milionário por um dia

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Trollar Milionário por um dia A história de Jair Quadro e outros 35 apostadores que ganharam, mas não levaram o prêmio da Mega-Sena Maria Eduarda se esforça para não errar nenhuma parte da música. São só três anos de idade, mas ela gosta de cantar Claudinho e Bochecha. “Avião sem asa, fogueira sem brasa, sou eu assim sem você.” O esforço é aplaudido pela mãe e pelo pai, Jadir de Quadros, 42 anos, motorista, que enche os olhos de gosto pela caçula. Duda nasceu em meio a uma história que até hoje não teve fim, mas que Jadir está lutando para que tenha, e de forma feliz para a família que ainda tem mais dois membros: Bernardo, de sete anos, e Carolina, 19, filhos da sua irmã que morreu há alguns anos de câncer de mama. Jadir os adotou por assim dizer. Adotou não só eles, mas também os outros 34 ganhadores “trollados” no bolão da Mega-Sena que não foi registrado em 2010. As seis dezenas, 28, 40, 41, 51 e 58, que poderiam mudar a vida da pequena Duda, são motivo de dor de cabeça e de esperança para um futuro melhor. É nisso que Jadir crê: “Tenho 100% de esperança. Eu vou ganhar”. Motorista, sem horário fixo para trabalhar – ora de madrugada, ora no raiar do dia – Jadir resolveu fazer uma nova aposta em um bolão oferecido pela lotérica Esquina da Sorte, em Novo Hamburgo. Ele fazia isso todo mês quando ia pagar as contas da floricultura que mantinha onde hoje é sua residência. O estabelecimento, que fora vendido dias antes da fatídica aposta, era cliente do local que mudaria a sua vida para sempre. “Minha sócia me ligou perguntando quantos números eu tinha que acertar. Ela conferiu e disse que acertamos. Aguentei aquela noite toda, quieto, matei no peito e segunda-feira estava aqui”, conta. Jadir estava rico. Havia mudado de patamar. Sua cabeça não parava quieta. Quantos sonhos, quantas possibilidades a fatia de R$ 1,35 milhão do total de R$ 53 milhões poderia render. Que futuro promissor o aguardava? “Ih, e já vieram os planos na hora. Fiquei pensando quanto custava para reformar a casa das minhas filhas, a minha casa, ampliar minha frota.” Porém, o destino não seria esse. “Isso foi no domingo. Segunda-feira, quando abro o jornal, vi meu próprio bolão estampado na página e o aviso que houve erro de digitação, e o jogo não valia.”

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Reportagem publicada na Revista Primeira Impressão da Unisinos no de 2013 sobre uma pessoa que ganhou na loteria, mas foi impedida de receber o seu prêmio.

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Page 1: Milionário por um dia

Trollar

Milionário por um dia A história de Jair Quadro e outros 35 apostadores que

ganharam, mas não levaram o prêmio da Mega-Sena

Maria Eduarda se esforça para não errar nenhuma parte da música. São só três anos de idade,

mas ela gosta de cantar Claudinho e Bochecha. “Avião sem asa, fogueira sem brasa, sou eu assim

sem você.” O esforço é aplaudido pela mãe e pelo pai, Jadir de Quadros, 42 anos, motorista, que

enche os olhos de gosto pela caçula.

Duda nasceu em meio a uma história que até hoje não teve fim, mas que Jadir está lutando

para que tenha, e de forma feliz para a família que ainda tem mais dois membros: Bernardo, de sete

anos, e Carolina, 19, filhos da sua irmã que morreu há alguns anos de câncer de mama. Jadir os

adotou por assim dizer.

Adotou não só eles, mas também os outros 34 ganhadores “trollados” no bolão da Mega-Sena

que não foi registrado em 2010. As seis dezenas, 28, 40, 41, 51 e 58, que poderiam mudar a vida da

pequena Duda, são motivo de dor de cabeça e de esperança para um futuro melhor. É nisso que Jadir

crê: “Tenho 100% de esperança. Eu vou ganhar”.

Motorista, sem horário fixo para trabalhar – ora de madrugada, ora no raiar do dia – Jadir

resolveu fazer uma nova aposta em um bolão oferecido pela lotérica Esquina da Sorte, em Novo

Hamburgo. Ele fazia isso todo mês quando ia pagar as contas da floricultura que mantinha onde hoje

é sua residência. O estabelecimento, que fora vendido dias antes da fatídica aposta, era cliente do

local que mudaria a sua vida para sempre.

“Minha sócia me ligou perguntando quantos números eu tinha que acertar. Ela conferiu e

disse que acertamos. Aguentei aquela noite toda, quieto, matei no peito e segunda-feira estava aqui”,

conta.

Jadir estava rico. Havia mudado de patamar. Sua cabeça não parava quieta. Quantos sonhos,

quantas possibilidades a fatia de R$ 1,35 milhão do total de R$ 53 milhões poderia render. Que

futuro promissor o aguardava? “Ih, e já vieram os planos na hora. Fiquei pensando quanto custava

para reformar a casa das minhas filhas, a minha casa, ampliar minha frota.”

Porém, o destino não seria esse. “Isso foi no domingo. Segunda-feira, quando abro o jornal,

vi meu próprio bolão estampado na página e o aviso que houve erro de digitação, e o jogo não valia.”

Page 2: Milionário por um dia

A queda foi dura. A tristeza e a incredulidade tiveram seus momentos de vitória. Apesar

desse fato, ele se dirigiu até a lotérica para reivindicar o seu prêmio. E ouviu da boca do proprietário

do estabelecimento, José Paulo Abend, que o valor não poderia ser-lhe pago. Naquele mesmo dia, a

Caixa Econômica Federal fechou o local onde, hoje, funciona uma loja de doces. “Não tive dúvidas.

Naquele mesmo momento liguei para o advogado.”

E a história se prolonga. Jadir tomou à frente da situação. Não que ele tenha adotado os

outros apostadores. Na verdade, foi ao contrário. Ele foi escolhido como uma espécie de pai, ou

então líder daqueles que reivindicam na justiça a fatia do prêmio sorteado naquele bolão que nunca

foi registrado na Caixa.

A saga, o argumento e o combustível

“Aquele bolão nunca existiu, assim como todos os outros que participei.” Jadir e outros 14

integrantes do grupo – os demais optaram por não participar do processo, ou então tentar

individualmente o prêmio – estão processando a lotérica Esquina da Sorte e também a Caixa

Econômica Federal.

“Foi azar deles e sorte nossa que saiu o prêmio total”. Eles [lotérica] pegavam o nosso

telefone e nosso nome, com aquele papel que não valia nada. E pensava que antes de sair eles me

ligavam. Só saíam os prêmios baixos, e aí eles bancavam”.

Ele fala sobre algo maior. Uma espécie de esquema de bolões que nunca são registrados pelas

lotéricas na Caixa. O valor de R$ 11 reais que ele pagou naquele dia 20 de fevereiro, mais o de tantos

outros esperançosos apostadores, teria ficado integralmente para a Esquina da Sorte.

“Tanto que nem temos nada contra a menina [caixa da lotérica]”, fala, sobre Diane da Silva,

que faz parte do processo, acusada de estelionato e que, segundo ele, passa por depressão e uma forte

pressão perante o quadro atual. “A partir daquela dia, a Caixa começou a espalhar cartazes para

proteger o seu jogo”, emenda.

O telefone toca uma, duas, três vezes. “Pode atender, seu Jadir.” Era um cliente. Precisava de

um táxi no dia seguinte em frente ao seu apartamento. “Pontualmente às 16h ele estará lá. Pode ficar

tranquilo.” Jadir finaliza a ligação, pensa por um momento onde a conversa havia parado. “Não

posso parar nunca”, diz.

Pois é justamente aquele que não pode parar quem está cumprindo com o seu lema. Ele não

para de lutar pelo que entende que é de direito seu. Tanto que neste momento o processo encontra-se

no Superior Tribunal Federal, após perder todas as instâncias na justiça gaúcha. A tendência é que o

caso seja julgado somente no começo de 2014.

Page 3: Milionário por um dia

“Teve processos perdidos porque teve gente que queria R$ 5 milhões de indenização. Nós

queremos R$ 1,35 milhão para cada um. Hoje, com correção, está R$1,5 milhão. Queremos só o que

ganhamos por direito”, explica.

Mas a luta para primeiro liderar o grupo de apostadores e depois seguir em frente pela batalha

junto de três advogados ganhou um empurrão importante, ainda em 2010. Na Câmara de Vereadores

de Porto Alegre, perante engravatados, rostos estranhos, ele teve um espaço de 20 minutos para falar

sobre o seu caso.

“Rapaz, eu não sabia o que dizer”, lembra, com a sinceridade que pode ser notada ao longo de

toda a entrevista. “E antes de descer do púlpito eu fui aplaudido”, completa, orgulhoso. “Comecei

pedindo desculpas para eles. Depois, nenhuma pergunta foi feita. Só me ouviram. E sabe como é, né?

Lá geralmente não te ouvem, ficam se abraçando, se despedido. E eu fui aplaudido”, lembra. “A

partir dali eu pensei que ninguém mais ia me segurar”, emenda. De fato, o combustível que ele

precisava.

Deboches, paciência e fé no futuro

“E aí, milionário! Ô, milionário, como tu me compra (sic) um bilhete que não vale, homem?”.

Essa é uma das frases que Jadir escuta nas ruas e lembra a toda hora. Ouve aos gritos. De alguém do

outro lado da rua que reverbera àqueles que transitam pelo local. Esses acontecimentos o

incomodam, não esconde. Mas Jadir tenta escapar de um jeito ou de outro.

“Eu retruco: ‘calma, eles ainda estão contando’”, diz e faz uma pausa silenciosa. Alguma

lembrança parece vir à mente, e Jadir para de falar por alguns segundos. Olha fixamente para uma

das tantas reportagens feitas sobre o seu caso. Folheia um caderno com recortes de jornais e revistas.

Parece não procurar nenhuma em especial, mas para os olhos e aponta. É uma reportagem da revista

Veja.

“Está vendo essa aqui? O cara me arrebentou. Entrou na minha vida. Com a passageira do

meu lado, ele atrás e me perguntou coisas que ninguém nunca perguntou. Desde que acordei, com

quem eu falei, o que eu comi.” A estranheza causada logo foi desfeita. “Isso me incomodou e eu

perguntei: ‘Mas por quê tem que saber tudo isso?’ E ele disse que quando a pessoa começar a ler as

duas primeira linhas ela vai te enxergar.”

E o que pode se enxergar, logo ao lado da mesa onde a entrevista estava sendo feita, foi a

pequena Duda, novamente na sala já no fim da conversa. Com seu vestido floreado, apontou para

uma foto do seu batizado. Tímida, espremida no canto da parede, diz. “Olha o papai careca”

Page 4: Milionário por um dia

Box:

Trollar

Zoar, chatear, tirar o sarro.