minha viagem ao egito
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Relato da minha viagem ao EgitoTRANSCRIPT
Reis, Cidadãos e Revoluções A história do Egito e minha viagem ao país dos Faraós
Gabriel Natal
1: Quem, Como e Porquê
Escrevo este relato pois quero que mais pessoas saibam a história
da minha viagem e o que me levou a fazê-‐la. Para tentar compartilhar a
minha visão deste país tão exótico, antigo e intrigante que é a terra do
Egito. Meu nome é Gabriel Natal, atualmente com 18 anos.
Quando eu tinha 16, em 2011, deixei minha cidade, minha
família, meus amigos e todo o meu pequeno mundo para mudar de
continente, de país, de família e ir morar numa cidade infinitamente
diferente, numa cultura mais diferente ainda. Sozinho, sem conhecer
absolutamente ninguém, nem entender o que as pessoas falavam. No
ano da revolução que mudou o país e o começo de todos os conflitos
que a sucederam. África. Egito. Cairo.
Parece um pouco assustador, mas era tudo o que eu esperava
desde criança. Eu lembro de quando eu era pequeno, naquela época em
que as crianças estão aprendendo a escrever, um dia em que eu fiquei
tentando escrever a palavra ‘Egito’ durante muito tempo. Eu
colecionava revistas, estátuas, brinquedos, livros, tudo relacionado
àquela terra. Mas porque eu desenvolvi essa característica peculiar?
Bem, minha avó paterna é egípcia, e meu avô é fascinado pela história
do país. Os faraós e os deuses sempre foram interessantíssimos para
mim, eu cresci ouvindo as histórias que os dois contavam. Mas segundo
minha avó eu sou a reencarnação de um faraó, porque ela nunca havia
dito que eu deveria gostar do país dela.
Rina, minha avó, tem a história de vida mais fascinante que eu
conheço. Nasceu no Cairo, em 1937, em uma família ligada à Itália e a
Grécia, quando havia uma forte presença de pessoas oriundas desses
países no Egito, assim como de seus descendentes, que viviam em
harmonia com a população local e haviam se misturado com os nativos
através dos séculos. Essa influência greco-‐italiana deixou fortes marcas
na cultura egípcia moderna, inclusive no dialeto árabe falado hoje no
Egito. Naquela época o Egito era um reino, governado pelo rei Faruk, o
monarca-‐fantoche do domínio britânico no país. Faruk foi o último
monarca da dinastia de Mohammed Ali, o poderoso governador
otomano do início do século XIX que é considerado o fundador do Egito
moderno. No final do século XIX, entretanto, o poder otomano diminui
com o crescimento da influência europeia no país, especialmente dos
britânicos. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial a Inglaterra fez do
Egito um protetorado britânico, consolidando sua influência no país. No
final da guerra o Egito declarou sua independência, mas apenas
nominalmente. A Inglaterra ainda controlava a política egípcia.
Por mais que a cena política fosse confusa, o Egito ainda era mais
seguro do que a Europa devastada por conflitos bélicos. A comunidade
greco-‐italiana prosperava, incluindo a família de minha avó.
Tudo isso veio a mudar com a Segunda Guerra. A Itália fascista
pretendia invadir o Egito, e diversas batalhas se desenrolaram entre
egípcios, ingleses e os invasores italianos. O governo egípcio, controlado
pelos britânicos, enviou mais de 8000 ítalo-‐egípcios para os campos de
concentração no deserto, sob a suspeita de serem espiões italianos.
Entre eles estavam meu bisavô, Umberto, e minha tia avó, Maria.
Naquela mesma época minha avó perdera a mãe, e quando meu
bisavô pode retornar ao Cairo decidiu que iria deixar o Egito. As duas
irmãs de minha avó já eram casadas, mas ela ainda era uma criança.
Assim, foi a única que deixou o Egito com o pai, e se passariam anos até
que ela encontrasse as irmãs novamente. Acho que a história de minha
avó foi o que mais me influenciou a gostar tanto desse país, mesmo
antes de vislumbrá-‐lo. Foi o que me fez decidir a sair do Brasil e me
mudar para o Cairo. Depois de mais de sessenta e cinco anos da partida
da avó, o neto estava de volta.
Por mais que eu sempre tenha tido essa conexão com o Egito, eu
nunca tinha imaginado que eu iria morar lá antes de da oportunidade do
intercâmbio. Talvez eu era pequeno demais para pensar nessas coisas.
Na minha infância eu brincava com as minhas estatuetas de
personagens faraônicos e de antigos deuses egípcios com meus amigos
no colégio. Meus desenhos de criança também representavam faraós e
divindades.
Eu lembro que minha avó materna comprava para mim uma revista
sobre o Egito antigo, que vinha acompanhada de um fascículo. Eu ficava
horas observando as imagens daquele lugar que ainda era tão
misterioso para mim.
Eu ingenuamente procurava pacotes turísticos e mandava e-‐mails
perguntando se eles levariam uma criança desacompanhada para um
cruzeiro pelo Nilo, e até meu pequeno hamster marrom se chamava
Tutancâmon. Nessa época eu me interessava apenas pelos faraós,
múmias, pirâmides e demais antiguidades; o Egito moderno não era tão
divertido para uma criança.
Em algum momento eu descobri que a arqueologia existia, assim
como a Egiptologia e os egiptólogos, profissionais que lidam com a
herança material e cultural do passado egípcio. Eu já tinha várias ideias
do que eu “gostaria de ser quando crescesse” mas agora que eu sabia da
existência da ciência da Egiptologia, não havia mais dúvidas.
Durante muito tempo não passou disso. Um desejo, um plano para
um futuro distante.
Até que uma oportunidade de ir ao Egito surgiu. Foi na mais
inesperada das situações. Em um dia qualquer, em 2010, um colega de
trabalho do meu pai, veio almoçar em casa com a sua namorada.
Conversando, descobri que ela era alemã, e ela me contou que havia
feito um Intercâmbio Cultural para o Brasil, anos atrás. Quando ela
descobriu o meu fascínio pelo Egito, ela disse que a organização que a
trouxe para o Brasil também tinha programas para o Egito. Era a minha
primeira chance concreta de visitar o país que representava tanto para
mim. Eu e meus pais começamos a conversar sobre o assunto; eles
queriam que eu fizesse um intercâmbio, mas acho que nunca pensaram
que iria ser para o Egito. Resolvi então me inscrever na tal organização, a
AFS Programas Interculturais.
A AFS é uma organização internacional, sem fins lucrativos, que visa
a construção de um mundo mais pacífico por meio da aprendizagem
intercultural, e está presente em mais de 60 países. O programa mais
popular é o que eu participei, o High School Program, que consiste em 1
ano morando em outro país, frequentando uma escola local e morando
com uma família hospedeira nativa. Basicamente, viver um ano como
um jovem do país hospedeiro. Além de ser a única a oferecer programas
para o Egito, a AFS é uma organização voluntária, incluindo as famílias
hospedeiras, que não recebem dinheiro ao receber um estudante em
sua casa. Achei todas essas características muito interessantes, e fiquei
animado ao ingressar no AFS,
participando de todas as orientações
e encontros. Numa delas porém, os
voluntários que realizavam as
atividades conosco me avisaram que eu precisaria escolher outros países
para o meu intercâmbio, caso houvesse algum problema com o AFS
Egito que impossibilitasse o programa (eu só havia colocado o Egito na
minha lista de destinos desejados, mas normalmente os estudantes do
AFS colocam mais de um destino). Relutante, eu selecionei mais alguns
destinos, mas no fundo eu havia decidido que eu iria para o Egito, ou
para lugar nenhum.
Foi um pouco angustiante esperar pela resposta de algo tão
importante para mim, mas no final de 2010 eu recebi a notícia de que eu
estava confirmado para o Egito, e que eu embarcaria em setembro do
próximo ano. Fiquei imensamente feliz, como era de se esperar, já que
eu finalmente iria ver e viver tudo que eu sempre quis, e descobrir
realmente como é o país que sempre esteve presente na minha vida.
Um pouco depois eu recebi do AFS informações sobre minha
família hospedeira. Pai, mãe, duas filhas, três filhos e dois gatos.
Moravam no Cairo. Novamente, fiquei muito entusiasmado e alegre,
pois iria morar na maior cidade do Egito, sua capital, o lugar onde tudo
acontece; uma cidade milenar que é o coração do Oriente Médio. A
família também foi uma surpresa feliz, uma numerosa família egípcia
que ainda sim queria receber um estranho em casa e trata-‐lo como filho.
No meio de toda a animação eu comecei a perceber o que estava
acontecendo, o quão importante era essa oportunidade. Minha vida
estava prestes a mudar para sempre, não só pelo fato de eu estar
realizando o antigo sonho de visitar a terra dos faraós, mas pela
experiência do intercâmbio por si só. Viver um ano em uma cultura
diferente é muito mais difícil que parece. Não saber como se comportar
no novo ambiente, não entender o que as pessoas falam ao seu redor,
começar uma vida nova sozinho num lugar muito, muito diferente. Tudo
isso muda uma pessoa profundamente, muitas coisas são aprendidas
desse tempo, mas o mais importante é a capacidade de entender,
assimilar e apreciar coisas diferentes que o fruto mais importante de
uma viagem como essa.
Para mim, quanto mais exótica e diferente a cultura do país
hospedeiro, mais enriquecedora, profunda e gratificante será a
experiência. Na época, a maioria dos meus colegas do colégio que
também iriam fazer intercâmbio planejavam ir ao Canadá. Acho que
mesmo que eu não tivesse essa ligação tão forte com o Egito, eu o teria
considerado seriamente caso fosse fazer intercâmbio. Para mim, a graça
não era mudar de país, era mudar de mundo.
Quanto mais eu pensava, mais eu tinha certeza de que eu estava no
caminho certo, que a experiência de passar um ano no Egito me traria
coisas que eu guardaria para o resto da vida. Assim o tempo foi
passando, até que uma cadeia de eventos que mudaria o mundo acabou
mudando minha vida também.
No dia 17 de dezembro de 2010, Mohammed el Bouazizi, um
vendedor de frutas e vegetais tunisiano ateou fogo ao seu próprio corpo
para protestar a injustiça e a corrupção dos oficiais da Tunísia. Dias
depois, o país parou com protestos e manifestações.
Em menos de um mês o ditador Zine Abdeen Ben Ali renuncia e se
exila. Era o começo da Primavera Árabe, que iria mudar tantas vidas,
incluindo a minha.
Os protestos logo se espalham pelo Oriente Médio, e o Egito se
torna palco de enormes protestos, batalhas e negociações. Foi um dos
momentos mais angustiantes da minha vida, estar aqui sem poder fazer
nada, nem saber se eu poderia viajar, ou visitar o Egito algum dia. Os
protestos se tornavam cada vez mais violentos, camelos, armas, gás,
tudo era usado contra os manifestantes de Tahrir. Aqui, eu afundava
numa agonia sem saber o que seria de mim e dos egípcios, o que estava
ao meu alcance eram as notícias, que nunca eram boas.
Os egípcios se mantinham fortes, sofrendo as mais terríveis
aflições e agressões. Continuavam ocupando o Cairo, o povo em greve, o
país em hiato, e a mensagem muito clara, eles não sairiam, ele sim.
De 25 de janeiro até 11 de fevereiro o país mergulhava em conflito,
até que o inesperado aconteceu: Hosni Mubarak, ditador do Egito a mais
de trinta anos, renunciara.
Foi um alívio para mim quando aconteceu. E realmente a situação
se acalmou um pouco e o AFS Egito me informou que tudo estava
estável para que minha viagem acontecesse. Depois eu viria descobrir
que a renúncia de Mubarak foi só o começo, sua máquina ditatorial
ainda funciona. Naquele momento, no entanto, eu só queria pensar que
eu realmente iria para o Egito em breve.
Não muito aconteceu em 2011 no período que sucedeu a revolução
e antecedeu a viagem. Eu levava uma vida normal, ia à escola, via meus
amigos, nada muito emocionante. E o dia foi se aproximando cada vez
mais e mais... Até que um dia ele chegou.
Me reuni com meus amigos e me despedi deles. Passei o dia com a
minha família, e dei adeus para os meus avôs e avós. Nesses grandes
momentos de mudança, nunca ninguém percebe o que está prestes a
acontecer, como se fosse um sonho, não sei... Eu estava no aeroporto e
tudo parecia normal.
Me despedi dos meus pais e do meu irmão e entrei na sala de
embarque. Embarquei, e deixei o solo brasileiro. Entre aviões e
aeroportos nada de relevante, basta dizer que eu demorei trinta horas
para chegar ao meu destino. Na pequena dela do meu assento, um
aviãozinho se movia devagar por um mapa, e horas depois ele estava em
cima de um pontinho que dizia “ CAIRO”.
Foi aí que eu percebi. Tinha acontecido, e eu lembrei de tantas
coisas, de tantos anos que já passaram. Eu estava lá, as rodinhas do
avião raspavam no solo. Solo egípcio. É um momento que não pode ser
muito bem descrito.
Bem, o avião parou, e as portas foram abertas, permitindo que o ar
quente entrasse. Pela primeira vez na minha vida, eu estava na terra do
Egito.