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Legados do inframundo: do Popol Vuh ao Black metal ou das inusitadas recriações do
imaginário latino-americano
Isabel Cristina Costa Louzada (UNILA)1
Resumo: O álbum “Legados do Inframundo” da banda de pagan black metal brasileira
Miasthenia, tem como temática a cosmogonia maia, apropriando-se de relatos e cosmovisões
presentes em dois textos clássicos da cultura maia mesoamericana: Popol Vuh e Chilam Balam.
Este trabalho tem como objetivo analisar de que forma foi feita essa apropriação e como esta
pode constituir um imaginário para criação de uma identidade latino-americana baseada em
uma espécie de ancestralidade emprestada, ou seja, um símbolo mítico de luta contra a contínua
colonização cristã no subcontinente. Essa banda pode ser vista como agente transculturador de
um gênero musical europeu, advindo do black metal anticristão, que migrou para a temática da
mitologia nórdica. Fazendo esse estilo musical passar então por processos de hibridação e
adquirir importâncias que vão além da estética literária/musical. Miasthenia propõe uma
vertente singular, antropofágica, de construção identitária, a partir da interlocução desses textos
históricos com a música extrema contemporânea. A análise partirá da perspectiva teórica da
Literatura Comparada em contexto latino-americano, passando por conceitos como
transculturação, hibridismo e antropofagia, tomados como ferramentas de interpretação dos
processos de recriação estética e política, que assumem histórias e memórias apagadas pela
empresa colonial, como espaço de identificação/enunciação latino-americano.
Palavras-chave: Miasthenia; Pagan Black Metal; Identidade; Imaginário.
Abstract: The album "Legados do Inframundo" by the Brazilian black metal band, Miasthenia,
is based on the Mayan cosmogony, appropriating stories and worldviews present in two classic
Mesoamerican Maya texts: Popol Vuh and Chilam Balam. This paper aims to analyze how this
appropriation was made and how it can constitute an imaginary for the creation of a Latin
American identity based on a kind of borrowed ancestry, that is, a mythical symbol of struggle
against the continuous Christian colonization in the subcontinent. This band can be seen as a
transculturer agent of a European musical genre, coming from the anti-Christian black metal,
which migrated to the Norse mythology theme. Making this musical style then go through
processes of hybridization and acquire importance that goes beyond the literary/musical
aesthetic. Miasthenia proposes a singular, anthropophagic, construction of identity bent, from
the interlocution of these historical texts with the extreme contemporary music. The analysis
will start from the theoretical perspective of Comparative Literature in Latin American context,
going through concepts such as transculturation, hybridism and anthropophagy, taken as tools
of interpretation of aesthetic and political re-creation processes, which assume stories and
memories erased by the colonial enterprise, such as space of Latin American
identification/enunciation.
Keywords: Miasthenia; Pagan Black Metal; Identity; Imaginary.
1 Mestranda em Literatura Comparada da linha de pesquisa Narrativas, Diásporas, Memória e História pelo
Programa de Pós-Graduação em Literatura Comparada (PPGLC) da Universidade Federal da Integração Latino-
Americana (UNILA). Bolsista do Programa de Demanda Social – UNILA de Bolsas de Pós-Graduação Stricto
Sensu – DS-UNILA.
Introdução
Pretende-se aqui analisar algumas faixas do álbum “Legados do Inframundo”, da banda
de pagan black metal brasileira Miasthenia produzido em 2014 por Caio Duarte e a própria
banda, álbum que tem como temática a cosmogonia maia, incorporando relatos e cosmovisões
presentes em dois textos clássicos da cultura maia mesoamericana: Popol Vuh e Chilam Balam.
Este trabalho tem como objetivo analisar de que forma foi feita essa incorporação. Além do
mais, essa banda, por se tratar de uma banda brasileira de black metal pagão, com temática maia
e letras em português, pode ser vista como agente transculturador de um gênero musical
europeu, advindo do black metal anticristão, que derivou para a temática da mitologia nórdica.
Fazendo esse estilo musical passar então por processos de hibridação e adquirir importâncias
que vão além da estética literária/musical. Miasthenia propõe uma vertente singular,
antropofágica, de construção identitária, a partir da interlocução desses textos históricos com a
música extrema contemporânea. A análise levará em conta a perspectiva teórica da Literatura
Comparada em contexto latino-americano, tomando como base as considerações de Coutinho
(2008), tendo em vista que essa área proporciona diálogos interdisciplinares entre diferentes
artes, como literatura e música, e possibilita estudos transnacionais. Passando também por
conceitos como transculturação e hibridismo, usados para interpretar os processos de recriação
estética política.
Fundamentação teórica
Para se tentar explicar o processo pelo qual a banda Miasthenia passa com sua
proposição de black metal pagão, convém também entrarmos no conceito de transculturação,
discutido por Ángel Rama (2008) em sua obra Transculturación narrativa en América Latina,
para chegarmos até a o conceito da hibridação de Canclini. O termo transculturação foi proposto
pelo cubano Fernando Ortiz em 1940 em oposição ao termo aculturação. Ortiz acreditava que
este processo era “cardinal y elementalmente indispensable para comprender la historia de Cuba
y, por análogas razones, la de toda América em general”. (ORTIZ, 1978, s/p. apud RAMA,
2008, p. 39). Foi a transculturação que permitiu então à Ortiz “construir um metarrelato da
cultura nacional baseado em uma larga reflexão sobre a hibridação e a mistura.” (DIAZ
QUIÑONES, 2011, p. 113). A transculturação é elucidada da seguinte maneira por Ortiz (1978):
Entendemos que el vocablo transculturación expresa mejor las diferentes
fases del proceso transitivo de una cultura a otra, porque éste no consiste
solamente en adquirir una cultura, que es lo que en rigor indica la voz anglo-
americana aculturación, sino que el proceso implica también necesariamente
la pérdida o desarraigo de una cultura precedente, lo que pudiera decirse una
parcial desculturación, y, además, significa la consiguiente creación de nuevos
fenómenos culturales que pudieran denominarse neoculturación. (ORTIZ,
1978, p. 86 apud RAMA, 2008, p. 39).
Conforme analisa Rama (2008, p. 45), o fenômeno da transculturação de Ortiz (1978)
implica primeiramente numa desculturação parcial, ao se perder componentes obsoletos da
cultura, e depois na incorporação de elementos da cultura externa, e finalmente em uma
tentativa de coexistência dos elementos da cultura originária com os da externa, num esforço
de recomposição. Esse processo, para Rama (2008) não dá conta da plasticidade cultural que
assegura a energia e a criatividade de uma comunidade cultural, pois não atende os critérios de
seletividade e de invenção. Ortiz (1978) também fala da neoculturación que seria o surgimento,
ou criação de novos fenômenos culturais que implicam de um processo inventivo, como diz
Rama (2008) ou advindo da criação, como sugere Canclini (2013).
A transculturação faz parte de uma rede de conceitos na qual o hibridismo pode ser
situado se quisermos pensar além da análise de identidade, para Canclini (2013) também seria
necessário pensar nos conflitos de poder gerados pelas ambivalências da industrialização e
massificação globalizada dos processos simbólicos. Canclini (2013) define Hibridação da
seguinte forma:
Entiendo por hibridación procesos socioculturales en los que estructuras o
prácticas discretas, que existían en forma separada, se combinan para generar
nuevas estructuras, objetos y prácticas. A su vez, cabe aclarar que las
estructuras llamadas discretas fueron resultado de hibridaciones, por lo cual
no pueden ser consideradas fuentes puras. (CANCLINI, 2013, p. 14).
Para Canclini (2008), a hibridação pode ocorrer ao acaso, como forma natural devido
processos como migrações e turismo, mas também, com frequência, esse fenômeno ocorre a
partir da criatividade tanto individual quanto coletiva, gerado na mistura, como por exemplo, o
objeto de análise deste trabalho: a incorporação da cosmogonia maia por uma banda brasileira
de pagan black metal.
O conceito de Hibridação engloba também contatos interculturais que levam nomes
diferentes: as fusões étnicas, chamadas de mestiçagem, a mistura de religiões, chamada de
sincretismo. Porém o autor defende o uso do termo hibridismo como sendo o mais correto para
designar essas fusões clássicas. (CANCLINI, 2013)
Rama (2008) menciona a obra Culture and Conquest: America’s Spanish Heritage, livro
de George M. Foster no qual o autor fala do stripping down process que responde “a una
selectividad que el donante cultural introduce em sus aportaciones para darles la mayor
viabilidad.” (RAMA, 2008, p. 46) Essa mesma seletividade também está presente no receptor
cultural quando não lhes é imposto, este tem a liberdade de escolher entre as diversas opções,
ou procurar por elas nos elementos da cultura de dominação. De maneira similar à mencionada
anteriormente de Canclini (2013), Rama (2008) nos lembra que essa seletividade não acontece
somente com a cultura estrangeira, mas também e principalmente com a própria cultura, pois
dentro de um sistema próprio há a seleção sobre a tradição, que gera uma busca por valores
resistentes para enfrentar os efeitos da transculturação, esse processo pode ser considerado
como uma tarefa inventiva, dentro da neoculturación mencionada por Ortiz (1978) colocando-
se duas fontes culturais em contato. Quanto a isso, Rama (2008) expõe que:
Habría pues pérdidas, selecciones, redescubrimientos e incorporaciones. Estas
cuatro operaciones son concomitantes y se resuelven todas dentro de una
reestructuración general del sistema cultural, que es la función creadora más
alta que se cumple en un proceso transculturante. (RAMA, 2008, p. 47).
O conceito de transculturação de Rama (2008) se desdobra então em três pontos: língua,
estruturação literária e cosmovisão. A primeira operação transculturadora, a língua, “apareció
como un reducto defensivo y como una prueba de independencia”. (RAMA, 2008, p. 47). A
perspectiva linguística então, “restaura la visión regional del mundo, prolonga su vigencia en
una forma aún más rica e interior que antes y así expande la cosmovisión originaria […] sin
destrucción de identidad.” (RAMA, 2008, p. 51).
Já a estruturação literária consiste na “búsqueda de mecanismos literarios propios,
adaptables a las nuevas circunstancias y suficientemente resistentes a la erosión
modernizadora.” (RAMA, 2008, p. 52). Soluções encontradas procedem de um resgate de
estruturas narrativas orais e populares, retrocedendo-se às literaturas clássicas e às fontes orais
como inspiração. Dessa forma, tanto a língua como a estruturação literária podem ser
encontradas na obra Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, onde o autor se vale do
monólogo discursivo, ou o Causo, que é a transculturação do stream of consciousness (fluxo de
consciência) utilizado por Joyce, Proust, Faulkener, Virginia Woolf, entre outros escritores
europeus e americanos, além de fazer uso da oralidade no nível da língua. (RAMA, 2008).
A mais importante operação transculturadora é a cosmovisão, pois é onde se “asientan
los valores, donde se despliegan las ideologías y es por lo tanto el que es más difícil rendir a los
cambios de la modernización homogeneizadora sobre patrones extranjeros.” (RAMA, 2008, p.
57) O que é importante considerar, para Rama (2008) é a nova visão do mito, pois está altamente
presente na cultura contemporânea. Rama (2008) expõe que desde 1962, Mircea Eliade escrevia
sobre essa nova visão do mito presente entre estudiosos já há muito tempo, como podemos ver
no registro a seguir:
En vez de tratar, como sus predecesores, el mito en la acepción usual del
término, esto es, en tanto que “fábula”, “invención”, “ficción” lo ha aceptado
tal como era comprendido en las sociedades arcaicas, donde el mito designa
por el contrario, una “historia verdadera” y, lo que es más inapreciable, por
ser sagrada, ejemplar y significativa. (ELIADE, 1963, p. 9 apud RAMA, 2008,
P. 59).
Tanto o mito, quanto o arquétipo foram, e são usados, por autores como Carpentier e
Asturias, como categorias válidas para interpretas as características latino-americanas, a
apelação feita às crenças populares ainda vigentes em comunidades indígenas ou africanas da
América Latina, porém, “no escondía y la procedencia y la fundamentación intelectual del
sistema interpretativo que se aplicaba” (RAMA, 2008, p. 60)
Em tal contexto de transculturação e hibridismo, vale discutir também a disciplina de
Literatura Comparada, mais especificamente no contexto da América Latina para ajudar na
compreensão da questão do contato entre culturas por isso entramos nessa perspectiva
comparatista.
A disciplina de Literatura Comparada na América Latina sofreu sua mais significativa
transformação nos anos 1970, passando de para um discurso plural e descentrado. O que
acontecia antes disso era que os estudos comparatistas apresentavam teor hegemônico,
provenientes de um contexto euro-norte-americano, sendo assim, o que aconteceu “foi estender
a outras literaturas os parâmetros instituídos a partir de reflexões desenvolvidas sobre o cânone
literário europeu”. E também, a crença “de que a literatura deveria ser abordada por um viés
apolítico, o que fazia era camuflar uma atitude prepotente de reafirmação da supremacia de um
sistema sobre os demais.” (COUTINHO, 2008, p. 23)
A transformação que ocorreu nos anos 1970 na Literatura Comparada agiu nessa postura
universalizante e na desmitificação da apolitizição, e fez com que houvesse uma “aproximação
cada vez maior do comparatismo a questões de identidade nacional e cultural”. Outro ponto
importante é que se passou a querer “enfocar as questões literárias ali [grupos minoritários]
surgidas a partir do próprio locus onde se situava o pesquisador”. (COUTINHO, 2008, p. 23)
Como exposto anteriormente, pretende-se aqui discutir questões ligadas à incorporação
da cosmovisão maia por uma banda de pagan black metal brasileira, que tem um gênero musical
de origens nórdicas, que tem como temática sua mitologia, e esse gênero por sua vez, é derivado
black metal anticristão e do heavy metal. Sendo então o som produzido por Miasthenia fruto de
transculturação e hibridismo, sendo assim:
O que passa a prevalecer na leitura comparatista não é mais a relação de
semelhança ou continuidade, sempre desvantajosa para o texto segundo, mas
o elemento de diferenciação que este último introduz no diálogo intertextual
estabelecido com o primeiro. (COUTINHO, 2008, p. 25).
Para Coutinho (2008), a literatura dos países latino-americanos recebe forte influência
de outras, assimilando vários de seus aspectos. Porém, “ela modifica substancialmente tais
aspectos no momento da apropriação, passando a apresentar elementos próprios muitas vezes
resultantes desse processo.” (COUTINHO, 2008, p. 27) Como, por exemplo, o pagan black
metal da banda Miasthenia.
A América Latina com sua forte tradição de busca de identidade, “parece ter assumido
com firmeza a necessidade de enfocar a produção literária do continente a partir de uma
perspectiva própria, e vem buscando um diálogo verdadeiro no plano internacional.”
(COUTINHO, 2008, p. 31).
Miasthenia, Popol Vuh e Chilam balam
Para se contextualizar a banda Miasthenia, foram retiradas informações da página do
Facebook da banda, nesta, há informações de que a banda de pagan black metal em atividade
desde 1994, é liderada por Susane Hécate que fica à frente do vocal e teclado e Thormianak,
responsável pelas guitarristas e também pelo baixo. A banda conta ainda com outro membro, V.
Digger responsável pela bateria. A temática da banda é a história e mitologia pré-colombiana,
as guerras de conquista da América no século XVI e a resistência ameríndia, e suas letras são
em português, esse conjunto a diferencia no cenário da música extrema contemporânea.
A banda sofreu uma série mudanças em sua formação. Em 1995 quando gravaram a
demo-ensaio, “Para o encanto do Sabbat”, contavam com Hécate na guitarra e vocal, Vlad, no
baixo e vocal, e Mictlantecutli na bateria. Ainda contando com essa formação, gravaram a
demo, “Faun-Trágica Música Noturna”, que foi lançada em 1998 no Split CD, “Visions of
nocturnal tragedies”, pelo selo Evil Horde records. Hécate passou a assumir então inteiramente
os vocais e teclados, Thormianak as guitarras, Mist o contra-baixo e Mictlantecutli a bateria, e
com essa formação lançaram mais dois álbuns, o "XVI" de 2000 e o “Batalha Ritual” de 2004,
pela gravadora Somber Music. Em 2008, com a participação do baterista Hamon da banda
Mythological Cold Towers, lançam o álbum conceitual "Supremacia Ancestral" também pela
Somber Music. As letras desse álbum foram inspiradas em movimentos de resistência pagã
ameríndias à inquisição e catequização na América colonial. Em 2011 lançaram o DVD "O
Ritual da Rebelião" pela Mutilation records. Em 2014, em formação composta apenas por
Hécate no vocal e teclados, Thormianak nas guitarras e baixo e V. Digger na bateria, e que
perdura até hoje, a banda lançou o álbum conceitual “Legados do Inframundo" pelas gravadoras
brasileiras Misanthropic e Mutilation. O álbum teve uma excelente repercussão nacional,
rendendo assim o seu relançamento em versão digipack e com as letras traduzidas para o inglês
pelo selo francês Drakkar productions. Em 2013 e 2014 a banda lança, respectivamente, dois
videoclipes oficiais – de músicas do álbum "Entronizados na morte" e “13 Ahau Katún”, –
ambos produzidos por Caio Duarte do BroadBand Studio. Em 2016, com a mesma formação
do álbum anterior, a banda retornou ao BroadBand Studio para a gravação de mais um álbum
conceitual intitulado “Antípodas”, para lançamento no primeiro semestre de 2017.
De maneira geral, a banda Miasthenia produz um som conhecido por metal extremo, e
esse termo abrange vários gêneros que compartilham características em comum, Manea (2016,
p. 82) retoma as ideias de Kahn-Harris2 (2007) e relembra que uma dessas características é a
transgressão, que seria a quebra de fronteiras artísticas, sociais e estéticas. O Heavy Metal é
transgressivo em sua essência, o metal extremo conseguiu ampliar isso ainda mais com suas
distorções, instrumentalização pesada, vocais guturais, grande preocupação com o lado obscuro
da vida, imagens do oculto e no caso do metal Pagão, com as narrativas de ancestralidade
(MANEA, 2016), sendo tudo isso o caso do Miasthenia.
Legados do inframundo: incorporação da cosmogonia maia a partir do Popol vuh e do
Chilam balam de Chumayel
Lançado em 2014, o álbum conceitual “Legados do Inframundo” foi inspirado na
2 KAHN-HARRIS, Keith. Extreme Metal: Music and Culture on the Edge. Oxford: Bloomsbury Academic, 2007.
cosmogonia maia e é focado no imaginário da morte e do inframundo, ou Xibalbá, presente no
livro sagrado do Popol Vuh e nas profecias de Chilam Balam de Chumayel, ambos os textos são
exemplos clássicos da cultura maia mesoamericana. Popol Vuh é uma obra maia-quiché do
século XVI, escrito na própria língua desse povo. Os quichés viviam, e ainda vivem, nas
montanhas da Guatemala ocidental, sendo assim, o Popol Vuh, foi criado no coração da
Mesoamérica e é conhecido por muitos como uma espécie de bíblia do continente ameríndio.
As escritas mais comuns nos livros mesoamericanos, chamados de códices, feitos de papel e
pele, eram a hieroglífica maia e o tlacuilolli, que significa “coisa escrita ou pintada” na língua
dos astecas, chamada de náuatle. (BROTHERSTON, 2011, p. 11).
Outro ponto importante sobre o Popol Vuh é que ele foi escrito após a invasão do
território quiché em 1524 conduzida por Pedro de Alvarado, tenente de Cortés. E teria sido
criado pela comunidade kavek da cidade de Santa Cruz Quiché, na Guatemala, “para reclamar,
perante o governo colonial espanhol, um benefício ou privilégio que datava de uma época
anterior à invasão.” (BROTHERSTON, 2011, p. 13).
Tendo sido escrito apenas 30 anos após a invasão, o Popol Vuh procurava, e ainda
procura “afirmar memória e direitos locais, perguntando: quem, naquele ano, entrou na história
de quem?” e também questionava questões como o tempo que estava por vir e a origem dos
tempos: “Quem entende melhor o tempo que vai prevalecer agora, “na Cristandade”? A quem
pertence a “narrativa mais original da gênese do mundo?” (BROTHERSTON, 2011, p. 11-12).
E o texto, encerrado entre dois momentos: o começo e a conclusão, onde reconhecem o poderio
da cristandade e dos invasores, narra a história da origem dos tempos, ou da criação do Quarto
Mundo, relata as quatro idades do mundo, caracterizando a cosmogonia maia, e depois se focam
na história quiché e nos eventos que levaram os kaveks as suas reinvindicações.
(BROTHERSTON, 2011). Quanto à essa qualidade de título reivindicador de direitos,
Brotherston (2011, p. 13), traz que ao invés de diminuir o valor do texto de Popol Vuh, “o eleva
e nos alerta para os vários e diferentes níveis de tempo e de propósitos que a narrativa no seu
conjunto unifica.”, outro fator importante, está nas origens do Popol Vuh:
Tem-se dado, com razão, grande importância ao fato de o Popol Vuh referir-
se a si mesmo como originário de um texto anterior, também chamado Popol
Vuh, [...]. Não há nenhuma razão para não aceitar essa afirmação, que é
ponderada e corresponde a reinvindicações existentes em muitos outros textos
das línguas mais e náuatle, os quais se baseiam, de uma maneira ou de outra,
nas tradições de escrita mesoamericana. Sem dúvida, certas passagens do texto
têm forte qualidade oral, como, por exemplo, o final onomatopaico da
conclusão da segunda era ou idade do mundo e os diálogos ágeis e irônicos
entre os Gêmeos e seus antagonistas animais. Ainda assim, parece improvável
que a versão em escrita alfabética fosse, na sua totalidade, uma transcrição
direta de um original só falado ou cantado. (BROTHERSTON, 2011, p. 14).
De acordo com (Brotherston, 2011, p. 12) o Popol Vuh, por ter nascido no coração da
Mesoamérica, “é um ponto de referência incomparável para aquela região, para as inscrições e
os códices tanto hieroglíficos como em tlacuilolli”. Em tal contexto:
[o Popol Vuh] tem parentesco íntimo e altamente informativo com os livros
de Chilam Balam que, ao norte na planície de Yucatan e Peten, transcrevem
para o alfabeto os textos hieroglíficos das grandes cidades maias (300-900
d.C.), dando-lhes continuidade. (Brotherston, 2011, p. 12).
Assim como o Popol Vuh, os chamados livros de Chilam Balam também foram escritos
depois da invasão espanhola, tanto que sua escrita (adaptada à fonologia da língua maia de
Yucatán) e seu suporte são europeus. (VV.AA., 1963). O material presente no livro é variado,
indo desde textos de caráter religioso, tanto puramente indígena, até cristão traduzido ao maia,
textos históricos, textos médicos, textos cronológicos, astrológicos, astronômicos, ritualísticos,
textos literários e textos sem classificação. (VV.AA., 1963). Essa heterogeneidade de conteúdo
engloba as diferentes fases culturais pelas quais o povo maia de Yucatán passou. A fonte de
textos religiosos e históricos que são considerados nativos é proveniente de antigos livros
hieroglíficos, porém há outra parte que foi registrada por meio de impressos europeus, mas
também há aquelas de fontes orais. (VV.AA., 1963).
Esses textos precisavam de intérpretes, era para isso que serviam os Chilames, título que
levava essa classe sacerdotal de intérpretes de livros e também das vontades dos deuses. Chilam
significa “o que é boca” (VV.AA., 1963). Balam é um nome de família que significa, em um
sentigo figurado, jaguar ou bruxo. Chilam Balam viveu em Maní, pouco antes da invasão
espanhola, e é um famoso sacerdote, pois previu o surgimento de uma religião nova. Sobre os
Chilames, podemos recorrer ao trecho, transcrito a seguir, onde Lienhard (1993) discorre sobre
as escrituras da Mesoamérica:
[…] algunas “escrituras” o sistemas de notación elaborados en los grandes
Estados pluriétnicos de la América precolombina, especialmente […] los
glifos (Mesoamérica), comparten con la escritura alfabética la existencia de
archivos, los signos que ellos almacenan no refieren en primer lugar a la
fonética de las palabras, sino a su contenido semántico: los textos mexicanos,
por ejemplo, sobrentienden no tanto un idioma, sino una cosmovisión
común. Además, en la mayoría de los casos, la notación no conserva un texto
verbal en su conjunto, sino tan sólo sus “coordenadas”, es decir los datos que
deben figurar sin falta en la “recitación” oral del texto. Los textos verbales
“transcritos”, en efecto, exigen la actualización o performance oral – frente a
un auditorio colectivo o selecto – para pasar del estado latente a una presencia
social concreta. En las culturas amerindias, pues, la "escritura", fuera de su
eventual función iconográfica, es más un medio nemotécnico auxiliar que un
medio de comunicación autónomo. (LIENHARD, 1993, p. 43, grifo da
autora).
Quando os invasores estabelecem seu domínio político e militar na Mesoamérica, eles
impõem também seu sistema de escritura sobre todos os sistemas autóctones. Para o sistema
cultural europeu, a palavra transcrita em papel por meio de um alfabeto é essencial, e seus textos
escritos não requerem um intérprete, nem uma atualização oral, pois são foneticamente
inequívocos e tendencialmente autossuficientes. (LIENHARD, 1993) A passagem desses textos
à língua escrita no modelo ocidental, impõe obviamente um reconfiguração drástica do texto
mediante um outro sistema cultural de representação e percepção.
Ahora, por motivos obvios, no podemos estudiar directamente sus
manifestaciones en la época colonial: las voces que “performaron” los textos
han enmudecido desde hace siglos, y éstos se han evaporado en el aire. Nos
quedan tan sólo algunas – bastante – transcripciones contemporáneas, cuyo
status, sumamente problemático, no es ya – pese a lo que se desprende de
muchos estudios – el de textos orales. (LIENHARD, 1993, p. 45).
Supõe-se que os livros de Chilam Balam foram organizados e se multiplicaram, pois um
sacerdote ou sacerdotes, estando letrados em sua própria língua por religiosos invasores,
“transcribiría textos religiosos e históricos contenidos em sus libros jeroglíficos, incluyendo los
de las precicciones de Chilam Balam (VV.AA., 1963, p. 13). Sobre os livros de Chilam Balam
que eram escritos por sacerdotes nativos de diferentes povoados, podemos colocar:
En cada poblado al núcleo original se le fue adicionando otro material de
acuerdo con el criterio del curador y según los acontecimientos locales. Como
se les tenía por libros sagrados, que eran leídos en ciertas ocasiones, había el
interés de conservarlos para la posteridad y fuéronse copiando y recopiando
cuando se deterioraban. […] El tiempo destruía los libros materialmente y
destruía a su vez el entendimiento que sus curadores deberían tener de su
contenido al modificar su propia cultura. (VV.AA., 1963, p. 13).
Nas músicas de Miasthenia esses textos antigos se encontram incorporados mediante
um processo que poderíamos aqui classificar de hibridação. Elementos que provêm dos textos
maias são incorporados à sinfonia obscura e caótica do metal extremo contemporâneo, criando
assim toda uma composição estética, política e identitária. O prelúdio do álbum apresenta uma
evocação dos “Deuses Fúnebres”. Em meio a uma orquestração soturna, vozes rasgadas apelam
às “forças” do Popol Vuh e a entidades como: Hun Kame, Vuqub Kame, senhores de Xibalba.
A música mistura elementos como dor, caos, escuridão e morte. Já nesse primeiro momento é
citada a saga ao Xibalba, que inclusive será o título da segunda música. Geralmente confundido
com o inferno cristão, Xibalba é o inframundo na cultura maia, o reino da morte, mas também
fonte imprescindível da vida. (BROTHERSTON & MEDEIROS, 2011). Na música da banda,
esse lugar do esvanecimento, como é conhecido entre os maias, é também o principal espaço
de criação estética. Atravessado por passagens sinfônicas, riffs de guitarra em intervalos de
trítono – também conhecidos como "diabolus in musica" – bateria ultrarrápida, vocais rasgados
em português, esse inframundo sonoro se completa pelas constantes referências aos textos
antigos. É a esse espaço que o eu-lírico de cada canção desce para, banhado em sangue
ancestral, renascer como o sol.
A incorporação de elementos textuais maias, como espaço de pertencimento, se dá ao
longo de todas as músicas. Em alguns momentos, passagens são citadas na íntegra, como, na
letra abaixo, o excerto que descreve, em um dos katuns, 11 Ahau, a catástrofe da chegada dos
Dzules (espanhóis), no Chilam Balam de Chumayel:
2. Saga ao Xibalba 05:16
No livro sagrado dos mortos está escrito esta saga ao
Xibalba
Cortejos fúnebres aclamam sua última viagem ao
reino da escuridão
Kinich Ahau te espera para a travessia, guiando o
trajeto dos mortos
"A lua e o vento
A noite e o dia
Tudo caminha, tudo passa
Todo sangue chega ao lugar do seu repouso
Assim como todo poder chega ao seu trono”
(Profecias de Chilam Balam de Chumayel)
O reino da morte tem seu triunfo
Destinos selados
Presos no tempo
Caminho sagrado que marca seu destino ao santuário
sagrado da morte
Kinich Ahau me acompanhe desta saga
Contemplando a outra margem do rio
Sua morada inframundo
A saga ao Xibalbá
Ao estado primordial
Império do medo
Dos deuses da morte
Tudo caminha
Tudo passa
Ao santuário sagrado da morte
Kinich Ahau!
A banda incorpora, assim, também as profecias do Chilam Balam nessa descida musical
ao inframundo, sob a orientação de Kinich Ahau, um dos senhores de Xibalbá. Neste caso, a
saga, retratada no título da música, repete as incursões dos heróis míticos a Xibalbá, antes da
criação dos homens de milho. Como a empreendida por Hun Hun Ah Pu e seu irmão, Vuqub
14
Hun Ah Pu:
E assim eles saíram, Hun Hun Ah Pu / E Vuqub Hun Ah Pu. / Eles tomaram o
caminho dos mensageiros, / E assim eles desceram pelo caminho até Xilbalba.
/ A beirada do rochedo era muito íngreme, / Mas eles desceram por ela. / E
então eles foram mais além, / Pelas bordas de diferentes desfiladeiros, /
Garganta Trêmula / E Garganta Estreita eram seus nomes. / Eles atravessaram
lá, / E então eles atravessaram / O bem estranho Rio Escorpião. / Os escorpiões
eram numerosos. / Eles seguiram adiante / E não foram picados. / Então eles
chegaram a um rio, / O Rio de Sangue. / Eles o cruzaram / Sem beber. / Eles
chegaram a um rio, / E só havia pus no rio, / Mas eles eram destemidos / E
apenas o atravessaram também. (BROTHERSTON & MEDEIROS, 2011, p.
135).
e repetida por seus filhos, os gêmeos Hun Ah Pu e X Balam Ke como parte do rito de provação
e sagração mítica.
E então eles saíram, / Cada um com sua sarabatana. / Eles desceram para
Xibalba. / Logo passaram diante de um penhasco. / Cruzaram também
diferentes gargantas cavadas por rios. / Então eles passaram no meio dos
pássaros. / Estes são os pássaros: / Molay (Bando de Pássaros) é seu nome. /
Então eles cruzaram o Rio de Pus, / O Rio de Sangue, / Supostos obstáculos
para eles / No coração daqueles de Xibalba. / Eles não foram incomodados. /
Apenas foram adiante pisando então suas sarabatanas. / E mais uma vez eles
vieram diretamente à encruzilhada / Mas então já sabiam das quatro estradas
dos morados de Xibalba: / A Estrada Negra, / A Estrada Branca, / A Estrada
Vermelha / E a Estrada Verde. / E então eles chamaram um animal lá. /
Mosquito era seu nome. / Ele era o guia, eles tinham ouvido falar.
(BROTHERSTON & MEDEIROS, 2011, p. 203).
Xibalbá em alguns momentos é traduzido diretamente como inferno, como na música
“Entronizados na Morte”: “No inferno agora caminham / Abandonados / Vendo o terror [...]
Com honra e fúria me ergo / Na descida ao Xibalbá”. Nesse espaço, em que a deusa Ixchel, em
transe, celebra sacrifícios, o eu-lírico da canção, assim como os gêmeos no Popol Vuh, renasce
a cada Lua, “Como heróis ancestrais / Reis do Sol”.
Na quarta faixa do álbum, intitulada “Sacerdote Jaguar”, se faz referência a Chilam
Balam, que, como dito anteriormente, é o nome de um sacerdote famoso que previu o
surgimento de uma nova religião. Nessa música, as potências espirituais do inframundo maia
são traduzidas como “forças ctônicas”, um híbrido entre os espíritos do mundo subterrâneo da
mitologia grega e os guardiões da morte no círculo mais profundo do Xibalbá, o Mitnal. O eu-
lírico da música, atravessando esse espaço, volta a reclamar uma ancestralidade mítica
recorrendo ao símbolo astrológico maia Akbal, “Akbal guia do jaguar / Akbal corre em minhas
veias”.
3
4. Sacerdote Jaguar 06:25
Guardiões do inframundo
Correndo de volta ao templo
Guardando segredos primordiais
Resistência ancestral
Em ritos fúnebres no templo da morte
Sacerdote jaguar celebrando deuses da morte
Libertando a alma do templo
Libertando seu grande espírito
Lealdade na escuridão
Evocando mortos em transe
Guiando seus passos para além do inframundo
De volta ao Mitnal
Ao ventre da deusa
De fetos e larvas
De mortos esperando renascer do inframundo
Metamorfoses espirituais da morte
Sublimes estágios de renascimento
Akbal guia do jaguar
Akbal corre em minhas veias
Unindo mundos opostos
Potências celestes
A alma dos mortos aos ancestrais
Chave do renascimento do mundo dos mortos
Forças ctônicas
Ritos telúricos
Na música justamente intitulada “13 Ahau Katún” há uma alusão a chegada dos Dzules,
os espanhóis. A banda recupera um dos textos do Chilam Balam que profetizam a invasão. Esse
Katún antecede o 11 Ahau que é o momento a partir do qual narra-se a introdução do
cristianismo e a toda a catástrofe que se assola sobre os territórios mais remanescentes. Na letra
da música, há referência sobre a morte do sol e da lua: “Lua e Sol cairão, céu e terra
desaparecerão.” Uma releitura de uma passagem justamente do 13 ahau do Chilam Balam:
“Devorado será el rostro de su Sol y devorado será el rostro de su Luna [...] y dará su paga al
mundo con muertes repentinas arrebatadas y sin motivos. (VV.AA., 1963, p. 75). A letra da
música, no entanto, não se atém tanto a uma crítica da invasão, concentrando-se principalmente
na desolação estética que isso causaria ao mundo maia: “o Chilam do alto do templo contempla
a morte. O décimo terceiro katún, a prisão dos seus deuses.” Essa suposta crítica é
obliterada por uma ideia de redenção que se dá no final da música: “Será o grande sono, mas a
alma do templo voltará. A alma do templo voltará.”
Na música que intitula o álbum, “Legados do inframundo”, há uma nova tradução
cultural ocidental. A saga agora é chamada de odisseia: “Na odisseia mítica da morte/Minhas
forças emanam da dor”. Neste momento surgem o novamente os Gêmeos Hun Ah Pu e X Balam
Ke3, agora postos às novas provações dos senhores de Xibalba, ou seja, a passagem pelas casas
de padecimento. Na música são citadas todas elas, tais quais constam no Popol Vuh: Qequmal
Haa (Casa da Escuridão), Xuxulim Haa (Casa do Calafrio), Balami Haa (Casa do Jaguar), Zotzi
Haa (Casa do Morcego), Chayim Haa (Casa da Faca):
Qequma Haa / Caminho nas trevas / Xuxulim Haa / Ventos gélidos de pavor
/ Balami Haa / O Jaguar caminha ao meu lado /Zotzi Haa / Criaturas do sangue
/Chayim Haa /Navalhas que cortam minha pele. (MIASTHENIA, 2014).
Transcrevemos abaixo, em nível de comparação, o texto tal qual aparece no Popol Vuh:
E assim eles foram à Qequmal Haa (Casa da Escuridão). / Dentro da casa era
só escuridão / [...] / Assim, Hun Hun Ah Pu então foi, / E Vuqub Hun Ah Pu
também, para dentro da Qequma Haa. [...] / Pois muitas são as provas de
Xibalba, / Todos os tipos de provas. / A primeira delas é a Qequma Haa, /
Inteiramente escura por dentro. / E a segunda é chamada Xuxulim Haa (Casa
do Calafrio), / Extremamente fria por dentro, / Realmente insuportável, /
Realmente intolerável, / Com um frio espantoso / Saindo de dentro dela. / E
3 A banda usa a denominação comumente utilizada em versões populares do mito, “Hunahpú” e “Ixbalanqué”.
a terceira é chamada Balami Haa (Casa do Jaguar). / Só há jaguares dentro. /
Eles estão todos entrelaçados; / Estão todos apertados uns contra os outros. /
Eles estão furiosos. / Jaguares prisioneiros se agitam pela casa. / Zotzi Haa
(Casa do Morcego) é o nome da quarta provação. / Há apenas morcegos
dentro da casa. / Que guincham sem parar; / Lançam gritos extremos. / Eles
esvoaçam pela casa, / Os morcegos cativos. / Nada / Pode sair. / E a quinta é
chamada Chayim Haa (Casa da Faca). / Só tem facas dentro, / Apenas fileiras
que não acabam mais / De lâminas de facas, / Que retinem por toda parte, /
Que se chocam umas contra as outras lá. (BROTHERSTON & MEDEIROS,
2011, p. 139-141).
Assim, do mesmo modo em que os Gêmeos passam pela provação mítica no texto maia-
quiché, é feita a passagem do eu-lírico musical-Miasthenia pelo Xibalba, como uma espécie de
provação (ou introdução?) para um renascimento. Seria esse um novo, e obscuro, local de
enunciação latino-americano?
Considerações finais
As narrativas cosmogônicas do Popol Vuh e Chilam Balam servem de referência para a
banda de metal pagão Miasthenia, que as usa para a composição de um mundo fúnebre,
obscuro e transgressivo de enunciação. Este mundo pode ser considerado, dadas as condições
de imposição da cultura cristã-ocidental no subcontinente, como um espaço estético-cultural
de negação e resistência. A partir dele, se configuram novas formas de identificação, unindo,
de maneira inusitada, manifestações da cultura globalizada com um “legado” ancestral-
identitário, (maia-indígena). Poderíamos considerar, neste trabalho, a apropriação de tal legado
como uma forma de busca por uma identificação decolonial, que poderíamos aqui definir como
latino-americana. Tais formas de identificação são marcadas por processos de transculturação
e hibridismo que transcendem um modelo, já conhecido, de representação, baseada apenas em
modelos advindos da literatura ou de outras manifestações consideradas representantes da dita
alta cultura letrada. Este trabalho é apenas um movimento nestas outras direções.
Referências
BROTHERSTON, Gordon. Popol Vuh: contexto e princípios de leitura. In: ______;
MEDEIROS, S. (Orgs.) Popol Vuh. São Paulo: Iluminuras, 2011. 478 p.
BROTHERSTON, Gordon.; MEDEIROS, Sérgio. (Orgs.) Popol Vuh. São Paulo: Iluminuras,
2011. 478 p.
CANCLINI, Néstor García. Introducción a la nueva edición. In: _____. Culturas híbridas:
estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: EDUSP, 2013. 385 p.
COUTINHO, Eduardo de Faria. A Literatura Comparada e o contexto latino-americano.
Raído. v. 2. n. 3, Dourados, jan./jun. 2008, p. 21-31.
DIAZ QUIÑONES, Arcadio. Fernando Ortiz e Allan Kardec: espiritismo e transculturação.
Lua Nova. n. 82, São Paulo, 2011, p. 109-138. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ln/n82/a06n82.pdf>. Acesso em: 11 Mai. 2017.
MANEA, Irina-Maria. Norse Myth and Identity in Swedish Viking Metal: Imagining Heritage
and a Leisure Community. Sociology and Anthropology, v. 4, 2016, p. 82-91.
RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en América Latina. 2. ed. Buenos Aires:
Ediciones El Andariego, 2008. 352 p.
VV.AA.. El libro de los libros de Chilam Balam. Tradução de Alfredo Barrera Vásquez e
Silvia Rendón. 2 ed. México: FCE, 1963. 232 p.
DISCOGRAFIA
MIASTHENIA. Legados do Inframundo. Brasil: Mutilation & Misanthropic Records, 2014.
PÁGINAS DA INTERNET
MIASTHENIA. Página do Facebook. Disponível em:
<https://www.facebook.com/miasthenia/> Acesso em: 11 mai. 2017