microrresistências e microliberdades

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1 Microrresistências e microliberdades femininas na virada do século XIX/XX Maria Aparecida Corrêa Custódio Universidade Federal do Maranhão (CCSST) [email protected] Este estudo (CUSTÓDIO, 2014), no domínio maior da História da Educação brasileira, trata de questões relativas à história das mulheres e seus enredamentos com a Igreja Católica, pois as mulheres ainda precisam se dizer. De fato, o que se sabe do cotidiano das mulheres cristãs do final do século XIX e início do século XX? O que se sabe de seus sonhos, desejos e lutas? O que se sabe de sua vida íntima? Em síntese, este tema articula mulheres, religião e educação. Examina como um grupo de jovens imigrantes italianas, lideradas por Amabile Lucia Visintainer, se apropriam da religião e de outros sistemas socioculturais e reinventam sua realidade em Vígolo e em Nova Trento (SC) e em São Paulo, com olhar sobre os anos 1890 a 1909. Tem por “carro-chefe” as ideias teóricas de Michel de Certeau (2009), um grande pensador das culturas, das filosofias, das teologias e das histórias. O trabalho desse autor, que se constitui fonte de inspiração deste estudo, é aquele que confere um estatuto teórico para as práticas cotidianas das pessoas comuns, com foco na investigação de como esses “consumidores” se apropriam dos produtos oferecidos pelo mercado de bens culturais, partindo do pressuposto de que não são passivos. É ele que diz: “não se deve tomar os outros por idiotas”. Assim entendemos as práticas cotidianas das Filhas da Imaculada Conceição, quarta congregação fundada no Brasil numa época em que as preferidas eram as freiras francesas, supostamente as melhores para educar as filhas das elites brasileiras. Tanto é que elas foram muitas vezes desautorizadas, desacreditadas por serem pobres, por andarem mal vestidas, por terem pouco estudo e por não saberem falar/escrever a língua portuguesa falavam dialeto trentino. Nessa condição, fazem uma “operaçãode mulheres que, ao se apropriar desses contextos, usam práticas táticas e aproveitam os “azares do tempo” para tirar proveito das

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Microrresistências e microliberdades femininas na virada do século XIX/XX

Maria Aparecida Corrêa Custódio

Universidade Federal do Maranhão

(CCSST)

[email protected]

Este estudo (CUSTÓDIO, 2014), no domínio maior da História da Educação brasileira,

trata de questões relativas à história das mulheres e seus enredamentos com a Igreja Católica,

pois as mulheres ainda precisam se dizer. De fato, o que se sabe do cotidiano das mulheres

cristãs do final do século XIX e início do século XX? O que se sabe de seus sonhos, desejos e

lutas? O que se sabe de sua vida íntima?

Em síntese, este tema articula mulheres, religião e educação. Examina como um grupo

de jovens imigrantes italianas, lideradas por Amabile Lucia Visintainer, se apropriam da religião

e de outros sistemas socioculturais e reinventam sua realidade em Vígolo e em Nova Trento

(SC) e em São Paulo, com olhar sobre os anos 1890 a 1909.

Tem por “carro-chefe” as ideias teóricas de Michel de Certeau (2009), um grande

pensador das culturas, das filosofias, das teologias e das histórias. O trabalho desse autor, que

se constitui fonte de inspiração deste estudo, é aquele que confere um estatuto teórico para as

práticas cotidianas das pessoas comuns, com foco na investigação de como esses

“consumidores” se apropriam dos produtos oferecidos pelo mercado de bens culturais, partindo

do pressuposto de que não são passivos. É ele que diz: “não se deve tomar os outros por idiotas”.

Assim entendemos as práticas cotidianas das Filhas da Imaculada Conceição, quarta

congregação fundada no Brasil numa época em que as preferidas eram as freiras francesas,

supostamente as melhores para educar as filhas das elites brasileiras. Tanto é que elas foram

muitas vezes desautorizadas, desacreditadas por serem pobres, por andarem mal vestidas, por

terem pouco estudo e por não saberem falar/escrever a língua portuguesa – falavam dialeto

trentino.

Nessa condição, fazem uma “operação” de mulheres que, ao se apropriar desses

contextos, usam práticas táticas e aproveitam os “azares do tempo” para tirar proveito das

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ocasiões. É dessa forma que elas conseguem deixar seus lares e ir morar juntas para cuidar de

mulheres doentes e da educação de meninas, rompendo com a cultura do lugar que destinava às

mulheres apenas casamento e trabalho na roça.

Nesse novo espaço elas articulam uma verdadeira rede de mulheres que se apoiam para

fazer coisas inéditas em Vígolo: fazem surgir a primeira pequena enfermaria do lugar e lá

recebem meninas para ensinar a ler. E também fazem coisas ousadas para mulheres pobres e

tuteladas por homens na figura de pais, irmãos, maridos e padres: fundam uma associação de

mulheres piedosas que, embora subordinadas ao clero, aproveitam a ocasião para construir um

projeto de vida comum e com o tempo oficializam sua criação transformando-a numa

congregação religiosa.

Com Certeau se diz que a partir daí elas conquistam seu espaço e ocupam um lugar de

poder na comunidade. Com outras palavras, delimitam um espaço e capitalizam um ganho. E

como nessa abordagem o poder é relacional, desse lugar – a congregação - elas passam a utilizar

práticas estratégicas para lidar com a complexidade das relações de gênero na Igreja Católica e

na sociedade ítalo-brasileira.

Enquanto freiras elas são produtoras de práticas de submissão e resignação à vontade de

Deus materializada no comando dos “homens de Deus”. Mas enquanto freiras que são também

mulheres comuns, elas fazem uso de muitas microrresistências para levar adiante seu “sonho

dourado”: praticar a religião e abrir o coração para todo e qualquer necessitado, não se

importando se às vezes – estrategicamente – precisam obedecer a esses homens que as

importunam.

Apesar disso, elas materializam seus ideais em várias iniciativas educacionais: abrem

orfanato e externato feminino em Nova Trento; fundam escola popular em Vígolo para crianças

de ambos os sexos; criam um asilo de meninas negras em São Paulo. As preferidas, sem dúvida,

são as crianças pobres, as órfãs, aquelas com deficiência física, as imigrantes de Santa Catarina

e as negras de São Paulo.

Como essa narrativa histórica está construída?

Para começar (introdução) conta-se o que já foi falado sobre esse campo de observação

– as Filhas da Imaculada Conceição. Mostra-se como nasce uma pesquisa, como se faz uma

pesquisa com fontes históricas e como se faz uma reconstrução analítica dos indícios

apreendidos nas fontes. Indica-se as ideias dos principais autores que serviram de inspiração: do

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citado Certeau; do historiador italiano Carlo Ginzburg (1989); da historiadora feminista

Michelle Perrot (2010). Mas ao longo do estudo dialoga-se com uma série de historiadores da

educação, da imigração italiana, da questão dos negros no Brasil e na América, da Igreja, das

mulheres etc.

Em seguida (primeiro capítulo) se discute os processos e contextos da imigração

italiana no final do século XIX e as políticas de imigração do Brasil, a partir da análise da

trajetória de famílias de Vigolo Vattaro (Norte da Itália), entre as quais de algumas das

personagens centrais do estudo. E se examina como os vigolanos se apropriaram do sistema de

colonização de pequena propriedade, algo típico do sul do Brasil, e como reinventaram sua vida

na Vígolo brasileira apesar da precariedade da colônia.

Na sequência (segundo capítulo), o foco são as manifestações da religiosidade popular

do grupo de imigrantes, não esquecendo que ele foi tutelado pela Igreja Católica na figura de

padres missionários e depois jesuítas que se instalaram nas colônias e implantaram um

catolicismo romanizado. Evidencia-se assim o ambiente sociocultural das protagonistas da

pesquisa.

Então se faz uma contextualização da feminização do catolicismo enquanto fenômeno

internacional ambíguo ora favorável às mulheres ora crítico. Percebe-se que esse movimento

toca Vígolo quando as jovens recebem a incumbência de fazer catequese, visitar doentes e

arrumar a igreja da colônia. Desempenhando esses ofícios elas acabam tendo a ideia de ter uma

vida comunitária para se dedicar à religião, à educação das meninas e à saúde das mulheres.

Com muito custo e à revelia de homens que não entendiam esse tipo de opção, elas se instalaram

num casebre perto da Igreja (uma quitinete maranhense) (terceiro capítulo).

A partir daí (quarto capítulo) se penetra na intimidade da associação de mulheres que

se criou em torno do casebre; se analisa conflitos e resistências, movimentos de imposição de

um regulamento e de uma disciplina quando o grupo é aprovado pela Igreja e vira congregação;

reações e práticas desviantes de freiras que se recusam a ter um “corpo disciplinado” como diria

Foucault (1984). É neste capítulo que se percebe mais claramente os sentidos dos trabalhos

educacionais com meninas, analisados sob a inspiração da crítica feminista de Elisabeth Souza-

Lobo (1991), que ajuda a pensar que o fazer-ensinar-a-fazer “trabalho de mulher” nesses espaços

acaba acentuando a posição de inferioridade das mulheres. E se resgata histórias de meninas

órfãs que foram acolhidas no externato de Nova Trento, muitas delas escolhendo ficar para

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sempre com as freiras, um indicativo do uso de táticas femininas para driblar a sina de ser apenas

esposa e trabalhadora da roça.

Por fim (quinto capítulo), o palco é a cidade de São Paulo e o asilo de meninas negras,

no qual se trava uma disputa de gestão entre freiras e leigos abonados que queriam fazer-se

donos do asilo e da congregação. Práticas de traição são flagradas entre freiras, freiras e leigos,

freiras e padres/bispo. E práticas de microrresistência e solidariedade entre freiras fazem com

que elas escapem do poder arbitrário do bispo, das elites e de algumas freiras da corporação.

Assim garimpa-se suas microrresistências, “as quais fundam por sua vez microliberdades”,

adentrando a noite dessas mulheres, “uma noite mais longa que seus dias” (CERTEAU, 2009,

p. 17 e 99).

Em meio a esses processos, recupera-se a presença de negros escondidos na

historiografia das freiras. E se vislumbra o asilo de meninas negras como lugar de ambiguidade

em termos de relações étnico-raciais porque as freiras também são contraditórias ao lidar com

esse segmento, pois à medida que os trabalhos crescem e elas fundam uma escola particular para

meninas das classes médias – e diga-se de passagem, brancas – elas passam a tratar negras e

brancas com distinção de classe e de raça.

Ambíguas, contraditórias, resistentes e guerreiras, essas mulheres traçam um caminho

que precisa ser reencontrado. Como diz Perrot: “Uma história outra. Uma outra história”.

Sejam as Filhas da Imaculada Conceição, sejam outras mulheres, elas

não são passivas nem submissas. A miséria, a opressão, a dominação, por reais que sejam, não

bastam para contar a sua história. Elas estão presentes aqui e além. Elas são diferentes. Elas se

afirmam por outras palavras, outros gestos. Na cidade, na própria fábrica [na congregação!], elas

têm outras práticas cotidianas, formas concretas de resistência – à hierarquia, à disciplina – que

derrotam a racionalidade do poder, enxertadas sobre seu uso próprio do tempo e do espaço

(PERROT, 2010, p. 212).

Em última instância:

O que importa reencontrar são as mulheres em ação, inovando em suas práticas, mulheres dotadas

de vida, e não absolutamente como autômatas, mas criando elas mesmas o movimento da história

(Ibid., p. 187).

“É preciso narrar essa outra história dessas artes do fazer feminino” (CUSTÓDIO, 2014,

p. 347).

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REFERÊNCIAS

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer, v. 1. 16ª ed. Petrópolis: Vozes,

2009.

CUSTÓDIO, Maria Aparecida Corrêa. A invenção do cotidiano feminino: formação e

trajetória de uma congregação católica (1880-1909). São Paulo: Annablume/FAPESP, 2014.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1984.

GINZBURG, Carlo. Sinais. Raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais:

morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres, prisioneiros. 5ª ed. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 2010.

SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e

resistência. São Paulo: Brasiliense, 1991.

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Amabile Lucia Visintainer (1865-1942)

Desenho de Aurora Telas

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