meu nome não é tuchinha

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Meu nome não é ‘Tuchinha’ Sexta-feira, 8 de Fevereiro, 2008 O Globo publicou em 07/02/2008 o seguinte artigo, intitulado Meu nome não é ‘Tuchinha’, escrito pelo desembargador Siro Darlan: “O filme de Mariza Leão “Meu nome não é Johnny”, que conta a história de um dos maiores vendedores de drogas do Rio de Janeiro, merece uma séria reflexão sobre algumas graves denúncias feitas. Algumas já conhecidas por toda sociedade e pelas autoridades, mas pouco combatidas, como a corrupção policial, o tratamento diferenciado a autores de crimes de acordo com sua origem social, raça ou poder econômico, que a Zona Sul “brilha” como já havia denunciado o experiente delegado de polícia Hélio Luz. E outras que estão a merecer investigação e manifestação pública das autoridades mencionadas, como a acusação de ponto de venda de drogas nas dependências do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Por um lado a história é fascinante e desmistifica a lenda segunda a qual não há volta para aqueles que atravessam a fronteira do convencional e usam ou vendem drogas. O personagem João Estrella se propõe a debater com universitários e especialistas sua experiência pessoal. Isso é muito bom e enriquecerá o mundo tão discriminado dos usuários de drogas. Afirma em entrevista que considera o tráfico apenas o comércio de uma substância convencionalmente tida como ilícita, mas que causa tanto mal

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Artigo Do Desembargador Siro Darlan.

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Page 1: Meu Nome Não é Tuchinha

Meu nome não é ‘Tuchinha’

Sexta-feira, 8 de Fevereiro, 2008

O Globo publicou em 07/02/2008 o seguinte artigo, intitulado Meu nome

não é ‘Tuchinha’, escrito pelo desembargador Siro Darlan:

“O filme de Mariza Leão “Meu nome não é Johnny”, que conta a história

de um dos maiores vendedores de drogas do Rio de Janeiro, merece uma

séria reflexão sobre algumas graves denúncias feitas. Algumas já

conhecidas por toda sociedade e pelas autoridades, mas pouco

combatidas, como a corrupção policial, o tratamento diferenciado a

autores de crimes de acordo com sua origem social, raça ou poder

econômico, que a Zona Sul “brilha” como já havia denunciado o

experiente delegado de polícia Hélio Luz. E outras que estão a merecer

investigação e manifestação pública das autoridades mencionadas, como a

acusação de ponto de venda de drogas nas dependências do Tribunal de

Justiça do Rio de Janeiro.

Por um lado a história é fascinante e desmistifica a lenda segunda a qual

não há volta para aqueles que atravessam a fronteira do convencional e

usam ou vendem drogas. O personagem João Estrella se propõe a debater

com universitários e especialistas sua experiência pessoal. Isso é muito

bom e enriquecerá o mundo tão discriminado dos usuários de drogas.

Afirma em entrevista que considera o tráfico apenas o comércio de uma

substância convencionalmente tida como ilícita, mas que causa tanto mal

quanto tantas outras permitidas. Defende a legalização desse comércio,

mas acha que no Brasil isso ainda irá demorar muito a acontecer. São

manifestações que devem ser colhidas com o respeito que merecem aqueles

que passaram por essa tenebrosa experiência e precisam ser debatidas

Page 2: Meu Nome Não é Tuchinha

pela sociedade sem o tradicional preconceito que temas como esses

costumam ostentar.

Merece destaque o importante papel da juíza na apreciação da causa. Em

situações corriqueiras João Guilherme estaria ainda amargando uma

prisão, sabe-se lá com que objetivos, pelo menos até 2010. Teve a sorte de

ser julgado por uma magistrada sensível, que viu naquele réu não apenas o

agente de um crime de tráfico e formação de quadrilha, mas também uma

vítima do sistema hipócrita que leva tantas pessoas a trilhar os mesmos

caminhos de João Estrella.

A juíza não só apostou na recuperação de João como foi visitá-lo na

prisão. Raridade que deveria inspirar todos os magistrados que condenam

pessoas a cumprirem pena por haverem descumprido normas legais em

estabelecimentos que fazem letra morta da Lei de Execuções Penais em

vigor desde 1984. A visita aos estabelecimentos de cumprimento de pena

deveria ser obrigatória a todos os magistrados.

Outra denúncia grave, mas que é de todos conhecida, é a péssima

condição desumana do sistema penitenciário, onde se pretende a

impossível recuperação de um ser humano tratado como bestas. Parabéns

para a produção, que retratou o ambiente exatamente como a realidade

das prisões e dos manicômios, chamada pela lei de Casa de Custódia e

Tratamento (?).

João Estrella não é um traficante, e sim um comerciante de drogas.

Traficantes só são assim chamados os de origem humilde que moram nas

favelas e comunidades. Contou com um bom advogado que garantiu uma

rápida passagem pelo coletivo do Manicômio, logo ascendendo para um

trabalho burocrático que ajudou o tempo a passar mais rápido e permitiu

Page 3: Meu Nome Não é Tuchinha

alguns privilégios comprados graças a seu poder econômico, como a visita

íntima, comida e cigarros.

A mesma sociedade que indignou-se com o terror do Holocausto a ponto

de recorrer ao Judiciário para impedir que essa cena histórica e

abominável arrepiasse os foliões da Marquês da Sapucaí é conivente com

as barbaridades cometidas contra seres humanos nas celas das delegacias,

penitenciárias e manicômios. E aqui Thêmis não é apenas cega, é surda e

muda. João Estrella, segundo sinopse do filme, era de uma família de

classe média do Rio de Janeiro, cresceu no Jardim Botânico e freqüentou

os melhores colégios, tendo amigos entre as famílias mais influentes da

cidade e tornou-se vendedor de drogas mesmo sem jamais pisar numa

favela. Em dois anos quitou sua dívida com a Justiça e hoje é um produtor

musical que inspira livros e filmes. Conquistou sua liberdade e o direito de

ser respeitado na sociedade em que vive.

Após assistir o filme pela segunda vez, não resisti à tentação de uma

comparação com outro comerciante de drogas, ou será traficante?

Francisco Paulo Testas Monteiro, o “Tuchinha”, na mesma época em que

João vendia drogas no Brasil e no exterior, exercia a mesma atividade no

Morro da Mangueira. Foi condenado a 43 anos de prisão e após cumprir

mais de um terço da pena com bom comportamento carcerário foi

colocado pelo juiz da Vara de Execuções Penais em liberdade condicional,

como manda a lei.

A saída da penitenciária foi amplamente acompanhada por alguns veículos

de comunicação. Afinal, precisava ser lembrada sua condição permanente

de traficante, mesmo tendo cumprido grande parte da pena. A decisão do

juiz da VEP foi criticada de forma desrespeitosa pelo então chefe de

Polícia e por setores da comunicação e da sociedade.

Page 4: Meu Nome Não é Tuchinha

“Tuchinha” voltou para sua comunidade na Mangueira e tentou mudar de

vida. Dedicou-se à música e à poesia, tendo vencido dois concorridos

festivais de samba na própria Mangueira e na Lins Imperial. Assumiu seu

nome artístico de Francisco do Pagode como uma forma de afastar-se de

sua antiga personalidade ligada ao crime, assim como João abominou seu

nome de comerciante de drogas e deu título ao filme “Meu nome não é

Johnny”. Mas ninguém o deixou em paz um só minuto. Foi vigiado,

escutado, criticado e sua resistência sendo minada porque a ele e a tantos

outros não é dado o direito de mudar de vida. Uma vez traficante marca-se

sua vida, seu corpo, como uma tatuagem da qual eles não se podem ver

livres, ainda que queiram.

O filme é forte e rico para uma reflexão porque João Estrella pode não ser

mais o “Johnny” que comercializava drogas e Francisco do Pagode tem

que ser eternamente o traficante “Tuchinha”?“

Fonte: http://www.meunomenaoejohnnyfilme.com.br/blogjoao/ 17/04/2009.