milton hatoum: aspectos da ditadura militar em manaus e a

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1 A construção da narrativa em Milton Hatoum: aspectos da ditadura militar em Manaus e a construção da modernização, presente na obra Dois Irmãos (2000) Lucas da Silva Luiz 1 RESUMO A relação entre História e Literatura é um tema em destaque na historiografia, sobretudo a partir da História Cultural. E pensando nas relações entre os desdobramentos da História, o presente trabalho, tem por finalidade analisar a obra do escritor manauense Milton Hatoum, Dois Irmãos (2000), e as relações históricas contidas no romance, desse modo, busca-se discutir como Hatoum (2000) trabalha na obra a questão histórica, como a situação de Manaus-AM na década de 60, o período pós Segunda Guerra Mundial, o ciclo do látex na região norte, a construção dos Dois Brasis e sobretudo o olhar da ditadura militar através do livro Dois Irmãos. Nesse sentido, procura-se discutir o conjunto da obra, a urdidura do enredo, a narrativa e a construção da cidade de Manaus a partir do escritor Hatoum e as relações entre História e Ficção. Palavras chaves: Milton Hatoum, Dois Irmãos; História e Literatura; Narrativa Histórica Dois Irmãos (2000) A obra Dois Irmãos, publicada no ano 2000 pelo autor Milton Assi Hatoum 2 , recebeu o Prêmio Jabuti 2001 de melhor romance. Nela é possível identificar elementos que compõe a paisagem/cenário de Manaus, São Paulo e Líbano, suas peculiaridades e características. Além de elencar, fatores históricos, como a Segunda Guerra Mundial, o látex na região norte do país, a construção dos Dois Brasis e aspectos da ditadura militar no norte do pais. Para tanto, procuraremos a partir de um exercício de reflexão, pontuar os principais eventos históricos, permitindo um diálogo com a História e Literatura. Dois Irmãos (2000), romance urbano, de costume, enfoca a história de uma família, na cidade de Manaus, durante as décadas de 1920 a 1970. O enredo central é o conflito entre os dois irmãos, Yaqub e o caçula Omar, e suas relações com Halim (pai), Zana (mãe) e Rânia (irmã). Diante dessa situação, o livro é narrado por um dos integrantes da casa, Nael (narrador em primeira pessoa), o qual busca, através dos relatos orais, 1 Lucas da Silva Luiz é graduado em História pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM (2016). Atualmente é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), desenvolvendo pesquisas na área de Linguagens, Estética e Hermenêutica. 2 Milton Assi Hatoum é escritor, tradutor e professor universitário. Descente de libanês, nasceu na cidade de Manaus-AM, logo em seguida, mudou-se para São Paulo, e deu início no curso de arquitetura na Universidade de São Paulo. Foi perseguido pelo Departamento de Ordem Política Social (DOPS), e em 1980 se dirigi para a Europa, como estudante de pós-graduação, estudando no Instituto Iberoamericano de Cooperación e depois para Universidade de Paris III. Retorna para Manaus, onde leciona literatura francesa na Universidade Federal do Amazonas. Titula-se doutor em teoria literária pela USP em 1998. Dentre suas principais obras, encontram-se: Relatos de um certo oriente (1989), Dois Irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005), Órfãos do Eldorado (2008) e A noite da espera (2017).

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A construção da narrativa em Milton Hatoum: aspectos da ditadura militar em

Manaus e a construção da modernização, presente na obra Dois Irmãos (2000)

Lucas da Silva Luiz1

RESUMO

A relação entre História e Literatura é um tema em destaque na historiografia, sobretudo

a partir da História Cultural. E pensando nas relações entre os desdobramentos da

História, o presente trabalho, tem por finalidade analisar a obra do escritor manauense

Milton Hatoum, Dois Irmãos (2000), e as relações históricas contidas no romance, desse

modo, busca-se discutir como Hatoum (2000) trabalha na obra a questão histórica, como

a situação de Manaus-AM na década de 60, o período pós Segunda Guerra Mundial, o

ciclo do látex na região norte, a construção dos Dois Brasis e sobretudo o olhar da ditadura

militar através do livro Dois Irmãos. Nesse sentido, procura-se discutir o conjunto da

obra, a urdidura do enredo, a narrativa e a construção da cidade de Manaus a partir do

escritor Hatoum e as relações entre História e Ficção.

Palavras chaves: Milton Hatoum, Dois Irmãos; História e Literatura; Narrativa Histórica

Dois Irmãos (2000)

A obra Dois Irmãos, publicada no ano 2000 pelo autor Milton Assi Hatoum2,

recebeu o Prêmio Jabuti 2001 de melhor romance. Nela é possível identificar elementos

que compõe a paisagem/cenário de Manaus, São Paulo e Líbano, suas peculiaridades e

características. Além de elencar, fatores históricos, como a Segunda Guerra Mundial, o

látex na região norte do país, a construção dos Dois Brasis e aspectos da ditadura militar

no norte do pais. Para tanto, procuraremos a partir de um exercício de reflexão, pontuar

os principais eventos históricos, permitindo um diálogo com a História e Literatura.

Dois Irmãos (2000), romance urbano, de costume, enfoca a história de uma

família, na cidade de Manaus, durante as décadas de 1920 a 1970. O enredo central é o

conflito entre os dois irmãos, Yaqub e o caçula Omar, e suas relações com Halim (pai),

Zana (mãe) e Rânia (irmã). Diante dessa situação, o livro é narrado por um dos integrantes

da casa, Nael (narrador em primeira pessoa), o qual busca, através dos relatos orais,

1 Lucas da Silva Luiz é graduado em História pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM

(2016). Atualmente é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de

Uberlândia (UFU), desenvolvendo pesquisas na área de Linguagens, Estética e Hermenêutica. 2 Milton Assi Hatoum é escritor, tradutor e professor universitário. Descente de libanês, nasceu na cidade

de Manaus-AM, logo em seguida, mudou-se para São Paulo, e deu início no curso de arquitetura na

Universidade de São Paulo. Foi perseguido pelo Departamento de Ordem Política Social (DOPS), e em

1980 se dirigi para a Europa, como estudante de pós-graduação, estudando no Instituto Iberoamericano de

Cooperación e depois para Universidade de Paris III. Retorna para Manaus, onde leciona literatura francesa

na Universidade Federal do Amazonas. Titula-se doutor em teoria literária pela USP em 1998. Dentre suas

principais obras, encontram-se: Relatos de um certo oriente (1989), Dois Irmãos (2000), Cinzas do Norte

(2005), Órfãos do Eldorado (2008) e A noite da espera (2017).

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reconstruir a história, ora como testemunha, ora como narrador. A relação tumultuosa

entre os irmãos exige uma postura extrema dos pais: ou melhor, principalmente da mãe,

mandar o filho mais velho para o Líbano. Essa postura, diferentemente do que Halim e

Zana acreditavam, acaba por ainda mais acentuar a disputa entre Yaqub e Omar.

É possível, ao longo da obra, identificar vários momentos históricos, entre os

quais: a extração do látex de Manaus, o final da Segunda Guerra Mundial, a construção

dos Dois Brasis e a ditadura militar em Manaus, os quais, por assim dizer, contribuem

para a narratividade e o contexto da obra. Também é possível perceber uma diferença

entre as cidades de São Paulo, que passa por um momento de

industrialização/modernização, e Manaus, que acaba por se esgotar com a produção do

látex, empobrecendo-se economicamente.

Com o objetivo de analisar o conjunto da obra, o presente projeto tem por

finalidade ressaltar os aspectos da ditadura militar na obra de Milton Hatoum, Dois

Irmãos (2000), na cidade de Manaus. Para isso, vamos identificar na obra como Hatoum

analisou/debateu a concepção da ditadura, principalmente na região norte do país, e a

partir disso, traçar os aspectos gerais da ditadura militar no Brasil.

Também se buscará encontrar no presente projeto, identificar os elementos

tradicionais e culturais das cidades de Manaus, como seu cenário, cultura, representação,

política, assim como elementos que permitem relacionar a conjuntura da obra, em relação

ao estudo entre a obra e seu condicionamento social, para isso, recorreremos a Antônio

Candido , na tentativa de correlacionar a literatura e a sociedade. Outra discussão possível

é sobre a reflexão sobre as narrativas, ficção e representação, e a construção dos Dois

Brasis, para tanto, é necessário recorrer a autores, como: Hayden White, Roger Chartier,

entre outros que analisam/refletem sobre o uso da narrativa como representação histórica.

Vale destacar os poucos trabalhos em torno da obra de Hatoum, relacionados com

a temática de História, o presente trabalho tem a intenção de esmiuçar as obras de Milton

Hatoum, conhecer a narrativa, o espaço, personagens, elementos que compõem o

conjunto da obra, a releitura de Hatoum, a Segunda Guerra Mundial e o processo de

modernização/urbanização no Brasil. Assim, busca-se através da releitura de Hatoum

identificar os aspectos históricos que envolvem a ditadura militar e a cidade de Manaus,

propondo um debate nesse universo de Hatoum.

História e Literatura

A aproximação entre a História e a Literatura geraram trabalhos e debates

profundos na concepção da historiografia. Estaria a História ao aproxima da Literatura

“perdendo” suas credencias de cientificidade ou, ao aproximar com a Literatura a História

estaria conquistando novos objetos, métodos e ferramentas? Tal questão ainda é muito

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discutido no campo, principalmente a partir do campo Cultura,e dos desdobramentos da

escola historiográfica dos Annales.

Allan Megill (2016), no capitulo: Literatura e história, livro organizado por

Jurandir Malerba3 discuti/fundamenta sobre os debates entre História e Literatura,

identificando como é possível dialogar com tal objeto, permitindo problematizações

sobra a escrita e a pratica do historiador. Allain Megiel (2016), discorre sore tal debate:

O tópico “Literatura e história” imediatamente suscita a questão de como

devemos definir dois termos extremamente amplos. A “história” será

entendida aqui não como passado. Quanto ao termo ainda amorfo “literatura”,

a abordagem mais óbvia no contexto atual é defini-la como a escrita do que

não é literalmente verdade, mas é, ao invés disso, ficcional, imaginativa e

criativa.4

Há aqui uma contribuição quando se pensa no debate entre História e Literatura,

no sentido de buscar através do documento/fontes alternativas para se pensar e escrever

História. Principalmente a partir da escola historiográfica francesa Annales, tal campo

começa a ser pesquisado e debatido, permitindo ampliar o conceito de pesquisa de

pesquisa histórica. Sendo assim, outros autores, procuraram pensar a escrita da história a

partir da Literatura, como é o caso de Pensavento (2008).

Sandra Jatahy Pensavento (2008), na sua obra: História e História Cultural, no

primeiro capítulo: Clio e a grande vira da História aponta através da mitologia grega o

surgimento da Clio, filha de Zeus e Mnemosines e irmã de Calíope. Nessa perspectiva,

para a autora, a História (Clío) é filha da Memória (Mnemosines) e irmã da Literatura

(Calíope), e nesse sentido, para Pesavento (2008) a História buscava através da Memória,

elementos de registros e narrativas, para a construção de sua identidade.

Sendo assim, tal identidade remonta a construção da História Cultural, sobretudo

as novas formas, ferramentas e metodologias da História. Coube a partir dos

desdobramentos da História Cultural apontar os novos objetos da História, assim como

os novos personagens para a História, permitindo o ofício de dar voz ao silêncio. Surge

nesse sentido, reflexões sobre o comportamento humano, crenças, culturas, políticas,

representações e identidades5.

3 MALERBA, Jurandir (Org.). História & Narrativa: a ciência e a arte da escrita histórica. Petrópolis:

Vozes, 2016. 4 MEGILL, Allan. Literatura e história. In: Malerba, Jurandir. (Org.). História & Narrativa: a ciência e a

arte da escrita História. Petrópolis, RJ, 2016, p. 265-271. 5 A História Cultural é uma crítica aos acontecimentos da época, principalmente as construções de

historiadas totalizantes, historias políticas e diplomáticas, os quais abandonavam e esqueciam os chamados

sujeitos comuns. Nesse sentido, coube a partir da História Cultural, reconstituir uma História que permitisse

dar vozes aos indivíduos, sobretudo em relação aos seus comportamentos e crença, como é o caso do

personagem Menocchio, onde Carlo Ginzburg (1987), em o Queijo e os Vermes, analisa a História do

moleiro na região de Montereale na Itália e sua influências. Nesse sentido, Ginzburg (1987) ao atribuir a

construção do sujeito Menocchio, e suas influências, culturas e crenças, permitiu que sujeitos comuns

pudessem participar da História, rompendo com a historiografia determinista política e atribuindo a escrita,

novas representações e sujeitos.

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Ao dar voz ao silêncio, e permitir a construção dos comportamentos e culturas de

uma determinada individualidade/coletividade, a História Cultural, contribui para se

pensar o projeto: A construção da narrativa em Milton Hatoum: aspectos da ditadura

militar em Manaus e a construção da modernização, presente na obra Dois Irmãos

(2000)6, uma vez que permite descolar atenção para a cidade de Manaus na década de 60,

o período pós II Guerra Mundial, a exploração do látex na região norte do país, a relação

entre os Dois Brasis7 e principalmente o olhar/concepção de Milton Hatoum sobre os

aspectos da ditadura militar no Brasil, presente na obra Dois Irmãos (2000).

Pensar Manaus na década de 60 é um resgate cultural, social e político. Primeiro,

pelo fato que muito pouco se trabalhou sobre o tema, principalmente pelo fato da cidade

estar localizado no norte do País. Segundo, é uma operação minuciosa, por contemplar

culturas, crenças e comportamentos próprios dessa região. Desse modo, tal trabalho

poderia ser melhor compreendido através das discussões de Edward Palmer Thompson.

Thompson (2011), em “Peculiaridades dos Ingleses e outros artigos”8, analisa a

história da sociedade inglesa do século XVIII, enfatizando as relações econômicas,

sociais e as classes operárias inglesas. Além disso, percebe-se uma crítica de Thompson

(2011) com a chamada tradição marxista dominante9 e a analise dos “novos sujeitos”. Tal

apontamento, permite pensar a obra de Milton Hatoum (2000) em várias dimensões e

aspectos. Podemos refletir sobre a sociedade da época manauense, seus comportamentos,

crenças e costumes, além das políticas e economias vigentes. Nesse sentido procura-se

resgatar elementos que compõe a narrativa na obra Dois Irmãos, e verificar como Hatoum

(2000) representou a sociedade de Manaus-AM na década de 60.

6 HATOUM, Milton. Dois Irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 7 A idealização do termo: os dois Brasis, remete a construção de duas identidades brasileiras, por sinais

antagônicas, o Brasil desenvolvido e o Brasil atrasado/arcaico. Em suas relações de contraste, podemos

perceber como cada região se desenvolveu/industrializou em relação à outra. Marcos de Barros Lisboa, ex-

secretário do Ministério da Fazenda, durante 2003 e 2005, presidente do Insper e colunista da Folha de São

Paulo, analisou questões pertinentes sobre o desenvolvimento e atraso brasileiro. Em sua coluna, publicada

no dia 19/02/2017, Marcos Lisboa aborda o tema: Os dois Brasis, o Brasil Velho e o Brasil Novo, analisando

as gestões públicas em meios as crises econômicas pertinentes no cenário político, entre elas: o crescimento

das folhas de pagamentos, aposentados e pensionistas, e os custos fiscais, nas regiões Norte e Sul do país,

porém, Marcos Lisboa, enfatiza uma nova discussão e apontamento: a capacidade de desenvolvimento da

região norte, sobretudo no aspecto da educação. Vale destacar a cidade de Sobral (CE), que demonstra

resultados satisfatórios no ensino fundamental. Assim, o colunista, visa desmistificar a visão construída a

respeito da região norte, como sendo atrasada e arcaica em relação ao Sul e Sudeste, colaborando com a

discussão pertinente do trabalho. 8 NEGRO, Antônio Luigi e SILVA, Sérgio (orgs.). E. P. Thompson: As peculiaridades dos ingleses e

outros artigos. Campinas: Ed. Unicamp, 2001. 9 A chamada tradição marxista dominante para Eric Hobsbawn (1998) é uma abordagem do aspecto

econômico da História, enfatizando através das lutas de classes, entre a superestrutura e infra-estrutura, e

sendo assim, há uma crítica por parte de Thpomson (2011) no sentido da tradição marxista dominante

enfatizar a história apenas pela ótica do econômico, enquanto existe para o autor além do econômico, o

cultural, político, psicológico e o metafísico. Desse modo, percebemos uma insatisfação de Thompson

(2011) o qual acaba resultando na fundação da New Left (Nova Esquerda) em 1959, no qual se preocupou

nas conjunturas políticas da época, e na chamada “história vista de baixo”.

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Milton Hatoum (2000) na obra Dois Irmãos compara as cidades de São Paulo-SP,

Manaus-AM, e suas individualidades. Enquanto a primeira cidade era fruto das

modernizações, construções de grandes prédios, carros, faculdades e infraestrutura, a

segunda cidade contava com certo esquecimento, por situar-se ao Norte do país, e em

virtude disso ser abandonada, sobretudo pelo ciclo da borracha na região norte (látex) e a

falta de uma economia forte e heterogênea, sendo encontrada na cidade apenas no cais do

Manaus Habour10. Há aqui um diálogo com Thompson (2011) no sentido de analisar a

sociedade em formação, no caso Manaus-AM, e suas peculiaridades culturais, como a

cultura e política. Busca-se dar aos sujeitos comuns, vozes e experiências próprias,

permitindo conhecer suas realidades e representação. Nesse sentido, encontramos um

resgate da cultura amazonense, suas crenças e questões internas na obra de Hatoum

(2000).

Vale mencionar, que a cidade manauense nesse momento sofre um processo de

“esquecimento”11, oriundo das dificuldades econômicas e abandono das políticas

públicas. Pensando nas consequências do personagem Yaqub, o professor Bolisbau12

incentiva o mesmo a buscar na cidade de São Paulo, sua formação cultural e profissional.

Nesse sentido, há um debate na construção/idealização dos dois brasis, o Brasil moderno

e o Brasil atrasado, encontrado na reflexão de Vera Helena Picolo Cerccarello (2011),

em tua tese: A alegoria do dualismo brasileiro na obra “Dois Irmãos” de Milton Hatoum,

onde a autora analisa a construção dos extremos brasileiros, a região sul:

desenvolvida/moderna e a norte: atrasada/pacata a partir do livro de Hatoum (2000).

Pensando na reflexão de Cerccarello (2011) em relação a obra Dois Irmãos,

podemos situar a cidade manauense, principalmente a partir do dualismo brasileiro, isto

é:

Se o curso histórico havia desenvolvido uma região mais do que outra, a partir

da década de 1950, isso se intensifica significativamente. Daí o

questionamento: como aspirar a ser uma nação desenvolvida se parte de suas

regiões está em completo atraso? A partir de então, o debate se deu em torno

das possibilidades de superação do atraso para que o Brasil se tornasse, enfim,

um país desenvolvido. A discussão sobre o dualismo vem desde a denúncia de

Euclides da Cunha, passando por Jacques Lambert, e ganha notoriedade a

partir das análises da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL),

do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e do Partido Comunista

10 O Manaus Habour na obra Dois Irmãos (2000) é o porto da cidade de Manaus-AM. Podemos encontrar

nele o grande centro econômico da cidade manauense, como bares, restaurantes de Galib, Biblos,

mascateiros, comandantes das embarcações e trabalhadores, os quais procuravam na região trabalhos como

forma de subsistência. 11 O esquecimento da cidade de Manaus-AM, pode ser entendido por Milton Hatoum, na obra Dois Irmãos

como um processo de enfraquecimento econômico da cidade manauense, sobretudo pela falta de incentivos

internos e pelos descasos públicos. Com isso, outras cidades, como por exemplo São Paulo, começam a ser

o sonho de certos personagens, como o engenheiro Yaqub, o qual encontra emprego e sua formação de

origem: engenharia. 12 O professor Bolisbau é um dos grandes incentivadores para a partida de Yaqub no romance Dois Irmãos

para a cidade de São Paulo, sobretudo permitindo ao personagem sua formação intelectual e cultural.

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Brasileiro (PCB). Tais teorias serão revistas e contrapostas nas décadas

seguintes, especialmente com Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior e os

teóricos da dependência.13

O dualismo para Cerccarello (2011) apresenta-se, no campo da sociologia, como

a construção/identificação de dois polos, totalmente opostos. De um lado, a região norte:

pobre, enfraquecida economicamente e financeiramente, do outro, a região sul: o qual

começa a desdobrar-se como uma potência na década de 30, tanto no que diz respeito ao

desenvolvimento até no quesito econômico. Algo percebido na obra de Hatoum (2000)

quando ele discorre sobre o cenário de Manaus:

O porto já estava animado àquela hora da manhã. Vendia-se tudo na beira do

igarapé de São Raimundo: frutas, peixes, maxixe, quiabo, brinquedos de latão.

O edifício antigo da Cervejaria Alemão cintilava na Colina, lá no outro lado

do igarapé. Imenso, todo branco, atraía o meu olhar e parecia achatar os

casebres que o cercavam. Mas a visão das dezenas de catraias alinhadas

impressionavam mais. No meio da travessia já sentia o cheiro de miúdo e

vísceras de boi. Cheiro de entranhas. Os catraieiros remavam lentamente, as

canoas emparelhadas pareciam um réptil imenso que se aproximava da

margem. Quando atracavam, os bucheiros descarregavam caixas e tabuleiros

cheios de vísceras. Comprava os miúdos para Zana, e o cheiro forte, os

milhares de moscas, tudo aquilo que enfastiava, eu me afastava da margem, e

encaminhava até a ilha de São Vicente.14

O trecho acima, do personagem Nael15é imprescindível para analisar a situação

do descaso e abando da cidade de Manaus. Percebe-se como a região é precária em certos

elementos, como a exposição de vísceras, moscas e o horrível cheiro que tomava conta

do ambiente.

Fica evidente no fragmento, as condições econômicas e sociais no qual a cidade

do norte do pais, Manaus, enfrentava. Na concepção de Cerccarello, o processo de

esquecimento/abandono da cidade é fruto das desigualdades políticas, ao mesmo tempo

econômicas, os quais refletem para o enfraquecimento da cidade. Desse modo, dentro da

narrativa de Hatoum é possível encontrar elementos que aproxima a discussão entre

História e Literatura, aproximando os dois campos de conhecimento, para isso é

indispensável o papel de Antônio Candido (1995).

A Literatura colabora para o processo de análise da sociedade, assim como

Ceccarello (2011) apontou e enfatizou aspectos relevantes da narratividade na obra de

Hatoum (2010), enfocando no dualismo brasileiro, a construção dos dois Brasis,

13 CECCARELLO, Vera Helena Picolo. A alegoria do dualismo brasileiro na obra “Dois Irmãos” de

Milton Hatoum. 2010. 176 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2011. 14 HATOUM, Milton. Dois Irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 60. 15 O personagem Nael, apresenta um papel importante para o desfecho da obra Dois Irmãos, pois além de

ser um personagem, ele também é o narrador, logo um narrador onisciente. Tal característica permite ao

filho de Domingas (índia) e suposto filho de Omar, se familiarizar com a situação da casa de Halim e Zana,

uma vez que ele passa toda sua vida no lar do casal. Nael ainda recupera através da memória e dos relatos

orais, as experiências de cada personagem. Sendo assim, toda a experiência/narrativa da obra é fruto do

relato e convívio de Nael.

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encontram-se outras reflexões acerca dessa contribuição literária presente em outros

autores: Antônio Candido (1995) e Roger Chartier (2002).

Antônio Candido (1995)16, no conjunto de artigos: Vários escritos, no capítulo: O

direito a Literatura, traz uma discussão pertinente entre a História e Literatura, e, por

esse princípio, é possível estudar a obra Dois irmãos (2000) como abordagem

instrumento/fonte de análise da história.

Para Antônio Candido (1995), assim como o direito humano é indispensável para

a manutenção da sociedade, o direito a literatura também é um mecanismo que permite o

conhecimento da arte e da literatura. Para o autor: “quem acredita nos direitos humanos

procura transformar a possibilidade teórica em realidade, empenhando-se em fazer

coincidir uma com a outra” (CANDIDO, 1995, p.172). Candido (1995) divide os bens

entre bens compreensíveis e bens incompressíveis. Enquanto os bens compreensíveis

estão relacionados com utensílios, cosméticos, enfeites; os bens incompressíveis são itens

indispensáveis, como alimento, casa e roupa.

Porém, a pergunta para Cândido (1995) é a seguinte: seria a Literatura um bem

compressível ou incompressível? Diante dessa questão, o autor propõe, então, um

apontamento acerca da literatura, no qual define a mesma é um processo de humanização,

de verificação dos problemas17, portanto é indispensável para a compreensão dos

problemas sociais. E a partir dessa representação de Literatura e Sociedade, é possível

para Antonio Candido (1995) a compreensão e construção das identidades através da

literatura, o autor discorre:

A função da literatura está ligada à complexidade da sua natureza, que explica

o papel contraditório, mas humanizados (talvez humanizador porque

contraditório). Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: (1) ela

é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significados; (2) ela

é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos

indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como

incorporação difusa e inconsciente. 18

16 Antônio Candido de Mello e Souza, foi um literato, sociológico e professor universitário brasileiro.

Também foi professor emérito da USP e UNESP, se destacando como crítico literário. Entre seus prêmios

e trabalhos, se destacam: o Prêmio Jabuti de 1965 e 1993, o Prêmio Machado de Assis em 1993, o Prêmio

Anísio Teixeira de 1996 e o Prêmio Camões em 1998. 17 Para Antônio Cândido (1995), a literatura social é um instrumento de verificação dos problemas sociais,

em torno da realidade política, social e cultural. Diante disso, cabe a literatura social, contribuir para o

enriquecimento da população, possibilitando a crítica social e a emancipação da população. Um exemplo

claro que Cândido (1995) expõe, é a obra de Castro Alves, o navio negreiro, onde é possível identificar

aspectos da escravidão, as lutas de libertação e as resistências em torno das embarcações. O autor ainda

trabalha com a literatura messiânica e a literatura realista, como forma de representação/diagnóstico da

sociedade, ele define: “assumem o cunho de verdadeira investigação orientada da sociedade, estamos em

face de exemplos da literatura empenhada numa tarefa ligada aos direitos humanos” (CÂNDIDO, p.187,

1995). 18 CÂNDIDO, Antônio. “O direito à Literatura”. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p.

178-9.

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8

Reconhecendo sua capacidade crítica, Carlos Berriel19 , aponta a contribuição de

Antônio Candido para a História e Literatura. Segundo Berriel (2017), o autor além de

analisar as estruturas históricas e políticas da sociedade, ele também analisava o papel da

literatura como ferramenta indispensável para compreensão da sociedade, assim,

interessa para Antônio Candido “a compreensão de uma obra literária ou artística as

circunstâncias históricas de sua composição. Assim, as obras e seus gêneros dependem

de um quadro geral, societário; não são produzidas a esmo”. (BERRIEL, 2017).

Nesse sentido, pensar a literatura para Candido é uma possibilidade histórica, que

permite a expressão/releitura do mundo, e uma forma de conhecimento. Algo percebido

na obra Dois Irmãos (2000), onde Hatoum busca através da literatura ficcional apontar as

consequências de abandono político, intrigas familiares, a construção dos dois brasis e o

regime militar no norte do pais. Pensar a obra, implica em problematizar a cidade

manauense, na década de 30 e consequentemente o uso da ficção na História, como

ferramenta para análise histórica.

Para Roger Chartier,“A tarefa do historiador das ideias, é, pois substituir a busca

de uma determinação pela de uma função, função que não pode, aliás, ser apreendida

senão considerada global do sistema ideológico da época considerada. ” (CHARTIER,

2002, p.43).Por essa premissa, é possível resgatar, no campo da história, aspectos

relacionados ao estudo do cotidiano das pessoas, como instrumento cultural, como no

caso de Dois Irmãos. Outra analise possível em Chartier é o critério de cientificidade e

as operações técnicas para o oficio do historiador, na aproximação com a literatura. O

autor discorre:

Contra uma tal abordagem, ou um tal shift, deve-se lembrar que a meta do

conhecimento é constitutiva da própria intencionalidade histórica. Ela funda as

operações especificas da disciplina: construção e tratamentos de dados,

produção de hipóteses, critica e verificação dos resultados, validação da

adequação entre o discurso de saber e seu objeto. Mesmo que escreva em forma

“literária”, o historiador não faz literatura, e isso devido a sua dupla

dependência. Dependência em relação ao arquivo, portando em relação

passado de que este é o traço. (...)20

Diferentemente do que acredita Chartier, Hayden White procura sintetizar a

discussão no campo das linguagens poética, a partir dos tropos: metáfora, metonímia,

sinédoque e ironia. Para White, a produção historiográfica está ligada com a linguagem

escrita e consequentemente com a linguagem e percepção estética de cada autor.

Portando, para Hayden White, a distinção entre os enredos históricos e os ficcionais, é o

conteúdo, não a forma. Hayden discorre:

19 BERRIEL, Carlos. Trunfo de Antonio Candido foi aproximar literatura e sociedade. Folha de S. Paulo.

21 mai. 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/05/1885519-trunfo-de-

antonio-candido-foi-aproximar-literatura-e-sociedade.shtml>. Acesso em: 05 jun. 2017. 20 CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre, Editora

Universidade, UFRGS, 2002. p. 98.

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Todas as obras de história têm um profundo conteúdo estrutural, em geral

poético e de natureza especificamente linguística, que atua como paradigma

pré-criticamente aceito do que deveria ser uma explicação caracteristicamente

‘histórica’. Esse nível de estrutura profunda torna-se o ponto de partida

inevitável para que o historiador pratique um ato essencialmente poético, no

qual prefigure o campo histórico e o constitua como um domínio onde possa

exercitar as teorias específicas que usará para explicar “o que realmente estava

acontecendo nele.21

Nesse sentido, Hayden White busca compreender o papel desenvolvido pela

ficção como instrumento histórico, isto é, as possibilidades da escrita da história. E sendo

assim, desenvolve caminhos para se pensar o projeto: A construção da narrativa em

Milton Hatoum: aspectos da ditadura militar em Manaus e a construção da modernização,

presente na obra Dois Irmãos (2000), uma vez que permite se pensar o papel da obra

como releitura histórica de um determinado evento histórico. Desse modo, tal leitura

permite problematizar a obra de Hatoum e extrair na urdidura do enredo, ferramentas para

se pensar a escrita da história e consequentemente a narrativa, discussão apresentada no

nosso próximo tópico.

A narrativa: campo de discussão historiográfica

A questão do uso da narrativa, como documento/fonte, sem dúvidas traz um certo

debate na historiografia, principalmente devido a sua “credibilidade” ou não. E nesse

sentido, procurando entender os debates acerca das condições das narrativas e ao mesmo

tempo, procurar discutir o projeto: A construção da narrativa de Milton Hatoum: aspectos

da ditadura militar na cidade de Manaus presente na obra Dois Irmãos (2000), este tópico

recuperara uma trajetória da reflexão da narrativa, seus usos e implicações no campo da

História.

Buscaremos no filósofo neerlandês Franklin Rudolf Ankersmit, no capitulo:

Historiografia e pós-modernismo22, encontrar as discussões pertinentes da historiografia

moderna e pós moderna no uso/aplicabilidade da narrativa. Ankersmit (2001), compactua

que a historiografia pós-modernista permitiu aos historiadores dialogar/refletir sobre uma

série de questões, antes entendidas como pré-estabelecidas e “fixas”. Há aqui uma

aproximação com Rüsen (2010)23 na busca da consciência histórica. Nesse sentido,

Ankersmit (2001) discorre:

21 WHITE Hayden. Metahistory, pp. 10-9. apud KRAMER, Lloyd S. Literatura, crítica e imaginação

histórica: o desafio literário de Hayden White e Dominick LaCapra. In: HUNT, Lynn. A nova história

cultural. Trad. Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p.146 22 ANKERSMIT, Frank R. Historiografia e pós-modernismo. In: Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001a,pp.

113-135. Disponível em: <www.ppghis.ifcs.ufrj.br/media/topoi2a4.pdf>. Acesso: 15/05/18. 23 RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. 1ª reimpressão.

Brasília: Editora UNB, 2010.

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Através da historiografia pós-modernista, encontrada especialmente na história

das mentalidades, uma ruptura é feita, pela primeira vez, com essa tradução

essencialista centenária – e digo imediatamente, para evitar qualquer pathos ou

exagero, que aqui me refiro a tendência e não a rupturas radicais. A escolha

recai sobre o tronco nem sobre os galhos, e sim sobre as folhas da árvore. Na

visão pós moderna da História, a meta não é mais a integração, síntese e

totalidade, as migalhas históricas são o centro das atenções. Tomemos como

por exemplo: Montaillou e outros livros escritos subsequentemente por Le Roy

Ladurie; a Microstorie de Ginzburg, O Sunday of Bouvines de Duby, ou

oReturn of Martin Guerre de Natalie Zemon Davies. Há quinze ou vinte anos

atrás teríamos nos perguntando com espanto qual seria o porquê desse tipo de

texto histórico, o que eles estariam buscando provar. E essa pergunta tão óbvia

teria suscitado então, como sempre tem sido, nosso desejo modernista de tentar

descobrir como funciona a máquina, esta pergunta perde seu significado. Se

queremos, não obstante, aderir ao essencialismo, podemos dizer que ele não

está situado nem nos galhos nem no tronco e sim nas folhas da árvore da

História. (ANKERSMIT, 2001, p.129-130).24

Há um debate postulado por Ankersmit (2001) na relação entre modernidade e pós

modernidade, para isso o autor brinca comparando a História com uma arvore. Segundo

ele, os historicistas e a historiografia moderna ao se depararem com uma arvore, enfocaria

sua discussão no tronco ou nos “galhos das arvores”, enquanto para a historiografia pós

moderna, a direção seria as “folhas das arvores”. O autor discorre:

O que a historiografia ocidental pode agora fazer é recolher as folhas varridas

e estudá-las independentemente de suas origens. Isso significa que nossa

consciência histórica foi, por assim dizer, virada de cabeça para baixo. Ao

colecionar as folhas, tal como Le Roy Ladurie ou Ginzburg, não mais importa

qual era sua posição no passado, mas qual padrão podemos formar a partir

delas hoje, de que maneira este padrão poderia adaptar-se às outras formas de

civilização que existem atualmente. “Desde os dias de Goethe, Macaulay,

Carlyle e Emerson”, nos disse Rorty, “uma forma de escrita vem evoluindo, a

qual não é nem a avaliação dos méritos relativos das produções literárias, nem

história intelectual, nem filosofia da moral, nem epistemologia, nem profecia

social e sim um amálgama de tudo isso, formando um novo gênero”.

E a partir de Ankersmit (2001) é possível pensar a questão e status da

narrativa no debate histórico, contribuindo dessa forma pensar/escrever o projeto: A

construção da narrativa de Milton Hatoum: aspectos da ditadura militar na cidade de

Manaus presente na obra Dois Irmãos (2000), uma vez que é possível identificar no

projeto a reflexão e a construção da narrativa. Sendo assim, recorremos a discussão de

Lawrence Stone, em seu artigo intitulado: O retorno da narrativa: reflexões sobre uma nova

velha história 25.

24 ANKERSMIT, Frank R. Historiografia e pós-modernismo. In: Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001a,pp.

113-135. Disponível em: <www.ppghis.ifcs.ufrj.br/media/topoi2a4.pdf>. Acesso: 15/05/18, p.129-130. 25 STONE, Lawrence. O retorno da narrativa: reflexões sobre uma nova velha história. In: Novais.

Fernando e Silva. Rogerio Forastieri (orgs.). Nova História em perspectiva. Proposta e Desdobramentos,

volume 2.São Paulo: Cosac&Naify, 2013, p.8-36.

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Lawrence Stone (1991) percorre no artigo os desdobramentos e as discussões

acerca do status da narrativa, promovendo assim uma reflexão teórica e historiográfica

sobre tal debate. Primeiro o autor define o que é narrativa, segundo ele:

Antes de iniciar o exame das evidências de tal mudança e de algumas

especulações sobre o que teria causado, algumas coisas precisam ser

esclarecidas. A primeira é o que se entende aqui por “narrativa”. A narrativa

significa a organização do material em uma ordem sequencial cronológica,

com o conteúdo direcionado para um relato único e coerente, não obstante se

sirva de tramas secundárias. Os dois modos essências pelos quis a história

narrativa difere da história estrutural são: seu arranjo é mais descritivo, que

analítico e seu foco está no homem, não nas circunstância. Assim, ela lida antes

com o particular e específico no lugar do coletivo e estatístico. A narrativa é

um modo de escrita histórico, mas um modo que afeta conteúdo e método e m

em contrapartida, deixa-se afetar por eles. (STONE, 1991, p. 9-10)26

Sendo assim, há aqui para Stone (1991) uma diferença entre a história narrativa e

a estrutural. Enquanto a primeira está preocupado com o arranjo, homem, o conteúdo e o

método a segunda obedece a uma narrativa tradicional, isto é, prevalece a história dos

grandes homens, personagens, eventos e heróis. Outra diferença que podemos perceber

na chamada nova história narrativa é que ela se interessa por alguns fatores, dentre eles:

interesse pela sociedade e não pelos homens, contribuindo então para pensar a relação

entre o meio e o indivíduo. Porém, a grande questão para Stone (1991) é o que levou os

historiadores a abandonarem a tradição narrativa de 2.000 anos atrás?

Para Stone (1991) “a primeira causa da retomada recente da narrativa é uma

ampla desilusão com o determinismo econômico de explicação história e o arranjo em

três camadas hierárquicas que surgiu em decorrência dele. ” (STONE, 1991, p. 16). Para

o autor, em virtude da objetivação da história cientifica, sobretudo a partir dos I) modelos

econômicos marxista, II) modelos ecológicos/demográficos e III) metodologia

“cliométrica” norte américa, houve uma necessidade do revisionismo enquanto produção

e escrita do historiador, a partir do status da narrativa, isto é, procurou-se atribuir a

narrativa um novo espaço para a produção e consequentemente para reflexão do sujeito

histórico. Por isso, atribui-se o retorno da narrativa, como uma tentativa de desilusão aos

modelos explicativos e estruturais.

Porém, diferente das narrativas ditas tradicionais, o retorno da narrativa traz

elementos diferentes, para se pensar o homem, cidade e a cultura. Há uma busca por novos

sujeitos, representações e identidades, não mais os grandes fatos, eventos e história

política como pensava a história estrutural. E por isso, Natalie Zemon Davis (1987),

recupera em o retorno de Martin Guerre27, através da narrativa, um novo olhar sobre a

história, em relação ao estilo e o método da história. O livro escrito por Davis utiliza

discussões para se pensar/refletir a verossimilhança numa aldeia francesa, Languedoc, na

metade do século XVI. Tal discussão também é apresenta por Carlo Guinzburg, em O

26 Ibid. p.9-10. 27 DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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queijo e os vermes, onde o moleiro Menochio, ganha espaço e representação pelos

processos dos tribunais de inquisição.

O personagem ainda foge a época dos seus comuns, uma vez que Menochio é um

sujeito letrado, domina a comunicação e as operações básicas de matemática, e ainda

domina a língua latim. Nesse sentido, percebemos como Domenico Scandella aproxima

das discussões apresentadas acima, uma vez que ao pensar/refletir sobre o uso da

narrativa, aproximamos personagens que até então eram desconhecidos/afastados da

historiografia. É possível ainda, fazer um diálogo com a obra de Hatoum (2000), onde

podemos observar a relação dos personagens centrais da obra: Yaqub e Omar. Onde os

personagens participam da trama do enredo, e colaboram para a construção da narrativa

de Hatoum. E sendo assim, permitem a problematização em torno da construção da

narrativa.

Conclusão

A literatura deve ser compreendida/analisada esmiuçadamente como forma de

representação do contexto social e político, pelo autor e sua manifestação artística na

obra. Valendo-se dessa ideia, percebemos vários elementos podem influenciar na

composição/escrita da obra, como sua corrente literária, seus gostos e preferências. E

nesse sentido, buscou-se percorrer um caminho historiográfico ao buscar dialogar com o

projeto: A construção da narrativa de Milton Hatoum: aspectos da ditadura militar na

cidade de Manaus presente na obra Dois Irmãos (2000), possibilitando analisar o cenário

social, político e econômico da cidade de Manaus obra de Hatoum (2000), assim como

elementos que permitem pensar a questão da ditadura militar no norte do pais.

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