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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X METADE CARA, METADE MÁSCARA: UMA AFIRMAÇÃO DAS IDENTIDADES ETNO-POLÍTICAS DA MULHER INDÍGENA Jéssica Emanuelli Pereira da Cunha 1 Resumo: Este artigo tem por intuito discutir a representação da identidade indígena a partir de uma perspectiva étnico- política, tomando como base de análise a obra Metade Cara, Metade Máscara da escritora Eliane Potiguara. Para este fim, considero nessa empreitada os conflitos existente entre a representação do indígena, mais especificamente da mulher indígena, na literatura hegemônica e colonial, colocando em perspectiva as representações narrativas criadas para os indígenas e aquelas criadas pelos próprio indígenas. Através de uma análise da referida obra, procuro perceber as construções narrativas do texto que vão de encontro ao cânone literário e que questionam a construção da identidade indígena estereotipada, colocando em evidência a construção de um discurso desde um lugar da mulher indígena. Sob uma perspectiva dos estudos descoloniais, busco compreender através da narrativa de Eliane Potiguara a construção da identidade da mulher indígena em relação ao estado-nação, aos movimentos globais, e como a construção de narrativas pode vir a ser utilizada como uma ferramenta de afirmação identitária frente à esses processos. Palavras-chave: Literatura Indígena, Autoria Feminina, Descolonialidade, Processos Identitários. Ao estudarmos a literatura de autoria indígena no Brasil, percebemos que podemos dividi-la analiticamente em dois momentos singulares: o período clássico, que se refere à tradição oral (coletiva) que perpassa os períodos históricos com as narrativas míticas, como as narrativas dos povos Pemons, Macuxis, So’tos, que influenciaram as produções literárias canônicas no Brasil (Sá, 2012) e o período contemporâneo, como as narrativas de Eliane Potiguara, Daniel Munduruku, Yaguarê Yamã, Ren~e Kithãulu e Olívio Jekupé, baseado na escrita individual e coletiva que se manifesta na poesia e na “contação de histórias” com base também nas narrativas míticas e nas experiências individuais e coletivas no cotidiano desses povos, entrelaçando também com a narrativa ficcional (Graúna, 2013). No entanto, essa literatura indígena está permeada de complexidades no que diz respeito à produção e circulação das obras no contexto nacional. Almeida afirma que “a supremacia da produção intelectual indígena brasileira está com a região Norte (Amazonas, Tocantins, Pará, Roraima, Rondônia, Amapá, Acre)” (Almeida, 1999, p.18). Embora no período da pesquisa de Almeida os povos indígenas de outras regiões já tivesse publicado livros, a afirmação da autora aponta o apagamento dos índios das demais regiões do país, sobretudo no Nordeste. Tal fato aponta que a literatura indígena não é homogênea pelo fato de ser produzida por povos indígenas. Essa grande classificação de “literatura indígena” engloba uma série de complexidades e diferenças, 1 Mestranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Reside em Fortaleza CE, Brasil.

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Page 1: METADE CARA, METADE MÁSCARA: UMA AFIRMAÇÃO DAS … · Escrito por Eliane Potiguara, Metade Cara, Metade Máscara foi publicado em 2004, contendo contos, crônicas poesias e relatos

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

METADE CARA, METADE MÁSCARA: UMA AFIRMAÇÃO DAS IDENTIDADES

ETNO-POLÍTICAS DA MULHER INDÍGENA

Jéssica Emanuelli Pereira da Cunha1

Resumo: Este artigo tem por intuito discutir a representação da identidade indígena a partir de uma perspectiva étnico-

política, tomando como base de análise a obra Metade Cara, Metade Máscara da escritora Eliane Potiguara. Para este

fim, considero nessa empreitada os conflitos existente entre a representação do indígena, mais especificamente da

mulher indígena, na literatura hegemônica e colonial, colocando em perspectiva as representações narrativas criadas

para os indígenas e aquelas criadas pelos próprio indígenas. Através de uma análise da referida obra, procuro perceber

as construções narrativas do texto que vão de encontro ao cânone literário e que questionam a construção da identidade

indígena estereotipada, colocando em evidência a construção de um discurso desde um lugar da mulher indígena. Sob

uma perspectiva dos estudos descoloniais, busco compreender através da narrativa de Eliane Potiguara a construção da

identidade da mulher indígena em relação ao estado-nação, aos movimentos globais, e como a construção de narrativas

pode vir a ser utilizada como uma ferramenta de afirmação identitária frente à esses processos.

Palavras-chave: Literatura Indígena, Autoria Feminina, Descolonialidade, Processos Identitários.

Ao estudarmos a literatura de autoria indígena no Brasil, percebemos que podemos dividi-la

analiticamente em dois momentos singulares: o período clássico, que se refere à tradição oral

(coletiva) que perpassa os períodos históricos com as narrativas míticas, como as narrativas dos

povos Pemons, Macuxis, So’tos, que influenciaram as produções literárias canônicas no Brasil (Sá,

2012) e o período contemporâneo, como as narrativas de Eliane Potiguara, Daniel Munduruku,

Yaguarê Yamã, Ren~e Kithãulu e Olívio Jekupé, baseado na escrita individual e coletiva que se

manifesta na poesia e na “contação de histórias” com base também nas narrativas míticas e nas

experiências individuais e coletivas no cotidiano desses povos, entrelaçando também com a

narrativa ficcional (Graúna, 2013).

No entanto, essa literatura indígena está permeada de complexidades no que diz respeito à

produção e circulação das obras no contexto nacional. Almeida afirma que “a supremacia da

produção intelectual indígena brasileira está com a região Norte (Amazonas, Tocantins, Pará,

Roraima, Rondônia, Amapá, Acre)” (Almeida, 1999, p.18). Embora no período da pesquisa de

Almeida os povos indígenas de outras regiões já tivesse publicado livros, a afirmação da autora

aponta o apagamento dos índios das demais regiões do país, sobretudo no Nordeste. Tal fato aponta

que a literatura indígena não é homogênea pelo fato de ser produzida por povos indígenas. Essa

grande classificação de “literatura indígena” engloba uma série de complexidades e diferenças,

1 Mestranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Reside

em Fortaleza – CE, Brasil.

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visto que os povos indígenas não são uma entidade única, mas são diversos e complexos em suas

particularidades.

Assim, o fato de a literatura dos indígenas da região Norte possuir uma maior relevância no

cenário nacional do que as obras produzidas pelos indígenas do Nordeste revela a concepção

estanque do que é ser índio, presa a imagem feita do indígena como habitante originário, portador

das características observadas ainda no contato colonial, impossibilitado de reconfigurar seus

códigos culturais e assimilar aspectos relativos à outras culturas.

O apagamento dos povo indígenas do Nordeste como grupos étnicos presente na

contemporaneidade se deve, como afirma Oliveira (2004), a uma concepção cristalizada sobre os

elementos que constituem uma identidade indígena, ou seja, no imaginário coletivo o referencial

que distingue um sujeito como indígena ou não está baseado em um modelo étnico estereotipado

que remete aos grupos étnicos habitantes da floresta amazônica. Os índios do nordeste, por terem

passado por um processo de “mistura”, ou seja, terem incorporado de forma mais evidente a cultura

do colonizador a partir de um contato mais intenso, inserindo-se de forma mais acentuada na

economia e nas sociedades regionais, são analisados a partir de uma “etnologia das perdas e das

ausências” (Oliveira, 2004, p.32), sendo relatados pelo que foram no passado e pelo que “perderam”

no processo de “aculturação”.

No entanto, a população indígena no Nordeste cresce cada vez mais a partir de um processo

de emergência étnica e de reconstrução cultural, em que esses povos vêm se organizando a partir de

fatos de natureza política, como a demanda por terra e reconhecimento de suas identidades. No

âmbito do diálogo com o Estado, os grupos étnicos entram em um processo de territorialização

(Oliveira, 2004), no qual se constituem em uma coletividade organizada capaz de forjar

mecanismos de representação e tomada de decisões, reelaborando códigos culturais e formulando

uma identidade étnica própria e diferenciadora.

Dentro desse contexto de invisibilização e apagamento situa-se o povo Potiguara. De acordo

com Graça Graúna:

O nome Potiguara, de origem Tupi, significa ‘comedores ou catadores de camarão’.

No século XVI, esse povo habitava o litoral do Nordeste brasileiro, mas em contato

com o mundo dos ‘brancos’ veio a diáspora e os Potiguara se dispersaram entre o

Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte e outros estados brasileiros. Hoje, grande

parte dos remanescentes sobrevive nas 22 aldeias nos municípios Baía da Traição,

Marcação e Rio Tinto, na Paraíba. (GRAÚNA, 2013, p. 95)

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O povo potiguara por muito tempo foi tido como extinto, como totalmente assimilado ou

dizimado pela colonização. É possível perceber tal fato pela pouca produção sobre a etnia, e pela

referência a esse povo sempre em relação ao passado. Mesmo sabendo que essa etnia não foi

extinta, esse estereótipo pode ser encontrado ainda hoje em sítios e enciclopédias virtuais como a

Wikipédia, que apesar de não confiável, do ponto de vista acadêmico, reproduz a imagem dos

Potiguara como extintos: “Foi uma das etnias tupis notáveis por ser capaz de resistir por tanto

tempo utilizando um complexo sistema de alianças com ingleses e principalmente franceses

comerciantes de pau-brasil2.”

Apesar de ter sido perseguida e oprimida por questões religiosas e fundiárias, a etnia

potiguara resiste.

Tal mobilização está interligada com o processo de retomada da Terra Indígena

Potiguara (TI), que segundo a FUNAI ocupa o espaço de 33.757 hectares. A ação

de retomada foi inaugurada em 1983 quando se demarcou o total de 21.238

hectares como TI presente nos municípios de Rio Tinto, Marcação e Baia da

Traição. No ano de 1993, homologou-se a TI Jacaré de São Domingos, com 5.032

hectares. A TI Potiguara de Monte-mor ainda apresenta uma área de 7.487 hectares

que está em questão judicial (BARCELLOS, 2010,p.5).

É nesse contexto que se insere a escrita de Eliane Potiguara. Com o desaparecimento de seu

avô, por questões de terra, Eliane e a família se deslocaram para o Rio de Janeiro, onde ela vive até

hoje. Embora a escritora não tenha nascido na aldeia, segundo aponta em entrevista dada para a

Tese de doutorado de Daniel Munduruku, disponibilizada em seu blog, nunca deixou de ser

Potiguara: “[...]gosto de ser identificada sempre como indígena que é a força maior que eu tenho na

minha família, que é minha identidade enquanto povo indígena, povo Potiguara de origem indígena

potiguara” (Potiguara, 2009)

Metade Cara, Metade Máscara – análise de uma obra

Eliane Potiguara (Eliane Lima dos Santos) é escritora, professora formada em Educação e

Letras, conselheira da Fundação Palmares, membro da organização internacional ASHOKA. Criou

a primeira organização de mulheres indígenas do país, o GRUMIN, atual Rede de Comunicação

2 POTIGUARAS. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2015. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Potiguaras&oldid=44082469>. Acesso em: 29 nov. 2015.

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Indígena sobre Gênero e Direitos, voltada para a educação e integração da mulher indígena no

processo social, político e econômico.

A condição de indígena nascida na cidade trouxe a Eliane uma série de dificuldades. Gehlen,

em artigo escrito sobre a autora e sua obra, afirma que Potiguara enfrentou problemas para provar

documentalmente a sua origem indígena, fato este que impulsionou outras indígenas e não-índios a

auxiliar na busca por registros (Gehlen, 2011). Tal evento na vida da escritora evidencia a

importância da escrita, pois na atualidade se atribui o valor de documento ao registro escrito,

sobrepondo-o à oralidade. Nesse caso, conforme afirma a autora, os relatos dos familiares de Eliane

não serviram como prova para os órgãos governamentais, numa tentativa de deslegitimar a escritora

como militante dos direitos indígenas.

Escrito por Eliane Potiguara, Metade Cara, Metade Máscara foi publicado em 2004,

contendo contos, crônicas poesias e relatos autobiográficos, alguns deles escritos anos antes da

publicação da obra. Em Metade Cara, Metade Máscara, a questão da legitimidade da autoafirmação

e da dependência de pareceres e análises feitas por não-índios aparece no seguinte poema da autora:

Povos indígenas, povos ressurgidos, emergentes, índios-descendentes, índios

desaldeados, ‘desplazados’ e migrantes grupais ou migrantes individuais não

podem ficar à mercê de análises antropológicas burguesas, insensíveis e

intolerantes de governos racistas, preconceituosos e autoritários, seja esse ou

aquele. As almas dessas pessoas devem ser respeitadas porque têm a história de

seus antepassados, têm a história das mulheres e homens decididos (POTIGUARA,

2004,p. 92-3).

Apesar da invisibilidade e da falta de reconhecimento conferido a literatura indígena no

Brasil, a escrita de Eliane Potiguara tem se tornado um símbolo, como afirma Graça Graúna (2013),

no contexto dos estudos literários contemporâneos. Em sua obra destaca-se a temática da luta e

autoafirmação étnica dos povos indígenas, mas também se apresenta como uma rica literatura para

o leitor não-indígena, que se depara com um texto que rompe as fronteiras dos gêneros textuais. Na

sua obra misturam-se poesia, contos, crônicas, relatos de trajetória pessoal e biográficos, bem como

experiências pontuais de eventos que participou relacionados à causa indígena. A condição de

mulher indígena que usa a escrita como instrumento de luta em favor dos direitos de seu povo,

coloca a autora em posição de singularidade no contexto da literatura brasileira.

O livro Metade cara, metade máscara (2004), serve como um espaço para ecoar as vozes

que denunciam injustiças e acionam mecanismo de autoidentificação do que é ser indígena na

contemporaneidade. Os diferentes tipos de textos que constituem o livro são permeados pela

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presença das personagens Cunhataí e Juripiranga, casal que é separado no processo de expulsão das

terras e por todos os desdobramentos do colonialismo. Percebemos que a figura do narrador

tradicional cede lugar a todas as vozes que se entrecruzam na obra. O que aparece audível é a voz

de um povo trazida à tona por uma índia desaldeada e, portanto, consciente da necessidade de uma

afirmação histórica da existência de seu povo como uma ferramenta de luta contra a

homogeneização identitária. Percebemos os traços supracitados no poema “Paraná”:

Foi no berço de Ângelo Kretã/ Que aflorou como semente na terra/ A união dos

negros, mestiços e brancos.../ Índios! Como num grito de guerra/ Que se erguem

por um novo amanhã/ Sim/ Foi no Brasil de Marçal Tupã/ E de muitos Ângelos

Kretãs/ Que se uniram Manoéis da Conceição/ Elisabetes Teixeiras, Krenakes e

Tukanos.../ É Paraná de boa gente/ Que em seu seio acolheu/ Que em seu rio de

decência/ Gente forte resolveu:/ - Nunca mais a violência!/ Paranauê! Paranauê!/

Paraná!/ Terra dos pinheirais/ Os “sem terra” – nunca mais!/ Das cataratas – livres

– do Iguaçú/ Igarapés levam água a quem tem sede/ A garapa a quem tem fome/

RAONI – Guaíras a quem tem luta/ Êta! Paraná.../ Rio grande em guarani/ Num

lugar a reunir/ Sindicalistas, políticos e a UNí./ Foram representantes do povo,/ Da

igreja, é uma vitória!.../ Êta, Paraná.../ Que entrou pra história!/ Mas para que isso

acontecesse/ Santinas, Linas e Marias/ Tiveram assassinados seus maridos/ Como o

operário Santo Dias./ Foram muitas Aurélias Durantís/ Irmãs guerreiras/

Margaridas e Josimos/ Que também vimos partir/ Trabalhadoras a Mulé agora/

Enfrentam jagunço fazendeiro/ Ao pai, ao marido, ao irmão ladeiam/ Pelos sem

terra, até a mote, guerreiam!...

Percebemos neste poema uma polifonia, uma presença de outras vozes no meio do texto,

bem como um hibridismo, pois, assim como o poema “Agonia das Pataxó Hã-Hã-Hãe”, ultrapassa a

fronteira do literário, se transformando em uma poesia que informa sobre as violências sofridas

pelos indígenas, uma poesia que adverte, que noticia.

No exercício textual polifônico de Potiguara ocorre o que Bakhtin (1993) denominava como

dialogismo, isto é, a maneira como todas as vozes do discurso equivalem umas às outras.

Percebemos também um agenciamento coletivo de enunciação (Delueze & Guattari, 1977) que

coloca em comunicação diversas vozes e diversos estilos como: a escrita e a oralidade, a poesia e a

história, o individual e o coletivo, o real e o imaginário, o sagrado e o profano.

O poema identidade indígena, presente no livro aqui discutido, representa um marco no

movimento literário indígena contemporâneo no Brasil. Escrito em 1975, ainda na ditadura militar,

o poema surge a partir da história de resistência de sua família e de outros parentes indígenas.

Nosso ancestral dizia: Temos vida longa!/ Mas caio da vida e da morte/ E range o

armamento contra nós./ Mas enquanto eu tiver o coração acesso /Não morre a

indígena em mim/ E nem tampouco o compromisso que assumi/ Perante os mortos

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/De caminhar com minha gente passo a passo /E firme, em direção ao sol./ Sou

uma agulha que ferve no meio do palheiro/ Carrego o peso de uma família

espoliada/ Desacreditada, humilhada/ Sem forma, sem brilho, sem fama./ Mas não

sou eu só/ Não somos dez, cem ou mil/ Que brilharemos no palco da História./

Seremos milhões unidos como cardume/ E não precisaremos mais sair pelo mundo/

Embebedados pelo sufoco do massacre/ A chorar e derramar preciosas lágrimas/

Por quem não nos tem respeito./ A migração nos bate à porta/ As contradições nos

envolvem/ As carências nos encaram/ Como se batessem na nossa cara a toda hora/

Mas a consciência se levanta a cada murro/ E nos tornamos secos como o agreste/

Mas não perdemos o amor/ Porque temos o coração pulsando/ Jorrando sangue

pelos quatro cantos do universo./ Eu viverei 200, 500 ou 700 anos/ E contarei

minhas dores para ti/ Oh!!! Identidade/ E entre uma contada e outra/ Morderei tua

cabeça/ Como quem procura a fonte de tua força/ Da tua juventude/ O poder da tua

gente/ O poder do tempo que já passou/ Mas que vamos recuperar./ E tomaremos

de assalto moral/ As casas, os templos, os palácios/ E os transformaremos em

aldeias do amor/ Em olhares de ternura/ Como são os teus, brilhantes, acalentante

identidade/ E transformaremos os sexos indígenas/ Em órgãos produtores de lindos

bebês guerreiros do futuro/ E não passaremos mais fome/ Fome de alma, fome de

terra, fome de mata/ Fome de História/ E não nos suicidaremos/ A cada século, a

cada era, a cada minuto/ E nós, indígenas de todo o planeta/ Só sentiremos a fome

natural/ E o sumo de nossa ancestralidade/ Nos alimentará para sempre/ E não

existirão mais úlceras, anemias, tuberculoses/ Desnutrição/ Que irão nos arrebatar/

Porque seremos mais fortes que todas a células cancerígenas juntas/ De toda a

existência humana./ E os nossos corações?/ Nós não precisaremos catá-los aos

pedaços mais ao chão!/ E pisaremos a cada cerimônia nossa/ Mais firmes/ E os

nossos neurônios serão tão poderosos/ Quanto nossas lendas indígenas/ Que nunca

mais tremeremos diante das armas/ E das palavras e olhares dos que “chegaram e

não foram”./ Seremos nós, doces, puros, amantes, gente e normal!/ E te direi

identidade: Eu te amo!/ E nos recusaremos a morrer/ A sofrer a cada gesto, a cada

dor física, moral e espiritual./ Nós somos o primeiro mundo!/ Aí queremos viver

pra lutar/ E encontro força em ti, amada identidade!/ Encontro sangue novo pra

suportar esse fardo/ Nojento, arrogante, cruel…/ E enquanto somos dóceis, meigos/

Somos petulantes e prepotentes/ Diante do poder mundial/ Diante do aparato

bélico/ Diante das bombas nucleares/ Nós, povos indígenas/ Queremos brilhar no

cenário da História/ Resgatar nossa memória/ E ver os frutos de nosso país, sendo

divididos/ Radicalmente/ Entre milhares de aldeados e “desplazados”/ Como nós.

(POTIGUARA, 2004, p. 104-105)

O poema de Eliane Potiguara apresenta-nos a autodenominação indígena como um valor,

como representação de uma interioridade irredutível e como desafio à tentativa de manipulação e

sujeição constantes. A autodeterminação surge contraposta a denominações impostas pelo outro no

encontro colonial. Tal contraposição remete à ‘leitura em contraponto’ proposta por Said (1995,

p.104), que “[...] deve considerar ambos os processos, o do imperialismo e o da resistência a ele, o

que pode ser feito estendendo nossa leitura dos textos de forma a incluir o que antes era

forçosamente excluído [...]”. Acreditamos que o texto de Eliane Potiguara pode estar vinculado à

‘leitura em contraponto’ pelo fato de que o discurso imperialista não é apagado, mas discutido, de

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forma a conduzir a uma reflexão sobre os processos do imperialismo e da resistência que envolvem

a existência e a produção textual indígena; assim, ao tratar da autodenominação, a nomeação do

índio pelo outro – europeu – também deve estar presente.

Notamos ainda que o termo índio não é removido do discurso indígena, mas o nativo dele se

apropria para construir uma unidade, mesmo que somente para olhos ocidentais, que sinalize uma

representação da diferença (branco/índio) e uma vontade política de resistência à sujeição colonial.

Além do mais, o termo índio pode ser usado como ferramenta pela escritora indígena, como

palavra-máscara, um nome não-verdadeiro que não afeta seu verdadeiro nome.

A autora faz ao longo do texto relatos biográficos que reafirmam a sua condição enquanto

mulher indígena, assumindo também o papel da luta de gênero. É o que podemos perceber no

seguinte trecho, no qual a autora narra a própria história em terceira pessoa: “Foi impactante porque

eram todas mulheres, as quatro filhas do índio X, mais a mãe Maria da Luz. Sua avó, a menina

Maria de Lourdes, com apenas 12 anos, já era mãe solo, vítima da violação sexual praticada por

colonos que trabalhavam para a família inglesa X” (POTIGUARA, 2004, p. 27). As narrativas

muitas vezes imprecisas enquanto a dados históricos e feita de uma forma distanciada é um modo

de generalização e representação da identidade indígena como um todo, e não apenas fatos isolados

que aconteceram com a autora e sua família.

Percebemos que a referida obra aponta para uma “desterritorialização dos processos

simbólicos” ao unir em uma só construção textual diversos gêneros literários:

poesia/conto/crônica/biografia. Esse caráter híbrido pode ser percebido no seguinte trecho, que

mescla uma escrita informativa, ensaística e poética: “Em 18 de abril de 1997, o líder indígena

Marçal Tupã-y, assassinado em 25 de novembro de 1983, esteve nas terras do Sul do Brasil e disse:

Eu não fico quieto não...⁄ Eu reclamo...⁄Eu falo... ⁄ Eu denuncio.” (POTIGUARA, 2004, p. 47). Uma

literatura híbrida, como a de Eliane, apresenta aspectos de diversas culturas marcado pela mistura

de diferentes escolhas estilísticas, estabelecendo uma relação de fronteira com outras configurações

linguísticas a partir de um lugar instável criado pela posição entre dois mundos: o “universo

indígena” e o “universo ocidental”.

Ao analisar obras literárias, Deleuze e Guattari descobrem que fugir de territórios

estabelecidos ou pré-determinados, ou seja, das imposições culturais, era um dos procedimentos

comuns nas obras de grandes criadores da arte escrita, aqueles que souberam fazer um uso menor da

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língua dentro de uma língua maior. Observamos que Eliane Potiguara produziu uma narrativa que

trouxe à tona aspectos de uma cultura indígena, fabricando um exercício menor dentro de uma

“língua maior” a partir de sua condição de indígena marginalizada pela sociedade hegemônica.

Podemos atestar no seguinte trecho: “Não me importo/ se o que escrevo/ não são versos/ rimas/

redondilhas.../ Não me importo/ se dizem que não trabalho/ sou vagabunda da vida/ e ela é minha

amante.” (POTIGUARA, 2004, p. 62-3).

Ao afirmar a identidade como um valor ancestral, a escritura indígena não faz um apelo

saudosista, mas percebe a ancestralidade como origem, desmitificando o discurso pejorativo do

“primitivo”. Eliane relata a importância da ancestralidade na afirmação identitária a partir de um

saber transmitido por gerações através da oralidade, como podemos notar no seguinte trecho:

A coisa mais bonita que temos dentro de nós mesmos é a dignidade. Mesmo se ela

está maltratada. Mas não há dor ou tristeza que o vento e o mar não apaguem. E o

mais puro ensinamento dos velhos, dos anciãos parte da sabedoria, da verdade e do

amor. Bonito é florir no meio dos ensinamentos impostos pelo poder. Bonito é

florir no meio do ódio, da inveja, da mentira ou do lixo da sociedade.[...] Bonito é

renascer todos os dias. [...] A verdade está chegando à tona, mesmo que nos

arranquem os dentes! O importante é prosseguir (POTIGUARA, 2004, p. 79).

Percebemos na fala da autora a valorização do saber ancestral como base da cultura

indígena, sem desconsiderar as dinâmicas acarretadas pelo contato colonial. O resgate da

ancestralidade é pautado em um contexto de atualização identitária, ou seja, a tradição não prende a

concepção de identidade indígena ao passado, mas serve como uma ferramenta de afirmação e

reconfiguração cultural desses povos diante das transformações engendradas na contemporaneidade.

A autora assume uma postura militante no que diz respeito a afirmação da identidade da

mulher indígena. Sabemos que a representação da mulher indígena difundida pelo colonizador foi

construída a partir de uma série de estereótipos que atribuíam à índia malícia, hipersexualizando o

corpo da mulher indígena num misto de desejo que exotiza, abusa e ao mesmo tempo repudia a

mulher. Nos textos jesuíticos, a mulher indígena representa a encarnação do mal, o pecado e a

perversão. Eliane afirma em sua escrita a luta e a resistência das mulheres indígenas, como

observamos no seguinte poema chamado “Terra Cunhã:

Mulher indígena!/ Que muito sabes deste mundo / com a dor ela aprendeu pelos

séculos/A ser sábia, paciente, profunda./ Imóvel, tu escutas/ Os que te fingem os

ouvidos/ Fé guerreira, contestas:/ “Não aguento mais a mentira”!!!/ Mas longe

deles, choras a estupidez,/ O MEDO.../ (sim, longe deles!!!!)/ Sogres

incompreensão e maldade/ Aos poucos morres à mingua.../ Desrespeito, roubo,

assassinato./ No dia em que te rastejaste/ Implorou tua terra – e JÁ TINHAS!!!/ A

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teu lado companheiras: miséria e morte/ A violência e a angústia dos trópicos.../

Nas caras ela viu o abuso/ A inveja de ser o que és: cândida,/ lúcida, mãe,

companheira.../ E tu zombastes desses pobres (de) espíritos./ Sabes do rio de

lágrimas/ Que te aperta o peito aflito/ Na bolsa d’água o filho esperas/ Futuro, luz,

nova era./ Mas luta, raiz forte da terra!/ Mesmo que te matem por ora/ Porque estás

presa ainda / Nas garras do PODER e da história. (POTIGUARA, 2004, p. 24).

A autora usa de sua poesia para denunciar fatos que a mídia hegemônica não noticia, usa a

voz poética para expressar o direito à vida e veicular informações abafadas que são verdadeiras

atrocidades cometidas contra as mulheres indígenas. Em solidariedade às mulheres Pataxó Hã-Hã-

Hãe, que sofreram um processo de esterilização em massa durante a campanha eleitoral de 1994 na

Bahia, Eliane escreve o poema “Agonia das Pataxó Hã-Hã-Hãe”:

Neste século já não teremos mais os sexos./ Porque ser mão neste século de morte/

É estar em febre para sub-existir/ É ser fêmea na dor/ Espoliada na condição de

mulher/ Eu repito/ Que neste século não teremos mais os sexos/ Tão pouco me

importa que entendam/ Possam só compreender em outro século besta/ Não temos

mais vagina, não mais procriamos/ Nossos maridos morreram/ E pra parir

indígenas doentes/ Para que matem nossos filhos/ E os joguem nas valas/ Nas

estradas obscuras da vida/ Neste mundo sem gente/ Basta só um mandante/ Neste

século não teremos mais peitos/ Despeitos, olhos, bocas ou orelhas/ Tanto faz

sexos ou orelhas/ Princípios, morais, preconceitos ou defeitos/ Eu não quero mais a

agonia dos séculos.../ Neste século não teremos mais jeito/ Trejeitos, beleza, amor

ou dinheiro/ Neste século, oh NHENDIRU!!!/ Não teremos mais jeito.

A poesia de Eliane opera como uma denúncia à indiferença das autoridades perante o

genocídio cometido contra as mulheres indígenas. A situação da mulher indígena desde o início da

colonização é uma das mais degradantes, pois para o sujeito colonizador, o corpo da mulher

indígena é visto como um “objeto-valor, na medida em que [...] a apropriação do sexo da índia

possibilitará utilizá-la para satisfazer as carências sexuais, afetivas e sentimentais do colonizador

(até mesmo, eventualmente, para reparar a falta que ele sente de uma família)” (Lopez, 2000, p.20-

21). Tal poema evidencia que a situação de poder e subjugação do não-índio para com a mulher

indígena não cessou, apenas mudou de cara, se mantendo por uma rede de tutela e controle dos

corpos empreendido pelos grupos dominantes.

A dominação e subjugação da mulher, segundo a autora, provém de uma herança colonial,

pois “os povos indígenas exerceram relações de gênero no passado de forma justa, quando as

mulheres Guarani, por exemplo, eram ouvidas nas assembleias indígenas. [...] As mulheres

indígenas tinham o seu papel político extremamente determinado e forte” (p. 90). No desenrolar do

texto, Eliane afirma que o homem indígena assumiu um papel machista devido à incorporação do

patriarcado trazido pelos estrangeiros, e acrescenta que “precisamos construir gênero entre os povos

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indígenas e reconstruir nossas histórias” (p. 90). Desse modo, a escritora vai em defesa dos direitos

das mulheres em consonância com o saber ancestral:

O meio ambiente, o território, o planeta Terra estão intrinsecamente ligados ao

ventre da mulher indígena, a mulher selvagem nos dois sentidos (primeira cidadã

do mundo e intuitiva) e por isso não haverá defesa ambiental se não se destacar a

influência, o conhecimento milenar da mulher, do ser que habita esse meio

ambiente. Isso é um testemunho para a sociedade e para a formação da cidadania

brasileira. Se a natureza deve ser respeitada em seu ciclo de existência e

valorizadas as fases da lua, da maré, do sol, da colheita, as mulheres indígenas

devem ter o mesmo tratamento (POTIGUARA, 2004, p. 56).

A autora também escreve em defesa da propriedade intelectual, ou seja, o pensamento

indígena, seja ele oral ou escrito, e o reconhecimento de suas raízes e origens. Em sua escrita, a

autora se recusa a assumir uma posição de vítima oriunda de erros históricas, mas sim de sujeitos

políticos implicados nos desdobramentos do processo de colonização. A afirmação do

conhecimento indígena como propriedade intelectual vai de encontro aos processos de

invizibilização e coloca a cultura indígena como expoente. É o que podemos perceber em um texto

da autora publicado após o livro:

Quando líderes promovem informações em rádios, vídeos, TVs Comunitárias,

contrapondo às aldeias globais ou ainda quando criam cartilhas de alfabetização na

língua materna, ou quando criam sites para promover a cura de doenças ou

comerciar a venda do Guaraná, por exemplo, o fazem numa tentativa de sair da

invisibilidade cultural, objetivando a tonificação daquele povo ou cultura, e no

objetivo de expressar-se, seja na luta pelos direitos humanos ou trazer à luz do

conhecimento oficial, científico, acadêmico e religioso a sua contribuição na

história, enfim o seu conhecimento tradicional, na realidade sua propriedade

intelectual. Isso precisa ser respeitado e ampliado! Povos indígenas já não precisam

de muletas, são protagonistas da sua história (POTIGUARA, 2011, p. 568).

A condição de indígena desaldeada, migrante, deixa fortes marcas na literatura de Eliane

Potiguara. Com a migração forçada pelo neocolonizador e a falta de condições de sobrevivência nas

aldeias, é posto o desafio de ser índio longe de sua terra, conferindo um caráter diaspórico à poesia

de Eliane, como podemos perceber nesse trecho: “Eu não tenho minha aldeia/ Minha aldeia é minha

casa espiritual/ Deixada pelos meus pais e avós/ A maior herança indígena./ Essa casa espiritual/ É

onde vivo desde tenra idade/ Ela me ensinou os verdadeiros valores [...]” (POTIGUARA, 2004, p.

131).

Eliane Potiguara constrói a parte final de sua obra narrando o reencontro de Cunhataí com

Jurupiranga, guerreiro que após andar durante muito tempo por muitas terras, retorna para a aldeia e

é recebido por uma assembleia convocada por Cunhataí. O reencontro do casal é celebrado “por

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todas as tribos brasileiras e estrangeiras” (POTIGUARA, 2004, p. 134), unindo-se e restaurando a

paz em seus corações. Juntos novamente, os personagens presenciam o renascimento de sua cultura,

produzindo a felicidade para a si e para o seu povo.

Considerações Finais

Metade cara, metade máscara, ao se construir de forma indefinida pelo ajuntamento de

diversos discursos, nos permite dizer que ele vai além de um relato individual de uma indígena

potiguara. Sua enunciação não se refere unicamente a quem escreveu ou a uma história privada

pois, a coletividade contamina todo enunciado e torna o livro maior que seu autor. Posto isso, a

existência de uma indígena produzindo um livro, somada aos desvios linguísticos que a sua posição

cultural agencia, coloca em cena um sujeito social subjugado no âmbito da cultura brasileira. Eliane

escreve no lugar dos indígenas marginalizados, que viviam e vivem sob um pano de invisibilidade,

através de uma linguagem própria e que vai de encontro à padronização literária hegemônica.

Através de Metade cara, metade máscara descobrimos não somente a linguagem de uma

indígena, mas também a condição social das comunidades indígenas,a violência de gênero aliada ao

racismo cometida contra as mulheres indígenas, as violações de direitos por parte dos não-índios, os

impactos da colonização e da neocolonização que ainda perduram e incidem diretamente na vida

dos sujeitos. Percebemos também o movimento de resistência, a reelaboração de identidades como

uma forma de resistência, a reapropriação dos saberes ancestrais como uma ferramenta política, a

narração de histórias como um movimento de disputa de discursos e representação que vai de

encontro ao cânone e às supostas verdades hegemônicas. Sua experiência literária fala de memória,

da vivência de sujeitos e grupos étnicos marginalizados e subjugados ao longo da história.

Referências

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SAID, Edward. Cultura e imperialismo. Trad. de Denise Bottman. São Paulo: Companhiadas

Letras, 1995.

Metade Cara, Metade Máscara: an affirmation of ethno-political identities of indigenous

women

The main goal in this article is to discuss the representation of indigenous identity from an

ethnic-political perspective, based on the analysis of the book Metade Cara, Metade Máscara of the

writer Eliane Potiguara. On that perspective, the existing conflicts between the representation of the

indigenous, more specifically of the indigenous woman, in the hegemonic and colonial literature,

putting in perspective the narrative representations created for the natives and those created by the

Indians themselves, are considered. Through an analysis of this work, I try to understand the

narrative constructions of the text that go against the literary canon and question the construction of

the stereotyped indigenous identity, highlighting the construction of a discourse from a place of

indigenous women. From a perspective of decolonial studies, I try to understand through Eliane

Potiguara's narrative the construction of the identity of the indigenous woman in relation to the

nation-state, to the global movements, and how the construction of narratives can be used as a tool

of identity affirmation these processes.

Keywords: Indigenous Literature, Feminine Authorship, Decoloniality, Identity Processes.