleito para algum cargo, presidente de honra de alguma coisa? Em todo caso, era importante o suficiente para impor respeito – e às vezes até silêncio – aos outros convivas.

– Você tem preferência por alguma posição? – ele perguntou ao me aju-dar a abrir meu leve vestido branco, de fecho éclair nas costas.

Engraçado: há poucos minutos, curvados sobre nossos pratos de foie­ gras poché com mirtilo, éramos “senhor” e “senhora”. Transposta a porta do quarto, ele passou da autoridade ao “você”, intimidade enganadora de cor-pos que se despem depressa demais.

– Como é? – Eu me engasguei entre dois goles de água com gás.Um ser vibrando de desejo sincero por você, de quem você espera fe-

brilmente elogios, jamais se preocuparia com considerações técnicas. O seu corpo, o jeito de ele se entregar, daria logo a resposta. Não há necessidade de palavras. Tudo seria somente música, e a harmonia dos sentidos de ambos seria o sinal.

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– Quer dizer... Há posições que são um problema para você? Coisas que a bloqueiam?

Eu me virei e o observei mais atentamente do que havia feito até então. Era um homem bem atraente, quarentão ligeiramente grisalho, do tipo atlético, sem dúvida devia ser bastante chegado ao esporte, razão provável de minha presença naquele quarto. Sem isso, eu jamais teria cogitado de dar continui-dade ao jantar enfadonho que acabáramos de suportar. Teria me mantido na fórmula básica. Contudo, era só a terceira vez que eu aceitava “continuar com aquilo”, como se diz. Em oito meses de atividade, convenhamos, é bem pouco.

Por sua inabilidade, pela maneira corta-tesão de me consultar sobre mi-nhas preferências, adivinhei que ele não era mais experiente do que eu. Tal-vez eu fosse até sua primeira acompanhante. Evitei fazer a pergunta, para não dissipar o resto de mistério que permanecia entre nós.

– Não... Não especialmente – menti, com um sorriso que eu esperava fosse sedutor.

– Tudo bem... – Ele aprovou com um aceno de queixo, visivelmente tranquilizado. – É só porque é melhor eu saber antes.

Minha cabeça estava em outro lugar...

A posição de quatro me incomoda porque é animalesca. E por esta razão só posso praticá-la com homens que eu conheço.

A posição de quatro me faz gozar mais do que as outras posições...

justamente por ser animalesca?E por esta razão eu sonho em praticá-la com homens

de rosto mascarado, de preferência.(Nota manuscrita anônima de 3/6/2009,

colocada na minha caixa do correio sem eu saber.)

Eu pensava nos bilhetes que vinha recebendo há algumas semanas, des-de que encontrei na minha bolsa um caderninho em espiral de capa pratea-da, um caderninho em branco que uma mão anônima largara ali dentro ao esbarrar em mim no metrô. Colado no interior, o bilhete enigmático que, com uma caligrafia desconhecida, me alertava:

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Um estudo concluiu que os homens pensam em sexo cerca de dezenove vezes por dia. As mulheres, não mais do que dez.

E você, quantas vezes se deixa invadir diariamente por esse tipo de pensamento?

Passaram-se vários dias até eu receber, colocada na minha caixa do correio, sem selo nem franquia, uma folha solta perfurada cujos furos cor-respondiam aos anéis metálicos do meu caderno. O autor sentia um prazer evidente em imaginar quais seriam minhas fantasias. Ele escrevia na primei-ra pessoa, como se fosse eu.

Por pouco não joguei o papel na lata de lixo sem ler. Cheguei a pensar em fazer uma denúncia de assédio na delegacia. Mas minha curiosidade de estudante de jornalismo foi mais forte, e eu cuidadosamente guardei a folha no meu fichário, sem imaginar ainda que seria a primeira de uma longa série. Pois a mão sem rosto não pararia por ali... Ah, não.

– Nada me bloqueia – terminei respondendo ao meu cliente.Afinal, ele não era pior do que o pequeno punhado de homens que eu

havia deixado que me possuíssem depois de certas noitadas regadas a be-bida ou de vários restaurantes medíocres. E  se eu pensasse na minha pri-meira vez nos braços de Fred, minha história mais séria até aquele dia, teria que confessar que a ela também faltara bastante glamour. Pensando bem, na noite em que acabamos transando, eu cedi porque a ocasião se apresentou, porque o curso natural da noite exigia... Não por real vontade. Então, que mal havia hoje em envolver tudo com o discreto verniz de uma transação comercial? Eu não valia mais do que um pedaço de pizza e dois copos de vinho tinto?

Aquele ali pelo menos era rico, educado, bonitão e, acima de tudo, ele-gante no seu terno de dois botões sob medida, cujo refinamento dos acaba-mentos eu notara, forro de seda fúcsia e pesponto combinando com a lapela. Graças a ele eu ia ganhar mais em uma noite do que teria embolsado em uma semana de biscates em restaurantes, no caixa de uma lanchonete ou outra coisa do gênero.

Em suma, eu me motivava como podia. Como o champanhe da noite já se dissipava, eu precisava de novo estímulo, de outra efervescência além das bolhas na minha taça.

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* * *

Apesar da carta branca que eu acabara de lhe conceder, o senhor-sob-me-dida, devidamente envolto em látex, penetrou-me sem preliminares, ou quase, e, sobretudo, sem uma palavra, num papai-mamãe sem inspiração. A  ausência de savoir­faire sexual em pessoas supostamente bem-educadas sempre me surpreende. Provavelmente, é o único aprendizado que não se inculca, para o qual não existem curso particular nem professor.

– Tudo bem? Não estou machucando você?Não, nem machucando nem coisa nenhuma. Estranha ausência de sen-

sações. Toda a parte inferior do meu corpo parecia anestesiada. Eu sabia que se tratava de mim, de meu sexo, de uma penetração, de um embate que não podia ser mais real, mas não conseguia me sentir envolvida. Com as mãos pousadas nas nádegas dele, eu acompanhava seu vaivém insípido com deli-cadeza.

– Está tudo bem. – Eu me esforçava para encorajá-lo.Minha própria inexperiência impedia as iniciativas que ele devia legiti-

mamente esperar da minha parte. Eu deveria suspirar, gemer, sussurrar exor-tações obscenas em seu ouvido? Até que ponto eu deveria simular? Seria parte do meu serviço?

– E para você, está bom?Foi tudo que pude achar no momento. Eu sei, foi bem medíocre. Ele

se limitou a  arfar um sim que prefigurava uma conclusão próxima. Então, preo cupado em rentabilizar o momento precioso, como homem de negó-cios sensato que por certo ele era, imobilizou-se durante quinze segundos, para depois voltar à carga, tão regularmente quanto um metrônomo suíço.

Embora estivesse um pouco ausente, eu não sentia nem incômodo, nem repulsa, menos ainda raiva. A mão que eu passava nas costas dele, acarician-do lentamente toda a superfície, da coluna até o meio das costas, era cheia de boa vontade, de desejo de dar prazer. Tomei como prova de sua satisfação os grunhidos que se intensificavam. Francamente, aquela relação não era pior do que muitos exercícios de ginástica horizontal que eu conhecera no passa-do. E depois, vejam, o interesse de um coito sem paixão é que ele lhe deixa todo o tempo para apreciar o cenário. A decoração dos quartos do Hôtel des Charmes merecia que nos detivéssemos. Além do imenso espelho fixado no

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teto, uma das raras concessões do lugar às exigências de nossa época, todo o resto da decoração era apresentado como uma réplica fiel do quarto ocu-pado por Madame de Beauharnais, esposa de Bonaparte, no seu castelo de Malmaison. O  conjunto do aposento circular surgia como a  mais luxuosa das tendas de campanha, sustentada por uma série de finos pilares de ouro ligados entre si em toda a volta por largas cortinas vermelhas, às quais o dra-peado à  antiga conferia um volume e  um movimento dos mais graciosos. O amplo leito de baldaquim encimado por uma águia de asas abertas, pronta a levantar voo, era guarnecido na cabeceira com dois cisnes dourados e, nos pés, com duas cornucópias. Todo o resto do mobiliário, inclusive as poltro-nas e um longo canapé dispostos na outra extremidade do quarto, retomava os tons dominantes, ouro e sangue, bem como os motivos florais já presentes no forro e nas colunas laterais do somiê.

A ilusão era perfeita, e não havia necessidade de forçar a imaginação para recuarmos dois séculos. Napoleão tomaria de assalto sua Joséphine com esta mesma precisão mecânica ou, ao contrário, variava seu papel? Estava eu em minhas conjecturas estéticas, ou sexo-históricas, quando o senhor-sob-me-dida me agraciou com um último arranco dos quadris e um gemido conclu-sivo. Não levou mais de três ou quatro minutos, talvez impressionado pela majestade do lugar ou, simplesmente, por ainda se sentir pesado pela refei-ção, enfraquecido pelo álcool.

Tão logo saiu de dentro de mim, rolou para o lado, com o corpo quase em contato com o meu, e soltou este pequeno cumprimento, fruto de reco-nhecimento pós-orgásmico:

– Sabe... você é muito bonita.– Obrigada.Que outra coisa responder, tanto mais quando se está convencida do

contrário? Aquela que eu visualizava no teto não me convinha. Nunca me conviera. E eu sabia que esse tipo de sessão não me reconciliaria tão cedo com ela. Roliça demais, demais disso, demais daquilo. Eu era mais para moça desengonçada do que para mulher fatal. Em uma palavra, imperfeita.

– Tenho dificuldade com mulheres magras – confessou. – Tenho medo de quebrá-las... e de me espetar nos ossos delas também.

Maneira de dizer que, para ele, minhas formas roliças não tinham desa-gradado. Pelo menos um de nós dois estava satisfeito com o menu que eu

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tinha para oferecer. Fartura em todos os estágios. E nada de ângulos salien-tes. Capaz de saciá-lo naquele momento, ao que parece.

Peguei na mesinha de mogno o maço de notas que ele me deixou, verifi-cando o valor com um olhar, e aproveitei o desaparecimento dele no banhei-ro para sumir do quarto, tão muda quanto os fantasmas que o habitavam. O que poderia dizer a ele que não soasse como uma mentira ou uma falacio-sa promessa: “Foi realmente demais”? “Obrigada mais uma vez”? “Até breve, eu espero”?

Eu  me calcei no patamar da escada, a  planta dos pés acariciada pela suavidade do espesso tapete, e me dirigi ao saguão onde ficava a recepção. Lá, do seu balcão encerado, o sr. Jacques me fez um pequeno sinal discreto, um convite explícito para eu me aproximar.

– Correu tudo bem, senhorita?– Sim, sim – pronunciei à meia-voz. – Muito bem.O concierge do Hôtel des Charmes era imponente com sua libré cintada

de lacaio do Grand Siècle enfeitada de passamanaria ouro e prata. Porém, mais do que o  uniforme, era  sua aparência física que me impressionava: o velho não tinha um único pelo em toda a superfície da cabeça, nem cabe-los, nem bigode, nem barba, nem sobrancelhas. Sequer cílios para orlar seus imensos olhos azuis, ligeiramente esbugalhados. Era impossível ser mais im-berbe do que aquele homem. Ou ter a pele mais branca.

Surpreendentemente, minha mãe nada perdera de sua cabeleira grisa-lha com as sessões de quimioterapia. Os seis últimos meses de tratamento derrotaram seus músculos e tônus, não sua cabeça, sempre coberta. Maude Lorand resistiu bem. Aguentou firme como sempre fez, com coragem e hu-mildade, sem uma palavra a mais e sem a menor queixa. Seus pulmões foram para o espaço, mas sua dignidade não arredou um milímetro. Uma estátua de bronze em meio às cinzas.

– Acha que vai precisar de um quarto nos próximos dias? Talvez mesmo amanhã?

– Não sei ainda. De todo modo, se for o caso... será certamente a últi-ma vez.

Ele não pareceu surpreso com essa declaração irremediável. Parecia quase feliz, como deu a entender sem ambiguidade o seu largo sorriso. O sr.

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Jacques só queria o meu bem. Digamos que – era essa a minha sensação em cada um de nossos raros encontros – ele via o bem em mim. Que, a despeito das aparências e das razões objetivas de minha presença naquele estabeleci-mento, ele percebia o que eu poderia fazer de bom, ou de melhor. Alguns se-gundos do seu olhar pousado em mim bastavam para me devolver o  ânimo.

Nessa noite, porém, não me demorei junto àquela fonte benéfica. Ele ainda sorria para mim quando eu já estava lá fora, aspirada pela noite suave e ainda criança.

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