microsoft word - serie economia do mal - ensaios

20
1 A ECONOMIA DO MAL GLOBALIZADA Uma série de quatro artigos, com unidade orgânica, sobre a economia do mal, que procura caracterizar, aos níveis teórico e factual, o poder económico e a natureza das entidades terroristas e criminosas contemporâneas, num mundo global interligado pelas plataformas de comunicações e pelo sistema financeiro. José Vegar Agosto de 2007

Upload: jose-vegar

Post on 11-Aug-2015

21 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

1

A ECONOMIA DO MAL GLOBALIZADA

Uma série de quatro artigos, com unidade orgânica, sobre a economia do mal, que

procura caracterizar, aos níveis teórico e factual, o poder económico e a natureza das

entidades terroristas e criminosas contemporâneas, num mundo global interligado

pelas plataformas de comunicações e pelo sistema financeiro.

José Vegar

Agosto de 2007

Page 2: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

2

SINOPSE

TEXTO 1

A reprodução incontrolável das entidades do mal

As células terroristas e o crime organizado ocupam o mundo, gerando uma ameaça

grave para o poder dos Estados-Nação.

Pág.3

TEXTO 2

A disseminação indetectável do dinheiro da destruição

Os processos de financiamento do terrorismo, o uso do circuito financeiro internacional

e o combate limitado dos estados ocidentais.

Pág.7

TEXTO 3

A replicação das estratégias do capitalismo contemporâneo

O crime organizado usa a interligação global dos negócios para concretizar

oportunidades de investimento, de branqueamento, de corrupção, e de obtenção de

poder.

Pág.11

TEXTO 4

A falsa periferia de Portugal

O lugar de Portugal como território de actividade da economia do mal globalizada, em

que a periferia geográfica não corresponde de modo algum a uma periferia de

importância.

Pág.16

Page 3: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

3

1

A reprodução incontrolável das entidades do mal

Numa análise superficial, as entidades terroristas e criminosas contemporâneas são os

principais agentes de risco e de dano para os Estados e sociedades onde impõem a sua

presença.

No entanto, para alguns autores que se têm dedicado a estudar com alguma distância as

entidades nomeadas, o poder económico, político e social que acumulam, por um lado, e

a capacidade que possuem de potenciar ao limite o uso de instrumentos fundamentais do

mundo contemporâneo, como as telecomunicações e as interligações do sistema

financeiro internacional, por outro lado, podem fazer com que estas, mais do que

agentes de risco e dano, possam representar a mais séria ameaça ao poder e soberania

dos Estados – Nação, ao ponto de constituírem um sistema económico e político

paralelo.

Na verdade, para os autores referidos, a ameaça que as entidades geram é construída

principalmente pela sua própria natureza e estratégia, e só a um nível inferior pela

destruição, danos e violações directas e indirectas da Lei que desencadeiam.

Tomando como adequado este quadro de referência, o antropólogo Arjun Appadurai -

que no final de 2006 publicou “Fear of Small Numbers: An Essay on the Geography of

Anger”, ainda não traduzido para português, onde procura reflectir sobre este tema -,

defende que a realidade global visível, ao nível político e económico, determina uma

mudança no modo de olhar a partilha actual do Poder, e aconselha a introdução de um

corte entre “estruturas vertebradas” e “estruturas celulares”. Para Appadurai, que

procura conceber um quadro teórico para um estado do mundo ainda demasiado recente,

as nações – estado são as estruturas vertebradas, “organizadas através de um sistema

vertebral central de balanços internacionais de poder, tratados militares, alianças

económicas e instituições de cooperação”, ou seja, o contexto de organização de poder e

soberania tradicional, que garante, apesar das inúmeras e repetitivas anomalias e

conflitos, um equilíbrio ao mundo.

Como estruturas celulares, o antropólogo considera, entre outras, as recentes redes

terroristas e criminosas, “conectadas mas não geridas verticalmente, coordenadas mas

notavelmente independentes, capazes de replicação sem a existência de directivas

Page 4: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

4

provenientes das estruturas centrais, incertas nas suas características organizacionais

nucleares, mas cristalinas nas suas estratégias celulares e nos seus efeitos” e “ligadas

por mecanismos sombrios a outras redes sem nome com tentáculos espalhados pelo

mundo”.

Appadurai, à semelhança de outros peritos que têm procurado identificar a dimensão

real da ameaça em causa, não tem dúvidas em reconhecer que as estruturas celulares

terroristas e criminosas mantém os seus objectivos fundamentais clássicos, a prática do

terror para atingir fins políticos, no caso das primeiras, a obtenção de lucro e poder, no

caso das segundas. Mas o autor chama a atenção para o facto de que, numa espécie de

movimento negro permitido pelos vários processos em curso de globalização, o conflito

maior desencadeado pelo mundo celular “cujos componentes se multiplicam por

associação e oportunidade”, e que depende das “ferramentas essenciais das

transferências monetárias, paraísos offshore, organização oculta e meios informais de

treino e mobilização”, é o criado pela realização das suas actividades “fora dos

enquadramentos existentes de soberania, territorialidade e patriotismo nacional”.

Deste modo, aponta o antropólogo, o conflito com a ordem internacional ainda em vigor

é directo e imediato, já que “de inúmeras maneiras, alguns princípios e procedimentos

essenciais do estado – nação moderno – a ideia de um território estável e soberano, a

ideia de uma população controlável e referenciada, a ideia de um censo credível, e a

ideia de categorias estáveis e transparentes – estão a ser descolados” ao ponto de “se

tornarem indistintas as linhas entres guerras da nação e guerras na nação”.

As guerras mais graves dentro das nações ocidentais, em execução no momento, são as

provocadas pelas “novas organizações políticas celulares, representadas pela Al Qaeda”,

com o recurso “crescente à violência praticada através de conflitos assimétricos”,

segundo Appadurai, e por “grupos criminais organizados em nichos orientados,

liderados por um centro comum de influência, gerado pela combinação da força de

várias hierarquias e redes” capazes de atingir “níveis muito altos de eficiência,

diversificação e especialização” ao ponto de levarem os Estados a “uma perda parcial

do controlo sobre a economia interna e a dinâmica social”, garante a Europol, a

estrutura de investigação criminal da União Europeia.

Os actos de guerra com maior capacidade de dano são, no caso das entidades celulares

terroristas, os atentados, que criam um estado permanente de terror nas sociedades,

destruindo assim a existência do referido território estável e soberano, e, no caso das

entidades celulares criminosas, operações continuadas no tempo como o controlo de um

Page 5: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

5

número avultado de imigrantes ilegais, o tráfico de droga, ou, a um outro nível, a

utilização de dinheiro branqueado para o aliciamento de funcionários públicos e o

investimento em actividades económicas legais, como o imobiliário, que permite a

obtenção de lucro, eliminando algumas das principais categorias transparentes citadas

por Appadurai, tão caras à democracia.

Embora a presença e o poder das estruturas celulares terroristas e criminosas tenha

ditado a mudança da análise geoestratégica de um número considerável de Estados, a

verdade é que os novos paradigmas tardam em tornar-se em doutrina e em Lei,

existindo uma boa possibilidade de que tal não venha a acontecer a curto prazo de modo

eficaz. Na verdade, os Estados, especialmente os Ocidentais, no seu conflito com as

entidades celulares sofrem de uma fraqueza decisiva: as armas que empregam não os

tornam invulneráveis às ameaças, mas trazer para o terreno novas ferramentas de

combate pode pôr em causa os alicerces cruciais do seu sistema.

Num primeiro nível, atacar de modo eficiente as estruturas celulares acima descritas,

implica tentar anular as suas estruturas e movimentos de circulação de informação e de

capital, como as plataformas digitais ou os territórios offshore, o que, actualmente,

parece ser tarefa impossível, já que, ainda segundo Appadurai, aquelas estruturas e

movimentos “caracterizam o funcionamento de muitos circuitos do mundo capitalista

(…) e a era corrente de globalização, guiada pelo motor triplo do capital especulativo,

dos novos instrumentos financeiros e das tecnologias de informação de alta velocidade”

criando assim uma tensão irresolúvel “entre a necessidade imperiosa sentida pelo capital

global de circular sem licença ou limite, e a ainda fantasia reinante que a nação – estado

garante um espaço económico soberano”.

A um segundo nível, político e legal, expresso pelo combate entregue aos corpos

fundamentais do Estado neste campo, os serviços de informações e as polícias, o

cenário é ainda mais complexo. O problema não parece ser o do diagnóstico, já que

peritos e governantes dos mais diversos quadrantes aparentam estar de acordo, mas o de

transformar este último em capacidades práticas. No caso do diagnóstico, para citar

apenas alguns exemplos, Brian Jenkins, da Rand Corporation, refere que “é necessário

desenvolver perícias, instituições e relações necessárias para conduzir uma guerra

global contra entidades não – estatais”, Michael Herman, um académico inglês,

especializado em segurança nacional, considera que “o papel das informações é o da

defesa da integridade nacional, e da protecção contra o terror e a violência”, e Wolfgang

Schauble, o ministro do Interior alemão, em entrevista recente ao Der Spiegel, garante

Page 6: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

6

que “as velhas categorias já não servem. Temos de saber se o nosso estado

constitucional é suficiente para confrontar as novas ameaças”.

Mas, e é este o ponto do debate, concretizar o diagnóstico implica, simultaneamente,

uma compressão dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos na maior parte dos

Estados, ao nível interno de cada um destes, e uma perda de soberania a favor de

entidades de investigação criminal e legais supranacionais, ao nível externo. Assim,

embora a cooperação supra estados se tenha intensificado neste campo, e a criação de

leis e de entidades coordenativas tenha sido realizada, o dilema entre a desvalorização

da centralidade do estado soberano na condução da política e a eficiência na eliminação

das ameaças está longe de ser resolvido.

Deste modo, no mundo em que vivemos, o poder é partilhado entre estruturas

vertebradas receosas de qualquer ruptura precipitada com a ordem instalada, e estruturas

celulares, em permanente reprodução metastática, das quais algumas, detentoras de

objectivos que representam ameaças, usam os instrumentos financeiros e de

comunicação para criar nichos indetectáveis de uma economia do mal, que detém e

multiplica o capital, mas é imune a controlos, ou a uma eliminação.

CAIXA

Uma possibilidade remota de interferência

O sistema financeiro global, especialmente os centros financeiros offshore (CFO) e os

fundos geridos por alguns dos grupos de private equity, é um dos sustentáculos da

acumulação e rodagem de capital, do poder e da acção das estruturas celulares

terroristas e criminosas. O “The Economist” defende, num relatório publicado em

Fevereiro deste ano, que “o sistema financeiro é a mais recente frente da guerra

moderna, porque numa economia globalizada, o dinheiro é movido de modo instantâneo

e anónimo através das fronteiras”. Deste modo, é também uma das zonas onde mais se

tem intensificado a acção das nações estado, num esforço de instalação de um controlo

de supervisão, de obtenção de informação financeira e de aplicação das medidas contra

o financiamento do terror, o branqueamento e a evasão fiscal que tem produzido alguns

resultados específicos. No entanto, impor de forma normativa mecanismos de natureza

“vertebrada” a um mundo que é essencialmente “celular”, excluindo os objectivos de

destruição e de algumas formas de criminalidade, e se assume como um dos nós da

actual economia globalizada, é uma tarefa extremamente complexa. Na verdade amarrar

Page 7: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

7

os CFO e os fundos a uma maior transparência e fiscalização, representa regular uma

economia ultra liberal que movimenta de 5 a 7 triliões de dólares por ano, representando

6 a 8 por cento da riqueza gerida por entidades financeiras, segundo a OCDE, criada e

defendida por estruturas globalizadas, especialmente empresas privadas, que defendem

o direito de não interferência nos seus activos, especialmente através dos impostos, por

parte dos Estados.

2

A disseminação indetectável do dinheiro da destruição

A disseminação incontrolável do financiamento do terrorismo jihadista é,

provavelmente, o ponto máximo de exibição da impotência das estruturas vertebradas

no mundo que ainda pretendem dominar. Efectivamente, após o atentado de 11 de

Setembro de 2001, o mundo vertebrado, liderado pela Administração norte-americana,

organizou o mais sério e concertado esforço de detecção e congelamento dos activos

monetários de entidades e células terroristas, bem como dos estados, empresas e

organizações que lhes prestam apoio.

No entanto, os dados sistematizados de há um ano para cá, mostram que as políticas e

acções desencadeadas, um pouco em todo o mundo, produziram resultados

verdadeiramente decepcionantes. Como escreve Rachel Ehrenfeld, num capítulo do

livro “Terrornomics”, publicado em Maio deste ano, “o sucesso dos EUA em eliminar

os fluxos financeiros para os grupos terroristas está abaixo do necessário. A

performance dos países mais ricos do mundo não é melhor”.

O fracasso parcial das estratégias implementadas deve-se, segundo os peritos, à criação,

por parte das redes terroristas, daquilo que podemos designar, roubando o termo a

Appadurai, por múltiplos circuitos celulares, levantados em vários pontos do mundo,

numa teia que vai do financiamento por organizações legais mas informais, como as

associações de caridade, ao uso intensivo dos pontos do sistema financeiro

internacional, até à captação de verbas provenientes do crime, especialmente do tráfico

de droga. Loretta Napoleoni, outra perita que escreve em Terrornomics, garante que

“enquanto antes do 9/11 o mundo enfrentava uma organização pequena, bastante

Page 8: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

8

integrada e transnacional, hoje a rede de grupos armados jihadistas faz lembrar um

nicho de redes descentralizadas, vagamente conectadas e auto financiadas. Este

fenómeno pode ser descrito como a privatização do financiamento do terrorismo, dentro

da globalização do terrorismo concebida pela antiga Al Qaeda”.

A fragmentação do financiamento está, sem dúvida, ligada à presença globalizada e

celular das entidades terroristas, mas também às necessidades logísticas diferenciadas

no tempo que têm de satisfazer. Assim, o financiamento é indispensável para a

realização de operações e para o sustento dos membros das células, que, ao contrário do

que era comum, estão colocados, em parte, em países estrangeiros, e das suas famílias

no país de origem. Uma outra fatia importante dos gastos relaciona-se com a compra de

explosivos, equipamento e documentação falsa. Uma terceira fatia, relativamente

recente, é dedicada aos actos inerentes à natureza do terrorismo jihadista, como o

recrutamento, a criação e difusão de propaganda através de imagem e de plataformas

digitais, e a aquisição de meios digitais e de telecomunicações.

Uma análise das principais tipologias detectadas até ao momento – por organismos de

controlo e coordenação como o Departamento do Tesouro dos EUA, a Europol e a

Financial Action Task Force (FATF), o corpo transnacional de combate ao

financiamento do terrorismo e ao branqueamento – permite uma perspectiva bastante

clara em relação à complexidade da captação e circulação dos activos terroristas. Ao

nível da captação, estão antes do mais as empresas legalmente constituídas,

especialmente no Ocidente, com o objectivo de obter verbas a partir de negócios feitos

na economia legal, que depois são canalizadas para as células. Seguem-se, cada vez com

mais intensidade, as associações de caridade, de actividades culturais, ou outras, ou a

procuração dada a indivíduos, para captarem fundos de apoio para a causa,

especialmente em mesquitas, através das doações de individuais ou de empresas, ao

abrigo do zakat, o imposto religioso muçulmano. Já na economia subterrânea, destaca-

se a parceria com redes de tráfico de droga, o que é aliás comum a outras organizações

terroristas, mas principalmente o investimento em actividades ilegais, “que parece

abranger a maior parte dos crimes”, como escreve a Europol, nas quais se destacam a

comercialização de software e dvd´s contrafeitos, a falsificação de cartões de crédito, de

documentos de identidade, e o tráfico de pessoas.

O dinheiro obtido dos modos subterrâneos acima descritos circula de um modo tortuoso.

No caso das empresas legais, é canalizado para o sistema financeiro internacional, com

especial relevo para contas offshore e empresas fantasma. As quantias obtidas através

Page 9: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

9

de doações são também injectadas nos bancos tradicionais, nos bancos islâmicos

presentes no Ocidente e no mundo, nas empresas de transferência de dinheiro, no

sistema de envio muçulmano, o hawala, ou levadas por correios. O dinheiro proveniente

das actividades ilegais usa também os meios e sistemas acima descritos. Em momento

posterior, os activos circulam sem um padrão estabelecido, ou seja, os fluxos são

determinados pelas necessidades. Assim, uma rede de mesquitas pode enviar o dinheiro

da Arábia Saudita para a Europa, mas uma rede de traficantes de documentos na Europa

pode enviar a verba obtida para o Paquistão, onde alguém se o encarrega de fazer chegar

aos EUA.

Um cálculo geral do valor dos activos envolvidos continua a ser polémico entre os

Estados Ocidentais. A Europol, que sumariza o conhecimento obtido pelos Estados da

União Europeia, limita-se a declarar que “não estão disponíveis estimativas acerca da

quantidade de dinheiro recolhida ilegal ou ilegalmente para o financiamento do

terrorismo”. Já a administração dos EUA é bastante mais precisa, e no último balanço

efectuado, em Junho de 2006, garante que congelou 1400 contas, registadas em bancos

e outras entidades financeiras em vários pontos do mundo, de 400 indivíduos e

entidades relacionadas com o terrorismo jihadista, cativou 150 milhões de dólares em

activos, e bloqueou “vários milhões de dólares depositados fora do território nacional”.

Quanto ao dinheiro não controlado, as estimativas são ainda mais vagas, porque a

maioria das verbas em causa são indissociáveis dos activos criados por actividade

criminosa, e estudos académicos, como o de Rachel Ehrenfeld, no livro citado, limitam-

se a avançar que “o custo total de manter uma rede jihadista global atinge vários biliões

de dólares por ano”, ou que, como escreve Loretta Napoleoni, “antes dos eventos do

9/11, o dinheiro gerado por todas as organizações terroristas do mundo atingia os 500

biliões de dólares, e este terá crescido, após o 9/11 à razão de 4 a 6 por cento por ano”.

Perante uma fragmentação total, inerente à prática das entidades celulares, da captação e

da circulação do dinheiro destinado a suportar a destruição, os Estados Ocidentais

tentam reagir segundo os modelos que conhecem, ou os que lhes são permitidos pelas

regras, como a da soberania, a que estão submetidos. Deste modo, persistem as

inevitáveis falhas desencadeadas por desníveis de empenhamento, de colaboração e de

cooperação.

O desnível de empenhamento é mais acentuado entre os EUA e os restantes Estados

ocidentais. Assim, enquanto os primeiros aprovaram medidas legais como a Ordem

Executiva 13224, ou o Patriot Act, que impôs medidas draconianas às entidades

Page 10: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

10

financeiras, como o impedimento de realizarem transacções com entidades situadas em

offshore, os outros Estados mencionados apenas estão submetidos ao cumprimento

voluntário da Resolução 1373 do Conselho de Segurança das Nações Unidas,

implementada por 166 destes, que, através do FATF e de outros organismos, aconselha

a introdução de medidas mais eficazes de controlo dos fluxos financeiros. Este desnível

leva Loretta Napoleoni a garantir que as leis americanas “apenas transferiram o

epicentro do branqueamento globalizado de dinheiro dos EUA para a Europa, que

continua a não ter uma legislação eficaz, e se transformou no mais importante centro

para a economia do terror e do crime”.

A falta de colaboração mais preocupante, para os peritos, é também a que se verifica por

parte de uma importante maioria dos Estados Ocidentais que, limitados por leis como a

do sigilo bancário, ou pela impossibilidade legal de congelarem os activos de um

cidadão apenas com base em suspeitas fundamentadas pelos corpos de investigação,

ficam impedidos de fornecer informação às entidades supranacionais, e de,

simultaneamente, garantirem às autoridades nacionais e internacionais competência para

empregarem os instrumentos eficazes de que estas necessitam.

A um nível derradeiro, a falta de cooperação manifesta-se na relação entre as entidades

financeiras e os órgãos criminais, em que as primeiras, embora tenham adoptado

mecanismos de fiscalização mais apertados, continuam, especialmente as empresas em

offshore e as “private equity”, reticentes a uma partilha de informação sistemática.

O efeito principal das disfunções acima referidas é o de que a disseminação

incontrolável dos activos da destruição, uma componente nuclear da economia do mal,

não é contida por estruturas incapazes de se adaptarem aos processos a que não são

imunes.

CAIXA

O território de acolhimento seguro das plataformas

Não restará actualmente dúvida alguma de que a presença ao mesmo tempo global e

local e a eficiência operacional das estruturas celulares terroristas foram em grande

parte atingidas e persistem devido à expansão e evolução tecnológica vertiginosa nos

últimos anos das plataformas digitais.

Page 11: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

11

Não persistem igualmente dúvidas, nos tempos que correm de que a intensidade da

utilização das plataformas por parte das estruturas celulares nomeadas é alta e

diversificada – foram identificados 4,800 websites em Maio de 2006 - determinada pelo

duplo objectivo de assegurar movimentos essenciais para as operações e de garantir a

concretização de objectivos estratégicos, como a propaganda. Como escreve Dorothy

Denning, “grupos de qualquer tamanho, de dois a milhões de membros, podem

comunicar e usar a internet para promover os seus intentos. Podem vir de qualquer lugar

do mundo, e influenciar a política externa em qualquer lado do mundo”. Assim sendo,

comunicações de voz por internet e satélite, servidores de correio electrónico, de

websites, de blogs e de chats, para referir alguma da oferta, são ferramentas

intensamente exploradas pelas células terroristas, já que, no seu todo, constituem um

território infinito de acolhimento seguro, que permite o usufruto permanente dos

privilégios da confidencialidade, do acesso em qualquer ponto do mundo, da

instantaneidade e da multiplicação exponencial da mensagem.

3

A replicação das estratégias do capitalismo contemporâneo

Um teórico provocador não terá grande dificuldade em defender que a natureza das

estruturas celulares criminosas contemporâneas é em tudo semelhante à das empresas

que no momento lideram a economia globalizada, excepto no investimento por regra em

áreas de negócios e em estratégias ilegais para a concretização de objectivos, e na

protecção da dimensão real ou aproximada dos seus activos financeiros.

Aliás, em relação a este último ponto, uma estimativa credível do capital acumulado e

gerido pelas entidades criminosas é de uma década para cá fonte de intenso debate entre

especialistas, divididos entre aqueles que defendem que, dada a natureza oculta dos

negócios, não é possível obter um valor real aproximado das quantias envolvidas, os

que, como a ONU, apenas compilam estatísticas por tipo de crimes comuns, e um

terceiro grupo que, usando fórmulas econométricas complexas, a partir de dados e

indicadores estatísticos, acredita ser aceitável a fixação de alguns valores globais. De

entre os últimos, o Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo, avançou, em

Page 12: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

12

Abril de 2006, no World Economic Outlook, que o valor total da economia mundial é

de 65, 174 triliões de dólares, dos quais 3,25 triliões são produto de branqueamento de

capitais. Este número suplanta a estimativa anterior do FMI, que colocava o valor total

do branqueamento em 1,8 triliões de dólares, o equivalente a 2 a 5 por cento do produto

interno bruto mundial combinado.

No entanto, alguns economistas têm procurado dados ainda mais específicos. Friedrich

Schneider, da universidade austríaca de Linz, que desde 2000 tem trabalhado na

estimativa dos valores da economia subterrânea – na qual inclui a actividade das

entidades criminosas, mas também de empresas legais que praticam operações

informais para subtracção de quantias ao fisco – publicou em Julho deste ano um

estudo, que incide sobre 145 países, incluindo alguns dos mais desenvolvidos do

mundo, onde, usando modelos econométricos avançados, aponta para que 35,2 por

cento da economia dos países estudados seja subterrânea.

A um nível sectorial, por área de negócio ilegal, algumas entidades têm igualmente

produzido cálculos aproximados. Assim, o departamento de Estado dos EUA calcula

que o mercado mundial das drogas, com predomínio da heroína e da cocaína, atinja os 2

triliões de dólares por ano, e a ONU estabelece em 13 biliões de dólares anuais o valor

obtido pelos grupos que controlam a imigração ilegal e o tráfico de pessoas. Por seu

lado, a Interpol calcula em 24 biliões de dólares o lucro da venda o exibição online de

pornografia infantil, e refere que a indústria dos produtos contrafeitos – no qual se

incluem dvd´s de cinema e cd´s de música – teve um ritmo de crescimento superior oito

vezes ao do comércio legal, e o departamento do Comércio dos EUA estima as perdas

para as empresas dos sectores afectados de 600 a 250 biliões de dólares anuais.

No entanto, se a ignorância sobre o valor global da economia ilegal se mantém, o

mesmo não se passa com os dados obtidos sobre a natureza e os métodos das estruturas

que a fazem movimentar. De facto, os relatórios e os estudos publicados nos últimos

dois anos – por organismos como o Conselho da Europa, a OCDE, a Europol ou a ONU

– apontam para entidades que, tal como as empresas legais, utilizam todos os meios ao

seu alcance para captação do mais alto nível possível de lucro e poder. Assim, uma

presença simultaneamente global e local, a criação de parcerias, associações e sinergias,

o recurso em outsourcing a profissionais especializados, a tentativa de influência das

políticas públicas e a corrupção de funcionários estatais, a dependência do sistema

financeiro e das tecnologias de comunicações, são os principais traços de identificação

das entidades celulares criminosas em actividade.

Page 13: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

13

Na verdade, toda esta espécie de reconfiguração da natureza e dos métodos começa na

própria estrutura de liderança e execução das entidades criminosas – tornando obsoleta a

definição clássica de crime organizado como a associação de “três ou mais pessoas,

agindo em concertação durante um período de tempo com o objectivo de cometer um

crime qualificado que visa a obtenção de benefícios financeiros – que foi adaptada,

segundo um estudo da ONU de 2002 sobre organizações criminosas, que ainda hoje é a

referência principal neste campo, à globalização e à crescente interdependência

económica que “encorajaram e promoveram a transformação do crime além fronteira

em todas as partes do mundo. A evolução das tecnologias de comunicação e

informação, a erosão das fronteiras nacionais, uma maior mobilidade de pessoas, bens e

serviços entre os países, e a emergência de uma economia global levaram o crime a

deslocar – se da sua base nacional. A natureza do crime organizado no mundo

contemporâneo não pode ser entendida separadamente do conceito de globalização”.

Deste modo o que os peritos, especialmente os da Europol e da ONU, encontram são

estruturas fluidas e mutáveis com presença global, especialmente “nichos orientados”,

em que várias entidades criminosas autónomas, com uma liderança estratégica comum,

cooperam no planeamento e execução de objectivos criminosos diversificados em

períodos de tempo limitados, “células” de entidades criminosas que realizam durante

períodos largos de tempo actividades programadas por uma liderança situada numa zona

geográfica diferente, e “grupos” que praticam crimes junto de comunidades da sua etnia,

residentes em países do Norte da América ou da União Europeia, e que acabam por se

estabelecer nestes territórios, dando origem a vários “franchises”, alargando o seu raio

de acção. Ainda na estrutura das entidades criminosas, uma tendência maioritária

detectada é a do recurso a especialistas, especialmente no campo das telecomunicações

e do sistema financeiro, vitais para a coordenação das operações e para a colocação do

dinheiro no sistema bancário internacional, especialmente em centros financeiros

offshore, que continuam a ser um componente vital do processo de branqueamento de

activos.

As análises especializadas recentes indicam que as entidades celulares criminosas

possuem um vasto portfólio de actividades – onde sobressaem o tráfico de droga e a

imigração ilegal, seguidas pela falsificação de documentos e cartões de crédito, o tráfico

de armas e de órgãos humanos, a difusão de pornografia infantil, o crime informático, o

contrabando de tabaco e álcool, a contrafacção e a fraude, para citar as principais – mas

também que a ameaça mais preocupante prende-se com a infiltração de empresas legais

Page 14: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

14

e com a corrupção de funcionários públicos. No primeiro caso, as entidades procuram

empresas – especialmente de comércio internacional, transporte, de construção civil e

de imobiliário – usando métodos legítimos, como a aquisição do capital maioritário, ou

coercivos, habilitadas a possibilitarem-lhes o branqueamento de dinheiro e posterior

reinvestimento, o desenvolvimento das actividades criminais, ou até uma possível

expansão, como demonstra o crescimento actual da fraude do IVA em carrossel.

No segundo caso, a corrupção é dirigida essencialmente a “alvos de alto nível da função

pública”, como escreve a Europol, com o fim de influenciar decisões, especialmente ao

nível dos concursos públicos de fornecimento de bens e serviços, para que estas

privilegiem representantes das entidades criminosas. Uma tendência específica

detectada com frequência na União Europeia, testemunha a Europol, é a da tentativa de

suborno de funcionários com pouco peso na hierarquia pública, mas com capacidade de

manipulação de processos.

As tipologias e estratégias das entidades celulares criminosas contemporâneas - que,

replicando a natureza das empresas globais, pensam o mundo como um espaço

integrado onde procuram assegurar uma presença sustentada, e a sua actividade como

uma junção de áreas “core” e de diversificação pontual, que obriga ao estabelecimento

de sinergias e alianças - colocam um desafio sem precedentes às autoridades das

estruturas vertebradas. Sem poderem recorrer às fronteiras, o mecanismo clássico de

controlo, que para mais tendem a ser cada vez mais desvalorizadas, “perdendo o seu

papel tradicional de filtro por força do aumento exponencial do comércio

transnacional”, segundo a Europol, as autoridades procuram combater a ameaça a um

nível local, onde obtém resultados limitados, e a um nível global, através da criação de

mecanismos de cooperação informativa, operacional e legal, que são manifestamente

inferiores em agilidade e eficácia aos das entidades criminosas. No entanto, se a curto -

prazo a uma estratégia criminosa celular não corresponder um combate celular, o

crescimento do crime global far-se-á à conta do enfraquecimento do Estado e das

empresas, como actualmente já se verifica a um nível ainda limitado.

Page 15: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

15

CAIXA

As interconexões do perigo

O aproveitamento de todas as potencialidades das interconexões globais das redes de

comunicações móveis e de satélite, e destas com os servidores de serviços da internet,

tem sido decisivo na expansão das entidades criminosas e no cumprimento dos seus

objectivos. A Europol, no seu último relatório sobre crime organizado, publicado em

Junho deste ano, garante que “o desenvolvimento das comunicações wireless não só

removeu as fronteiras transnacionais como está a facilitar de modo exponencial o crime

através de fronteiras”.

Os peritos, especialmente os da ONU e da Europol, defendem que, à semelhança das

células terroristas, os grupos criminosos tendem a usar as tecnologias de comunicações

disponíveis em todas as operações essenciais das suas actividades, relacionadas com o

planeamento, a coordenação e a execução e que, graças a estas, aumentaram a sua

eficiência, conseguindo, por exemplo, estabelecer a liderança à distância e a transmissão

em tempo real de dados e directivas. Para além disto, insistem os relatórios das

autoridades, as comunicações móveis garantiram o sigilo e o alcance global das

transacções financeiras necessárias ao branqueamento.

Um aspecto especialmente preocupante, para as autoridades, é o facto de a evolução

imparável das tecnologias de comunicações ser determinada pelo mercado, que,

obviamente, como escreve a Europol, “realça muito mais a comodidade do utilizador

que as capacidades de segurança” dos instrumentos e das redes, gerando assim “várias

oportunidades de facilitação das actividades criminosas”.

Deste modo, as estruturas vertebradas, sabendo que não podem inverter a tendência do

mercado, tentam estabelecer medidas draconianas, como é a nova legislação americana

relacionada com a intercepção de comunicações, aprovada no princípio de Agosto, que

legaliza a escuta de aparelhos móveis em qualquer lado do mundo.

Page 16: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

16

4

A falsa periferia de Portugal

Retomando a teoria de Appadurai no texto final desta série, o que há de mais

interessante a descobrir em relação a Portugal, quando se tenta identificar o seu lugar no

conflito global entre estruturas vertebradas e estruturas celulares terroristas e

criminosas, é o duplo grau de disjunção a que parece estar exposto.

A dupla vulnerabilidade, que coloca em risco não só o Estado como os cidadãos,

manifesta-se num primeiro grau através da disjunção entre um lugar geográfico e de

Poder que é de periferia para, por exemplo, o investimento das principais multinacionais

ou a imposição de alguns interesses nacionais na União Europeia, mas que é central

para algumas das entidades celulares referidas, ao permitir o acesso, físico e legal, por

vezes, ao espaço europeu. É este estatuto português, e também a procura de meios como

operações bancárias ou bilhetes de identidade, a causa da presença em território

nacional de redes terroristas, criminosas, ou de células que, em simultâneo ou em

diferido no tempo, realizam actividades ilegais que servem interesses específicos do

terrorismo e do crime.

Num segundo grau, com menos visibilidade mas com a mesma gravidade do primeiro, a

disjunção é provocada pelo choque entre a estratégia das entidades celulares, que

consideram o mundo como uma plataforma para a concretização dos seus objectivos

sem fronteiras, sem soberanias e sem controlo democrático, e o limite da capacidade das

entidades de investigação e de segurança portuguesas, Ministério Público, serviços de

informações e polícias, sujeitos exactamente às fronteiras, soberanias e controlos

democráticos próprios de uma estrutura vertebrada, presa ainda a condicionantes

históricos, que a levam a adaptar-se muito lentamente ao mundo globalizado actual.

Aprofundando a primeira disjunção, os dados partilhados pelas autoridades portuguesas

nestes dois últimos anos confirmam que um país que política e empresarialmente

continua a ser periférico, no mundo vertebrado, é, em paralelo, uma sociedade e um

território de importância para uma série de estruturas celulares do tipo que temos vindo

a referenciar. Para tal contribuem, entre outros argumentos, o facto de Portugal servir

como porta de entrada física no espaço da União Europeia para cidadãos da América

Latina, do Norte de África e dos PALOP´s, e também, no caso de cidadãos magrebinos

ou do Sul asiático, como porta legal, através da obtenção de documentos ou outros

Page 17: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

17

expedientes, como os casamentos de conveniência, para a passagem a cidadão

comunitário, ou a legalizado nesta área do mundo tão cobiçada. Por outro lado, a

periferia de estatuto, que faz com que o Estado português não tenha relações estreitas de

cooperação com Estados decisivos no conflito que temos vindo a apontar, e a periferia

geográfica, que permite um afastamento da vigilância dos Estados poderosos, fazem

com que o território nacional seja procurado para uma série de operações criminosas e

de apoio ao terrorismo, como o branqueamento de dinheiro.

No Relatório de Segurança Interna (RSI) de 2006, que compila as informações das

entidades nacionais de investigação, a Polícia Judiciária (PJ) aponta, em relação à

criminalidade organizada global, “ a crescente internacionalização da actuação dos

criminosos, e o aumento da complexidade das investigações resultante da aplicação de

meios económicos e tecnológicos por parte dos criminosos”. Ainda neste campo, o

Serviço de Informações de Segurança (SIS), menos circunspecto, garante, também no

citado RSI, que “a actividade das organizações criminosas transnacionais tem

apresentado uma crescente visibilidade na Península Ibérica, com o inerente risco de

penetração dos sistemas legais por essas estruturas, factor que poderá, a médio prazo,

assumir a natureza de uma ameaça prioritária”, materializada pelo “desenvolvimento em

território nacional de actividades ilícitas protagonizadas por organizações do Leste

europeu, asiáticas e sul – americanas, designadamente no que se refere à exploração de

redes de imigração ilegal, ao narcotráfico, ao contrabando e ao branqueamento de

capitais, com utilização do nosso país como palco da sua acção criminosa directa e

como local de recuo ou de desenvolvimento de estratégias de investimento, directo ou

indirecto, nos sistemas económico e financeiro nacionais”. No capítulo da lavagem

monetária, o SIS especifica que “as estruturas do crime organizado transnacional

consolidaram a tendência de recurso a pequenos núcleos altamente especializados,

alguns a operar em Portugal, geograficamente disseminados e com bons conhecimentos

dos sistemas legal, financeiro e de segurança para a concretização de operações de

branqueamento de proventos de origem ilícita”.

Já no campo do terrorismo, é ainda o SIS que releva o facto de “Portugal continuou a

ser percepcionado como uma plataforma para a obtenção de apoio logístico, tendo

ocorrido, à semelhança do ano passado, casos pontuais de deslocação de extremistas ao

nosso país”.

Pelos dados do RSI referentes a processos investigados, detecta-se que decorrem em

Portugal algumas das actividades ilegais que geram mais alarme, como a imigração

Page 18: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

18

ilegal e o tráfico de pessoas, a falsificação de documentos e de cartões de crédito, e o

branqueamento de dinheiro. Um nível de alarme alto justifica-se porque todas as

operações acima referidas podem servir, simultaneamente, fins de entidades criminosas,

como a obtenção de lucro, mas também de células terroristas, já que garantem

condições para a circulação legal e para o financiamento de células e atentados.

A PJ refere investigar, desde 2006, 57 casos de associação criminosa, 58 de imigração

ilegal, 31 de tráfico de pessoas, e 272 de branqueamento de dinheiro. O Serviço de

Estrangeiros e Fronteiras (SEF), por seu lado, levantou 295 inquéritos de falsificação de

documentos, e 193 de auxílio à imigração ilegal.

Alguns processos específicos, ainda em investigação ou já concluídos, permitem um

conhecimento mais detalhado da realidade. É o caso, por exemplo, do desmantelamento

este ano, em Espanha, de duas redes de falsificação do bilhete de identidade português,

da prisão também este ano, no Algarve, de elementos de duas redes de imigração ilegal,

uma de georgianos, e outra de moldavos, ou da denúncia, feita pela Ordem dos

Notários, de 59 operações suspeitas de branqueamento de dinheiro em imobiliário de

luxo.

No entanto, se os dados acima expostos permitem uma análise aprofundada do que está

a acontecer no território nacional, para uma caracterização mais rigorosa continua a

faltar a apresentação, por parte do Estado, de dados econométricos, relativos ao volume

e valor da acção criminosa e das transacções correspondentes. Exceptuando as quantias

relacionadas com o tráfico de droga, o único dado económico libertado, pela PJ, é o de

que as investigações de branqueamento concluídas envolveram 8 milhões de euros.

Apesar desta falha persistente, não será desadequado defender que algumas estruturas

celulares criminosas e terroristas realizam actividades continuadas em Portugal, o que

torna ainda mais grave a existência da segunda disjunção referida no princípio deste

texto, relacionada com as capacidades e limites das entidades de investigação nacionais.

Na verdade, contra os activos das estruturas celulares, como são as conexões globais, e

o uso intenso das comunicações e do sistema financeiro transnacional, as entidades de

investigação continuam submersas em limitações internas e externas. Em relação às

internas, destaca-se, primeiro, a falta de coordenação e cooperação entre entidades de

segurança, e destas com sectores vitais como o financeiro. De seguida, um quadro legal

que impõe restrições como já nenhum outro no Ocidente, e que se mantém inalterável

devido à pressão pública e partidária no sentido de serem mantidos todos os direitos,

liberdades e garantias dos cidadãos vigentes.

Page 19: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

19

No que concerne as externas, elas centram-se especialmente no uso diferenciado do

território político e geográfico global, interligado sem restrições, e acessível em toda a

sua oferta, como a bancária e de comunicações, para as organizações celulares, mas

limitado pela soberania do Estado – nação para os serviços e polícias portugueses, à

semelhança dos seus congéneres ocidentais.

Assim sendo, os dados trazidos para este texto mostram que ao mesmo tempo que

Portugal é um ponto espacial de manifestação da economia do mal, com alguns factores

específicos de atracção, onde as células terroristas e criminosas realizam actos e

acumulam capital, a capacidade dos instrumentos do Estado de anular estas ameaças

mantém-se bastante reduzida.

Caixa

Portugal como espaço de investimento do mal

Os exemplos de acção criminosa descobertos pelas autoridades portuguesas confirmam

a intensidade e a multiplicidade de fins com que Portugal é utilizado pelas estruturas

celulares do mal. A detecção das duas redes organizadas de falsificação do bilhete de

identidade em Espanha, em que uma delas tinha 44 elementos, mostra que em alguns

casos, para as entidades em causa, o valor do nosso país está na sua pertença ao espaço

da União Europeia, e na emissão de documentos que permitem uma circulação legal no

mesmo. Por esta razão, o BI nacional continua a ser um dos documentos mais

procurados e falsificados no mundo inteiro, tendo dado origem a circuitos estabelecidos

de comercialização subterrânea do mesmo.

Por outro lado, a detenção das redes de Leste de imigração ilegal ratifica uma das

principais tipologias propostas pela Europol, tratada em pormenor no texto anterior

desta série, centrada na actuação de “grupos organizados não indígenas” no espaço

europeu, controlando grupos de pessoas do seu país de origem, ou de regiões próximas,

que transportam clandestinamente para países da UE, passando a cobrar-lhes

periodicamente uma quantia durante o período de tempo em que aqueles desenvolvem a

sua prestação laboral sem vínculo legal no país de destino.

Os casos assinalados de branqueamento configuram um terceiro tipo de acção

criminosa, centrada na execução de actos num país e no transporte dos valores

Page 20: Microsoft Word - SERIE ECONOMIA DO MAL - ENSAIOS

20

monetários obtidos para outro, aplicando-os em pontos receptivos da economia legal,

como o imobiliário, para a realização de um branqueamento rápido e seguro.