michel tournier, sexta-feira ou a vida selvagem

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    SEXTA-FEIRAou a vida selvagem

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    MICHEL TOURNIER

    SEXTA-FEIRA

    ou a vida selvagem

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    I

    Ao fim da tarde de 29 de Setembro de 1759, o cu obscureceu-se de

    repente na regio do arquiplago Juan Fernandez, a cerca de seiscentos qui-

    lmetros ao largo das costas do Chile. A tripulao do Virgnia reuniu-se no

    convs para ver as pequenas chamas que apareciam no cimo dos mastros e

    vergas do navio. Eram fogos de Santelmo, fenmeno devido eletricidade

    atmosfrica e que anuncia uma violenta tempestade. O Virginia, a bordo do

    qual viajava Robinson, nada tinha felizmente a temer, nem mesmo do maisviolento temporal. Era uma galeota holandesa, um barco de formas arredon-

    dadas e com mastros baixos, portanto, pesado e pouco rpido, mas de

    extraordinria estabilidade mesmo em circunstncias de mau tempo. Assim,

    noite, quando o capito Van Dayssel viu que uma rabanada de vento reben-

    tara uma das velas como se fosse um balo, deu ordens aos seus homens

    para arriarem as outras e se fecharem com ele no interior, espera que a

    tempestade passasse. O nico perigo a recear vinha dos recifes ou bancos de

    areia, mas o mapa no indicava nada do gnero, e tudo levava a crer que o

    Virgniapoderia navegar durante centenas de quilmetros, debaixo da tem-

    pestade, sem encontrar obstculos.

    Por isso, o capito jogava tranquilamente s cartas com Robinson,

    enquanto o temporal rugia l fora. Estava-se em meados do sculo XVIII, na

    poca em que muitos europeus principalmente ingleses - iam radicar-se na

    Amrica, na mira de fazerem fortuna.

    Robinson deixara em York a mulher e dois filhos, com o objetivo de explo-

    rar a Amrica do Sul e ver se conseguia organizar trocas comerciais proveito-

    sas entre o seu pas e o Chile. Algumas semanas antes, o Virgniacontornava

    o continente americano dobrando heroicamente o terrvel cabo Horn, e

    rumava agora para Valparaso, onde Robinson queria desembarcar.

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    No vos parece que esta tempestade vai atrasar muito a nossa chegada

    ao Chile? perguntou ele ao capito, enquanto baralhava as cartas.

    O capito olhou para ele com um sorrisinho irnico, ao mesmo tempo que

    afagava um clice de genebra, sua bebida preferida. Tinha muito mais expe-

    rincia que Robinson e troava frequentemente da sua impacincia juvenil.Quando se empreende uma viagem como esta que estais fazendo, res-

    pondeu-lhe ele depois de tirar uma fumaa do cachimbo, parte-se quando se

    quer, mas chega-se quando Deus quer.

    Tirou depois a tampa a um pequeno barril de madeira onde guardava o

    tabaco, e mergulhou nele o comprido cachimbo de porcelana.

    Desta maneira, fica protegido dos choques e impregna-se como odor

    adocicado do tabaco.Voltou a fechar o pequeno barril e encostou-se preguiosamente para trs.

    Como estais vendo disse ele a vantagem das tempestades est em

    que nos libertam de preocupaes. No h nada a fazer contra os elementos

    enfurecidos. Portanto, nada fazemos. Entregamo-nos nas mos do destino.

    Nesse mesmo momento, a lanterna suspensa de uma corrente que ilumi-

    nava a cabina descreveu um arco de crculo, indo estilhaar-se de encontro

    ao teto. Antes de tudo mergulhar em completa escurido, Robinson ainda

    teve tempo de ver o capito deslizar de cabea por cima da mesa. Levantou-

    se e dirigiu-se para a porta. Uma forte corrente de ar fez-lhe compreender

    que j no havia porta. O mais aterrador de tudo era que, depois do constan-

    te balano e vaivm do navio, que duravam havia vrios dias, aquele ficara

    completamente imvel. Devia estar encalhado num banco de areia, ou em

    cima de rochedos. Ao claro difuso da lua cheia, Robinson avistou no convs

    um grupo de homens esforando-se por lanar gua um escaler de salva-

    mento. Dirigia-se para junto deles, com o objetivo de os ajudar, quando um

    choque formidvel abalou todo o navio. Logo a seguir, uma vaga gigantesca

    despenhou-se sobre o convs e varreu tudo o que nele se encontrava,

    homens e material.

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    II

    Quando Robinson voltou a si, encontrava-se deitado, o rosto na areia.Uma onda rolou pelo areal molhado e veio lamber-lhe os ps. Girando sobre

    si, deixou-se ficar de costas. Gaivotas negras e brancas volteavam no cu, de

    novo azul aps a tempestade. Robinson sentou-se com dificuldade e sentiu

    uma dor aguda no ombro esquerdo. A praia estava juncada de peixes mortos,

    conchas quebradas e algas negras, para ali lanadas pelas vagas. A ocidente,

    uma falsia rochosa entrava pelo mar dentro e prolongava-se numa srie de

    recifes. A se erguia a silhueta do Virgnia, com os mastros arrancados e oscordames flutuando ao vento.

    Robinson levantou-se e deu alguns passos. No estava ferido, mas o

    ombro magoado continuava a doer-lhe. Como o sol comeava a queimar, fez

    uma espcie de chapu, enrolando algumas das grandes folhas que cresciam

    junto praia. Depois, apanhou um ramo, do qual se serviu como bengala, e

    embrenhou-se na floresta.

    Os troncos das rvores cadas formavam, com a mata e as lianas que pen-

    diam dos ramos mais altos, um emaranhado denso onde era difcil penetrar,

    e frequentemente Robinson via-se obrigado a rastejar para poder avanar.

    No se ouvia o menor rudo, nem aparecia animal algum. Robinson ficou,

    portanto, muito admirado quando viu, a uma centena de passos, a silhueta

    de um bode selvagem de pelo muito comprido que, imvel, parecia observ-

    lo. Deitando fora a sua bengala, demasiado leve, Robinson apanhou um tron-

    co mais grosso, que poderia servir-lhe de cacete. Quando chegou perto do

    bode, o animal baixou a cabea e bodejou num tom surdo. Pensando que ia

    atac-lo, Robinson ergueu a moca e vibrou com toda a fora

    uma violenta pancada entre os chavelhos do bode. O animal caiu de joelhos

    e, depois, tombou sobre o flanco.

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    Aps vrias horas de penosa marcha, Robinson chegou ao sop de um

    macio de rochedos amontoados irregularmente. Descobriu a entrada de

    uma gruta, sombra de um cedro gigante; s deu, porm, alguns passos den-

    tro dela, porque era demasiado profunda para poder explor-la nesse dia.

    Preferiu escalar os rochedos, para abarcar com os olhos uma vasta extenso.Assim, de p no cume do rochedo mais alto, pde constatar que o mar

    rodeava por todos os lados a terra em que se encontrava, onde no havia

    vestgios de qualquer habitao. Estava, portanto, numa ilha deserta. Com-

    preendeu ento a imobilidade do bode que matara. Os animais selvagens que

    nunca viram o homem no fogem sua aproximao. Pelo contrrio, obser-

    vam-no com curiosidade.

    Robinson sentia-se acabrunhado de tristeza e fadiga. Andando ao acasoem torno da base do enorme penhasco, descobriu uma espcie de anans

    selvagem, que cortou com o seu canivete e comeu. Depois, deslizou para

    debaixo de uma pedra e adormeceu.

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    III

    Despertado pelos primeiros raios de sol nascente, Robinson voltou a des-

    cer para a praia de onde partira na vspera. Saltava de rochedo em rochedo,

    de tronco em tronco, de declive em declive e tirava disso um certo prazer,

    porque se sentia fresco e bem-disposto, depois de uma noite bem dormida.

    Em resumo, a sua situao estava longe de ser desesperada. certo que apa-

    rentemente aquela ilha era deserta. Mas no era melhor do que estar cheia

    de canibais? Alm disso, parecia bastante acolhedora, com a sua bela praiaao norte, prados muito hmidos e certamente pantanosos a leste, uma gran-

    de floresta a ocidente e, no centro, aquele macio rochoso perfurado por

    uma gruta misteriosa, do cimo do qual se desfrutava um panorama magnfico

    que abarcava todo o horizonte. Estava nesse ponto das suas reflexes quan-

    do deparou com o cadver do bode, no meio da vereda por onde seguira na

    vspera. Uma dzia de abutres de pescoo depenado e bico recurvo disputa-

    va j a carcaa entre si.

    Robinson dispersou-os fazendo rodopiar o pau por cima da cabea e os

    imponentes pssaros ergueram-se pesadamente nos ares, um aps outro,

    correndo sobre as patas tortas para ganharem balano. Carregou em seguida

    aos ombros o que restava do bode e prosseguiu mais lentamente o seu cami-

    nho para a praia. Uma vez a chegado, cortou um pedao de carne com a faca

    e p-lo a assar, suspenso de trs paus armados em trip por cima de uma

    fogueira. A chama irrequieta reconfortou-o mais do que a carne dura, que

    conservava o cheiro do bode. Resolveu manter a fogueira acesa, para eco-

    nomizar o isqueiro de pederneira e, tambm, para chamar a ateno dos

    tripulantes de algum navio que passasse por acaso ao largo da ilha.

    verdade que bastariam os destroos do Virgnia, que continuava enca-

    lhado no recife, para alertar os marinheiros; tanto mais que poderiam des-

    pertar-lhes a esperana de se apoderarem de ricos despojos.

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    Robinson j pensara em salvar as armas, utenslios e provises que se

    encontravam no poro do navio, antes que fossem levadas por outra tempes-

    tade. Mas acalentava sempre a esperana de no ter necessidade disso, por-

    que - pensava ele - no tardaria que um navio viesse busc-lo. Consagrava,

    portanto, todos os seus esforos instalao de sinais na praia e na falsia.Ao lado do fogo sempre aceso no areal, amontoou enormes quantidades de

    ramos e sargaos, com os quais contava fazer grandes colunas de fumo mal

    uma vela aparecesse no horizonte. Teve depois a ideia de enterrar um mastro

    na areia, do cimo do qual pendesse uma vara. Em caso de alerta, Robinson

    amarraria um molho de lenha a arder extremidade da vara e f-la-ia subir

    nos ares, puxando uma liana amarrada outra ponta da vara. Mais tarde, fez

    uma descoberta ainda melhor: no alto da falsia erguia-se uma grande rvoremorta, um eucalipto cujo tronco estava oco. Encheu o tronco com galhos e

    ervas secas, que, se lhes deitasse fogo, transformariam toda a rvore numa

    imensa tocha, visvel a muitos quilmetros de distncia.

    Alimentava-se, ao acaso, de mariscos, razes de plantas, cocos, bagas, ovos

    de pssaros e de tartaruga. Ao terceiro dia, deitou fora a carcaa do bode,

    que j cheirava muito mal. Mas depressa se arrependeu porque os abutres,

    que se regalaram com ela, passaram a segui-lo constantemente, espiando-o

    na esperana de novas ddivas. De vez em quando, irritado com a sua pre-

    sena, atirava-lhes pedras e paus. As sinistras aves afastavam-se ento pre-

    guiosamente, mas voltavam logo a seguir.

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    IV

    Por fim, Robinson cansou-se daquela espera, vigiando um horizonte sem-

    pre vazio. Decidiu comear a construo de um barco com envergadura sufi-

    ciente para lhe permitir navegar at s costas do Chile. Para isso, necessitava

    de ferramentas. Resignou-se, portanto, embora de m vontade, a visitar os

    destroos do Virgnia, para de l trazer o que pudesse ser-lhe til. Atou com

    lianas uma dzia de toros, construindo uma espcie de jangada, que embora

    instvel poderia ser utilizada desde que no houvesse ondulao forte. Ser-viu-se de uma vara robusta para deslocar a jangada at aos primeiros roche-

    dos, pois a a profundidade era pequena pela mar baixa. Depois, apoiou-se

    nos rochedos para prosseguir. Deu, assim, duas voltas aos destroos do

    navio. A parte visvel do casco estava intacta e devia ter encalhado num reci-

    fe escondido debaixo de gua. Se a tripulao tivesse ficado abrigada na

    entrecoberta, em vez de se expor no convs varrido pelas vagas, talvez ainda

    estivessem todos vivos.

    O convs estava atravancado de mastros quebrados, vergas e cabos de tal

    modo emaranhados uns nos outros que era difcil abrir caminho entre eles.

    Reinava a mesma desordem nos pores, mas a gua no penetrara neles e

    Robinson encontrou caixas cheias de biscoitos e carne seca, de que comeu o

    mais que pde, na falta de algo para beber. certo que havia garrafes de

    vinho e licores, mas Robinson era abstmio nunca tendo provado uma bebida

    alcolica, e estava resolvido a manter essa regra. A grande surpresa do dia foi

    a descoberta, na parte traseira do poro, de quarenta barris de plvora

    negra, mercadoria de que o capito nunca lhe falara, certamente com receio

    de o assustar.

    Robinson demorou vrios dias a transportar na sua jangada e a

    levar para terra todos aqueles explosivos, pois durante metade do dia

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    a mar alta interrompia a sua atividade, impedindo-o de manobrar com a

    ajuda da vara. Aproveitava essas alturas para pr os barris ao abrigo do sol e

    da chuva, sob uma cobertura de folhas de palmeira fixas com pedras. Trouxe

    igualmente do navio duas caixas de biscoitos, um culo, dois mosquetes de

    pederneira, uma pistola de dois canos, dois machados, uma p, uma enxada,um martelo, alguma estopa e uma pea de tecido de l vermelha, de fraca

    qualidade, que se destinava sem dvida a eventuais trocas com os indgenas.

    No camarote do capito encontrou o famoso barril de tabaco, bem fechado e

    contendo o grande cachimbo de porcelana, intacto apesar da sua fragilidade.

    Carregou tambm na jangada uma grande quantidade de pranchas arranca-

    das ao convs e s divisrias do navio. Por fim, encontrou, no camarote do

    imediato, uma Bblia em bom estado, que embrulhou num pedao de vela,para a proteger.

    Logo no dia seguinte, comeou a construir uma embarcao que batizou

    com o nome de Evaso.

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    V

    No meio de uma clareira perfeitamente plana, Robinson ps a descoberto,

    libertando-o das ervas que o cobriam, um belo tronco de murta, seco, so e

    bem desenvolvido, que poderia constituir a pea-mestra do seu futuro barco.

    Ps-se imediatamente a trabalhar, sem deixar de vigiar o horizonte que podia

    avistar do seu estaleiro, pois continuava esperanado em que aparecesse

    algum navio. Depois de desbastar os ramos do tronco, trabalhou-o com o

    machado, procurando dar-lhe a forma de uma viga retangular. Apesar detodas as suas buscas no Virgnia, no conseguira encontrar pregos, nem para-

    fusos, nem broca, nem sequer uma serra. Trabalhava lentamente, cuidado-

    samente, reunindo as peas do barco como um jogo de pacincia. Contava

    que a gua, fazendo inchar a madeira, daria ao casco uma solidez e imper-

    meabilidade suplementares. Lembrou-se mesmo de endurecer chama as

    extremidades das peas e de as molhar depois de as encaixar umas nas

    outras, de modo a sold-las melhor. Cem vezes a madeira rachou sob a ao

    ora da gua, ora da chama, mas recomeava sempre, sem nunca sentir can-

    sao ou impacincia.

    O que mais fazia falta a Robinson para estes trabalhos era a serra. Essa

    ferramenta - que impossvel fabricar com meios improvisados - ter-lhe-ia

    poupado meses de trabalho com o machado e a faca. Uma manh, ao des-

    pertar, julgou sonhar ao ouvir um rudo que no podia ser seno o de algum

    em plena ao de serrar. O rudo parava de vez em quando, como se o serra-

    dor mudasse de toro, e recomeava em seguida com uma regularidade

    montona. Robinson saiu de mansinho do buraco na rocha onde se habituara

    a dormir e encaminhou-se to silenciosamente como um gato para o local de

    onde provinha o rudo. A princpio nada viu, mas acabou

    por descobrir, junto de uma palmeira, um caranguejo gigantesco que serrava,

    com as pinas, um coco preso entre as patas. Nos ramos da rvore, a seis

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    metros de altura, outro caranguejo serrava o p dos cocos para os fazer cair.

    Os dois caranguejos no pareceram nada incomodados com a chegada de

    Robinson e continuaram tranquilamente o seu ruidoso trabalho.

    Na falta de verniz ou mesmo de alcatro para untar o casco, Robinson deci-

    diu-se a fabricar uma espcie de cola. Teve para isso de arrasar quase na suatotalidade um pequeno bosque de azevinho que descobrira logo que come-

    ara a trabalhar. Durante quarenta e cinco dias, retirou dos arbustos a casca

    exterior e recolheu a de dentro, cortando-a em tiras. P-las depois a ferver

    num caldeiro, durante muito tempo, at que, a pouco e pouco, se decom-

    puseram num lquido espesso e viscoso. Espalhou ento esse lquido ainda a

    escaldar, pelo casco da embarcao.

    O Evaso estava concludo. Robinson comeou a juntar as provises quelevaria consigo, mas interrompeu pouco depois essa tarefa, lembrando-se de

    que seria melhor comear por lanar o seu novo barco gua, para ver como

    se comportava. A verdade que tinha grande receio dessa experincia, que

    iria decidir do seu futuro. Como que o Evasose aguentaria no mar? Seria

    suficientemente estanque? No iria virar-se primeira onda? Nos seus piores

    pesadelos, o barco afundava-se a pique mal chegava gua, e Robinson via-o

    afundar-se como uma pedra nas profundezas verdes...

    Acabou por se decidir a lanar o Evasoao mar. Verificou logo que era inca-

    paz de arrastar por cima das ervas e da areia at ao mar aquele casco que

    devia pesar mais de quinhentos quilos. Na verdade, esquecera-se completa-

    mente do problema do transporte do barco at beira-mar. Isso devia-se em

    parte ao facto de estar demasiado influenciado pela leitura da Bblia, em

    especial das pginas que falavam da Arca de No. Construda longe do mar, a

    arca apenas tivera de esperar que a gua chegasse at ela, sob a forma de

    chuvas e torrentes que desciam do alto das montanhas. Robinson cometera

    um erro fatal, ao no construir o Evasodiretamente na praia.

    Tentou ento colocar toros arredondados por debaixo da quilha para a fazer

    rolar. Mas o barco no se moveu, e o resultado foi arrombar uma das pran-

    chas do casco, ao fazer fora sobre ela com uma estaca colocada sobre um

    cepo e utilizada como alavanca. Ao cabo de trs dias de esforos inteis, a

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    fadiga e a clera obscureceram-lhe a razo. Teve ento a ideia de cavar uma

    vala na falsia, desde o mar at ao local onde se encontrava o barco, o qual

    poderia ento deslizar pela vala e atingir o nvel da praia. Atirou-se vigorosa-

    mente ao trabalho, mas concluiu que esses aterros lhe levariam dezenas de

    anos at estarem completados. E renunciou.

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    VI

    Nas horas mais quentes do Vero, os javalis e os seus primos da Amrica

    do Sul, os pecaris, costumam afundar o corpo em certos pntanos da flores-

    ta. Agitam a gua com as patas at se formar uma lama muito lquida e mer-

    gulham depois, ficando apenas com a cabea de fora, mas ao abrigo do calor

    e dos mosquitos.

    Desencorajado pelo fracasso do Evaso, Robinson tivera a oportunidade de

    seguir, um dia, uma manada de pecaris, vendo-os deixara-se escorregar paraa lama fresca, mantendo superfcie apenas o nariz, os olhos e a boca. Pas-

    sava dias inteiros assim deitado no meio das lentilhas-de-gua, dos nenfares

    e dos ovos de r. Os gases que se evolavam da gua estagnada perturbavam-

    lhe o esprito. Por vezes, julgava-se ainda no meio da famlia, em York, e

    ouvia as vozes da mulher e dos filhos. Ou ento imaginava que era um beb

    de bero, e via nas rvores que o vento agitava por cima da sua cabea, pes-

    soas adultas inclinadas para ele.

    Quando noitinha saa da lama tpida, a cabea andava-lhe roda. J no

    conseguia deslocar-se seno com as mos no cho, e comia fosse o que fos-

    se, com o nariz na terra, como um porco. Deixara de se lavar e uma crosta de

    terra e lama seca cobria-o dos ps cabea.

    Certo dia, quando estava a roer um tufo de agries, beira de um charco,

    pareceu-lhe ouvir msica. Era como que uma sinfonia do cu, com vozes de

    anjos acompanhadas por acordes de harpa. Robinson pensou que estava

    morto e que aquilo que ouvia era a msica do paraso. Ao levantar os olhos,

    porm, viu surgir uma vela branca no horizonte, a leste. Precipitou-se logo

    para o estaleiro do Evaso, onde as ferramentas estavam todas espalhadas, e

    conseguiu encontrar o isqueiro. Correu em seguida para o eucalipto oco,

    acendeu um molho de ramos secos e empurrou-o pela abertura existente no

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    tronco, junto ao solo. Uma coluna de fumo acre comeou a formar-se pouco

    depois, mas o lume parecia tardar em pegar.

    De resto, para qu? O navio vinha direito ilha. Dentro em pouco lanaria

    a ncora perto da praia e dele partiria uma lancha. Rindo como um louco,

    Robinson corria em todas as direes, procura de umas calas e de umacamisa, que acabou por encontrar debaixo do casco do Evaso. Correu

    depois para a praia, enquanto esgatanhava o rosto com as unhas, procurando

    desemaranhar a barba e os cabelos, que pareciam a mscara de um animal.

    O navio estava agora muito prximo e Robinson via-o distintamente, incli-

    nando com graciosidade o velame para as vagas orladas de espuma. Era um

    desses galees espanhis que outrora transportavam, atravs do Oceano,

    o ouro, a prata e as pedras preciosas do Mxico. medida que se aproxima-va, Robinson distinguia no convs uma multido colorida. Parecia estar a

    desenrolar-se uma festa a bordo. A msica provinha de uma pequena

    orquestra e de um coro de crianas vestidas de branco, agrupadas no castelo

    da popa. Havia pares a danar com elegncia, em torno de uma mesa coberta

    por uma baixela de ouro e cristal. Ningum parecia ver o nufrago, nem

    sequer a costa ao longo da qual o navio seguia agora, depois de ter virado de

    bordo. Robinson seguia-o correndo na praia. Gritava, agitava os braos, para-

    va para apanhar seixos, que atirava na direo do navio. Caiu, levantou-se,

    caiu novamente. O galeo chegava agora ao fim da praia, onde comeava

    uma zona de dunas de areia. Robinson atirou-se gua e nadou com todas as

    suas foras para o navio, do qual j s via o casco da popa, ataviado de bro-

    cados. Uma rapariguinha estava encostada a uma das janelas abertas na

    amurada e sorria-lhe tristemente. Robinson estava certo de conhecer aquela

    jovem. Mas, quem seria? Abriu a boca para a chamar. A gua salgada entrou-

    lhe pela garganta e os seus olhos j s viam a gua verde e uma pequena raia

    que fugia, recuando...

    Uma coluna de chamas arrancou-o ao desfalecimento. Que frio ele tinha!

    L no alto da falsia, o eucalipto ardia como uma tocha na noite. Robinson

    dirigiu-se a cambalear para aquela fonte de luz e calor.

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    Passou o resto da noite encolhido nas ervas, o rosto voltado para o tronco

    incandescente, e aproximando-se dele medida que o calor diminua. Com

    os primeiros alvores da madrugada conseguiu, finalmente, identificar a jovem

    do galeo. Era a sua prpria irm, Lucy, que morrera vrios anos antes da sua

    partida. Portanto, aquele barco, aquele galeo - tipo de navio que, de resto,desaparecera dos mares havia mais de dois sculos - no existia. Tratava-se

    de uma alucinao produzida pelo seu crebro doente.

    Robinson compreendeu finalmente que os banhos na lama e toda aquela

    vida de preguia que levava estavam a enlouquec-lo.

    O galeo imaginrio constitua um srio aviso. Era necessrio recuperar o

    domnio de si prprio, trabalhar, tomar o destino nas mos.

    Voltou as costas ao mar, que tanto mal lhe fizera, fascinando-o desde asua chegada ilha, e encaminhou-se para a floresta e o macio rochoso.

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    VII

    Durante as semanas seguintes, Robinson explorou metodicamente a ilha etratou de localizar as fontes e os abrigos naturais, os melhores locais para a

    pesca, os stios onde havia cocos, ananases e rebentos de palmeiras. Fez da

    gruta que se abria no macio rochoso do centro da ilha o seu armazm prin-

    cipal. Transportou para ali tudo o que pde retirar dos destroos do navio, os

    quais, por sorte, haviam resistido s tempestades dos meses anteriores.

    Depois de ter depositado os quarenta barris de plvora negra na parte mais

    funda da gruta, ali armazenou tambm trs arcas com roupas, cinco sacos decereais, dois cestos de loua e pratas, vrias caixas de objetos

    diversos - candeeiros, esporas, joias, lupas, culos, canivetes, cartas marti-

    mas, espelhos, dados de jogar -, uma mala com material de navegao,

    cabos, roldanas, lanternas, linhas, flutuadores, etc. e, enfim, um cofre com

    moedas de ouro, prata e cobre. Os livros que encontrou nas cabinas do barco

    encalhado haviam sido de tal modo lavados pela gua do mar e da chuva,

    que o texto impresso desaparecera. Mas Robinson pensou que, secando

    essas pginas brancas ao sol, poderia utiliz-las para escrever o seu dirio,

    desde que encontrasse um lquido que pudesse fazer de tinta.

    Esse lquido foi-lhe fornecido por um peixe que nessa altura abundava

    perto da falsia do levante, o peixe-ourio. Trata-se de um animal terrvel,

    com mandbulas poderosas e picos venenosos a cobrirem-lhe o corpo. Em

    caso de perigo, enche-se de ar e fica redondo, parecendo uma bola. Como

    todo aquele ar se lhe acumula no ventre, flutua de costas, sem que essa posi-

    o parea incomod-lo. Ao remexer com um pau num desses peixes que

    ficara na areia, Robinson verificara que tudo o que lhe tocava no ventre

    adquiria uma cor vermelha brilhante que no saa facilmente e poderia ser-

    vir-lhe de tinta. Apressou-se a aparar uma pena de abutre e pde assim, sem

    demora, escrever as primeiras palavras numa folha de papel. Foi ento que

    resolveu registar diariamente, no livro, o essencial dos principais factos que

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    lhe fossem acontecendo. Desenhou na primeira pgina o mapa geogrfico da

    ilha e escreveu por cima o nome que acabava de lhe dar: Speranza, o que

    queria dizer esperana, pois decidira nunca mais se deixar abater pelo deses-

    pero.

    Entre os animais da ilha, os mais teis seriam sem dvida as cabras e oscabritos, que ali abundavam, se conseguisse domestic-los. Ora as cabrinhas,

    embora no fugissem quando se aproximava, defendiam-se encarniadamen-

    te quando tentava mungi-las. Construiu ento uma cerca, feita de paus colo-

    cados horizontalmente e atados em estacas, que depois revestiu de lianas

    entrelaadas. Fechou l dentro cabritos muito jovens, que com os seus gritos

    atraram as mes. Robinson libertou depois as crias e aguardou vrios dias,

    at que os beres inchados de leite comearam a provocar dores s cabras eestas se deixaram mungir com alvio.

    O exame dos sacos de arroz, trigo, cevada e milho que salvara dos destro-

    os do Virgnia, provocou-lhe uma dolorosa deceo. Os ratos e o gorgulho

    haviam devorado uma parte, de que no restava seno a casca misturada

    com dejetos. Outra parte estava deteriorada pela gua das chuvas e do mar.

    Foi necessrio escolher cada cereal gro a gro, um longo e cansativo traba-

    lho de pacincia. Mesmo assim, Robinson conseguiu semear alguns acres de

    pradaria, que previamente queimara e lavrara com uma placa de metal pro-

    veniente do Virgnia, na qual fizera um orifcio suficientemente

    grande para nele introduzir um cabo.

    Assim, criando um rebanho domstico e um campo cultivado, Robinson

    comeara a civilizar a sua ilha, mas a obra era ainda frgil e limitada, e sentia

    nitidamente que aquela continuava a ser uma terra hostil e selvagem. Foi

    nesse estado de esprito que, uma manh, surpreendeu um vampiro agarra-

    do a um cabrito, cujo sangue chupava. Os vampiros so morcegos gigantes

    que podem atingir setenta e cinco centmetros de envergadura e se deixam

    cair suavemente, de noite, em cima dos animais adormecidos, para lhes

    sugarem o sangue. Noutra altura, quando andava a apanhar conchas nas

    rochas meio cobertas de gua, Robinson recebeu um jacto de gua em cheio

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    no rosto. Um tanto abalado pelo choque, deu alguns passos, mas viu-se

    obrigado a parar novamente, atingido na cara por um segundo jacto. Acabou

    por descobrir, num buraco da rocha, um pequeno polvo cinzento que tinha a

    espantosa faculdade de expelir gua pela boca com extraordinria pontaria.

    Num dia em que partira a enxada e deixara fugir a sua melhor cabra leitei-ra, Robinson entregou-se de novo ao desespero e retomou o caminho do

    lamaal. Ali chegado, tirou as roupas e deixou-se escorregar para dentro da

    lama morna. Logo os vapores envenenados da gua estagnada, acima da

    qual voavam nuvens de mosquitos, o envolveram e lhe fizeram perder a

    noo do tempo. Esqueceu a ilha com os seus abutres, vampiros e polvos, e

    julgou-se de novo criana em casa do pai, que era vendedor de tecidos em

    York; e parecia-lhe ouvir as vozes dos pais, irmos e irms. Compreendeuento que os perigos da preguia, do desencorajamento e do desespero con-

    tinuavam a amea-lo e que seria necessrio trabalhar sem descanso para

    lhes escapar.

    O milho perdeu-se completamente e os terrenos onde Robinson o havia

    semeado foram novamente invadidos pelos cardos e urtigas. A cevada e o

    trigo, porm, prosperaram e a primeira alegria que lhe deu Speranza foi aca-

    riciar as pequenas hastes, maleveis e tenras. Quando chegou a altura da

    ceifa, procurou qualquer coisa que pudesse servir-lhe de foice ou gadanha e

    acabou por encontrar um velho sabre de abordagem que decorava o camaro-

    te do comandante e trouxera juntamente com os outros despojos. Primeiro,

    quis fazer o trabalho metodicamente, como vira aos camponeses da sua ter-

    ra. Porm, ao manejar aquela arma heroica, apoderou-se dele uma espcie

    de ardor belicoso e investiu fazendo-a rodopiar por cima da cabea, ao mes-

    mo tempo que soltava rugidos de fria. Poucas espigas se estragaram com

    este tratamento, mas a palha partida, dispersa e espezinhada, ficou inutiliz-

    vel.

    Depois de ter extrado o gro das espigas batendo-as com um malho em

    cima de uma vela dobrada ao meio, joeirou o gro fazendo-o passar de uma

    cesta para outra, ao ar livre, num dia em que uma aragem viva arrebatava as

    cascas e as pequenas impurezas. No final verificou, com orgulho, que a sua

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    colheita totalizava trinta gales de trigo e vinte de cevada. Para moer gro,

    preparara um almofariz e um pilo - um tronco de rvore escavada e um

    ramo resistente com a extremidade arredondada - e o forno estava a postos

    para a primeira cozedura. Foi ento que tomou de repente a deciso de no

    fabricar po com essa colheita, reservando-a toda para a prxima sementeiradas suas terras. Ao privar-se assim de po, pensava realizar um ato meritrio

    e razovel. Na realidade, estava apenas a obedecer a uma nova tendncia, a

    avareza, que viria a fazer -lhe muito mal.

    Foi pouco depois desta primeira colheita que Robinson experimentou a

    enorme alegria de encontrar Tenn, o co do Virgnia. O animal saltou de uma

    moita a gemer e a contorcer-se de alegria, fazendo uma grande festa por

    voltar a encontrar o antigo dono. Robinson nunca soube como o co passaratodo aquele tempo na ilha, nem por que razo no viera ter com ele mais

    cedo. A presena desse companheiro incitou-o a levar a cabo um projeto que

    havia muito tempo concebera: construir uma verdadeira casa, para no

    continuar a dormir a um canto da gruta, ou debaixo de uma rvore. Escolheu

    para a sua habitao um stio ao p do grande cedro, no centro da ilha.

    Comeou por escavar um fosso retangular, onde colocou uma camada de

    seixos que cobriu de areia branca. Em cima destas fundaes perfeitamente

    secas e permeveis, ergueu paredes sobrepondo troncos de palmeiras. O

    teto fabricou-o com um entranado de canios revestido de folhas de rvore-

    da-borracha dispostas em escamas, como ardsias. A superfcie exterior das

    paredes foi revestida com uma argamassa de argila. Por cima do solo arenoso

    colocou um lajedo feito de pedras chatas e irregulares, unidas de junco,

    alguns mveis de vime, a loua e as lanternas retiradas do Virgnia, o culo, o

    sabre e uma das espingardas pendurada na parede, criaram uma atmosfera

    confortvel e ntima de que h muito Robinson se encontrava privado. E

    adquiriu at o hbito, depois de tirar das arcas do Virgnia as roupas nelas

    contidas - e algumas eram muito belas! -, de se vestir todas as noites para

    jantar com casaca, cales justos e compridos, chapu, meias e sapatos.

    Mais tarde verificou que o sol s era visvel do interior da habitao a certas

    horas do dia e que, para saber as horas, seria mais prtico fabricar uma esp-

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    cie de relgio que funcionasse dia e noite dentro de casa. Ao fim de algumas

    tentativas construiu uma coisa parecida com uma clepsidra, isto , um relgio

    de gua como os que existiam antigamente. Consistia simplesmente num

    garrafo de vidro transparente em cujo fundo fizera um pequeno orifcio por

    onde a gua se escoava gota a gota, caindo numa gamela de cobre pousadano cho. O garrafo levava vinte e quatro horas a esvaziar-se e Robinson

    fizera nas paredes vinte e quatro crculos paralelos, cada um assinalado com

    um nmero. O nvel do lquido indicava assim as horas, a qualquer momento.

    Precisava tambm de um calendrio que lhe indicasse o dia da semana, o

    ms e o nmero dos anos que iam decorrendo. Perdera completamente a

    noo do tempo que passara desde a sua chegada ilha. Um ano, dois anos,

    talvez mais? Resolveu comear do zero. Ergueu diante da casa um mastro-calendrio: era um tronco sem casca, no qual fazia todos os dias um pequeno

    entalhe, uma vez por ms um golpe mais profundo e, ao fim do dcimo

    segundo ms, inscreveria um grande 1 relativo ao primeiro ano do seu

    calendrio local.

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    VIII

    A vida seguia o seu curso, mas Robinson sentia cada vez maior necessida-

    de de organizar mais eficazmente o emprego do seu tempo. Ainda receava a

    perigosa tentao da lama que talvez o transformasse num animal. muito

    difcil manter a nossa natureza humana quando ningum est presente para

    nos ajudar! Os nicos remdios que ele conhecia contra esta perniciosa ten-

    dncia eram o trabalho, a disciplina e a explorao de todos os recursos da

    ilha.Quando o calendrio j tinha mil dias gravados, decidiu dar leis ilha Spe-

    ranza. Envergou um traje de cerimnia, ps-se diante de uma escrivaninha

    que concebera e construra de modo a poder escrever de p; abriu em segui-

    da um dos mais belos livros, apagados pela gua, que encontrara no Virgnia,

    e escreveu:

    CONSTITUIO DA ILHA SPERANZAINICIADA NO MILSIMO DIA DO CALENDRIO LOCAL

    Artigo 1: Robinson Crusoe, nascido em York a 19 de Dezembro de 1737,

    nomeado governador da ilha de Speranza, situada no Oceano Pacfico, entre

    as ilhas Juan Fernandez e a costa oriental do Chile. Nessa qualidade, so-lhe

    conferidos todos os poderes para legislar no conjunto do territrio insular e

    das suas guas territoriais.

    Artigo 2: Os habitantes da ilha so obrigados a pensar em voz alta. (Com

    efeito, como no tinha ningum com quem falar, Robinson receava perder o

    uso da palavra. J comeava a sentir, quando queria falar, a lngua um pouco

    entaramelada, como se tivesse bebido um pouco de vinho a mais. A partir

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    desse momento, obrigava-se a falar constantemente com as rvores, as

    pedras, as nuvens e tambm, naturalmente, com as cabras e com Tenn.)

    Artigo 3: Sexta-feira dia de jejum.

    Artigo 4: proibido trabalhar ao domingo. Todo o trabalho deve cessar s

    dezanove horas de sbado, em toda a ilha, e os habitantes devem vestir os

    seus melhores trajes para jantar. No domingo de manh s dez horas, reunir-

    se-o no templo para fazerem as suas oraes. (Ao estabelecer estas leis,

    Robinson no podia deixar de as redigir como se a ilha contasse numerosos

    habitantes. Parecia-lhe absurdo, com efeito, fazer leis para um homem ape-

    nas. Alm disso, imaginava que talvez um dia o acaso lhe trouxesse um ouvrios companheiros...)

    Artigo 5: S o governador est autorizado a fumar cachimbo, mas apenas

    uma vez por semana, no domingo tarde depois do almoo. (Descobrira

    pouco antes a utilizao e o prazer que lhe proporcionava o cachimbo de

    porcelana do capito Van Deyssel. Infelizmente, a reserva de tabaco contida

    no pequeno barril no duraria muito tempo e esforava-se assim por faz-la

    durar tanto quanto possvel.)

    Concedeu a si prprio alguns momentos de reflexo antes de determinar

    as penas em que incorreriam aqueles que no respeitassem estas leis. Deu

    alguns passos em direo porta, que abriu de par em par. Como a natureza

    era bela! A folhagem das rvores era como um mar verde agitado pelo vento

    e que se confundia ao longe com a linha azul do Oceano. Mais para alm, s

    o cu, absolutamente azul e sem nuvens. Ah, no! No era absolutamente

    azul! Robinson teve um sobressalto ao avistar, para os lados da praia grande,

    uma nuvem de fumo branco que se erguia no ar. E, no entanto, estava certo

    de no ter deixado alguma fogueira acesa para aqueles lados. Seriam visitan-

    tes? Tirou da parede uma espingarda, uma bolsa de plvora, outra de balas e

    o culo. Assobiou depois para chamar Tenn e embrenhou-se na

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    espessura do mato, evitando o caminho que o levaria diretamente da gruta

    praia.

    Trs pirogas compridas, com flutuadores e balancins, haviam sido puxadas

    para a areia seca. Uns quarenta homens estavam de p, formando um crculo

    ao redor de uma fogueira, da qual se elevava uma coluna de fumo pesado,espesso e branco. Robinson reconheceu, com a ajuda do culo, os temveis

    ndios araucanos da costa do Chile, do tipo costinos. Este povo resistira aos

    invasores incas e infligira depois sangrentas derrotas aos conquistadores

    espanhis. Pequenos, entroncados, usavam uma rudimentar tanga de couro.

    O rosto largo, com os olhos extraordinariamente afastados, tornava-se ainda

    mais estranho em virtude do costume que tinham de arrancar completamen-

    te as sobrancelhas. Todos possuam uma cabeleira negra muitocomprida, que sacudiam orgulhosamente a todo o momento. Robinson

    conhecia-os das frequentes viagens que fizera a Temuco, sua capital. Sabia

    que se acaso tivesse estalado outro conflito com os espanhis, nenhum

    homem branco por eles seria poupado.

    Teriam feito a longa travessia das costas do Chile at Speranza naquelas

    pirogas? No era impossvel, dada a sua reputao de navegadores experi-

    mentados. Mas era mais provvel que tivessem colonizado uma ou outra das

    ilhas Juan Fernandez - e Robinson pensou logo que tivera sorte em no cair

    nas suas mos, pois t-lo-iam certamente reduzido condio de escravo, ou

    talvez at o tivessem massacrado!

    Graas s narraes que ouvira na Araucana, adivinhava o significado da

    cerimnia que se desenrolava na praia naquele momento. Uma velha, magra

    e despenteada, ia e vinha, cambaleando, no meio do crculo formado pelos

    homens. Aproximava-se da fogueira, atirava para as chamas um punhado de

    plvora e aspirava avidamente o pesado fumo branco que logo se evolava.

    Voltava-se depois para os ndios, que se mantinham imveis, parecendo pas-

    s-los em revista, homem por homem, parando ora diante de um, ora diante

    de outro. Voltava depois para junto da fogueira e tudo recomeava.

    Tratava-se de uma feiticeira encarregada de descobrir entre os ndios o

    causador de uma desgraa qualquer que atingira a tribo

    doena, morte

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    inexplicvel ou, simplesmente, um incndio, uma tempestade, uma m

    colheita... E, de repente, escolheu realmente a vtima. O seu longo brao

    magro estendeu-se para um dos homens, ao mesmo tempo que da sua boca

    muito aberta saam maldies que Robinson no podia ouvir. O ndio desig-

    nado pela feiticeira atirou-se para o cho, de barriga para baixo, sacudido porgrandes estremees de terror. Um dos outros dirigiu-se para ele. Ergueu o

    machado - uma grande lmina que lhes serve, simultaneamente, de arma e

    ferramenta - e comeou por atirar pelos ares a tanga do miservel. Descarre-

    gou-o depois sobre ele a golpes regulares, cortando-lhe a cabea, em seguida

    os braos e as pernas. Por fim, os seis pedaos da vtima foram atirados ao

    fogo, cujo fumo imediatamente se tornou negro.

    Os ndios desfizeram o crculo e dirigiram-se para as embarcaes. Seis

    deles tiraram de l alguns odres e encaminharam-se para a floresta. Robinson

    escondeu-se rapidamente entre as rvores, sem perder de vista os homens

    que invadiram os seus domnios. Se descobrissem vestgios da sua presena

    na ilha, poderiam lanar-se em sua perseguio e dificilmente lhes escaparia.

    Felizmente, porm, a primeira nascente de gua encontrava-se na orla da

    floresta e os ndios no tiveram que penetrar muito no interior. Encheram os

    odres, que transportavam aos pares, pendurados de uma vara, e dirigiram-se

    para as pirogas, onde os companheiros se haviam j instalado. A feiticeira

    estava acocorada numa espcie de assento ornamentado, instalado r de

    um dos barcos.

    Quando finalmente as pirogas desapareceram atrs das falsias, Robinson

    aproximou-se da fogueira. Distinguiam-se ainda os restos do homem to

    cruelmente sacrificado em consequncia de ter sido declarado responsvel

    por uma calamidade qualquer. Foi cheio de temor, desgosto e tristeza que

    Robinson voltou sua habitao de governador e retomou a redao das leis

    de Speranza.

    Artigo 6: A ilha de Speranza declarada praa-forte. Fica subordinada ao

    comando do governador, que assume a patente de general. O recolher

    obrigatrio uma hora aps o pr do Sol...

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    Durante os meses seguintes, Robinson construiu volta da casa e da entra-

    da da gruta uma vedao com ameias cujo acesso era por sua vez defendido

    por um fosso com dois metros de largura e trs de profundidade. As duas

    espingardas e a pistola estavam a postos - e carregadas - no parapeito dastrs seteiras centrais. Em caso de ataque, Robinson podia fazer crer aos assal-

    tantes que no era o nico defensor da fortaleza. O sabre de abordagem e o

    machado tambm estavam ao alcance da mo, mas era pouco provvel que

    viesse a verificar-se um corpo a corpo, pois espalhara armadilhas nas proxi-

    midades do fosso. Instalou primeiro uma srie de poos em forma de funil e

    dispostos em xadrez, no fundo dos quais colocou um espeto afiado chama,

    coberto por tufos de erva assentes numa fina rede de juncos. Enterroudepois no solo, na orla da floresta, onde logicamente se reuniriam os even-

    tuais assaltantes antes de atacarem, dois tonis de plvora que uma corda de

    estopa permitiria fazer explodir distncia. Por fim, tornou mvel a pequena

    ponte pela qual se atravessava o fosso, manobrando-a de dentro da fortale-

    za.

    Todos os dias ao entardecer, antes de tocar a recolher na sua trompa, fazia

    a ronda, acompanhado de Tenn, que parecia ter compreendido o perigo que

    ameaava Speranza e os seus habitantes.

    Procedia-se depois ao encerramento da fortaleza. Deslocavam-se blocos de

    pedra para lugares previamente calculados de modo a obrigar os eventuais

    assaltantes a dirigirem-se para as armadilhas. Retirava a passadeira-ponte

    levadia, todas as entradas eram barricadas e tocava-se a recolher. Robinson

    preparava ento o jantar, punha a mesa na sua bela casa e retirava-se para a

    gruta. Voltava de l alguns minutos depois, lavado, penteado, perfumado, a

    barba aparada e vestindo o seu uniforme de general. Finalmente, luz de um

    candelabro feito de varinhas untadas de resina, jantava lentamente, sob o

    olhar entusiasta e atento de Tenn.

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    IX

    A este perodo de intensa atividade militar seguiram-se chuvas abundan-

    tes. Foi necessrio fazer muitas reparaes na casa, nos caminhos e currais

    danificados pelas torrentes de gua. Depois veio novamente a altura da

    colheita de cereais. Foi to abundante que se tornou necessrio limpar e

    secar outra gruta, perto da grande, onde j no cabiam gros. Desta vez,

    Robinson j no se privou da alegria de fazer po, o primeiro que comia des-

    de a sua instalao na ilha.Esta abundncia de cereais em breve levantou o problema da luta contra

    os ratos. Com efeito, os roedores pareciam multiplicar-se na mesma propor-

    o em que aumentavam as provises suscetveis de os alimentar, e como

    Robinson tencionava acumular colheita aps colheita, enquanto tivesse for-

    as para isso, era-lhe necessrio lutar contra os roedores.

    Certos cogumelos vermelhos com pintas amarelas deviam ser venenosos,

    pois vrios cabritos tinham morrido depois de os comerem misturados com a

    erva. Robinson extraiu deles um suco acastanhado, com o qual embebeu

    alguns gros de trigo. Espalhou depois esses gros envenenados pelos locais

    por onde os ratos passavam. Mas estes regalaram-se com eles e nem sequer

    ficaram doentes. Fabricou depois ratoeiras nas quais os animais caam por

    um alapo. Porm, teriam sido necessrios vrios milhares. Alm disso, teria

    de afogar os ratos apanhados nas ratoeiras, mergulhando-os nas guas da

    ribeira e assistir, horrorizado, sua agonia.

    Robinson presenciou um dia um duelo terrvel entre dois ratos. Cegos e

    surdos para tudo o que os rodeava, os dois roedores, engalfinhados, rolavam

    no solo soltando guinchos de raiva. Acabaram por se estrangular um ao outro

    e morreram sem se desprenderem. Comparando os dois cadveres, Robinson

    apercebeu-se de que pertenciam a duas variedades diferentes. Um, muito

    negro, redondo e pelado, parecia-se em todos os aspetos aos que se habitua-

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    ra a ver nos navios em que viajara. O outro, cinzento, mais alongado e com

    pelo mais espesso, bastante parecido com os arganazes dos campos, habita-

    va nos prados da ilha. Robinson compreendeu rapidamente que a primeira

    espcie provinha dos destroos do Virgniae proliferara graas s reservas de

    cereais, ao passo que a outra sempre vivera na ilha. As duas espcies pare-ciam dispor de territrios e recursos bem diferenciados. Robinson verificou-o

    certa noite, ao soltar na pradaria um rato preto que acabava de apanhar na

    gruta. Durante muito tempo, apenas o ondular da erva indicava que se

    desenrolava uma caada impiedosa. Depois, Robinson viu jorrar areia na base

    de uma duna, a alguma distncia. Quando l chegou, j s restavam do rato

    tufos de pelos e pedaos de carne.

    Espalhou ento dois sacos de cereal pela pradaria, tendo primeiro traadocom os gros um fino rasto que partia da gruta. Este pesado sacrifcio corria o

    risco de se revelar intil. Mas no foi. Ao cair da noite, os pretos vieram em

    grande nmero recuperar os gros que, certamente, consideravam sua pro-

    priedade. Os cinzentos juntaram-se para repelirem essa sbita invaso. A

    batalha desenrolou-se. Parecia que uma tempestade levantava por toda a

    parte pequenos jatos de areia. Os pares de combatentes rolavam como bolas

    vivas, ao mesmo tempo que uma chiadeira ensurdecedora subia do solo.

    O resultado do combate era previsvel. Um animal que se bate no territrio

    do adversrio sai quase sempre vencido. Nesse dia, todos os ratos negros

    morreram.

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    X

    Robinson nunca fora vaidoso e no sentia prazer especial em se ver ao

    espelho. No entanto, havia tanto tempo que isso no lhe acontecia que ficou

    muito surpreendido quando um dia, ao tirar um espelho de um dos bas do

    Virgnia, pde voltar a ver o seu prprio rosto. Ao fim e ao cabo, no mudara

    muito. Apenas a barba estava mais comprida e muitas rugas novas lhe sulca-

    vam agora a face. O que o inquietou, apesar de tudo, foi o seu ar srio, uma

    espcie de tristeza que nunca o abandonava. Tentou sorrir. Nessa altura sen-tiu um calafrio, ao dar-se conta de que no era capaz. Bem se esforou, ten-

    tou a todo o custo franzir os olhos e levantar os cantos da boca. Impossvel: j

    no sabia sorrir. Tinha a impresso de que o seu rosto era de madeira, uma

    mscara imvel, congelada numa expresso taciturna. Depois de muito refle-

    tir, acabou por compreender o que se passava. Era por estar sozinho. Havia

    demasiado tempo que no tinha algum a quem sorrir, e deixara de saber

    faz-lo: quando queria esboar um sorriso, os msculos no lhe obedeciam.

    Continuou a olhar-se ao espelho com uma expresso dura e severa e o cora-

    o apertava-se-lhe de tristeza. Assim, tinha tudo de que necessitava naquela

    ilha: bebida e comida, uma casa, uma cama para dormir; mas ningum a

    quem sorrir, e o seu rosto era como gelo.

    Foi ento que baixou os olhos para Tenn. Estaria Robinson a sonhar? O co

    estava a sorrir-lhe!Num dos lados do focinho o lbio negro estava levantado,

    pondo a descoberto uma dupla fila de colmilhos. Ao mesmo tempo, inclinava

    comicamente a cabea para um dos lados e os olhos cor de amndoa fran-

    ziam-se ironicamente. Robinson agarrou com ambas as mos a grande cabe-

    a felpuda e as plpebras humedeceram-se-lhe de emoo, enquanto um

    impercetvel tremor lhe agitava as comissuras dos lbios. Tenn continuava a

    sorrir-lhe sua ma eira e Robinson olhava-o atentamente, para

    responder a sorrir.

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    A partir desse momento, foi como que um jogo entre ambos. De repente,

    Robinson interrompia o trabalho, ou a caada, ou o passeio pela praia, e fixa-

    va Tenn de certa maneira. O co sorria-lhe a seu modo, enquanto o rosto de

    Robinson recuperava a maleabilidade e se humanizava e, pouco a pouco,

    sorria.

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    XI

    Robinson no parava de organizar e civilizar a sua ilha e de dia para dia o

    trabalho crescia e maior era o nmero das suas obrigaes. De manh, por

    exemplo, comeava por se lavar e vestir, depois lia algumas pginas da Bblia,

    em seguida punha-se em sentido diante do mastro, no qual iava a bandeira

    inglesa. A seguir, procedia abertura da fortaleza. Fazia oscilar a pequena

    ponte por cima do fosso e abria as sadas tapadas com rochas. O trabalho damanh comeava com a ordenha das cabras e prosseguia com a visita tapa-

    da artificial para coelhos, que Robinson arranjara numa clareira arenosa. Ali

    cultivava nabos silvestres, luzerna e um canteiro de aveia, de maneira a reter

    uma famlia de lebres chilenas que, sem isso, viveriam dispersas pela ilha.

    Eram aquilo que se chama agutia, lebres com patas compridas, muito gran-

    des e com orelhas pequenas.

    Um pouco mais tarde, ia verificar o nvel dos viveiros de gua doce, onde

    se multiplicavam as trutas e as carpas. Ao fim da manh, comia rapidamente

    com Tenn, dormia uma pequena sesta e vestia o grande uniforme de general

    para desempenhar as obrigaes oficiais da parte da tarde. Devia fazer o

    recenseamento das tartarugas do mar, cada uma das quais tinha o seu nme-

    ro de matrcula, inaugurar uma ponte de lianas audaciosamente lanada por

    cima de um barranco com cem ps de profundidade, em plena floresta tropi-

    cal, acabar a construo de uma choupana feita de fetos na orla da floresta

    que bordejava a baa, e constituiria um excelente posto de observao para

    vigiar o mar sem ser visto e, ao mesmo tempo, um retiro de sombra verde e

    fresca para as horas mais quentes do dia.

    Era frequente Robinson fartar-se de todos estes trabalhos e de tantas

    obrigaes. Perguntava a si prprio para que serviria tudo aquilo, e para

    quem, mas logo se lembrava dos perigos da ociosidade, da lama dos pecaris

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    em que se arriscava a cair novamente, se cedesse preguia, e lanava mos

    ao trabalho ativamente.

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    XII

    Logo desde os primeiros dias, Robinson servira-se da gruta do centro da

    ilha para guardar o que tinha de mais precioso: as colheitas de cereais, as

    conservas de fruta e carne, mais ao fundo os bas com roupas, as ferramen-

    tas, as armas, o ouro e, finalmente, na parte mais recuada os seus barris com

    plvora negra, que teriam bastado para fazer ir pelos ares toda a ilha. Desde

    h muito que no tinha necessidade de caar com a espingarda, mas dava-lhe

    satisfao ter toda aquela plvora ao seu dispor: tranquilizava-o e dava-lheuma sensao de superioridade.

    No entanto, nunca empreendera a explorao do fundo da gruta, e pensa-

    va por vezes nisso com certa curiosidade. Por detrs dos barris de plvora, o

    tnel continuava por uma espcie de galeria, a pique, e resolveu um dia

    meter-se por ela para ver onde iria ter.

    A explorao apresentava uma dificuldade principal, na falta de ilumina-

    o. No possua seno tochas de madeira resinosa, mas avanar para o fun-

    do da gruta com uma tocha na mo implicava correr o risco de provocar a

    exploso dos barris, tanto mais que deviam restar vestgios de plvora no

    solo. Havia ainda o problema do fumo, que rapidamente tornaria o ar irrespi-

    rvel. Por momentos teve a ideia de abrir uma chamin de arejamento e

    iluminao no fundo da gruta, mas a natureza da rocha tornava este projeto

    impraticvel. S havia, portanto, uma soluo: aceitar a obscuridade e procu-

    rar habituar-se a ela. Por conseguinte, avanou to longe quanto lhe foi pos-

    svel, com uma proviso de bolos de milho e um pcaro de leite de cabra, e

    esperou. sua volta reinava a calma mais absoluta. Sabia que o Sol estava a

    baixar no horizonte. Ora, a abertura da gruta estava situada de tal maneira

    que, em dado momento, os raios do Sol poente ficavam exatamente no eixo

    do tnel. Durante um segundo a gruta ficaria iluminada, mesmo at ao fun-

    do. Foi isso que realmente se verificou, com a durao de um relmpago.

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    Mas foi o suficiente para que Robinson soubesse que o seu primeiro dia ter-

    minara.

    Adormeceu, comeu um bolo, voltou a dormir, bebeu leite. E, de repente, o

    relmpago surgiu novamente. Tinham decorrido vinte e quatro horas mas,

    para Robinson, tinham sido como um sonho. Comeava a perder a noo dotempo. As vinte e quatro horas seguintes passaram-se ainda mais rapidamen-

    te, e Robinson j no sabia se estava a dormir ou continuava acordado.

    Por fim, resolveu levantar-se e dirigir-se para o fundo da gruta. No levou

    muito tempo a encontrar, tateando, o que procurava: a abertura de uma

    chamin vertical e muito estreita. Fez imediatamente algumas tentativas

    para por ela escorregar. As paredes da galeria eram lisas como carne, mas o

    orifcio era to estreito que metade do seu corpo ficou l preso. Teve ento aideia de tirar a roupa toda e de esfregar o corpo com o leite coalhado que

    restava no fundo do pcaro. Mergulhou em seguida com a cabea para a

    frente e, desta vez, escorregou lentamente mas com regularidade, como uma

    r pela goela da serpente.

    Chegou suavemente a uma espcie de nicho morno, cujo fundo tinha exa-

    tamente a forma do seu corpo agachado. A se instalou, enrolado sobre si

    prprio, com os joelhos puxados at ao queixo, as pernas cruzadas e as mos

    apoiadas nos ps. Sentia-se to bem assim que adormeceu logo a seguir.

    Quando acordou, teve uma enorme surpresa: a obscuridade sua volta tor-

    nara-se branca! Continuava a nada ver, mas passara a estar envolvido pelo

    branco, em vez de negrura! E a cavidade onde se encontrava assim acacha-

    pado era to suave, to morna e branca, que no podia deixar de pensar na

    me, que o embalava cantarolando. O pai era um homem pequeno

    e pouco saudvel, mas a me era uma mulher grande, forte e calma, que

    nunca se zangava e adivinhava sempre a verdade, bastando-lhe olhar para os

    filhos.

    Um dia em que ela estava no primeiro andar com todos eles, estando o pai

    ausente, declarou-se o fogo no armazm do rs-do-cho. A casa era muito

    velha, e toda de madeira, e o fogo propagou-se com uma velocidade terrvel.

    O pequeno vendedor de tecidos regressou a toda a pressa e ps-se a lamen-

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    tar, correndo na rua em todos os sentidos, enquanto via arder a casa com a

    mulher e os filhos l dentro. De repente, viu a esposa sair tranquilamente do

    meio de uma torrente de chamas e fumo, com os filhos todos aos ombros,

    nos braos, s costas, e agarrados ao avental. Era assim que Robinson a revia,

    no fundo do seu buraco, como se fosse uma rvore vergada sob o peso dosseus frutos. Ou ento, lembrava-se da noite do dia de Reis. Amassava a fari-

    nha onde se escondia a fava que designaria o rei da festa no dia seguinte. A

    Robinson, parecia-lhe que toda a ilha de Speranza era um imenso bolo e que

    ele prprio era a pequena fava escondida no fundo da crosta.

    Compreendeu que tinha de sair do seu buraco se no quisesse l ficar para

    sempre. Ergueu-se com dificuldade e iou-se pelo tnel. Quando chegou

    parte de trs da gruta, procurou, s apalpadelas, a roupa, que enrolou comouma bola debaixo do brao, sem perder tempo a vesti-la novamente. Estava

    inquieto, porque a obscuridade branca persistia sua volta. Teria ficado

    cego? Avanava a cambalear para a sada quando, de repente, a luz do Sol lhe

    bateu em cheio no rosto. Era a hora mais quente do dia, aquela em que at

    os lagartos procuram a sombra. Robinson, no entanto, tremia de frio e aper-

    tava as coxas, ainda hmidas do leite coalhado, uma de encontro outra.

    Correu para casa, com a cara escondida nas mos. Tenn saltitava sua volta,

    feliz por voltar a v-lo, mas desconcertado por o ver to nu e to fraco.

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    XIII

    Robinson desceu mais vezes cavidade da gruta, para ali encontrar de

    novo a paz maravilhosa da sua infncia. Habituara-se a parar a clepsidra

    quando o fazia, pois no havia horas nem maneira de ocupar o tempo no

    fundo da gruta. Mas estava perturbado, e perguntava-se se no seria a pre-

    guia que o atraa, tal como outrora o levara a mergulhar no lamaal.

    Para pensar noutra coisa, resolveu fazer uma cultura com os sacos de arroz

    que conservava desde o primeiro dia. A verdade que sempre recuaraperante o desmedido trabalho que acarreta a preparao de um arrozal. Com

    efeito, o arroz deve crescer debaixo de gua, e o nvel desta tem de ser sem-

    pre controlado, e por vezes modificado. Viu-se, portanto, obrigado a deter o

    curso de um ribeiro em dois locais: um a jusante, para inundar um prado, e

    outro a montante, com uma derivao para poder suspender a chegada da

    gua e proceder secagem da pradaria. Mas tambm foi necessrio construir

    diques e duas comportas, que podiam estar abertas ou fechadas, conforme

    se desejasse. E ao cabo de dez meses, se tudo corresse bem, a colheita e o

    descasque do arroz exigiriam muitos dias de trabalho aturado. Assim, termi-

    nado o arrozal, e coberto o arroz semeado com um lenol de gua, Robinson

    perguntou mais uma vez a si prprio com que objectivo se sobrecarregava

    com tanto esforo. Se no estivesse sozinho, se a mulher e os filhos, ou pelo

    menos um companheiro, estivessem com ele, saberia por que razo traba-

    lhava. Mas a solido tornava o seu esforo intil.

    Ento, com as lgrimas nos olhos, voltou a descer ao fundo da gruta...

    Desta vez ficou l dentro tanto tempo que por pouco no enfraqueceu

    demasiado para poder subir de novo, e podendo ter morrido no fundo do seu

    buraco. Procurou, portanto, uma maneira de arranjar coragem para viver

    como um homem e levar por diante todo aquele trabalho que tanto o abor-

    recia.

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    Lembrou-se de que o pai o mandava ler os Almanaquesde Benjamin Frank-

    lin, filsofo, sbio e homem de Estado americano daquele tempo. Nesses

    almanaques, Benjamin Franklin d preceitos morais que justificam os homens

    que trabalham e ganham dinheiro. Robinson pensou que se inscrevesse esses

    preceitos por toda a ilha, de maneira a t-los sempre debaixo dos olhos, novoltaria a desencorajar-se e cederia com menos frequncia preguia. Por

    exemplo, cortou tantas rodelas quantas as necessrias para desenhar na

    areia das dunas as letras que formavam a seguinte frase:

    A pobreza priva o homem de toda a virtude; difcil um saco vazio man-

    ter-se de p.

    Na parede da gruta incrustara pequenas pedras que constituam um

    mosaico onde se lia:Se o segundo vcio consiste em mentir, o primeiro endividar-se, pois a

    mentira monta a cavalo na dvida.

    Pequenos cavacos de pinho envoltos em estopa estavam dispostos num

    leito de pedras, prontos a serem inflamados, e permitiriam ler o seguinte:

    Se os malandros conhecessem todas as vantagens da virtude, tornar-se-

    iam virtuosos por malandrice.

    Havia, enfim, uma mxima mais comprida que as outras com cento e

    quarenta e duas letras - e Robinson lembrara-se de tosquiar cada letra no

    dorso de uma cabra, de tal maneira que, se por acaso as cabras, deslocando-

    se, pusessem as cento e quarenta e duas letras na devida ordem, fazendo

    aparecer a mxima cujo teor era o seguinte:

    Aquele que mata uma bcora aniquila todas as bcoras a que ela podia

    ter dado origem at milsima gerao. Quem desperdia uma nica moeda

    de cinco xelins, assassina montes de moedas de ouro.

    Robinson ia dar incio a esta tarefa quando, de repente, teve um estreme-

    cimento de surpresa e medo: uma fina coluna de fumo branco erguia-se no

    cu azul! Vinha do mesmo local que da primeira vez, mas as inscries que

    ele espalhara pela ilha no iriam agora permitir que os ndios o descobris-

    sem? Enquanto corria para a sua fortaleza seguido de Tenn, amaldioava a

    ideia que tivera. Deu-se ainda um incidente um tanto ridculo que lhe pare-

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    ceu ser um mau sinal: atemorizado por esta inesperada correria, um dos

    bodes mais mansos atacou-o brutalmente, de cabea baixa. Robinson evitou-

    o justa, mas Tenn rolou sobre si prprio, a ganir, projetado como uma bola

    para um macio de fetos.

    Logo que Robinson se fechou com Tenn na fortaleza, depois de colocar osblocos de rocha nos seus lugares e de retirar a ponte, comeou a interrogar-

    se sobre se a sua conduta seria razovel. Com efeito, se os ndios tivessem

    dado pela sua presena e resolvido tomar a fortaleza de assalto, no s

    teriam a vantagem do nmero, como beneficiariam do efeito da surpresa. Em

    contrapartida, se no se preocupassem com ele, completamente absortos

    nos seus ritos assassinos, que alvio para Robinson!; quis tirar as coisas a lim-

    po. Sempre seguido de Tenn, que coxeava, pegou numa das espingardas, psa pistola cintura e caminhou sob as rvores em direo praia. Viu-se for-

    ado, no entanto, a voltar atrs por se ter esquecido do culo, do qual pode-

    ria ter necessidade.

    Desta vez, eram trs as pirogas alinhadas paralelamente na areia. O crculo

    de homens volta da fogueira era, alis, maior que da primeira vez e, exami-

    nando-os com o culo, Robinson ficou com a impresso de que no se trata-

    va do mesmo grupo. J tinham cortado um infeliz aos bocados, machadada,

    e dois guerreiros regressavam da fogueira, para a qual haviam atirado com os

    restos. Foi nessa altura que se deu um acontecimento extraordinrio, certa-

    mente inesperado neste gnero de cerimnias. A feiticeira, que estava aga-

    chada no cho, levantou-se repentinamente, correu direita a um dos homens

    e estendeu para ele o seu brao abrindo muito a boca, da qual saa um jorro

    de maldies, que Robinson adivinhava sem poder ouvi-las. Haveria, portan-

    to, uma segunda vtima nesse dia! Visivelmente, os homens hesitavam.

    Finalmente um deles, de machado na mo, dirigiu-se para o indigitado culpa-

    do, que dois outros j haviam levantado e atirado ao cho. O machado des-

    ceu uma primeira vez e a tanga de couro voou pelos ares. Um segundo golpe

    ia ser desferido no corpo nu quando o infeliz deu um salto e fugiu, a correr,

    em direo floresta. No culo de Robinson, parecia dar saltos sem sair do

    mesmo lugar, perseguido por dois ndios. Na realidade, corria direito a Robin-

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    son com uma rapidez extraordinria. No era mais alto do que eles mas mui-

    to mais esguio, e verdadeiramente feito para a corrida. A pele parecia mais

    escura, e assemelhava-se antes a um negro. Talvez fosse isso que levara a

    feiticeira a indic-lo como culpado, pois em qualquer grupo de homens,

    aquele que no se assemelha aos outros sempre detestado.Entretanto, ele ia-se aproximando, de segundo para segundo, e o seu avan-

    o em relao aos dois perseguidores continuava a aumentar. Robinson tinha

    a certeza de no poder ser visto da praia, se no julgaria que o ndio o avista-

    ra e vinha refugiar-se junto dele. Era necessrio tomar uma deciso. Dentro

    de alguns instantes, os trs ndios encontrar-se-iam frente a frente com ele, e

    talvez se reconciliassem, passando Robinson a ocupar o lugar da vtima! Foi

    esse o momento que Tenn escolheu para ladrar furiosamente, na direo dapraia. Maldito animal! Robinson precipitou-se para o co e, rodeando-lhe o

    pescoo com o brao, apertou-lhe o focinho com a mo esquerda, ao mesmo

    tempo que encostava a espingarda ao ombro com a outra mo, da melhor

    maneira possvel. Apontou para o meio do peito do primeiro perseguidor,

    que no estava a mais de trinta metros, e puxou o gatilho. No mesmo

    momento em que o tiro era disparado, Tenn fez um movimento brusco para

    se libertar. A espingarda desviou-se, com grande surpresa de Robinson, e foi

    o segundo perseguidor que deu um enorme salto e se estatelou na areia. O

    ndio que o precedia parou, voltou para junto do corpo do companheiro,

    inclinou-se para ele, ergueu-o, inspecionou a primeira fila de rvores onde a

    praia acabava e, por fim, fugiu a toda a velocidade para o crculo dos outros

    ndios.

    A alguns metros dali, num macio de palmeiras ans, o ndio que escapara

    inclinava a fronte at ao cho e procurava, tateando, o p de Robinson, para

    o colocar em cima da nuca, como sinal de submisso.

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    XIV

    Robinson e o ndio passaram a noite atrs das ameias da fortaleza com o

    ouvido atento a todos os rudos noturnos da floresta. De duas em duas horas,

    Robinson mandava Tenn em misso de reconhecimento, com o encargo de

    ladrar se encontrasse alguma presena humana. Voltava sempre sem ter

    dado o alerta. O ndio, que amarrara na cintura umas velhas calas de mari-

    nheiro que Robinson o obrigara a enfiar, estava abatido, sem energia, como

    que atordoado por causa da sua horrvel aventura, bem como pela espantosaconstruo para a qual fora trazido. No tocara no bolo de trigo que Robin-

    son lhe dera e mascava constantemente favas selvagens, cuja provenincia

    Robinson ignorava completamente. Um pouco antes do nascer do dia ador-

    meceu em cima de um monte de folhas secas, apertando contra si o co,

    tambm adormecido. Robinson conhecia o hbito de certos ndios do Chile

    de utilizarem um animal domstico como cobertor vivo, para se protegerem

    do frio da noite. Surpreendeu-o, no entanto, a pacincia de Tenn, de nature-

    za habitualmente bastante arisca.

    Teriam os ndios esperado pelo dia para atacar? Robinson, armado com a

    pistola, as duas espingardas e tantas balas e plvora quanto podia transpor-

    tar, deslizou para fora da muralha e dirigiu-se beira-mar, fazendo um gran-

    de desvio pelas dunas.

    A praia estava deserta. As trs pirogas e os seus ocupantes haviam desapa-

    recido. O cadver do ndio morto na vspera com um tiro de espingarda fora

    levado. No restava seno o crculo negro da fogueira mgica, onde os ossos

    se misturavam com ramos calcinados. Robinson pousou na areia as suas

    armas e munies com uma sensao de enorme alvio Em seguida, sacudiu-

    o um grande ataque de riso, meio nervoso e meio louco, que nunca mais

    acabava. Quando parou para respirar, lembrou-se de que era a primeira vez

    que ria desde o naufrgio do Virgnia. Talvez tivesse reaprendido a rir por ter

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    encontrado, finalmente, um companheiro? De repente, desatou a correr,

    lembrando-se do Evaso. Sempre evitara regressar

    ao local onde o construra e onde sofrera to grande deceo. No entanto, a

    pequena embarcao devia l continuar, aguardando que uns braos sufi-

    cientemente fortes a empurrassem para o mar! Talvez o ndio pudesse ajudarRobinson a lanar o Evaso gua, e o seu conhecimento das ilhas seria,

    depois, muito precioso.

    Ao aproximar-se da fortaleza, Robinson viu o ndio completamente nu a

    brincar com o co. Ficou zangado com a falta de pudor do selvagem e, tam-

    bm, com a amizade que parecia ter nascido entre ele e o co. Depois de o

    ter obrigado a vestir novamente as calas, demasiado grandes, arrastou-o at

    ao Evaso.As giestas haviam invadido tudo e o pequeno barco parecia flutuar num

    mar de flores amarelas. O mastro cara e algumas pranchas da coberta esta-

    vam parcialmente levantadas, certamente por causa da humidade, mas o

    casco parecia inteiro. Tenn, que ia frente dos dois homens, deu algumas

    voltas ao barco. Depois, num impulso, saltou para a coberta, que abateu

    imediatamente sob o seu peso. Robinson viu-o desaparecer no poro, com

    um latido de medo. Ao chegar junto do barco, viu que a ponte caa aos boca-

    dos sempre que Tenn fazia uma tentativa para sair da sua priso. O ndio

    pousou a mo no rebordo do casco, fechou-a e abriu-a novamente, sob o

    olhar atento de Robinson: tinha a mo cheia de uma serradura vermelha, que

    o vento espalhou. Desatou a rir. Robinson, por sua vez, deu um pequeno

    pontap no barco, ergueu-se nos ares uma nuvem de poeira, ao mesmo

    tempo que um grande buraco se abria no flanco da embarcao. As trmitas

    haviam rodo completamente o Evaso, e no havia nada a fazer.

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    XV

    Robinson interrogara-se durante muito tempo sobre o nome que deveria

    dar ao ndio. No queria dar-lhe um nome cristo enquanto no estivesse

    batizado. Resolveu, finalmente, dar-lhe o nome do dia em que o acolhera. Foi

    assim que o segundo habitante da ilha passou a chamar-se Sexta-Feira.

    Passados alguns meses, Sexta-Feira aprendera ingls suficiente para com-

    preender as ordens do amo. Tambm sabia desbravar o terreno, lavrar,

    semear, transplantar, sachar, ceifar, colher, bater, moer, amassar e cozerpo. Sabia fazer uma omeleta, coser as roupas de Robinson e engraxar as

    botas. Tornara-se um servidor modelo. noite, vestia uma libr de lacaio e

    servia o jantar ao governador. Passava-lhe depois pelos lenis uma caixa de

    ferro cheia de brasas. Por fim, ia estender-se numa liteira que encostava

    porta de casa e que partilhava com Tenn.

    Robinson, por seu lado, estava muito contente por ter finalmente algum a

    quem mandar trabalhar e a quem ensinar a civilizao. Sexta-Feira sabia ago-

    ra que tudo o que o amo lhe mandava fazer era bom, e tudo o que lhe proibia

    era mau. Assim, era mau comer mais do que a parte que Robinson lhe desti-

    nara. Era mau fumar cachimbo, bem como passear completamente nu, ou

    esconder-se para dormir quando havia trabalho a fazer. Sexta-Feira aprende-

    ra a ser soldado nas ocasies em que o amo era general, sacristo quando ele

    orava, pedreiro quando construa, transportador quando viajava, batedor

    quando caava e a abanar o mata-moscas quando ele dormia.

    Robinson tinha ainda razo para estar contente. Sabia agora o que fazer

    com o ouro e as moedas que salvara dos destroos do Virgnia. Pagava a Sex-

    ta-Feira. Meio soberano de ouro por ms.

    Com esse dinheiro, Sexta-Feira, comprava comida suplementar, pequenos

    objetos de uso corrente igualmente provenientes do Virgnia ou, muito sim-

    plesmente, meio dia de repouso

    no lhe era permitido comprar um dia

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    inteiro. Fizera uma cama de rede que prendera entre duas rvores e onde

    passava todo o tempo livre.

    O domingo, naturalmente, era o dia mais belo da semana. De manh, o

    servo do governador levava-lhe uma espcie de bengala que se assemelhava

    simultaneamente ao cetro de um rei e ao bculo de um bispo. Depois, abri-gado sob um guarda-sol feito de pele de cabra, que Sexta-Feira levava atrs

    de si, caminhava majestosamente por toda a ilha, inspecionando os campos,

    os arrozais e os pomares, os rebanhos e as construes em curso. Felicitava

    ou censurava, dava ordens para a semana seguinte, fazia projetos para os

    anos futuros. Vinha depois o almoo, mais demorado e suculento que

    durante a semana. Da parte da tarde, Sexta-Feira limpava e embelezava Spe-

    ranza. Arrancava as ervas dos caminhos, plantava flores defronte da casa,aparava rvores de ornamentao.

    Sexta-Feira soubera despertar a benevolncia do amo com vrias boas

    ideias. Uma das grandes preocupaes de Robinson era desembaraar-se do

    lixo e detritos da cozinha e da oficina, sem atrair os abutres e os ratos. E no

    sabia como faz-lo. Os pequenos carnvoros desenterravam tudo o que ele

    enterrava e as mars voltavam a depositar na praia tudo o que atirava ao

    mar; se os queimava, provocava uma fumarada nauseabunda que empestava

    a casa e as roupas.

    Sexta-Feira teve a ideia de aproveitar a voracidade de uma colnia de gran-

    des formigas vermelhas que descobrira perto de casa. Todos os restos depo-

    sitados no meio do formigueiro eram devorados em menos de nada, e os

    ossos ficavam imediatamente descarnados e secos.

    Sexta-Feira ensinou igualmente a Robinson a servir-se das bolas. Muito

    divulgadas na Amrica do Sul, constituem uma arma formada por trs seixos

    redondos, atados a cordes ligados em estrela. Lanados com percia, giram

    como estrelas de trs pontas, e logo que o seu movimento interrompido

    por um obstculo, envolvem-no e amarram-no solidamente.

    Sexta-Feira atirava as bolas s pernas das cabras que queria imobilizar para

    tratar delas, ordenh-las, ou mat-las. Mostrou depois a Robinson que tam-

    bm podiam servir para capturar cabritos e mesmo aves pernaltas. Por fim,

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    convenceu-o de que, se utilizasse seixos maiores, poderia servir-se das bolas

    como de uma arma terrvel, capaz de arrombar o peito de um homem depois

    de quase o ter estrangulado. Robinson, que continuava a temer um regresso

    ofensivo dos ndios, ficou-lhe grato por poder aumentar o seu arsenal com

    esta arma silenciosa, fcil de substituir e, no entanto, mortfera.Exercitaram-se durante muito tempo no mato, utilizando como alvo um tron-

    co de rvore com a grossura de um homem.

    Por ltimo, o ndio teve a ideia de fabricar para os dois uma piroga seme-

    lhante s que existiam no seu pas. Comeou a desbastar, com o machado, o

    tronco de um pinheiro de grande dimetro e muito direito. Era um trabalho

    lento e paciente, que em nada se assemelhava pressa febril com que Robin-

    son construra o Evaso. Robinson, de resto, ainda vexado pelo seu fracasso,no se metia nisso, e contentava-se em ver trabalhar o companheiro. Sexta-

    Feira comeara por fazer lume sob a parte do tronco que queria desbastar,

    processo que tinha a vantagem de apressar consideravelmente o trabalho,

    mas que implicava o risco de tudo comprometer se a rvore se incendiasse.

    Depois, ps de lado esse processo, e executou a parte final do trabalho ser-

    vindo-se de um simples canivete.

    Quando a piroga ficou pronta, era suficientemente leve para Sexta-Feira

    poder ergu-la acima da cabea fora de braos e foi assim, como se tivesse

    a cabea enfiada num capucho de madeira, que desceu para a praia, com

    Tenn a correr-lhe volta das pernas e seguido de longe por um Robinson

    resmungo. Quando, porm, o pequeno barco comeou a danar sobre as

    ondas, Robinson viu-se forado a renunciar inveja, tomou lugar atrs de

    Sexta-Feira e pegou num dos remos curtos e leves que o ndio fizera com

    ramos de araucria. Deram depois, pela primeira vez, a volta ilha por mar,

    acompanhados de longe por Tenn, que corria, ladrando, ao longo da mar-

    gem.

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    XVI

    Aparentemente, tudo corria bem. A ilha prosperava ao sol, com as suas

    culturas, os rebanhos, os pomares e as casas que iam sendo construdas de

    semana para semana. Sexta-Feira trabalhava arduamente, e Robinson reina-

    va como um senhor. Tenn, que envelhecia, dormia sestas cada vez mais lon-

    gas.

    Na realidade, porm, nenhum dos trs era feliz. Sexta-Feira era dcil por

    gratido. Queria agradar a Robinson, que lhe salvara a vida. Mas no com-preendia nada de toda aquela organizao, aqueles cdigos, aquelas cerim-

    nias, e nem sequer a razo de ser dos campos cultivados, dos animais domes-

    ticados e das casas. No via qualquer sentido em tudo aquilo. Robinson bem

    lhe explicara que assim se procedia na Europa, nos pases civilizados, mas

    Sexta-Feira no via por que razo se devia fazer a mesma coisa numa ilha

    deserta do Pacfico. Robinson, por seu lado, bem via que Sexta-Feira, intima-

    mente, no aprovava aquela ilha demasiado bem administrada e que era a

    obra da sua vida. No havia dvida de que Sexta-Feira fazia o melhor que

    podia, mas logo que tinha um momento livre s lhe

    dava para a asneira.

    Por exemplo, em relao aos animais comportava-se de maneira absolu-

    tamente incompreensvel. Para Robinson, os animais ou eram teis, ou pre-

    judiciais. Os teis deviam ser protegidos, para se multiplicarem. Quanto aos

    prejudiciais, era necessrio destru-los da maneira mais expedita possvel.

    Impossvel fazer com que Sexta-Feira o compreendesse! Ora dedicava a um

    animal qualquer uma amizade entusiasta e absurda, quer fosse til ou preju-

    dicial, ora perpetrava, sobre outros, atos de uma crueldade monstruosa.

    Assim, um dia, apanhou e comeou a criar um casal de ratos! At mesmo

    Tenn compreendeu que devia deixar em paz aqueles horrveis animais, que

    Sexta-Feira tomara sob sua proteo. Robinson teve dificuldade em se desfa-

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    zer deles. Uma vez, levou-os na piroga e atirou-os ao mar. Os ratos voltaram

    praia a nado e regressaram a casa. Robinson insistiu, mas desta vez utili-

    zando uma artimanha que resultou plenamente. Alm dos ratos, levou tam-

    bm uma tbua bem seca. Ps os ratos em cima da tbua, e pousou-a na

    gua. Agarrados quele barco improvisado, os ratos no se atreveram a ati-rar-se gua para voltarem ilha, e a corrente levou-os para o largo. Sexta-

    Feira nada disse, mas Robinson percebeu que ele sabia tudo. Como se Tenn

    lho tivesse contado!

    De outra vez, Sexta-Feira desapareceu durante vrias horas. Robinson pre-

    parava-se para partir sua procura quando viu uma coluna de fumo erguer-

    se por detrs das rvores, do lado da praia. No era proibido acender foguei-

    ras na ilha, mas o regulamento exigia que o governador fosse prevenido, coma indicao da hora e local escolhidos. Isso destinava-se a evitar qualquer

    confuso com as fogueiras rituais dos ndios, que podiam voltar a qualquer

    momento. Se Sexta-Feira se esquecera de prevenir Robinson, era certamente

    porque o que ia fazer lhe desagradaria.

    Robinson levantou-se, suspirando e dirigiu-se para a praia, depois de ter

    assobiado a Tenn.

    No compreendeu logo a estranha ocupao a que Sexta-Feira se entrega-

    va. Em cima de um tapete de cinzas ainda ao rubro, colocara uma grande

    tartaruga, voltada de costas. A tartaruga no estava morta, e agitava furio-

    samente as quatro patas no ar. Robinson julgou mesmo ouvir uma tosse um

    pouco rouca, que devia ser a sua maneira de gritar. Fazer gritar uma tartaru-

    ga! Era preciso o ndio ter o diabo no corpo! Quanto ao objetivo da horrvel

    operao, s o compreendeu ao ver a carapaa da tartaruga ficar rgida, tor-

    nar-se quase chata e, naturalmente, despegar-se do corpo do animal.

    Entretanto, Sexta-Feira cortava com uma faca os bocados que ainda esta-

    vam colados ao interior da carapaa. De repente, a tartaruga rolou na areia,

    largando a carapaa. Apoiou-se nas suas quatro patas e correu para o mar,

    seguida de Tenn, que corria atrs dela a ladrar. Mergulhou em seguida nas

    ondas.

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    Ela faz mal disse tranquilamente Sexta-Feira , amanh ser comida

    pelos caranguejos!

    Ps-se depois a esfregar com areia a parte de dentro da carapaa, que ago-

    ra parecia um enorme prato um pouco encurvado.

    um escudo, explicou ele a Robinson. assim que os fazemos na minha

    terra. Nenhuma flecha consegue atravess-lo, e at as bolas grandes so

    repelidas sem o partir!

    Robinson zangara-se muito com Sexta-Feira por causa da sua crueldade

    nesta questo do escudo. Um pouco mais tarde, porm, teve ocasio de veri-

    ficar at que ponto Sexta-Feira podia ser bondoso e dedicado para com um

    animal que adotasse.

    Infelizmente, desta vez tratava-se de um pequeno abutre que os paishaviam abandonado. Era um animal horrvel, com a cabea desproporcio-

    nada, os olhos exorbitados, as patas pesadas e desajeitadas e o pequeno cor-

    po pelado e torcido como o de um enfermo. Abria muito o enorme bico,

    estendia-o, piando, sempre que algum se aproximava dele. Sexta-Feira

    comeou por lhe dar pedaos de carne fresca, que o animal engolia com avi-

    dez. Mas pouco depois, o abutre comeou a mostrar sinais de doena. Dor-

    mia o dia inteiro e sob a rala penugem, a moela tornara-se saliente como

    uma bola dura. A verdade que no conseguia digerir aquela carne demasia-

    do fresca. Era necessrio encontrar outra coisa. Sexta-Feira ps ento a apo-

    drecer ao sol pedaos de tripas de cabra. Neles apareceram, pouco depois,

    larvas brancas e gordas, que fervilhavam na carne nauseabunda. Sexta-Feira

    apanhou-as com uma concha. Meteu-as em seguida na boca e mastigou-as

    demoradamente. Por fim, deixou escorrer para o bico do pequeno abutre a

    pasta branca e espessa resultante da sua mastigao.

    Vermes vivos demasiado frescos explicou ele. Pssaro doente.

    Necessrio mastigar, mastigar. Mastigar sempre, para os pssaros pequenos.

    Robinson, que o observava, sentiu o estmago contrair-se-lhe de nojo, e

    fugiu para no vomitar. No fundo, porm, admirava os sacrifcios que Sexta-

    Feira era capaz de fazer quando resolvia ajudar um animal.

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    XVII

    Desde que Sexta-Feira aparecera, Robinson no voltara ao fundo da gruta.

    Tinha esperana de que, graas ao seu novo companheiro, a vida na ilha, o

    trabalho e as cerimnias o distrairiam suficiente mente para no voltar a

    sentir necessidade daquela espcie de droga. Ora uma noite acordou a meio

    do sono e no conseguiu voltar a adormecer. L fora no havia um sopro de

    vento e as rvores completamente imveis, pareciam dormir, tal como Sex-

    ta-Feira e Tenn, abraados diante da porta, como era seu hbito. Robinsonsentiu-se invadido por uma sensao de grande felicidade. Com efeito, como

    era noite, no havia necessidade de trabalhar, nem de cerimnias, nem de

    uniformes, nem de governador, nem de general. Era como se fossem frias,

    em resumo. Robinson gostaria que a noite nunca acabasse, que as frias

    durassem sempre. Mas sabia que o dia ia chegar e com ele, todas as suas

    preocupaes e obrigaes. Levantou-se e foi