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MICHEL FOUCAULT: Saberes e Poderes Marcos Cassin Este trabalho tem como objetivo retomar o texto, apresentado no primeiro seminário da disciplina “Por uma genealogia do Poder” de Roberto Machado, e publicado como introdução do livro “Microfísica do Poder” de Michel Foucault. A escolha do texto, apresentado no início do curso, tem como objetivo retomá-lo no final da disciplina, uma vez que o texto de Roberto Machado aponta para a questão do poder como o projeto da obra de Michel Foucault, este aparecendo como uma genealogia, nome dado à segunda fase de suas pesquisas, sendo a primeira à da “arqueologia do saber”. Recuperar este texto, significa reler esta introdução a partir de um conjunto de outras leituras e referências da obra de Foucault, possibilitando-nos uma leitura mais criteriosa. Na primeira fase da obra de Foucault, “arqueologia do saber”, tem como preocupação discutir como são produzidos os produzidos os saberes, para isto, analisa a

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Page 1: Michel Foucault

MICHEL FOUCAULT:Saberes e Poderes

Marcos Cassin

Este trabalho tem como objetivo retomar o texto, apresentado no primeiro

seminário da disciplina “Por uma genealogia do Poder” de Roberto Machado, e

publicado como introdução do livro “Microfísica do Poder” de Michel Foucault.

A escolha do texto, apresentado no início do curso, tem como objetivo

retomá-lo no final da disciplina, uma vez que o texto de Roberto Machado aponta para a

questão do poder como o projeto da obra de Michel Foucault, este aparecendo como

uma genealogia, nome dado à segunda fase de suas pesquisas, sendo a primeira à da

“arqueologia do saber”.

Recuperar este texto, significa reler esta introdução a partir de um conjunto

de outras leituras e referências da obra de Foucault, possibilitando-nos uma leitura mais

criteriosa.

Na primeira fase da obra de Foucault, “arqueologia do saber”, tem como

preocupação discutir como são produzidos os produzidos os saberes, para isto, analisa a

história da psiquiatria, da medicina e das ciências humanas, nos livros, “História da

Loucura”, 1961, “Nascimento da Clínica”, 1963, e “As Palavras e as Coisas”,

respectivamente. Em decorrências das polêmicas surgidas destas análises históricas,

Foucault escreve “Arqueologia do Saber”, em 1969, com objetivo de explicitar e

clarificar suas obras anteriores.

Segundo Roberto Machado esse período da obra de Foucault procurou

estabelecer

“a constituição dos saberes privilegiando as interrelações discursivas e sua articulação com as instituições, respondia a como os saberes apareciam e se transformavam (in: FOUCAULT, 1998: X)”.

Page 2: Michel Foucault

Em sua primeira grande obra “História da Loucura”, Foucault apresenta

uma grande inovação metodológica, a de estudar os saberes sobre a loucura para

estabelecer o momento e as condições de possibilidade do aparecimento da psiquiatria,

estudo feito em diferentes épocas e sem se limitar a nenhuma disciplina. Este projeto

“deixou de considerar a história de uma ciência como o desenvolvimento linear e contínuo a partir de origens que se perdem no tempo e são alimentadas pela interminável busca de precursores. Mas que também se realizava sem privilegiar a distinção epistemológica entre ciência e pré-ciência, tendo no saber o campo próprio de investigação. O objetivo da análise é estabelecer relações entre saberes (Machado in: FOUCAULT, 1998: VII)”.

Outra novidade metodológica que Foucault apresenta, foi de não ter se

limitado aos discursos, mas articulado este com as práticas institucionais de reclusão.

“Neste sentido, a análise procurou centrar-se nos espaços institucionais de controle do louco, descobrindo, desde a Época Clássica, uma heterogeneidade entre os discursos teóricos – sobretudo médicos – sobre a loucura e as relações que se estabelecem com o louco nesses lugares de reclusão. Articulando o saber médico com as práticas de internamento e estas com instâncias sociais como a política, a família, a Igreja, a justiça, generalizando a análise até as causas econômicas e sociais das modificações institucionais, foi possível mostrar como a psiquiatria, em vez de ser quem descobriu a essência da loucura e a libertou, é a radicalização de um processo de dominação do louco que começou muito antes dela e tem condições de possibilidade tanto teóricas quanto práticas (Machado in: FOUCAULT, 1998: VIII).”

O segundo grande livro de Foucault nesta fase, a da arqueologia, foi o

“Nascimento da Clínica”, que aprofunda e retoma a questão da diferença entre a

medicina moderna e a medicina clássica, pouco tematizada em “História da Loucura”.

A diferença apresentada por Foucault, em sua arqueologia,

“procurou, justamente, explicitar os princípios de organização da medicina em épocas diferentes, evidenciando que, se a medicina

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moderna se opõe à medicina clássica, a razão é que esta se funda na história natural enquanto aquela – mais explicitamente, a anátomo-clínica – encontra seus princípios na biologia (Machado in: FOUCAULT, VIII)”.

“As Palavras e as Coisas”, o terceiro livro da primeira fase da obra de

Foucault, teve como objetivo situar os saberes constitutivos das ciências humanas

radicalizando seu projeto iniciado com a “História da Loucura”. Segundo Roberto

Machado:

“As Palavras e as Coisas, de 1966, radicaliza este projeto. Seu objetivo é aprofundar e generalizar interrelações conceituais capazes de situar os saberes constitutivos das ciências humanas, sem pretender articular as formações discursivas com as práticas sociais. Tese central do livro: só pode haver ciência humana – psicologia, sociologia, antropologia – a partir do momento em que o aparecimento, no século XIX, de ciências empíricas – biologia, economia, filologia – e das filosofias modernas, que têm como marco inicial o pensamento de Kant, tematizaram o homem como objeto e como sujeito de conhecimento, abrindo a possibilidade de um estudo do homem como representação (in: FOUCAULT, 1998: IX)”.

Segundo Roberto Machado este conjunto de livros, “História da Loucura”,

“Nascimento da Clínica”, “As Palavras e as Coisas”, e mais o livro “Arqueologia do

Saber”, formam uma unidade na obra de Michel Foucault. Unidade que

“revela claramente a homogeneidade dos instrumentos metodológicos utilizados até então, como o conceito de saber, o estabelecimento das descontinuidades, os critérios para datação de períodos e suas regras de transformação, o projeto de interrelações conceituais, a articulação dos saberes com a estrutura social, a crítica da idéia de progresso em história das ciências, etc. (in: FOUCAULT, 1998: IX)”.

A segunda fase da obra de Foucault, conhecida como a genealogia tem

como ponto de partida de análise a questão do porquê e não mais, como na primeira

fase, como os saberes apareciam e se transformavam.

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“É essa análise do porquê dos saberes, que pretende explicar sua existência e suas transformações situando-o como peça de relações de poder ou incluindo-o em um dispositivo político, que em uma terminologia nietzscheana Foucault chamará genealogia. Parece-me, em suma, que a mutação assinalada por livros como Vigiar e Punir, de 1975, e A Vontade de Saber, de 1976, primeiro volume da História da Sexualidade, foi a introdução nas análises históricas da questão do poder como um instrumento de análise capaz de explicar a produção dos saberes (Machado in: FOUCAULT, 1998: X)”.

Esta é a fase em que Foucault enfatiza a relação da produção de saberes

com a questão do poder, entendendo esse não como unitário e global, mas como formas

díspares, heterogêneas, em constante transformação,

“não existe em Foucault uma teoria do poder. O que significa dizer que suas análises não consideram o poder como uma realidade que possua uma natureza, uma essência que ele procuraria definir por suas caraterísticas universais.... O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente (Machado in: FOUCAULT, 1998: X)”.

Em suas pesquisas Foucault desmistifica a necessária busca de formulações

teóricas universais que subordine a variedade e a descontinuidade a conceitos

universais. Referindo-se a Foucault, Machado afirma:

“... para ele, toda teoria é provisória, acidental, dependente de um estado de desenvolvimento da pesquisa que aceita seus limites, seu inacabado, sua parcialidade, formulando conceitos que clarificam os dados – organizando-os, explicitando suas interrelações, desenvolvendo implicações – mas que, em seguida, são revistos, reformulados, substituídos a partir de novo material trabalhado. Nesse sentido, nem a arqueologia, nem, sobretudo, a genealogia têm por objetivo fundar uma ciência, construir uma teoria ou se constituir como sistema; o programa que elas formulam é o de realizar análises fragmentárias e transformáveis (Machado in: FOUCAULT, 1998: XI)”.

Com a genealogia do poder, Foucault desloca o centro de análise do poder

nas ciências políticas, até então limitada ao Estado como aparelho central e exclusivo de

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poder, para análises de poderes, estes, locais, específicos, circunscritos a uma pequena

área de ação. Ele não fala de poder, mas de exercícios de poder que se diferencia do

Estado. Segundo Roberto Machado, Foucault visava com suas análises

“distinguir as grandes transformações do sistema estatal, as mudanças de regime político ao nível dos mecanismos gerais e dos efeitos de conjunto e a mecânica de poder que se expande por toda a sociedade, assumindo as formas mais regionais e concretas, investindo em instituições, tomando corpo em técnicas de dominação. Poder este que intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos – o seu corpo – e que se situa ao nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder.O que Foucault chamou de microfísica do poder significa tanto um deslocamento do espaço da análise quanto do nível em que esta se efetua. Dois aspectos intimamente ligados, na medida em que a consideração do poder em suas extremidades, a atenção a suas formas locais, a seus últimos lineamentos tem como correlato a investigação dos procedimentos técnicos de poder que realizam um controle detalhado, minucioso do corpo – gestos, atitudes, comportamentos, hábitos, discursos.Realidades distintas, mecanismos heterogêneos, esses dois tipos específicos de poder se articulam e obedecem a um sistema de subordinação que não pode ser traçado sem que se leve em consideração a situação concreta e o tipo singular de intervenção. O importante é que as análises indicaram claramente que os poderes periféricos e moleculares não foram confiscados e absorvidos pelo aparelho de Estado. Não são necessariamente criados pelo Estado, nem, se nasceram fora dele, foram inevitavelmente reduzidos a uma forma ou manifestação do aparelho central. Os poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social e neste complexo os micro-poderes existem integrados ou não ao Estado, distinção que não parece, até então, ter sido muito relevante ou decisiva para suas análises (in: FOUCAULT, 1998: XII)”.

O que Machado salienta na obra de Foucault é que esse não nega o poder

do Estado, mas sim demonstra que há outras formas de poder que podem estar

articuladas ou não com Estado, podem ser decorrentes ou não do Estado e que as

transformações “ao nível capilar, minúsculo, do poder não estão necessariamente

ligadas às mudanças ocorridas no âmbito do Estado (Machado in: FOUCAULT, 1998:

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XII)”. Ainda com relação ao poder, Machado, o define em Foucault como uma relação,

e não como um objeto, “o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. E

que funciona como uma maquinária, como uma máquina social que não está situada

em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social

(Machado in: FOUCAULT, 1998: XIV)”. E ao definir o poder como uma relação que

se dissemina por toda a estrutura social, e que há resistência onde há poder, conclui-se

que não há um local privilegiado da resistência, ela também se dissemina na estrutura

social.

Ainda sobre o poder, Foucault em suas pesquisa indica que não se deve

caracterizar o poder unicamente em seu aspecto negativo, ele deve ser descrito também

em sua positividade. Segundo Machado:

“O poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma positividade. E é justamente esse aspecto que explica o fato de que tem como alvo o corpo humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo.Não se explica inteiramente o poder quando se procura caracterizá-lo por função repressiva. O que lhe interessa basicamente não é expulsar os homens da vida social, impedir o exercício de suas atividades, e sim gerir a vida dos homens, controlá-los em suas ações para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades. Objetivo ao mesmo tempo econômico e político: aumento do efeito de seu trabalho, isto é, tornar os homens força de trbalho dando-lhes uma utilidade econômica máxima; diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra as ordens do poder, neutralização dos efeitos de contra-poder, isto é, tornar os homens dóceis politicamente. Portanto, aumentar a utilidade econômica e diminuir os inconvenientes, os perigos políticos; aumentar a força econômica e diminuir a força política (Machado in: FOUCAULT, 1998: XVI)”.

Portanto, o poder está colocado na sociedade moderna como poder

disciplinar, que estrategicamente tem como objetivo tornar os homens dóceis e úteis.

Para Foucault o poder disciplinar tem três características básicas que se

interrelacionam: a) ser um tipo de organização do espaço, técnica de distribuição dos

indivíduos através da inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório,

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combinatório; b) a disciplina é um controle do tempo. Isto é, ela estabelece uma

sujeição do corpo ao tempo, com o objetivo de produzir o máximo de rapidez e o

máximo de eficácia; c) e a vigilância que é um de seus principais instrumentos de

controle.

Foucault para expressar e ilustrar a vigilância como um dos principais

instrumentos de controle do poder, se utiliza do Panopticon de Bentham, que permite

ver tudo sem ser visto, o olhar invisível, que impregna quem é vigiado de tal “modo que

este adquira de si mesmo a visão de quem olha”.

Este poder disciplinar que age

“sobre corpo dos indivíduos, o adestramento do gesto, a regulação do comportamento, a normalização do prazer, a interpretação do discurso, com o objetivo de separar, comparar, distribuir, avaliar, hierarquizar, tudo isso faz com que apareça pela primeira vez na história esta figura singular, individualizada – o homem – como produção do poder. Mas também, e ao mesmo tempo, como objeto de saber. Das técnicas disciplinares, que são técnicas de individualização, nasce um tipo específico de saber: as ciências humanas (Machado in: FOUCAULT, 1998: XX)”.

As pesquisas de Foucault tem como questão central a constituição das

ciências humanas, primeiro na fase da arqueologia, onde procura explicitar os conceitos,

os objetos teóricos e os métodos para explicar como as ciências humanas se constituem

historicamente. Já em sua segunda fase, a da genealogia, centra suas pesquisas no

porque aparecem as ciências humanas.

Esta segunda fase em suas pesquisas traz uma grande novidade, a de

“considerar o saber – compreendido como materialidade, como prática, como acontecimento – como peça de um dispositivo político que, enquanto dispositivo, se articula com a estrutura econômica. Ou, mais especificamente, a questão tem sido a de como se formaram domínios de saber – que foram chamados de ciências humanas – a partir de práticas políticas disciplinares.Outra importante novidade dessas investigações é não considerar pertinente para as análises a distinção entre ciência e ideologia. Foi justamente a opção de não estabelecer ou procurar critérios de demarcação entre uma e outra que fez Foucault, desde suas primeiras investigações, situar a arqueologia como uma história

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do saber. O objetivo é neutralizar a idéia que faz da ciência um conhecimento em que o sujeito vence as limitações de suas condições particulares de existência instalando-se na neutralidade objetiva do universal e da ideologia um conhecimento em que o sujeito tem sua relação com a verdade perturbadora, obscurecida, velada pelas condições de existência. Todo conhecimento, seja ele científico ou ideológico, só pode existir a partir de condições políticas que são as condições para que se formem tanto o sujeito quanto os domínios de saber. A investigação do saber não deve remeter a um sujeito de conhecimento que seria sua origem, mas a relações de poder que lhe constituem. Não há saber neutro. Todo saber é político (Machado in: FOUCAULT, 1998: XXI)”.

Por fim, a obra de Michel Foucault é uma grande contribuição para a

filosofia e as ciências humanas, autor que marca a relação do saber e poder como

práticas que também são individualizadas e que se materializam nas práticas cotidianas

dos indivíduos. A importância de Foucoult também se dá nas análises que faz da

constituição dos saberes nas ciências humanas ao discutir a subjetivação do sujeito

investigador e da objetivação deste sujeito como objeto da mesma. Objetivação que

toma o sujeito como o mesmo (o igual), ou o outro (o diferente) ou ainda a si mesmo

como objeto de análise, objetivação e subjetivação que é determinada historicamente.

BIBLIOGRAFIA

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder; organização e tradução de Roberto Machado.13ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 1998.