michael heinrich - o dinheiro como relação social no capitalismo

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  • 8/10/2019 Michael Heinrich - O Dinheiro Como Relao Social No Capitalismo

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    Uma coisa com qualidades transcendentais:

    O dinheiro como relao social no capitalismo

    Michael Heinrich*

    Resumo

    Neste pequeno artigo1, o autor introduz didaticamente o conceito de dinheiro que seencontra na obra de Marx. Menciona, comparativamente, como ele apreendido pela escolaneoclssica e pela escola keynesiana. Mostra que o capital um desenvolvimento do dinheiro.Explica, em adio, a conexo entre crise econmica e crise financeira.Palavras chaves: conceito de dinheiro; funes do dinheiro; dinheiro em Marx; alavancagemde crdito; crise financeira.Classificao JEL:

    Uma introduo ao conceito de dinheiro de Marx

    O que dinheiro? Essa questo dificilmente tem qualquer significao nocotidiano dos mercados. O que importa que ele exista em quantidade suficiente. Asteorias econmicas burguesas reduzem o dinheiro s suas funes econmicas. Aonipresena do dinheiro crucial e pressupe certas condies. Ademais, a crtica dosmercados financeiros fica incompleta quando se suprime as relaes sociaisfundamentais que se encontram reificadas no dinheiro.

    O dinheiro faz o mundo girar.Essa afirmao confirmada em todos os nveis davida cotidiana na sociedade capitalista: se a questo em vista for comprar pes para o caf-da-

    manh, investir em grandes negcios, aplicar em fundos de penso, o problema relevante vem aser sempre se h dinheiro suficiente, seno como obter mais dele. O que surpreendente,porm, que dificilmente o dinheiro tem qualquer papel na teoria neoclssica, a qual detmplena dominncia nas universidades e entre os assessores econmicos governamentais.

    Para a escola neoclssica, que prov os fundamentos tericos das polticas neoliberais, odinheiro simplesmente um meio de circulao, um recurso prtico que simplifica as trocas e usado como unidade de medida. A escola neoclssica nega ao dinheiro qualquer relevnciaintrnseca: somente as quantidades reais, as quantidades de bens e servios que soproduzidos e trocados, investidos e consumidos, so decisivos para ela. A esfera monetria vista pela escola neoclssica como um vu que encobre a esfera real dos produtos fsicos. Estevu pode produzir dificuldades de curto prazo como resultado de m administrao (porexemplo, quando o banco central emite dinheiro demais, inflacionando a economia), mas no

    longo prazo, as relaes reaissubjacentes se acertam por si mesmas. Quando se permite queos mercados operem sem restries assim reza a lio da escola neoclssica dominante umtimo social (mximo produto ao mnimo preo) deve surgir.

    Para o keynesianismo, ao qual atualmente se atribui um papel menor na teoriaeconmica acadmica, o dinheiro muito mais importante do que para a escola neoclssica. Eleno reduzido sua funo de meio de circulao; ao invs, destaca-se a sua capacidade defuncionar como um meio de preservao do valor para, assim,lig-lo as condies fundamentaisde insegurana na economia de mercado: o dinheiro funciona como um porto seguroprincipalmente contra um futuro incerto. Se a insegurana crescente, de acordo com oargumento keynesiano, mais dinheiro mantido lquido, isto , famlias e empresas gastammenos e menos esto inclinadas a fazerem investimentos de longo prazo; preferem no perder

    * O autor matemtico e cientista poltico. Dirige e edita a revista Prokla JournalofCritical SocialScience, em Berlim.

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    acesso ao dinheiro no curto prazo. Isto leva ao crescimento da taxa de juros e reduo doinvestimento, o que produz queda da renda e crescimento do desemprego. O keynesianismo noreconhece a existncia de um processo automtico capaz de remediar a crise, da que defenda anecessidade da interveno estatal.

    A apreenso do dinheiro por parte das correntes keynesianas mais diferenciada do queaquela da escola neoclssica; comum a ambas, porm, a ampla tendncia para reduzir odinheiro a uma simples funo essencial. Para ambas essas teorias, o dinheiro acima de tudouma ajuda ao funcionamento econmicopouco importante segundo a escola neoclssica, masbem importante conforme o keynesianismo. A questo de saber o que o dinheiro, e como eleest ligado a um modo especfico de socializao inerente sociedade produtora de mercadoria,nunca mesmo posta.

    Dinheiromeramente um instrumento privilegiado?

    Essa questo, porm, foi central no exame que Marx fez do dinheiro. Vrias correntesnos movimentos trabalhistas ingleses e franceses do sculo XIX lutaram para reformar ocapitalismo mudando o sistema monetrio: assim, para eles, a produo privada de mercadoria

    seria mantida, mas o dinheiro seria substitudo por cupons que denotavam horas trabalhadas oupor certificados que davam direitos a bens (a semelhana das entradas de teatro). Em contrastecom esses esforos reformistas, Marx tentou mostrar que o modo de produo burgus necessitade um meio de troca particular, o dinheiro, o qual por sua prpria natureza no uma coisaincua como uma entrada de teatro.

    Os produtores privados e individuais de mercadoria esto ligados entre si por meio dadiviso societria de trabalho, mas os seus produtos adquirem o carter social somenteretrospectivamente, a saber, quando eles realizam os seus valores no mercado. Numa sociedadebaseada na troca, o carter social dos bens produzidos no consiste somente em sua capacidadede satisfazer as necessidades das pessoas; os produtos devem manter uns com os outros umarelao quantitativa de troca, devem possuir valorem adio ao seu valor de uso.

    Na sociedade burguesa, a riqueza se torna uma quantidade abstrata: no consiste de uma

    multiplicidade de valores de uso e de amenidades, mas, ao invs, consiste de valor. Mas ovalor no pode ser apreendido por meio daconsiderao de uma nica mercadoria, pois eleexiste somente na relao entre as mercadorias. Ademais, ovalortemapenas uma expressolimitada e local por meio da relao particular de uma mercadoria com outra. O valor damercadoria apenas pode obter uma expresso universal e socialmente vlida quando apareceincorporado numa forma independente de valoristo , quando ele se representa numa coisaque, na relao com todas as outras mercadorias, nofigura simplesmente como maisumamercadoria, mas como uma expresso de valorpor excelncia.2Somente nessa situao podeuma simples mercadoria afirmar o seu carter de valor independentemente do seu carterconcreto como valor de uso. A riqueza abstrata necessita de uma forma material particular deexistnciae o dinheiro exatamente essa forma.

    Numa sociedade baseada na troca de mercadorias, o dinheiro no meramente uminstrumento mais ou menos importante; necessariamente um meio de socializao econmica.Os produtores individuais de mercadoria no estabelecem as suas relaes sociais uns com osoutros enquanto pessoas. Precisamente, porque os indivduos isolados desaparecem atrs deseus produtos, a sua coeso social num sentido bem literal se torna reificada (em alemo:verdinglicht), ou seja, aprisionada numa coisa, ou seja, no dinheiro. O dinheiro no simplesmentecomo a escola neoclssica mantmuma simplificao do processo de troca, aqual em princpio pode ser dispensada. Ao invs, o dinheiro um meio por meio do qual osprodutores individuais e isolados de mercadorias se relacionam e, assim, se conservam uns emrelao aos outros.

    Enquanto dinheiro, a coisa adquire propriedade social e poder social. Marx apresentaessa qualidade transcendental da coisa como fetichismo.

    3E esse fetichismo no meramente

    uma iluso, uma espcie de falsa conscincia. Em verdade, na sociedade burguesa, o dinheiropossui o maior poder. Porm, ele s possui esse poder devido s relaes sociais especficas quelhe esto subjacentes: os possuidores atomizados de mercadoria estabelecem as suas relaes

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    sociais uns com os outros por meio dessa coisa, do dinheiro. O dinheiro tem poder porquetodos os atores sociais se relacionam com o dinheiro como dinheiro, isto , como umarepresentao independente de valor. Assim que os indivduos comeam a agir comopossuidores de mercadorias, que trocam produtos, eles no tm outra possibilidade senomanter contato com o dinheiro. Posto isso, note-se que o fetichismo contm de fato um aspectoilusrio, pois o dinheiro parece ter um poder social que lhe inerente. Mas, de fato, esse poder resultado de um processo social automtico que escapa cognio usual das pessoas no dia-a-dia. O processo se consuma em seu prprio resultado.

    A produo de mercadoria impossvel sem a correlao entre as mercadorias e odinheiro. Por essa razo, h um importante limitepara todo projeto utpico; se algum deseja aabolio do dinheiro, deve almejar tambm a abolio do conjunto das relaes societrias queo requerem. No se pode ter uma sem a outra.

    Do dinheiro ao capital

    Se a totalidade do processo social de reproduo mediada pela mercadoria e pelodinheiro, isto , se a produo de mercadoria no est restrita a existir em um nicho no interior

    de outro modo de produo (como foi o caso, inicialmente, no perodo feudal da EuropaOcidental), ento o dinheiro adquire nova qualidade como capital. A incorporao autnoma devalor, por meio da qual a socializao econmica da produo de mercadoria realizada, elamesma se torna o fim principal da atividade econmica. Precisamente porque o dinheiro aencarnao da riqueza abstrata, a qual no est sujeita a limites imanentes, ningum nunca tersuficientedele a sua disposio.

    O comrcio e a produo devem no apenas gerar dinheiro, mas sim, eles devem gerarcontinuamente novas somas de dinheiro. A generalizao da produo de mercadorias somente possvel quando a prpria produo transformada em produo capitalista, quando amultiplicao e o aumento da riqueza abstrata se torna o fim direto da produo e todas asoutras relaes sociais ficam subsumidas a esse fim. O poder destrutivo do dinheiro, o qualfoi objeto de muita crtica nos modos de produo pr-capitalistas (por muitos autores da Grcia

    Antiga, por exemplo) est enraizada precisamente nesse processo de capitalizao da sociedadecomo resultado da generalizao da relao de dinheiro. As concepes de socialismo demercado que almejam abolir a produo capitalista, mantendo, entretanto, o mercado, aproduo mercantil e o dinheiro (por causa de sua eficincia na produo e na inovao)

    enfrentam esse problema fundamental: como impedir a recapitalizaco da sociedade sem inibir aeficincia do mercado.

    A produo capitalista e os mercados financeiros

    Como a coeso social numa sociedade de troca mercantil estabelecida primariamentepelo dinheiro, este tem o poder de corromper essa coeso: a possibilidade da crise como

    Marx j notara no terceiro captulo de O Capitalsurge com o dinheiro. No apenas o dinheirofaz a mediao das trocas no circuito mercadoria-dinheiro-mercadoria (algum vende suaprpria mercadoria a fim de adquirir subsequentemente outra mercadoria), mas ele permite ainterrupo dessa mediao: uma venda sem o acompanhamento de uma compra (isto , odinheiro obtido pela venda no utilizado em nova compra) produz uma ruptura na cadeia dereproduo. Assim que isso acontece, as mercadorias produzidas no podem mais ser vendidas;a produo torna-se limitada, entrando em estagnao. A consequncia disso , de um lado,capital ocioso e, de outro, desemprego da fora de trabalho. Uma srie de circunstnciasadicionais necessria para que a mera possibilidade de crise se desenvolva e se transformenuma crise real.

    No marxismo tradicional, essas circunstncias so observadas primariamente nasprprias condies capitalistas de produo, por meio da lei tendencial da queda da taxa de

    lucro. Em contraste, o dinheiro e o crdito tem um papel secundrio como mero fenmeno decirculao. Como resultado dessa abordagem unilateral voltada para as condies da produo,

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    perde-se de vista o fato de que impossvel a produo de mercadoria sem dinheiro; a produocapitalista no pode existir sem o crdito (assim como sem as formas evoludas tais como odinheiro de crdito, a aes, os ttulos etc.). O carter flexvel da produo capitalista se deveprecisamente ao fato de que a acumulao no encontra limites nos lucros realizados nosperodos prvios de produo, mas pode ser expandido muito alm por meio do crdito; ora, istoimplica a possibilidade da superproduo.

    Porm, o crdito somenteexpandido (ou novas aes, dependendo da situao, soemitidas) naqueles setores em que altos nveis de lucro futuros so esperados. Nesse sentido, umforte elemento especulativo inerente ao sistema financeiro como um todo. Esse elementoespeculativo reforado adicionalmente por meio de instrumentos financeiros tais como asopes (direitos de adquirir participaes especficas a um preo pr-determinado). Contudo, oelemento especulativo inerente a todos os aspectos da produo capitalista: um empreendedornunca pode saber com plena certeza se os seus produtos sero vendidos e a que preos, ou se osinvestimentos que faz traro o nvel esperado de lucros no futuro. Assim, o crdito e aespeculao no so de modo algum condies externas que vem atrapalhar uma produocapitalista que no vem a ser inerentementeespeculativa. Sem um setor financeiro especulativo,a produo capitalista impossvel.

    No se trata somente de observar que essa correlao deveria ser mais fortementelevada em considerao no campo da teoria da crise do que o fora no marxismo tradicional.Trata-se, ademais, de tema importante para a crtica da globalizao contempornea. comumque a critica se dirija contra um capitalismo sem freios cujo poder destrutivo parece estarassociado a um sistema financeiro especulativo. Ora, o fato de o sistema financeiro estabelecerpadres de lucratividade e de eficcia de custos para as empresas individuais, dizer sobre comoelas devem obter crdito e emitir aes, no de modo algum um fenmeno recente.Tradicionalmente, o sistema financeiro tem exercido essa funo de controle. Ofato novo dasltimas dcadas a emergncia de um sistema financeiro largamente internacionalizado, o qualpassou crescentemente a ditar os padres internacionais de valorizao do capital.

    Se o aumento da especulao visto como a causa principal das doenas docapitalismo, passa-se a recomendar mais regulao; e, assim, a relao necessria entre o

    sistema financeiro e a produo capitalista velada. Desse modoao menos tendencialmentepassa-se a contrastar um sistema capitalista bom com um mau, sendo este ltimo umcapitalismo financeiro especulativo. No est pr-determinado, de modo algum, a quantidade ea qualidade da regulao necessria para controlar efetivamente os fluxos de capital. Nessesentido, as demandas dos crticos da globalizao por mais regulao no so necessariamentepouco realistas ou impossveis de serem introduzidas. Porm, pode-se duvidarde que essaregulao venha a suprimir os piores aspectos do capitalismo. Mesmo num capitalismoaltamente regulado, a satisfao das necessidades e dos desejos, a eliminao das desigualdadessociais, ou mesmo uma boa vida, no so objetivos prprios da atividade econmica. Esta visaisto sim a valorizao, a acumulao de riqueza abstrata um fim para o qual os sereshumanos e a natureza so apenas meios meios estes, alis, que esto sendo constantementeadministrados para aquela finalidade seja atingida.

    Abstract

    In thisshort article, the author introducesdidactically the concept ofmoney thatis foundin Marxs papers. Comparatively, he mentions how money is apprehended by theneoclassicalschooland theKeynesian school of Economics. He introduces capitalshowing that it is as adevelopment ofmoney.He explains, inaddition, the main connection betweenthe economiccrisisandfinancial crisis, that is, credit leverage.Keywords: concept ofmoney,functions of money, money inMarx; credit leverage; financialcrisis.

    Notas1Traduo de artigo publicado na revista on-line MRZine, em 03/11/2006.

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    2Isto mostrado na seo Forma do valor ou o valor de troca no primeiro captulo de O Capital.3 Em O Capital, Marx mencionou que o mero produto uma coisa sensvel, mas que ele se torna,enquanto mercadoria, uma coisa sensvel suprassensvel.