minha viagem ao egito
DESCRIPTION
Minha Viagem ao EgitoTRANSCRIPT
2: Ahlan wa Sahlan – Bem -‐ Vindo
Após trinta horas entre aviões e aeroportos, eu havia
chegado. Estava tão cansado que nem percebia direito que
estava tão longe... Desci do avião, peguei as malas e fui
andando para a saída. Logo que saí do terminal fui abordado
por vários taxistas, perguntando para onde eu ia, se podiam me
levar, ou só gritando ‘taxi, taxi’. No meio da confusão duas
pessoas que usavam uma camiseta vermelha vieram até mim
perguntando se eu era o Gabriel. Eram Mohamed e Ahmed,
voluntários do AFS que iriam me levar para o hotel onde os
outros estudantes estavam para a primeira orientação do
intercâmbio. Ahmed ficou algum tempo negociando com um
taxista, talvez ele quisesse cobrar mais porque eu tinha cara de
turista, não sei... No taxi tive a minha primeira visão da cidade
do Cairo, cheia de viadutos, carros, prédios, avenidas,
pequenas ruas, luzes, vendedores... e muita gente.
A cidade do Cairo surgiu próxima às ruínas da capital
faraônica de Mênfis, alguns quilômetros ao sul da cidade
moderna. Quando os árabes vieram ao país eles fundaram uma
nova capital, Fustat, que hoje é o centro do Cairo Islâmico, a
cidade medieval. No século XIX os sultões e reis do Egito
começaram a construir um novo centro para a cidade em estilo
europeu, com grandes prédios, praças, jardins e avenidas. A
ideia era a de transformar o Cairo na “Paris do Nilo”. Até hoje
essa parte da cidade é a parte central, onde se localizam a
Praça el Tahrir e o Museu Egípcio. Minha avó morava neste
bairro, numa época em que ele era o centro da vida social e
intelectual da cidade. Depois dos anos 50 o centro da cidade
começou a mudar, com as famílias abastadas e os intelectuais
se mudando para novos bairros como Heliópolis e
Mohandessin.
Era uma sensação muito estranha, estar lá, num lugar tão
diferente. Parecia que não era verdade, era impossível ter uma
noção de o quão longe eu estava do Brasil. Já era muito tarde, e
quando eu cheguei no hotel todos já estavam dormindo, então
eu não conheci mais ninguém naquela noite. Fui dormir, pois a
viagem e tudo que estava acontecendo haviam me deixado
exausto.
Quando acordei no dia seguinte que realmente comecei a
perceber o que estava acontecendo. Eu havia mudado de país,
para ficar um ano em um lugar que eu não conhecia, mas
sempre quis morar. Foram semanas até que eu realmente
percebesse que eu estava de fato morando no Egito...
Naquele dia eu conheci os outros intercambistas e alguns
voluntários do AFS, que se tornariam meus melhores amigos
mais tarde. Adam, da Dinamarca; Louise, da Bélgica; Lisa, da
Alemanha; Citlalli e Lindsey dos Estados Unidos e os voluntários
egípcios Ahmed, Mohamed, Youssef e Mariam.
Na orientação nos deram uma básica apresentação da
cultura do país, como as pessoas se relacionam lá, a dinâmica
familiar, etc... Depois eu perceberia que essa orientação apenas
expôs uma fração da cultura egípcia. Conversamos a tarde toda
e no final descemos ao lobby do hotel para esperar nossas
famílias hospedeiras.
Lembro-‐me que quase todas as famílias já estavam lá,
menos a minha. Foi quando eu fiquei realmente nervoso, pela
primeira vez. Talvez fosse tudo que estava acontecendo, mas
naquele momento eu fiquei realmente preocupado, ansioso...
Até que uma senhora sorridente chega acompanhada de um
menino pequeno e uma garota de uns vinte anos. Era parte da
minha família, eu os havia reconhecido pois logo que o AFS me
informou que eu moraria com eles eu os contatei pelo
Facebook. Eles foram muito simpáticos e estavam muito felizes
em me ver, e eu fiquei muito contente em finalmente conhece-‐
los. Nos despedimos das pessoas que estavam lá e pegamos um
taxi para ir até a minha nova casa. A minha família hospedeira
morava em Moqattam, um bairro que ficava na única
montanha do Cairo, um lugar bem alto.
Moqattam A -‐ Visto da Cidadela; copiado da internet
Moqattam, é relativamente novo. Trinta anos atrás não
existia muita coisa no topo da montanha, apenas um mosteiro
cristão Copta.
No taxi vi mais um pouco da cidade, que para a minha
surpresa era bem moderna em alguns aspectos. Eu esperava
uma cidade muito antiga, com camelos nas ruas, bazares em
todo lugar, tendas, vielas, becos... Obviamente tudo isso existe
em certas partes, como o Cairo Islâmico e o Cairo Copta. Mas
grande parte da cidade é muito moderna, com avenidas muito
largas e grandes elevados para carros.
Mais adiante no caminho para casa vi a mesquita de
Mohammed Ali e a Cidadela de Salah el Din; como já era de
noite tudo estava iluminado, um cenário muito bonito.
Também vi um dos bairros mais pobres do Cairo, Mansheiyet
Nasser, onde o lixo é reciclado. O taxi virou da grande avenida
em que estávamos (Uma avenida que eu passaria a evitar
sempre que possível, chamada Salah el Salem) e entrou numa
pequena estrada em frente a Cidadela para subirmos a
montanha. Era bem alto, grandes faces de rocha escarpada. No
caminho não havia nada, apenas a estrada para subir até o
bairro do Moqattam em si.
Chegando lá em cima me deparei com um bairro
aconchegante, bem agitado. Era basicamente uma comprida
rua no topo achatado da montanha, que ia de uma ponta da
montanha até a outra.
Essa rua era a Shar3 Tis3a (“Rua 9”. Vou explicar os
números nas palavras daqui a pouco) que era como uma
avenida principal, onde ficava o comércio. Várias pequenas
ruas saíam da Rua 9, onde ficavam a maioria dos prédios
residências. Meu prédio ficava na própria Rua 9, chegando lá vi
que era um prédio antigo, todo bege por causa da areia do
deserto. O apartamento da família ficava no sétimo andar (o
elevador não tinha uma porta interna; dava para ver as paredes
e outras portas enquanto o elevador se movia) e chegando lá
eu conheci o resto da família.
Miranda, a mãe; Rana, a filha mais velha e Eyad, o caçula
foram os que me buscaram no hotel. Chegando lá eu conheci o
pai, Tareq; Ziad, o segundo mais velho e Nada, a irmã do meio.
Eles ainda tinham mais um filho, Begad, que estava fazendo
intercâmbio em Seattle na época. Ainda não o conheci
pessoalmente.
Toda a família foi muito receptiva e acolhedora, fizeram o
máximo para que eu me sentisse confortável. Conversei um
pouco com eles para saber as regras da casa e mais um pouco
de cada um. Tareq era engenheiro de som e produzia trilhas
sonoras para vários filmes e programas de TV; ele trabalhava
de casa. Miranda era formada em Biologia e deu aulas durante
um tempo, mas depois ela se dedicou apenas à criação dos
cinco filhos. Rana e Ziad estavam trabalhando e Nada e Eyad
estavam na escola ainda.
Todos os filhos dormiam no mesmo quarto, onde haviam
beliches. A sacada do quarto estava sendo transformada em
um pequeno cômodo para mim, mas a pintura ainda não
estava pronta, então eu dormi na sala durante alguns dias.
Nos dias que se seguiram eu ainda estava muito
atordoado. Eu acordava relativamente cedo, mas ficava muito
cansado rapidamente, indo dormir bem cedo também.
Rana e Nada me levaram em alguns lugares incríveis,
como a Cidadela de Salah el Din, que era bem perto da nossa
casa. A Cidadela foi construída no período medieval pelo sultão
Salah el Din (também conhecido como Saladino) para proteger
o Cairo e a cidade de Fustat das incursões europeias no período
das Cruzadas. O local foi o centro de poder dos líderes egípcios
até o século 19, quando o Khedive Ismail transferiu o governo
para o seu novo palácio no centro do Cairo. O antepassado de
Ismail, Mohammed Ali, construiu uma mesquita ali, uma das
maiores e mais imponentes do Egito.
A Cidadela é uma pequena cidade medieval, com várias
mesquitas e ruas do período. É um lugar muito interessante, dá
para se ter uma vaga ideia de como era viver no Cairo durante
o período de Salah el Din.
Cidadela de Salah el Din, século XIX A
Naquele mesmo dia Rana e Nada também me levaram ao
centro da cidade. Foi a primeira vez em que eu fui à Praça el
Tahrir; foi uma sensação indescritível estar lá, naquele lugar tão
importante. O centro do Cairo é bem grande, cheio de lojas e
cafés onde os egípcios se reúnem no fim do dia para tomar
café, chá e fumar shisha, aqui no Brasil conhecido como
narguilé. Vários prédios em estilo europeu intercalados com
grandes praças adornadas por estátuas de personagens
históricos compões a área que antigamente era o centro da
vida política e intelectual do Cairo. Hoje em dia o bairro se
transformou em um local bem popular, com vários vendedores
de rua e lojas baratas. Por décadas o governo negligenciou a
área e não fiscalizou-‐a apropriadamente, permitindo que os
lojistas tratassem a os prédios únicos do local com descaso; de
qualquer jeito ainda é uma área muito bonita e cheia de
história. Lugares como o Café Riche e a sorveteria Groppi ainda
sobrevivem como relíquias do passado do centro da cidade.
No dia que eu fui lá com as minhas irmãs eu não tive
tempo de explorar muito a área, nós apenas tomamos um suco
num dos cafés e fomos para casa. Eu ainda estava ficando com
sono muito cedo, e já estava muito cansado.
Nos dias que se seguiram eu não fiz muita coisa, até que
Rana e Nada tiveram um dia livre e puderam me levar ao
Museu Egípcio na Praça el Tahrir. Lugar incrível, lotado de
antiguidades fascinantes, tão cheio que fica um pouco
desorganizado. Alguns turistas reclamam de como o museu é
confuso, mas eu achei bem fácil andar por lá. De fato existem
muitas coisas que não tem identificação, parte pelo enorme
número de artefatos existentes, parte por falta de investimento
do governo. De qualquer jeito, é fascinante poder olhar para
tantas coisas tão famosas, como a máscara de Tutancâmon,
altamente reproduzida em livros e na TV; mas nada de
compara a contemplar o original, uma magnífica peça em ouro.
Além do tesouro de Tutancâmon e das estátuas em pedra dos
faraós, outra coisa que me marcou muito foi a sala das múmias.
É necessário pagar um ticket extra para entrar no local, que
vale totalmente a pena. Foi um privilégio estar na presença de
tantos reis, que fizeram o Egito o país mais poderoso do mundo
durante milhares de anos.
O governo egípcio está construindo um novo museu, no
deserto, para abrigar as antiguidades existentes e acomodar o
fluxo de novas descobertas que aparecem a cada ano, mas a
construção segue lenta desde a revolução de 25 de janeiro de
2011, o museu deve ficar pronto aproximadamente em
2015/2016.
Após minha ida ao museu eu fiquei passando mais tempo
em Moqattam, pois eu ainda não me sentia seguro para me
aventurar sozinho pelo Cairo. Por mais que eu tivesse estudado
árabe antes de chegar, eu não entendia completamente nada
da língua.
O fato de eu não entender a escrita dificultou muito o
aprendizado. Os egípcios falam um dialeto local de árabe, o
Árabe Egípcio, uma variante do árabe que foi influenciada pela
antiga língua faraônica e por diversas línguas europeias. Cada
país do mundo árabe fala uma variante dialetal da língua; um
egípcio entende facilmente os dialetos do Líbano, Síria e
Palestina, mas tem uma relativa dificuldade em entender o
dialeto de lugares mais distantes, como Marrocos e Iêmen.
Por mais que cada país use um dialeto diferente, a língua
oficial de todos é o Árabe Padrão Moderno, que todos
entendem e usam para se comunicar, só que ninguém o usa
para falar com outras pessoas em seu próprio país. O problema
para mim é que todo o material escrito está em Árabe Padrão,
fazendo com que eu não conseguisse ler quase nada. Existe
uma diferença enorme entre o padrão e os dialetos, eu teria
que aprender uma língua nova para poder ler com fluência,
então decidi deixar para depois.
Para facilitar a comunicação pela internet, as pessoas do
mundo árabe as vezes optam por usar o alfabeto latino para
escrever em árabe, adicionando números para representar as
diversas letras que não existem no alfabeto ocidental. O 7 e o 5
representam dois dos três tipos de H existentes, o 2 indica uma
parada glotal e o 3 a letra 3yn, inexistente nas línguas latinas. O
3’ (3 seguido de uma linha) representa a letra 3’en, também
inexistente nas línguas europeias, que tem um som parecido
com um gargarejo.
Outros países do mundo árabe usam 6,8,9 e outros para
representar diversos tipos de T e D, mas no dialeto egípcio em
si essas letras são pronunciadas iguais à letras mais ‘simples’;
como essa ferramenta dos números e do alfabeto latino
representa apenas os sons das palavras, estas adições são
desnecessárias.
Bom, após alguns dias ficando em casa e saindo um pouco
para passear por Moqattam, Rana perguntou se eu queria
visitar o resto da família em Alexandria. Aceitei na hora e no dia
seguinte pegamos um trem, levando Nada e Eyad conosco. No
trem pude ver um pouco da paisagem típica do norte do Egito,
grandes plantações e palmeiras, um lugar bem úmido e cheio
de canais, no delta do rio Nilo. Eu estava bem ansioso para
conhecer o resto da família e ver Alexandria pela primeira vez,
a cidade fundada por Alexandre, o Grande, onde Cleópatra
viveu e morreu. Alexandria hoje é a segunda maior cidade do
Egito, com alguns aspectos culturais diferentes do resto do
país, como algumas palavras, a cozinha, algumas tradições, etc.
A cidade, cujo nome em árabe é El Eskandereyya, é
carinhosamente chamada de ‘Alex’ pelos egípcios.
A minha família hospedeira em si era de lá, inclusive as
crianças. Eles haviam se mudado para o Cairo a alguns anos,
mas a avó e todas as tias e primos e primas ainda moravam lá.
Logo que chegamos fomos diretamente para a casa da
avó para vermos a família, que era uma típica família egípcia.
Várias pessoas, primos, tios, tias, todos falando alto e
brincando. Sempre com muita comida, que em Alexandria
tradicionalmente consiste de frutos do mar.
Foi engraçado encontrar eles, todos fizeram muitas
perguntas e foram muito simpáticos e amigáveis. No dia
seguinte fomos à praia com toda a família, em Ma3mora, uma
praia bem popular. Acho que fomos três vezes pra lá, ficávamos
horas conversando na praia, comendo frango grelhado e kebab.
Eu gostei bastante de Alexandria, era aconchegante e
com um clima gostoso, o Mediterrâneo fazia da cidade um local
bem agradável. Depois de 3 dias indo para a praia eu pedi para
Rana me levar na famosa Biblioteca de Alexandria (em árabe
Maktaba el Eskandereyya) que foi muito além das minhas
expectativas. Construída perto do local da antiga biblioteca,
destruída a centenas de anos, a biblioteca atual é um enorme
centro de pesquisa e conservação, com um acervo bem variado
de livros em diversas línguas. A arquitetura do prédio é muito
bonita, com traços clássicos e faraônicos.
Quando eu estava visitando a biblioteca eu recebi uma
ligação do AFS me informando que minhas aulas começariam
na semana que vem. Fiquei surpreso, pois achava que as aulas
só começariam em duas ou três semanas, e eu queria usar este
tempo para explorar um pouco o Cairo.
Contei para Rana o que havia acontecido e decidimos
voltar para casa no dia seguinte. De qualquer jeito, minha
breve passagem por Alexandria havia sido ótima, eu ainda
voltaria várias vezes para lá.
De volta ao Cairo eu só tive um ou dois dias para comprar
alguns cadernos, e tive que ir para a escola.