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Andrea Ciacchi

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MESTRANA: GIOCONDA MUSSOLINI E A ANTROPOLOGIA EM SO PAULO (1938 1969)

Andrea Ciacchi1Professor de Antropologia na Universidade Federal da Integrao Latino-Americana. Doutor em Estudos Ibricos pela Universidade de Bolonha. E-mail: [email protected]

Resumo: Gioconda Mussolini (1913-1969) foi a primeira mulher, no Brasil, a fazer da Antropologia social a sua profisso exclusiva. Alm do ensino na Faculdade de Filosofia (desde 1938), ela realizou pesquisas etnogrficas no litoral norte do Estado de So Paulo, a partir de 1944, e publicou vrios artigos. Em 1945, concluiu o Mestrado em Antropologia na Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo, sob a orientao de Herbert Baldus. Este trabalho dedicado sua trajetria, como docente de Antropologia, no sistema de ensino vigente na Faculdade de Filosofia da Universidade de So Paulo, entre as dcadas de Quarenta e de Sessenta. Nele, reno a maioria dos depoimentos e testemunhos registrados, ao longo da pesquisa, junto aos seus antigos alunos e colegas. O material coletado permite iluminar melhor alguns dos momentos decisivos dos primeiros anos da institucionalizao da Antropologia no Brasil.

Palavras-chave: Gioconda Mussolini; ensino de antropologia, Faculdade de Filosofia da USP

SHIPMISTRESS: GIOCONDA MUSSOLINIAND THE ANTHROPOLOGY AT SO PAULO (1938-1969)

Abstract: Gioconda Mussolini (1913-1969) was the first woman in Brazil, to make of social anthropology its exclusive profession. Besides teaching at the Faculty of Philosophy (since 1938), she made ethnographic research on the northern coast of So Paulo, since 1944, and published several articles. In 1945 completed a Masters in Anthropology at the Escola de Sociologia e Poltica of So Paulo, under the guidance of Herbert Baldus. This work is dedicated to her career as a professor of Anthropology in the Faculty of Philosophy, Science and Letters of University of So Paulo (USP), between the decades of 1940s and 1960s. This paper also gathers and reviews the testimony of her former students and colleagues. The collected material allows a better spotlight on some of the defining moments of the early years of institutionalization of Anthropology in Brazil.

Keywords: Gioconda Mussolini; Teaching Anthropology; Faculty of Philosophy of USP.

A professora Gioconda Mussolini a professora em sala de aula parece sobrepujar as outras Giocondas2Sobre a sua trajetria e produo intelectual, cf. CIACCHI (2007, 2009 e s.d.)

. A sua atuao na docncia, com efeito, a nica que recebe repercusso fora dos praticantes, tambm estritos, da disciplina antropolgica. Isso porque a Cadeira de Antropologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de So Paulo, onde ela atuou a partir de 1944, oferecia disciplinas tambm para os alunos de Histria e Geografia e de Pedagogia, alm do fato de que os estudantes da seo de Cincias Sociais, evidentemente, repartiam-se, depois, entre as trs reas: Sociologia, Antropologia e Poltica. Alguns depoimentos so unnimes na descrio de uma experincia discente fora do ordinrio. Entre vrios, seleciono o de Antnio Augusto Arantes que se formou em 1965:

Era uma grande professora. Ela preparava as aulas, e me lembro que na sala de aula era o maior respeito, porque voc v que a pessoa passou horas e dias preparando. Tinha anotaes e consultava, ela pensava durante a aula. No era uma aula mecnica. [...] Era uma atividade importante pra ela dar aula. No s ela fazia com prazer, como ela fazia bem, com muito empenho (Depoimento pessoal).

Tambm significativo, mas pelo que revela revelia, o sinttico e ingeneroso juzo do prprio chefe de Gioconda, de 1949 a 1965, o prof. Egon Schaden: Gioconda Mussolini, diligente pesquisadora dotada de excepcionais qualidades didticas, em depoimento publicado em 1984, ou seja, quinze anos depois da morte dela (SCHADEN, 1984: 253, grifo meu).A lista de alunos que declaram, em algum lugar ou de alguma forma, ter sido alunos dela significativa: Paula Beiguelman, Fernando Novais, Ecla Bosi, Fernando Henrique Cardoso, Roberto Cardoso de Oliveira, Ruth Correia Leite Cardoso, Eunice Ribeiro Durham, Lourdes Sola, Pedro Paulo Poppovic, Jos de Souza Martins, Antonio Augusto Arantes, Luiz Mott, Francisco Weffort, Antonio Carlos Diegues, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Lencio Martins Rodrigues, Eva Alterman Blay, Ethevaldo Siqueira, Janice Theodoro, Mauro William B. de Almeida... Em companhia de duas geraes de cientistas sociais, historiadores, gegrafos, psiclogos e pedagogos formados pela Universidade de So Paulo e menos conhecidos nacionalmente. Alguns lembram dela mesmo em ocasies em que so chamados para outras recordaes. o caso da ex-aluna e ex-assistente de Gioconda, Eunice Durham, que num evento em homenagem a Florestan Fernandes, depois de enfatizar como esse mestre orientou a leitura atenta de tantos clssicos da sociologia, acrescenta:

Alis, essa lio, a de que necessrio respeitar o trabalho do autor e que toda crtica um trabalho de anlise que te que ser feito a srio, me foi incutida no apenas por Florestan, mas tambm por Gioconda Mussolini, a quem gostaria, neste momento, de prestar uma homenagem paralela (DURHAM, 1987: 22).

Na mesma ocasio (a 1 Jornada de Cincias Sociais da UNESP, realizada em Marlia em 1986), Fernando Henrique Cardoso lembra:

Florestan, que era socilogo e nos fazia ler Weber, Marx e Durkheim, de repente era um dos homens que ao lado de Gioconda Mussolini e de outros eruditos em Antropologia, como Egon Schaden e Emilio Willems, mais sabiam a respeito dessa disciplina (CARDOSO, 1987: 27).

Como testemunho de algum que marcaria o campo da antropologia longe de So Paulo, mas que estudou filosofia na USP (entre 1950 e 1953), reproduzo ainda o curtssimo depoimento de Roberto Cardoso de Oliveira:

[...] bom lembrar que o Bastide dava um curso chamado La sociologie primitive, que eu cito em francs porque o curso era dado realmente em francs. [...] e eu tinha feito tambm um curso de histria da antropologia, nem me lembro se foi como ouvinte ou no, dado pela Gioconda Mussolini, que era uma excelente professora. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996: 197)

Todos estavam, poca, na rua Maria Antnia, de onde Gioconda sairia, tambm, depois daquele outubro de 1968, para os barraces da Cidade Universitria, passando por Paris, Londres e a Itlia, at a morte repentina e precoce no seu sobrado da Vila Pompeia.Quase como uma epgrafe no meio do texto, julgo caber aqui um material curioso, mas que corrobora o sentido daquilo que podemos passar a definir como a formao do mito3A expresso me foi proposta pela professora Bela Feldman Bianco, mas a tomo, aqui, com reservas, por enquanto.

da professora Gioconda. Trata-se de um verbete, no assinado (mas atribuvel ao historiador Lus Soares de Camargo, no mbito de um projeto do Arquivo Histrico Municipal Washington Lus, provavelmente tendo como fonte algum ex-aluno da professora) e publicado apenas na internet, no contexto de um stio dedicado a traar a Histria das ruas de So Paulo e fazer uma espcie de enciclopdia dos logradouros da cidade. A Gioconda Mussolini da rua homnima, no Butant, a poucos metros de um dos portes de acesso atual Cidade Universitria da USP, assim descrita:

A professora Gioconda Mussolini nasceu no ano de 1913. Foi professora do setor de Antropologia do Curso de Cincias Sociais da Faculdade de Filosofia Cincias e Letras da Universidade de So Paulo. Formada sob a orientao de renomados cientistas de vrios pases que lecionaram na Faculdade de Filosofia Cincias e Letras da USP nos anos da sua fundao, e na Escola de Sociologia e Poltica, a professora Gioconda Mussolini logo passou a contribuir, por sua vez, para enriquecer o conhecimento da Antropologia no Brasil, tanto no terreno didtico, como no da pesquisa. Estudiosa infatigvel e extremamente rigorosa consigo mesma, dedicava-se ao preparo das aulas de uma forma tal que seus cursos, transcendendo o estrito objetivo do ensino da Antropologia, transformavam-se em estmulos adoo de uma postura ditada pelos mais altos padres de tica cientfica. Seus alunos, colaboradores e todos aqueles do mesmo metier ou afim que com ela privavam, beneficiavam-se da sua perfeita atualziao no domnio bibliogrfico, que dadivosamente partilhava com os interessados, aos quais sempre franqueou a consulta sua preciosa biblioteca particular. Todo esse comportamento, alis, decorria de uma personalidade harmoniosa, na qual a inteligncia e esprito se conjugavam a uma excepcional e positiva afetividade. Era uma das principais figuras da Antropologia em nosso Pas, estimada e respeitada pelos seus colegas dos diversos Estados. Recentemente retomara de viagem Europa, tendo estagiado em Paris a convite de Lvi-Strauss, seu antigo mestre. [] Faleceu em 28 de maio de 19694http://www.dicionarioderuas.prefeitura.sp.gov.br/PaginasPublicas/ListaLogradouro.aspx. Acesso em 20 de abril de 2015.

. Muito conhecido pelo contexto em que est inserido5Uma coletnea de depoimentos sobre os anos em que a Faculdade de Filosofia funcionou nessa rua da Consolao, com particular referncia ao ano quente de 1968.

o depoimento da dramaturga Consuelo de Castro: E a apaixonante Gioconda Mussolini que no era uma professora, era uma chama, um caminho em forma de mulher (LOSCHIAVO, 1988: 93).Sobre o dia-a-dia das atividades docentes, ainda na rua Maria Antnia, geral6Depoimentos de Antonio Candido (novembro 2005), Joo Baptista Borges Pereira (setembro 2006), Antonio Carlos Diegues (setembro 2006), Renate Viertler (novembro 2006) e Ruth Cardoso (maio 2007), registrados durante a pesquisa.

a lembrana de Gioconda Mussolini como professora de Antropologia Fsica. Nesse sentido, vale lembrar algumas passagens da comunicao apresentada por Egon Schaden na I Reunio Brasileira de Antropologia (Rio de Janeiro, novembro de 1953):

Os programas da Disciplina (hoje Cadeira) [na FFCL da USP] incluram desde o incio questes gerais e especficas de antropologia fsica e de antropologia cultural. O Conselho Tcnico-Administrativo da Faculdade decidiu [...] que [...] antropologia seria tomada em seu duplo aspecto: cultural e fsico. [...]Para os alunos de Cincias Sociais [...] h cursos de ambos os ramos da cincia antropolgica. [...] Na seco de Cincias Sociais, por seu turno, a orientao de ensino dar maior nfase a questes de organizao social e interao humana e s relaes entre sociedade e cultura, sem que, por isso, os alunos da seco sejam dispensados do estudo da antropologia fsica, sob pena de perderem, o que seria lamentvel, viso de conjunto do ser humano, razo de ser da prpria cincia antropolgica. Ademais, no deixa de ser valiosa, para o socilogo, a compreenso das bases e condies biolgicas da vida em sociedade. [...]Nessa exigncia reside uma das principais dificuldades do atual ensino antropolgico no Brasil, uma vez que so poucos os docentes cuja formao universitria abranja todos os setores; s com grande esforo pessoal so capazes de superar a falha, para no a perpetuarem por mais uma gerao. (SCHADEN, 1954: 3-8)

O acesso aos programas da Cadeira de Antropologia, conservados no Setor de Apoio ao Ex-aluno de Graduao da Administrao da Faculdade de Filosofia7S h registro dos programas para os anos de 1952, 1953, 1955, 1959, 1960, 1965, 1966, 1967 e 1968. Agradeo a dona Cau, funcionria da FFLCH, pela sua gentileza e disponibilidade.

, permite contextualizar esse entendimento e alargar a reflexo at abarcar as distintas concepes antropolgicas que se confrontavam nesse perodo e o que, de fato, se praticava nas salas de aula da USP. Julgo necessrio entrar em detalhes, para que as duas questes, a posio de Gioconda Mussolini e as rotinas pedaggicas da Ctedra de Antropologia se iluminem mutuamente e, ao mesmo tempo, facilitem uma recapitulao histrico-metodolgica sobre o ensino de Antropologia, na USP.Para os anos letivos de 1952, 1959, 1960, 1962, 1965, 1966 e 1967 registrada a oferta de um curso de Introduo Antropologia. Em 1952, este curso dividido em 15 tpicos. Dois so gerais: 1. Objeto e divises da antropologia; 2. Desenvolvimento histrico da antropologia. A seguir, aparecem doze tpicos que possvel considerar de antropologia fsica: 3. Elementos de antropometria; 4. Elementos de Somatologia; 5. Elementos de craniologia; 6. O problema da evoluo humana; 7. Estudo descritivo dos principais pr-homnidas; 8. O homo neandertaliensis; 9. O homo sapiens fossilis; 10. O conceito de raa e o problema de classificao racial; 11. Fundamentos genticos da diferenciao racial; 12. Estudo descritivo das principais raas humanas; 13. As raas indgenas da Amrica e o problema de suas origens; 14. Migraes e contactos raciais do ponto de vista da etno-biologia. Finalmente, o ltimo tpico (15. As relaes entre raa e cultura) parece apontar para a direo de uma antropologia cultural. Nesse mesmo ano letivo de 1952 a Ctedra oferece mais dois cursos: Introduo Economia Primitiva e Problemas de Aculturao no Brasil Meridional. Ora, se pacfico que esta ltima disciplina ficava a cargo de Egon Schaden, no h dados certos sobre a diviso de tarefas entre Schaden e, nesse ano, a sua nica assistente, Gioconda Mussolini. Alguma sugesto vem das bibliografias apensas s ementas. No caso da Introduo, h grande quantidade de textos americanos dos anos Trinta e Quarenta, de antropologia fsica, mas, tambm, Franz Boas (Race, Language and Culture), Ruth Benedict (Race: Science and Politics), Arthur Ramos (Introduo Antropologia Brasileira), autores que figuram nas bibliografias de alguns dos cursos de Antropologias frequentados por Gioconda durante o seu Mestrado na Escola Livre de Sociologia e Poltica. razovel imaginar que as aulas fossem subdivididas entre os dois docentes, cabendo a Schaden os assuntos mais diretamente ligados a antropometria, somatologia e craniologia8Vai nesse sentido o depoimento de Lourdes Sola (maio de 2007).

. Mas, j em 1959, o panorama muda. A Introduo Antropologia aborda logo a Caracterizao do objeto da Antropologia dos pontos de vista biolgico e cultural (1 tpico do programa) e, em seguida, a antropologia fsica ocupa apenas metade da ementa. A partir do nono tpico, as aulas enveredam decididamente para a antropologia cultural: 9. Anlise antropolgica do conceito de cultura; 10. Posies metodolgicas no estudo das culturas; 11. reas e ciclos culturais; 12. Cultura e civilizao; 13. Cultura e personalidade; 14. Principais problemas antropolgicos do Brasil; 15. O problema da antropologia aplicada. A bibliografia, muito mais ampla do que em 1953, compreende agora dezenas de obras e de textos de antroplogos culturais e sociais, entre os quais britnicos como Evans-Pritchard, Firth, Lowie, Malinowski, Radcliffe-Brown; norte-americanos como Tylor, Morgan, Boas, Kroeber, Kluckhon, Herskovits, Sapir, Mead, e brasileiros, como Florestan Fernandes (a Funo Social da Guerra entre os Tupinambs), Gilberto Freyre (Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos), Sergio Buarque de Hollanda (Razes do Brasil e Caminhos e Fronteiras), Oliveira Vianna (Populaes Meridionais do Brasil), Arthur Ramos (quase toda a sua produo antropolgica), Antonio Candido (Os parceiros do rio Bonito), alm de textos de professores e pesquisadores estrangeiros que estavam ou estiveram no Brasil, como Roger Bastide, Charles Wagley, Herbert Baldus, Emilio Willems, Donald Pierson. Este programa mantm-se inalterado at 1962. A essa altura, a Ctedra j conta com outros trs assistentes: Ruth Corra Leite Cardoso, Eunice Ribeiro Durham e Amadeu Duarte Lanna. Pelo depoimento de Antonio Augusto Arantes9Em maio de 2007.

, aluno nesse ano e, mais tarde (1966 e 1967), tambm assistente, esse curso geral era ministrado por Gioconda Mussolini; Schaden ficava com Aculturao dos ndios do Brasil10Em 1965, Schaden defenderia a sua tese de ctedra, intitulada, justamente, Aculturao indgena, mais tarde publicada, em 1969, pela editora Pioneira.

e Eunice Durham e/ou Ruth Cardoso lecionavam Problemas de Antropologia Aplicada (para o 4 ano e a Especializao). Para os alunos do Curso de Psicologia, Gioconda tambm ministrava uma disciplina denominada Introduo Antropologia com Destaque dos problemas de Personalidade e Cultura.Em outros anos letivos, porm, o esquema era ainda diferente. Em 1953 houve oferta de dois cursos distintos: Antropologia Fsica (com um desdobramento e ampliao dos itens da Introduo Antropologia de 1952) e Antropologia Cultural, por sua vez subdividido em quatro partes: Introduo, Cultura e Civilizao, Cultura e Personalidade e Contactos raciais e culturais. A oferta era completada por Problemas de aculturao no Brasil Meridional. O mesmo esquema tripartido repete-se em 1955. No tendo depoimentos que permitam identificar a diviso das aulas entre os dois docentes, aqui, mais uma vez, razovel imaginar que as duas disciplinas mais gerais, tanto a de antropologia fsica quanto a de antropologia cultural, ficassem mais a cargo de Gioconda que de Schaden. oportuno lembrar, a esta altura, que o professor Schaden era frequentemente empenhado em viagens no Brasil e no exterior, para palestras, congressos, seminrios e cursos de curta durao. Na sua ausncia (mesmo nos anos em que o nmero de assistentes era superior) era sempre Gioconda que respondia pela chefia da Ctedra e, tambm, por uma carga horria didtica mais elevada11Depoimento de Joo Baptista Borges Pereira (setembro de 2006).

.Em 1965 e 1966 h novas alteraes, mas se mantm a ideia da separao entre antropologia fsica e antropologia cultural. Em 1965, volta a Introduo Antropologia (para o 1 ano de Cincias Sociais), agora novamente equilibrada entre tpicos fsicos e tpicos culturais e sociais; mas, ao mesmo tempo, so ofertados os cursos de Etnografia do Brasil (para o 2 ano de Cincias Sociais), Cultura e Personalidade (para Psicologia), Minorias tnicas e Populaes marginais no Brasil (para o 3 e 4 ano de Cincias Sociais) e Antropologia Cultural (optativo para alunos de Histria e de Geografia). Em 1966, a mesma oferta, sendo que o curso sobre Minorias substitudo, para os alunos do 3 e 4 ano de Cincias Sociais, por outro, denominado Culturas e Sociedade Indgenas do Brasil. Finalmente, a documentao disponvel apresenta as atividades para 1967 e 1968, os primeiros aps a aposentadoria de Schaden e com Joo Baptista Borges Pereira responsvel pela direo da Cadeira. Em 1967, tradicional Introduo acrescentam-se os cursos de Cultura e Sociedade (para o 2 ano de Cincias Sociais), Fome e Trabalho em Sociedades Indgenas do Brasil e O Estudo de Comunidades, ambos para os alunos do 3 e 4 ano de Cincias Sociais. Em 1968, muito provavelmente o ano em que o novo catedrtico teve pela primeira vez plena autonomia para planejar as atividades didticas, o quadro prev um curso de Antropologia (para o 1 ano de Cincias Sociais), dividido em quatro sees: 1. Introduo: A Unidade da Antropologia; 2. O homem como ser biolgico; 3. O homem como ser cultural, e 4. A noo de primitivo em Antropologia. Trata-se, como evidente, de uma verso atualizada e, provavelmente, muito alterada (embora no haja referncia, neste Anurio, bibliografia utilizada) da antiga disciplina de Introduo Antropologia. Paralelamente, os alunos do 2 ano de Cincias Sociais frequentariam o curso de Antropologia Social, que, com essa denominao, aparece pela primeira vez. Aqui, mesmo sem a bibliografia, h vrios elementos que deixam supor a incluso do paradigma estruturalista (conceito de estrutura; parentesco, Incesto e exogamia)12Mauro Cherobim, em depoimento para esta pesquisa, afirma: em 1969, Amadeu [Lanna] voltou da Frana pensando, falando, respirando estruturalismo. Era uma coisa nova e Lvi-Strauss estava no auge da sua popularidade. Era Lvi-Strauss na Frana e Amadeu nas Cincias Sociais da USP.

. Para os alunos do 3 e 4 ano de Cincias Sociais a oferta prev Minorias tnicas e Culturas e Sociedades Indgenas do Brasil. Cursos denominados Personalidade e Cultura e Antropologia e Educao eram oferecidos, respectivamente, para os alunos de Psicologia e de Pedagogia, enquanto uma Antropologia Cultural aparece como optativa para alunos de outros cursos que no o de cincias sociais. necessrio lembrar que o ano letivo de 1968 foi atpico e atormentado, para alunos e professores das Cincias Sociais. As aulas iniciaram, como de costume, no prdio da rua Maria Antnia. Mas a ocupao da faculdade de Filosofia, por parte do movimento estudantil, durante o recesso do meio do ano, e a sucessiva batalha da Maria Antnia, em 3 de outubro, com a morte do estudante secundarista Jos Carlos Guimares, provocaram a interrupo das atividades didticas, que s seriam retomadas plenamente na nova Cidade Universitria, no Butant. Gioconda Mussolini, porm, no esperou que a situao se definisse e, atendendo a um convite (de acordo com os depoimentos da famlia e do prof. Borges Pereira) do seu antigo professor, Claude Lvi-Strauss, na segunda metade de outubro foi a Paris, onde permaneceu at fevereiro ou maro de 1969. Seja como for, esse resumo das ofertas de disciplinas pela Cadeira de Antropologia para alguns cursos da Faculdade de Filosofia permite algumas consideraes gerais e outras que se aproximam mais do objetivo deste trabalho. Se, como se sabe, nos Estados Unidos a antropologia abarca quatro esferas de investigao: a Antropologia Fsica, a Antropologia Cultural, a Lingustica e a Arqueologia, nos anos em que Egon Schaden esteve frente da Cadeira de Antropologia da USP, o ensino da antropologia fsica ao lado da social-cultural foi predominante. Nesse perodo, alis, na Universidade de So Paulo, a reunio das quatro reas seria impossvel. De fato, o ensino de Arqueologia encontrava-se pulverizado em cursos ocasionalmente oferecidos pela Ctedra de Histria e, a partir de 1962, mas por curto e atormentado perodo, no Instituto de Pr-Histria, criado por Paulo Duarte. Por sua vez, a pesquisa arqueolgica no Brasil concentrava-se em campos extra-acadmicos, como principalmente o dos Museus: o Museu Nacional, o Museu Paulista e o Museu Paraense Emilio Goeldi13Cfr., sobretudo, Schwarcz (1993), Ferreira (2010) e Funari (2000).

. Por outro lado, existia na Faculdade de Filosofia, desde a sua fundao, a Cadeira de Etnografia Brasileira e Lngua Tupi-Guarani, criada e regida at a sua aposentadoria, por Plnio Ayrosa, que tambm excursionava pela arqueologia. Segundo Joo Baptista Borges Pereira isso determinava

uma dualidade institucional que cortava, por assim dizer, um campo intelectual e impedia a Antropologia de assumir a sua integralidade como rea de saber, tanto no plano do ensino, como no da pesquisa. Tal situao mantinha-se graas ao prestgio pessoal e poder poltico do professor Ayrosa. Com a morte desse catedrtico, em 1963, Schaden consegue eliminar essa dualidade, vencendo a resistncia da rea da Sociologia, liderada por Florestan Fernandes, que pretendia trazer Herbert Baldus, do Museu Paulista, para reger a cadeira de Etnografia. Cria-se, ento, a cadeira de Lnguas Indgenas do Brasil, que passa para o Setor de Letras [] (PEREIRA, 1994: 4)14Esse desejo do prof. Florestan deve ter sido compartilhado por Gioconda, que fora orientanda de Baldus na ELSP.

.

Mas o que de fato acontece que, logo depois da morte de Gioconda, na Faculdade de Filosofia da USP deixa de ser oferecido o contedo de Antropologia Fsica15Segundo Joo Baptista Borges Pereira (entrevista em setembro de 2006).

. Contedo que, parece evidente pelas declaraes de princpio de Schaden, transcritas acima, mais do que exigncia regimental da faculdade, era mesmo parte integrante de uma ideia de ensino cara ao chefe da Ctedra. Vo na mesma direo, alis, as palavras de Florestan Fernandes na Nota da Editora, por ele assinada enquanto Diretor da Srie de Cincias Sociais da Biblioteca Universitria da Companhia Editora Nacional, na primeira edio da coletnea, Evoluo, Raa e Cultura (leituras de antropologia fsica), com Seleo, organizao e notas de Gioconda Mussolini:

Para concretizar esse objetivo [preencher a lacuna de textos de antropologia fsica] foi convidada a professora Gioconda Mussolini, do setor de antropologia da Seco de Cincias Sociais da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo, freqentemente encarregada do ensino da antropologia fsica nessa escola. Embora no seja uma especialista em antropologia fsica, a professora Gioconda Mussolini rene a experincia e a maturidade, resultantes de longo e profundo tirocnio no ensino da matria, s mais altas credenciais e prestgio cientfico em seu campo de investigaes (FERNANDES, 1969: XI-XII, grifo meu).

As palavras de Schaden e as consideraes de Florestan Fernandes parecem convergir para que se forme diante de ns, nitidamente, a imagem de uma Gioconda Mussolini comprometida com uma incumbncia emergencial, por falta de outra pessoa habilitada: ensinar antropologia fsica embora ela fosse, para todos os efeitos, uma antroploga social. Quase uma misso, mas no um sacrifcio, se prestarmos ouvidos a uma das pessoas que mais estiveram prximas dela, a professora Paula Bieguelman16Comunicao pessoal, maio de 2007.

, que garante ter sido o trabalho de organizao e feitura da coletnea de antropologia fsica a maior contribuio acadmica da professora Mussolini, alm do fato de ela, Gioconda, ter atendido a essa tarefa com o maior entusiasmo. E, tambm, se atribuirmos relevncia aos numerosos testemunhos de ex-alunos de Gioconda, que registram a excelncia dessas aulas e o grande empenho dela em prepar-las e ministr-las. Vale mencionar aqui as palavras da sociloga Heleieth Saffioti: em 1957 [...] tive que estudar a maldita da antropologia fsica, decorar todos aqueles ossinhos. Quem dava a disciplina era a Gioconda Mussolini de quem eu gostava muito (TRINDADE, 2012: 140).A quadripartio americana da antropologia, portanto, no vingou no campo acadmico brasileiro, embora ela aparecesse, por exemplo, j na segunda Reunio Brasileira de Antropologia (Salvador, 1955), cuja organizao foi distribuda em sesses sobre Arqueologia, Antropologia Fsica, Lingstica, Antropologia Cultural, Aculturao e Ensino da Antropologia (CORRA, 1988: 79-98). Sobre essa questo, Lus de Castro Faria, no obiturio de Egon Schaden (texto em que tambm analisa alguns dos programas acadmicos da Cadeira de Antropologia da FFCL, que acabamos de apresentar), volta a oferecer a sua viso crtica, amadurecida, alis, como notrio, num ambiente (o Museu Nacional do Rio de Janeiro) em que a tradio da antropologia fsica e biolgica desempenhou um papel muito consistente:

Na realidade, tanto E. Willems quanto E. Schaden e Gioconda Mussolini foram vtimas de uma sujeio perversa a dispositivos legais, arbitrariamente impostos. O primeiro, formado em Cincias Econmicas, o segundo, em Filosofia, e a terceira, em Cincias Sociais, tiveram que assumir o ensino de uma disciplina para a qual no receberam nenhuma preparao (CASTRO FARIA, 1993: 247).

Mais adiante, porm, o mestre fluminense ameniza: De qualquer modo, certo que os trs de So Paulo fizeram o melhor possvel. Os programas foram bem elaborados, e a bibliografia oferecida, ampla e bem selecionada (Idem). Para encerrar essa discusso, cabe, tambm, sublinhar o fato de que h muito ainda a ser desvendado sobre as prticas de ensino de antropologia na FFCL, nos seus primeiros anos. As lacunas tornam-se mais patentes e lamentveis quando as comparamos grande quantidade e qualidade de textos que permitem reconstruir caractersticas, modelos, modalidades e tendncias do ensino de sociologia, na mesma instituio. A projeo alcanada, no campo das cincias sociais brasileiras por figuras que, como Antonio Candido e Florestan Fernandes, foram alunos do curso e, mais tarde, professores, tem levado publicao de numerosssimas lembranas, memrias e depoimentos, mais ou menos pontuais, que, de fato, permitem uma viso bastante exaustiva do que acontecia nas salas de aula da Maria Antonia, quando se tratava de docentes das duas cadeiras de Sociologia17O trabalho mais recente, nessa linha, a preciosa reconstruo das rotinas acadmicas das duas cadeiras de sociologia da FFCL, nos anos Cinquenta e Sessenta, publicada por Carolina Pulici (2008). Mas cf, tambm, Jackson (2007a, 2007b) e Jackson e Blanco (2014) e Spirandelli (2011).

. Se no perodo herico marcado pelos professores da misso francesa isso compreensvel, pois, afinal, nessa poca, na FFCL, nem se ensinava antropologia, propriamente, a escassez de informaes sobre o perodo 1941-1968 mereceria ser corrigida, urgentemente, atravs de pesquisas mais aprofundadas18A publicao de uma entrevista com Antnio Augusto Arantes (TORRES, 2008) parecia abrir caminho para essa empreitada, mas, depois dela, no houve mais nenhuma contribuio, a no ser o depoimento memorialistico de Joo Baptista Borges Pereira (2013) sobre as aulas de Egon Schaden.

. Desse ponto de vista, a Biblioteca Florestan Fernandes, da atual Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP, dispe de um acervo que est espera de ser observado, analisado e interpretado. Trata-se do acervo pessoal de Gioconda Mussolini, adquiridao pela FFCL em 1971. Em 20 de novembro de 1969, seu sobrinho, Silvio Morello, escreve para o ento catedrtico de Antropologia, Joo Batista Borges Pereira, comunicando que [...] tendo os herdeiros da Profa. Gioconda Mussolini resolvido colocar venda a sua biblioteca prope Universidade de So Paulo a compra da mencionada biblioteca19Processo FFCL n 242/69, folha 2. O processo est conservado na Administrao da atual FFLCH.

. Quatro dias depois, Eurpides Simes de Paula, ento diretor da FFCL, designou uma comisso para dizer da vantagem e utilidade dos livros oferecidos e fazer o levantamento dos mesmos. A comisso, composta por Joo Batista Borges Pereira, Renate Viertler, Thekla Hartmann e Hunaldo Becker, todos (menos Thekla Hartmann) ex-alunos e/ou amigos de Gioconda, emitiu, em 24 de maro de 1970, um parecer substancialmente favorvel aquisio, anexando a listagem das obras: 1027 livros, 71 ttulos de peridicos e 12 obras de referncia. O valor sugerido para a compra foi de 15.800 Cruzeiros Novos. A aquisio foi concluda em 1971. Mas o grande interesse que esse acervo representa, agora, o fato de que Gioconda Mussolini usava os seus livros de forma peculiar. Qualquer usurio da Biblioteca da FFLCH, hoje, que tenha acesso a um desses volumes, vai encontr-los repletos de grifos e anotaes marginais, com lpis e canetas de vrias cores, atravs das quais Gioconda preparava as suas aulas. Alm disso, ela emprestava esses livros, assim fartamente anotados, aos seus alunos que, como muitos deles tm testemunhado, utilizavam as anotaes para as suas atividades didticas. Ela escrevia, grifava, fazia exclamaes, referncias a outros textos: esse rico cabedal de informaes poder oportunamente esclarecer tanto vrios aspectos da personalidade e da posio de Gioconda Mussolini quanto elementos teis para a reconstruo de etapas importantes da histria do ensino de antropologia no Brasil20Devo essa primeira informao ao mais dedicado entre os ex-alunos e colaboradores de Gioconda: o prof. Antnio Augusto Arantes. O acervo dos livros dela encontra-se hoje misturado aos demais livros de circulao normal na Biblioteca da FFLCH.

.Uma primeira observao, baseada apenas na listagem das obras, permite apreender, por exemplo, a grande quantidade de edies originais de obras estrangeiras (de antropologia, mas tambm de histria, sociologia, filosofia, psicologia, semitica etc.), adquiridas antes da sua publicao em traduo portuguesa (quando houve). o caso de todas as obras de Lvi-Strauss, por exemplo, mas tambm de autores como Malinowski, Radcliffe-Brown, Margareth Mead, Robert Redfield, Evans-Pritchard, alm de uma rica marxiana, sobretudo em espanhol. A irm mais nova de Gioconda, Aricl Lisbo, confirma: Gioconda era uma compradora quase compulsiva de livros. Voltando s atividades didticas da professora Gioconda Mussolini, significativo, por testemunhar tanto o papel desempenhado por ela em sala de aula como a sua proximidade dos seus ex-professores, outro relato de Paula Bieguelman, para explicar a dificuldade de acompanhar as aulas ministradas em francs:

[...] felizmente minha classe contava com o auxlio de uma professora querida, Gioconda Mussolini, assistente do prof. Emilio Willems e formada numa das primeiras turmas. Gioconda assistia s aulas conosco e, quando soltava sua simptica risada, ficvamos sabendo que o professor havia dito (em francs) algo engraado. Mas o mais importante que ela tomava apontamentos que, em seguida, repassava para ns, acrescentando oralmente as explicaes necessrias. Grande antroploga e grande figura humana! (BIEGUELMAN, 2004, grifo meu)

A essas orientaes informais, mas que devem ter contribudo para fazer de Gioconda uma figura querida e popular entre os alunos, acrescenta-se a atividade de orientadora formal de trs dissertaes de mestrado, a partir de 1965, quando na Faculdade de Filosofia implantado o chamado Regime Especial dos Cursos de Ps-Graduao (MACIEL et alii, 1978: 120). Assim, a documentao disponvel atesta que Gioconda Mussolini orientou as dissertaes de Amadeu Jos Duarte Lanna (Aspectos econmicos da organizao social dos Suy, 1966 defendida diante de uma banca que compreendia tambm Ruy Coelho e Maria Sylvia de Carvalho Franco), de Renate Brigitte Viertler (Os Kamayura e o Alto Xingu: Analise do Processo de integracao de uma tribo numa rea de aculturao intertribal, 1967 com Paula Bieguelman e novamente Maria Sylvia de Carvalho Franco na banca), e de Angelina Cabral de Teves (A mulher tribal brasileira: Aspectos obsttricos e educacionais). Esta ltima orientao interrompida pela morte de Gioconda, substituda, na tarefa, pelo ento catedrtico, Joo Baptista Borges Pereira. A dissertao ser defendida em 1970, diante de uma banca composta, tambm, por Carlos Drumond e Thekla Hartmann (Idem: 129-136). A proximidade entre orientadora e orientandos devia gerar laos mais fortes e que extrapolavam a relao acadmica, se Gioconda ser, em seguida, madrinha da filha primognita de Renate Viertler e testemunha do casamento de Amadeu Lanna. Esses dois ex-alunos, Renate e Amadeu, finalmente, se tornariam professores assistentes na mesma Cadeira de Antropologia. Outro elemento que se acrescenta a esse quadro o contido, ainda, na narrativa de Paula Bieguelman, que relata que ela e Gioconda, no perodo da mais pesada represso policial, aps a emisso do AI-5, visitavam frequentemente delegacias policiais e a prpria sede do DOI-CODI, na Rua Tutia, no bairro do Paraso, ou do DOPS, no largo General Osrio, com o objetivo de interceder para a soltura de alunos presos com base em suspeitas de ligao com grupos de oposio. Paula Bieguelman conta que a atitude e a postura de Gioconda eram maternas, como se ela quisesse, diante das autoridades, minimizar e justificar as travessuras dos seus meninos. Consta, tambm, que nesse mesmo perodo Gioconda teria escondido na sua residncia alguns alunos, ex-alunos e colegas procurados pela polcia, entre os quais, Francisco Weffort ( poca, orientando de Paula Bieguelman), segundo depoimento de Amadeu Lanna21A informao, porm, no pde ser conferida com o interessado.

. Entretanto, essas informaes no so suficientes para configurar uma eventual militncia esquerdista de Gioconda. Apesar disso, fica sem resposta a indagao suscitada por outra narrativa, a da professora Heleieth Saffioti, que, orientanda de Florestan Fernandes, em 1967, ao preparar a defesa da sua tese de livre-docncia (A mulher na sociedade de classes: mito e realidade), viu formada a banca pelos professores Antonio Candido, Florestan Fernandes, Rui Coelho, Lus Pereira e Gioconda Mussolini. Um membro do Conselho Estadual de Educao que controlava as defesas de teses na ocasio leu a tese de Heleieth, antes da defesa. Ele concluiu que eu era uma comunista, assim como toda a banca. Assim, dois componentes, Lus Pereira e Gioconda Mussolini, foram substitudos22Professora recebe homenagem no Senado. Jornal PUCVIVA n 389 01/04/2002.

. Em outro depoimento, a professora Eleieth d mais pormenores:

Eu indiquei [para participar da banca] a nata da sociologia que estava no Brasil, na poca: Florestan, Ruy Coelho, Antonio Candido, Luiz Pereira e a Gioconda Mussolini, porque eu queria uma mulher, ela era aberta para o assunto e tinha uma vasta cultura. [...] Na USP no houve problemas, mas quando chegou no Conselho, eles foram informados pelo padre que se tratava de uma candidata comunista, de um trabalho comunista, de uma banca comunista [...] Eles no tiveram peito para mexer com as vacas sagradas Antonio Candido, Ruy Coelho e Florestan mas substituram o Luiz e a Gioconda [] (TRINDADE, 2012: 150).

Embora a professora Saffioti no faa meno desse aspecto, necessrio lembrar que, entre os argidores, Gioconda era a nica a no possuir o ttulo de doutor. Mas que a participao de Gioconda nos dramticos eventos ligados represso policial na rua Maria Antnia oscilasse entre a solidariedade firme, o apoio com ternura juvenil23A expresso de Jos de Souza Martins, em depoimento reproduzido, na ntegra, mais adiante.

a afetuosa distncia de perspectivas revolucionrias fica registrado nesse episdio, contado por Jos de Souza Martins24Por e-mail (fevereiro de 2008).

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Durante a ocupao da Faculdade de Filosofia, na rua Maria Antnia, em 1968, Gioconda apoiou a ocupao da escola, ativamente. Dormia no saguo, junto com alunas e alunos de planto. Entrou um dia, durante a tarde, na sala em que eu me encontrava, que era a dos auxiliares de pesquisa da Cadeira de Sociologia i, do Professor Florestan Fernandes. Havia ali outras pessoas. No meio da conversa, contou que os alunos mais ativos no movimento a haviam censurado porque dava esmola a um mendigo, que literalmente "morava" no alpendre fronteiro da escola. Era muito simptico e educado, mulato, s vezes ligeiramente embriagado. Conversava com desenvoltura e os alunos o tratavam com a intimidade de amigo. Gostava da Gioconda e a Gioconda gostava dele. Ele sempre lhe pedia uns trocados para um caf. Ela lhe dava dinheiro suficiente para comer algo substancioso, uma verdadeira refeio, e no s para o caf. Os alunos a reprovavam dizendo-lhe que com a esmola atrasava a revoluo, alimentava o conformismo daquele homem perdido para o movimento revolucionrio em pleno andamento. Comentrio da Gioconda na conversa conosco:- Mas enquanto a revoluo no chega ele tem que comer, no mesmo?

Se os alunos de Gioconda mantm ligaes com a professora, esta, por sua vez, continua prxima dos seus professores. o caso, notadamente, de Emilio Willems, agora seu chefe de Cadeira, com quem compartilhar duas importantes pesquisas de campo. A primeira, realizada em Cunha (SP), em 1945 e 1946, resultar na publicao, em 1948, de Cunha: tradio e transio em uma cultura rural do Brasil. A mesma monografia ser reeditada em 1961, com o ttulo Uma vila brasileira: tradio e transio, omitindo-se assim o nome da cidade, que passa a ser chamada, nesta segunda edio, de Itaipava. Somente em 1987, com a publicao do depoimento de Willems por parte de Mariza Corra (1987: 120), se tem acesso informao de que o trabalho de campo foi realizado

em companhia de Gioconda Mussolini, Francisca Klovrza, Florestan Fernandes, Alceu Maynard de Arajo, Carlos Borges Schimidt e Paulo Florenano, colaboradores dedicados e inteligentes, alguns dos quais, anos depois, viriam a ocupar posies de grande distino nas Cincias Sociais do Brasil.

Pouco depois da publicao da primeira edio do livro de Willems, Gioconda Mussolini publicar na Revista do Museu Paulista, em 1949, uma severa resenha crtica do volume, em que, alis, inicia o seu caminho de distanciamento dos aspectos mais problemticos dos estudos de comunidade (cf. CIACCHI, 2007 e 2009) e do culturalismo teuto-brasileiro. Entretanto, ainda em companhia de Willems, Gioconda Mussolini participara em 1947, da pesquisa na ilha de Bzios, que resultar no livro de Emilio Willems (in cooperation with Gioconda Mussolini, como diz a folha de rosto), Buzios Island; a Caicara Community in Southern Brazil (Monographs of the American Ethnological Society, xx, New York), que s ser publicado em portugus em 2003. No Prefcio edio americana de 1952, a antroplogo alemo informa que

o profundo conhecimento da Professora Mussolini sobre a cultura caiara foi especialmente valioso para se obter um quadro claro da comunidade local. Cada membro do grupo focalizou sua ateno em um aspecto particular da cultura local. Reunies dirias e trocas de experincias e sugestes foram extremamente compensadoras.

Ora, embora no haja mais nenhum detalhe sobre a diviso de tarefas e de focos entre os pesquisadores, nem sobre a organizao logstica e mesmo hierrquica entre eles, claro que a informao que se retm, aqui, a relativa ao profundo conhecimento de Gioconda sobre a cultura caiara. Entretanto, a frase, longe de levar a concluses, constitui mais uma questo a ser resolvida: como complement-la com evidncias que documentem os passos que levaram a assistente de Willems a adquirir essa experincia? Pois o problema que at esse ms de julho de 1947 Gioconda apenas publicara dois artigos sobre o cerco da tainha e o cerco flutuante (1945 e 1946, respectivamente), mas sobre as suas pesquisas na Ilha de So Sebastio (motivao inicial, perodo, durao, equipe, condies etc.), de onde resultaram os dois artigos, nada sabemos. Trata-se, na realidade, de uma dvida que, no estado atual da pesquisa, dificilmente ser resolvida. Mas em volta dela gira a possibilidade de esclarecimento do que se mantm como um dos problemas principais desta investigao: a reconstruo da atividade antropolgica de Gioconda Mussolini sobre o tema da pesca artesanal.A sua colaborao na Revista de Antropologia a outra face de uma medalha j mostrada pelo depoimento de Eunice Ribeiro Durham:

naquele tempo ns, os assistentes, constituamos uma espcie de extenso do catedrtico. ramos ento trs: Gioconda Mussolini, Ruth Cardoso e eu e ramos designadas para escrever resenhas e auxilivamos na correo das provas (trs para cada edio) DURHAM, 2003: 362).

Gioconda participa do Conselho de Redao desde a fundao da revista at o seu falecimento, Ruth Cardoso e Eunice Ribeiro passam a participar na administrao da revista assim que entram na estrutura da Ctedra. E Joo Baptista Borges Pereira corrobora:

A Revista de Antropologia foi um ato pessoal, herico de Schaden. No foi um ato institucional, porque se dependesse da instituio no haveria a Revista, nunca. Ele que fundou a Revista, ele que a idealizou. Quando eu vim pra c, a Antropologia era extremamente minoritria, em todos os sentidos. Tanto qualitativa como quantitativamente. S havia a Gioconda Mussolini e o Egon Schaden (MARRAS, 2003: 327)25Na realidade, como sabemos, havia tambm Ruth Cardoso e Eunice Durham.

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Nesse quadro, o derradeiro esquecimento o fato de a Revista de Antropologia no ter noticiado, nem mesmo num costumeiro e annimo obiturio, a morte de Gioconda Mussolini. Sobre o seu falecimento, alis e estranhamente, h uma pluralidade de verses. No seu depoimento Ruth Cardoso26Em entrevista, maio de 2007.

relata ter levado a colega para casa, de carro, depois de uma aula ministrada, noite, na nova Cidade Universitria, numa segunda-feira, dia 26 de maio de 1969, o que acontecia corriqueiramente sempre que os horrios das duas coincidissem. Como, sempre, Ruth deixou Gioconda na frente do seu sobrado, na Vila Pompeia. Ela soube, no outro dia, que Gioconda subiu as escadas, entrou no seu quarto, sofreu o rompimento do aneurisma cerebral, desmaiou e caiu ao cho. Socorrida pela irm, que morava com ela, e levada a um hospital, morreu dois dias depois, no dia 28 de maio. Essa lembrana da professora Ruth no , evidentemente (at em virtude dos quase quarenta anos que se passaram), incompatvel com outra verso, narrada por Jos de Souza Martins27Por e-mail (fevereiro de 2008).

, que, alis, lhe acrescenta elementos reveladores e coerentes com a imagem que vamos, afinal, vislumbrando dessa mulher:

Estvamos nos chamados barraces, na Cidade Universitria, construdos s pressas, depois do ataque ao prdio da rua Maria Antnia e do fim da revoluo estudantil, que a Gioconda apoiara com ternura juvenil. As aulas da tarde haviam terminado e um pequeno grupo de professores conversava sob a passarela que unia os blocos de salas de aula: Gioconda, Marialice Mencarini Foracchi, Eder Sader e eu. Era uma tarde bonita e de onde estvamos se via, l longe, os lados do Alto da Lapa e do Sumar. Algum perguntou que bairro era aquele, que vamos. Recm chegados Cidade Universitria, vrios de ns no tnhamos ideia de onde que estvamos.Gioconda, como de hbito, estava fumando. Segurava o cigarro da maneira peculiar, que todos conheciam. De repente, sem mais nem menos, disse:- Eu no estou preparada para morrer.Marialice que, literalmente estava condenada morte, portadora que era de uma cardiopatia grave (fizera implante de vlvulas, o que, ela sabia, lhe assegurava uma sobrevida de 5 anos), deu sua gargalhada caracterstica e disse:- Que isso, Gioconda?! Ns ainda vamos enterrar muita gente!Gioconda se queixou dos jovens, dos estudantes, que apoiara e de cujo movimento participara, pelo descaso com os mais velhos, esquecidos com facilidade. Naquela noite, depois das aulas noturnas, tomou o txi do taxista com quem tinha o trato de busc-la quando terminavam as aulas. Teve o derrame no caminho de casa, em que vivia com a irm, que era enfermeira. Como o motorista conhecia o destino, levou-a at l e avisou a irm que Gioconda estava mal. Foi dali para o Hospital do Servidor Pblico, onde morreria dois dias depois.Essa irm da Professora Gioconda contou-me no velrio que Gioconda tinha presso alta, estivera no mdico poucos dias antes, com presso altssima, que lhe recomendou medicao e cuidados. No entanto, ela no s no tomou a medicao, que estava intacta, como foi regularmente s aulas. Nada comentei sobre o que ouvira de Gioconda horas antes do acidente. Mas fiquei com a impresso de que ela, desiludida, optara por morrer.

Mais recentemente, aps o meu encontro com Aricl, irm de Gioconda, tive acesso a outra verso. Segundo ela, a sua ltima aula, nos barraces da nova Cidade Universitria da USP, em 26 de maio de 1969, foi interrompida abruptamente pela chegada da Polcia, que prendeu um aluno dela, acusado de ser subversivo. Gioconda ficou abaladssima e tentou interpor-se. O policial ordenou, ento, que ela fosse junto, acompanhando o rapaz. Quando o Reitor da USP tomou conhecimento do assunto, foi, com diversos professores para a sede do DOPS, no Largo General Osrio (por ironia do destino, a poucas centenas de metros dos lugares da infncia de Gioconda: a rua Trs Rios, a Doutor Rodrigo de Barros, a Avenida Tiradentes), onde conseguiram solt-lo. Teria sido justamente este aluno quem a levou para a casa. Quando chegou ao sobrado onde morava, ela chamou a irm com urgncia, porque estava passando mal. Quando ento desmaiou, em consequncia de rompimento do aneurisma cerebral. Morreu dois dias depois, no Hospital do Servidor Pblico. Confrontado com esta verso, Souza Martins categrico: essa histria inteiramente inverossmil. Gioconda deu sua aula regularmente no perodo da tarde, conversou com o grupo que mencionei, no intervalo entre a tarde e a noite, e deu sua aula noite. Saiu da aula, tomou o txi e teve o derrame no caminho, conforme me contou, no velrio, uma das irms dela. [Irma] De tudo que se sabe, nenhum reitor foi ao DOPS defender ou libertar aluno. Se Gioconda algum dia tivesse ido ou tivesse sido levada ao DOPS, a notcia teria corrido e um nmero grande de professores e alunos teria se manifestado.

Entretanto, a relao entre a morte de Gioconda e a atuao dos rgos de represso, naqueles meses imediatamente sucessivos decretao do AI-5 (que entrou em vigor no dia 13 de dezembro de 1969), reaparece em outro depoimento (este, sim, totalmente inacreditvel, pelo menos do ponto de vista da cronologia que conhecemos), publicado pela dramaturga Consuelo de Castro, que j conhecemos como aluna de Gioconda:

Gioconda morreu depois de assistir a uma cena dilacerante: o Florestan Fernandes fora arrastado para um camburo a fim de prestar depoimentos: que depoimentos pode ter que prestar Florestan Fernandes quelas bestas cenozoicas? Gioconda dava uma aula sobre Revoluo das espcies. Quando soube, saiu da sala sua tribuna maior gritando. Mas voltou, e, com dio santo, continuou a aula, curvando-se para mostrar como caminhavam nossos antepassados do Pleistoceno, e comentou, quase chorando, que as espcies no tinham evoludo porra nenhuma. Cutucava sua peruca, e com ela se abanava esquecendo-se que uma peruca um disfarce. Estava ali, ainda viva, a cabea nua e altiva remoendo aquele desgosto histrico. Pouco tempo depois se no me falha a memria no dia seguinte sofreu um aneurisma cerebral e morreu vendo a espcie involuir (LOSCHIAVO, 1988: 94).

Na realidade, o episdio (ou uma parte dele) refere-se com toda probabilidade, famosa priso de Florestan Fernandes em setembro de 1964, que o prprio socilogo menciona num apndice da sua quase autobiografia, Em busca de uma sociologia crtica e militante (FERNANDES, 1980: 209-212), atravs da reproduo da sua Autodefesa. Alm disso, como sabemos, a morte de Gioconda, em 1969, ocorreu quando a Faculdade de Filosofia j funcionava, embora precariamente, na atual Cidade Universitria, tendo abandonado a Maria Antnia, s pressas, depois da batalha de outubro de 1968.Finalmente, cabe relatar um testemunho recente de Antnio Augusto Arantes, que esteve com Gioconda em Paris, entre final de 1968 e comeo de 1969 e relata que ela, numa breve passagem por Londres, teria feito exames mdicos aprofundados, que a deixaram extremamente preocupada e deprimida. O diagnstico de aneurisma, e a gravidade do seu estado de sade, revelados nessa ocasio, devem ter provocado, como sustenta Arantes, o humor extraordinariamente melanclico de Gioconda aps a sua volta ao Brasil. Concluindo, necessrio lembrar que, segundo Aricl, sua me, Adalgisa, teve a sua morte provocada pela mesma causa, em 1949, aos sessenta anos de idade. Gioconda tinha 56.A morte da professora repercutiu tambm na imprensa. Esse o teor da matria publicada pela Folha da Manh, no dia sucessivo28O recorte encontra-se entre os papis de Florestan Fernandes, conservados, juntamente com o seu acervo bibliogrfico, na Biblioteca da Universidade Federal de So Carlos. Agradeo a bibliotecria Vera Coscia pelo acesso a esse e outros materiais.

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Falece a profa. Gioconda Mussolini, antroploga da USP

Faleceu ontem a professora Gioconda Mussolini, que era a regente de Antropologia do Departamento de Cincias Sociais da Universidade de So Paulo e que foi a primeira antroploga brasileira de notoriedade cientfica mundialmente reconhecida.Foi tambm uma das primeiras brasileiras a ingressar na atividade cientfica e universitria. Ela representava, na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da USP, uma das primeiras geraes de estudantes daquela escola, das quais saiu a maior parte dos atuais pesquisadores da Universidade. Por mais de 25 anos, a professora Gioconda Mussolini se dedicou formao universitria de muitos estudantes na rea da sua especialidade, a Antropologia. A professora Gioconda com quem seus alunos mantinham amplo e aberto dilogo foi estudante e cooperou com os famosos antroplogos Roger Bastide, Claude Lvi-Strauss e Radcliffe-Brown, no tempo em que eles pesquisavam no Brasil.OBRASEntre inmeras obras que escreveu, fruto de suas pesquisas antropolgicas, destacam-se duas obras, consideradas fundamentais: Os meios de defesa contra as molstias e a morte em duas tribos brasileiras: Kaingang de Duque de Caxias e Boror (So Paulo, Separata da Revista do Arquivo Municipal de So Paulo, no. cx, 1946, p. 7-152) e Buzios Island. A Caiara community in Southern of the [sic] Brazil, em colaborao com Emilio Willems (Nova Iorque, Monographs of the American Ethnological Society). Estas obras so citadas no prefcio do professor Florestan Fernandes ao livro Evoluo, Raa e Cultura, em que a autora, professora Gioconda Mussolini, elogiada pela sua profcua atividade universitria. Neste prefcio, so citadas ainda as seguintes obras de sua autoria: Alteraes da estrutura demogrfico-profissional de So Paulo da Capital e do Interior num perodo de catorze anos 1920-1934, Notas sobre os conceitos de molstia, cura e morte entre os ndios Valpidiana, Os Pasquins no Litoral Norte de So Paulo e suas peculiaridades na Ilha de So Sebastio e Persistncia e Mudana em Sociedades de Folk no Brasil uma das suas obras mais conhecidas fora do pas.Seu corpo est sendo velado no prdio da administrao da Faculdade de Filosofia da USP, na Cidade Universitria. O enterro se realizar s 11 horas de hoje.

Cabe, aqui, antes de voltarmos produo intelectual de Gioconda Mussolini, alguma reflexo de ordem mais privada. A minha pesquisa de campo levou-me a ouvir um grande nmero de pessoas que conviveram com ela, na sua grande maioria na esfera pblica. Lembranas e esquecimentos, como vimos, alm de uns poucos documentos oficiais, contriburam para delinear-lhe o perfil acadmico. Entretanto, estava nos acordes do seu temperamento arrastar alunos e colegas para a sua prpria esfera particular. Gioconda era ou pareceu transparente para quase todos. Mas todos concordam em restituir-me dela uma imagem ambivalente, que ainda no quero definir cindida. Vi e ouvi a Gioconda exuberante, vaidosa, alegre, da gargalhada solta, entusiasmada pela vida e pelas pessoas, sempre juvenil, ainda depois da chegada da meia idade. E vi e ouvi, tambm, a Gioconda angustiada, silenciosa, fumante compulsiva, encolhida e recolhida, ferida pela vida. Vi as duas Giocondas, ora em companhia, ora separadas, andarem pelas ruas de So Paulo, pelos corredores e pelas salas de aula da Maria Antnia, pelas praias de Ilhabela, nos congressos, nas bancas de ps-graduao. Mas o meu problema, agora, no compreender essa duplicidade, pelo simples fato de que no se trata de duplicidade. Afinal, nem nos momentos mais depressivos ela deixou de desempenhar as suas tarefas e brilhantemente, at onde se enxerga nem nas ocasies mais felizes e relaxadas lhe faltou a seriedade necessria para elas. Em outras palavras, como cada um de ns, Gioconda Mussolini recebia da vida e a ela retribua de acordo com as circunstncias e as possibilidades que lhe se ofereciam e apresentavam. Ponto pacfico, apesar dessa guerra entre sentimentos.A minha inquietao, aqui, outra, e se coloca mais uma vez na ordem escorregadia das suposies. Assim como Norbert Elias (1995: 10) fez ao debruar-se na trajetria de Mozart, preciso indagar o que esta pessoa considerava ser a realizao ou o vazio da sua vida. Pois aquelas duas Giocondas encontravam-se ora preenchidas ora vazias. relativamente fcil intuir as fontes da realizao. Como lembra um outro ex-aluno dela, Mauro Cherobim29Comunicao pessoal, por e-mail.

, referindo-se ao ambiente na Cadeira de Antropologia em meados dos anos Sessenta, havia esse lado maternal de Gioconda:

Ruth, Eunice, Amadeu e Hunaldo ficaram na Antropologia. Em volta da Gioconda. Que se acomodou como professora. E este grupinho era como que filhos dela. Voc acredita que eu nunca vi a Gioconda sozinha? Ruth e Eunice e o Hunaldo sempre estavam em volta dela. [...] Gioconda mantinha a sua sombra maternal sobre todos eles30Hunaldo Beicker, tambm aluno de Gioconda, contemporneo de Renate Viertler e Antnio Augusto Arantes e, posteriormente, como eles, assistente na Cadeira de Antropologia, uma personagem importante dessa histria. Mas sobre ele caiu um silncio, entre piedoso e constrangido: sempre mencionado pelos membros do grupinho e pelo professor Joo Baptista, mas com inmeras reticncias. Muito amigo de Gioconda, com quem mantinha uma frequentao mais externa aos ambientes da Maria Antnia, teve problemas de sade que no me foram declarados abertamente pelos meus entrevistados. Intuo-os, mas mantenho-me, tambm, discreto, por respeito a eles e a ele. Defendeu sua dissertao de Mestrado (Pobres e favelados em So Paulo: um estudo de caso), em 1972, aps a morte de Gioconda, orientado por Joo Baptista Borges Pereira. Deixou de pertencer aos quadros da USP, dos quais saiu, em ano que no pude averiguar, por conta desses problemas. Em 1990, aparecia ainda como membro do Conselho Editorial da Revista de Antropologia. Morava ainda em So Paulo, poca da minha pesquisa, mas me foi sugerido que no o procurasse para entrevist-lo. Em junho de 2013, o site da FFLCH publicou esta nota: O Departamento de Antropologia tomou conhecimento do recente falecimento do professor Hunaldo Beiker. O professor Hunaldo pertencia rea de Antropologia do antigo Departamento de Cincias Sociais da FFLCH. Registramos aqui nosso pesar pelo falecimento de um professor que muito estimulou seus alunos realizao de pesquisa de campo na cidade de So Paulo, com uma metodologia criteriosa e ao mesmo tempo inovadora.

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Gioconda adotava muitos dos seus alunos, e essa relao se estendia nos anos, mesmo quando os ex-alunos se tornavam colegas e colaboradores (Talvez por ser solteira, sem filhos, acrescenta ainda Cherobim, sem que eu pergunte). O depoimento de Antnio Augusto Arantes vai para a mesma direo, ainda que por outro caminho:

Ela vinha pra Faculdade, que funcionava tarde e a noite. De manh no tinha aula. Ela sempre vinha pra c na hora do almoo e ia pra casa dormir. Jantava todo mundo por aqui, Gioconda [...] ficava nesse barzinho [...] frango passarinho, bater papo, tomar caipirinha [...] Quer dizer, era uma coisa muito intensa. Ento havia uma aliana muito forte entre as pessoas que trabalhavam a. Embora, claro, houvesse diferenas polticas, muitas vezes at conflitos grandes [...]. [Mesmo assim], ns - seus alunos e jovens assistentes - a
chamvamos de professora Gioconda: a senhora... Imagine!

* * *

Essa uma parte do emaranhado de vozes que perfazem o coro da pera e da obra de Gioconda Mussolini. Parece-me razovel afirmar que esse coro j atende a um dos objetivos principais da pesquisa: a definio inicial do lugar ocupado por Gioconda no campo da antropologia brasileira. As narrativas at aqui disponveis confirmam uma das hipteses iniciais: elas silenciam sobre o contedo propriamente epistemolgico, terico e metodolgico dessa posio disciplinar. A trajetria de Gioconda est, razoavelmente, clareada, mas as vozes que contriburam para o seu delineamento (depoimentos, documentos e cruzamentos) ainda permanecem aqum do que seria necessrio clarear. Vida e obra ainda esto em posies mutuamente assimtricas. Temos esqueleto, carne e sangue, mas falta a figura inteira.Nesse sentido, a lacuna mais grave est fora das possibilidades das narrativas: onde estariam os originais da tese de doutorado, no defendida? E por que ela no foi defendida? E qual a relao entre a carreira institucional de Gioconda e o fato de a tese no ter sido defendida? Qual o verdadeiro papel dessa tese (e da falta dela) nas disputas em torno da sucesso e da chefia da cadeira de Antropologia da FFCL, sobretudo em 1965 e 1966? E, finalmente, qual o papel do fato de Gioconda estar no meio dessas disputas a partir de uma posio de gnero, nica mulher num meio hierarquicamente masculino?Segundo depoimento de Antonio Candido, os originais da tese estiveram nas mos do prof. Edgard Carone, amigo pessoal de Gioconda (e, possivelmente, tambm seu ex-aluno), que, depois de ter organizado a edio do volume Ensaios de antropologia indgena e caiara, em 1980, pretendia fazer o mesmo com a tese:

Posteriormente, pretendemos divulgar outros [trabalhos], entre eles a tese preparada para o Doutorado, a que a autora provisoriamente deu o ttulo de Persistncia e cultura em Ilhabela, e que seria defendida na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de So Paulo (CARONE, 1980: 16).

Hoje, sabemos que esse longo texto datilografado, com cerca de 500 laudas, encontra-se conservado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP31Estou me dedicando, neste momento (abril de 2015) organizao do material, com vistas sua publicao. Com relao ao ttulo da tese, os responsveis do IEB a registraram como Estudos pioneiros sobre os caiaras de Ilha Bela. Trata-se de 59 caixas, que tambm contm outros materiais (fichamentos, resenhas, artigos), com numerosssimas anotaes marginais da autora.

Entretanto, o processo de ascenso funcional a que Gioconda se submeteu em 1965 (a promoo a assistente de Schaden, que depois da defesa da sua tese de ctedra pde assumir plenamente a titularidade da cadeira), contm, alm de um Currculo, uma pea de grande importncia para podermos inferir algo mais consistente sobre o que viria a ser essa tese e em que contexto ela se inseriria. Trata-se do Plano de trabalho e pesquisas, assinado pelo prprio Schaden, na dupla qualidade de chefe da Cadeira de Antropologia e orientador de Gioconda. Sinto a necessidade de transcrev-lo integralmente:

Os trabalhos de pesquisa de D. Gioconda Mussolini tm se centralizado ao redor de populaes caiaras. Neste sentido, o seu conhecimento do litoral-norte do Estado de So Paulo, que data de 20 anos, levou-a considerao de uma srie de problemas que foram se colocando rea em virtude no s de uma verdadeira sucesso ecolgica que ali se est verificando, dada a valorizao turstica da regio (colocando o caiara diante de uma situao embaraosa em relao ao uso tradicional da terra), como tambm, de um ponto-de-vista mais estritamente econmico, das vinculaes da rea com um mundo mais amplo, decorrentes da procura da banana (buscada, depois da criao de estradas, por compradores de So Paulo, Minas e Vale do Paraba, em caminhes que servem de veculo de escoamento do produto) e do desenvolvimento da pesca comercial principalmente nos portos do Rio de Janeiro e Santos.Por uma confluncia de circunstncias , as pequenas populaes litorneas, que at h pouco viviam fechadas sobre si mesmas, foram se vendo a braos com problemas que esto a exigir delas uma readaptao scio-econmica-cultural que muito se assemelha a uma situao aculturativa. Em virtude de uma srie de inconsistncias que j pesavam sobre a sua prpria organizao social, bem como de certas orientaes culturais que o tornava mais sensvel a certos estmulos do que a outros, um dos fenmenos mais conspcuos que se patenteia ao observador o recurso do caiara pesca comercial, principalmente na qualidade de mo-de-obra assalariada. Decorrem da duas situaes de grande interesse para a pesquisa:1. Permanncia do pescador e sua famlia nos prprios lugarejos de origem fato permitido pela contribuio monetria dos membros da famlia engajados na pesca, quer se radiquem em Santos ou Rio, quer se ausentem apenas enquanto embarcados, ou seja, continuam a residir na praia de origem. Este um problema de grande alcance terico e prtico e tem merecido a ateno do antroplogo em outras partes do mundo, como por exemplo, os estudos dos antroplogos ingleses sobre o trabalho migrante na frica.2. xodo da mo-de-obra caiara para Santos, com abandono definitivo das pequenas praias litorneas. Este aspecto constitui um captulo importante das migraes rurais-urbanas e, no caso, pode ser abordado com vantagem pelo fato de D. Gioconda Mussolini conhecer precisamente as condies de vida dessas populaes e poder precisar as determinantes do xodo.Em ambos os casos, o especialista encontra campo fecundo para o estudo do processo de integrao de populaes isoladas na rbita dos grandes centros urbanos.Havendo se dedicado, in loco, ao primeiro tema, D. Gioconda Mussolini resolveu realizar uma pesquisa intensiva sobre o segundo. Todavia, ao localizar o campo de trabalho em Santos, no perdeu de vista o primeiro tema, razo pela qual fez da pesca comercial o foco de suas anlises. Assim, embora houvesse apresentado Fundao de Amparo Pesquisa um projeto de trabalho sobre O AJUSTAMENTO DO MIGRANTE CAIARA CIDADE DE SANTOS ANALIZADO ATRAVS DA ATIVIDADE DA PESCA COMERCIAL, o projeto prev o estudo no s da mobilidade de trabalho, como o da sua flutuao. A pesquisa em apreo, apesar de preservar a sua marca de origem o interesse pelas populaes caiaras das pequenas comunidades e visar a apreender, em processo, as alteraes da sua vida local ou o seu xodo e interao na cidade grande, estende-se para abarcar toda a trajetria (alis curta, datando de uns 40 anos a esta parte) do prprio desenvolvimento da pesca em todas as suas implicaes scio-econmicas e culturais nesta importante regio do Estado. Assim, pretende captar, em todas as suas ramificaes inclusive enquanto canais de circulao de bens e servios a trama de relaes que est articulando todo o sul do pas (da Guanabara ao Rio Grande do Sul) numa grande unidade de explorao econmica. Como peculiaridade desta situao no que diz respeito a So Paulo, a pesca que na Guanabara, por exemplo, por excelncia um empreendimento portugus, passa a encontrar no japons um elemento de destaque, razo pela qual esta etnia merecer interesse especial. No menos importante, porm, ser o estudo do prprio caiara como empresrio. Neste caso, prosseguir-se- o inqurito j iniciado a propsito de uma classe especial de empresrios, constituda pelos proprietrios de uma parte apenas dos meios de produo: a rede. Esta classe tem particular interesse no estudo, porquanto a equipe da rede tem possibilidade de permanecer na prpria praia de origem, canalizando para ela capital, e sendo dispensada da necessidade de se radicar em Santos ou para ali flutuar periodicamente.Este projeto de pesquisa foi aprovado pela FUNDAO, que concedeu para a sua realizao uma bolsa de iniciao cientfica a um aluno, pelo prazo de 8 meses (na realidade, 4 para o presente trabalho, porquanto o mesmo pesquisador dever atuar tambm num projeto a cargo de D. Eunice Ribeiro Durham) e um auxlio monetrio para viagens (Santos e Rio de Janeiro) e servios tcnicos. Alm disso, contar com a colaborao de um aluno como voluntrio. A pesquisa propriamente dita iniciar-se- no ms de julho prximo, ms em que ela dever intensificar-se ao mximo aproveitando as frias escolares dos pesquisadores para satisfazer a necessidade de permanncia na cidade de Santos. Em suma: as atividades de pesquisa de D. Gioconda Mussolini, no momento e num futuro prximo, dizem respeito ao seguinte:1. Redao de sua tese de doutoramento sobre populaes caiaras do litoral norte de So Paulo, tendo como principal campo de anlise a Ilha de So Sebastio.2. Pesquisa-de-campo no porto de Santos (com uma pequena viagem ao porto do Rio de Janeiro para esclarecimento de algumas questes sobre o mercado pesqueiro, que ali funciona diferentemente do de Santos), da qual participaro dois alunos, e na qual se usaro entrevistas, questionrios, histricos-de-vida com vistas aos seguintes problemas:A pesca comercial: anlise interna da prpria organizao desse empreendimento, inclusive numa viso diacrnica.

O caiara e a pesca: o caiara como proprietrio e como mo-de-obra assalariada.

A adaptao do caiara (ligado pesca) cidade de Santos ou sua praia de origem. Decorrncia da pesca na fixao e no xodo das populaes litorneas.

Quanto s atividades didticas, D. Gioconda Mussolini est encarregada da regncia do curso Noturno e incumbida, no presente ano, da orientao dos trabalhos dos alunos do Curso de Mestrado (Especializao).

Esse documento permite algumas observaes. Em primeiro lugar, embora isso tenha uma importncia marginal, os dois alunos mencionados so Hunaldo Beicker e Antnio Augusto Arantes. este que lembra:

Ela tinha inteno (eu acho que para esse projeto de tese dela, justamente) de atualizar... Ela j tinha muitos conhecimentos, em Ilhabela. Ela j tinha vrios escritos sobre relaes sociais em Ilhabela. Ela pesquisou l durante muitos anos. Ela conhecia bem as famlias, conhecia todos muito bem. Ela conhecia pais, filhos avs, noras... Mas ela queria atualizar os dados, porque muito tempo tinha se passado entre o perodo em que tinha convivido com essas famlias e o momento em que ela estava escrevendo o trabalho. Ela queria saber em que bairros morava o pessoal de Ilhabela que tinha migrado pra l. Tinha o bairro de Pouca Farinha, que fica perto de um bairro maior, chamado Santa Rosa, que na chegada da balsa do Guaruj. Ento, Hunaldo e eu fomos pra l ela tinha conseguido uma verba da FAPESP. Hunaldo e eu ramos contemporneos, da mesma turma. E ns fomos pra l e fizemos um survey dessas famlias que moravam l, e nos detivemos nas redes de relaes sociais e de parentesco. Ela queria fazer um levantamento exaustivo de cada casa, famlias, etc. E as relaes que estruturavam esta comunidade, de parentesco e vizinhana principalmente. E outras atividades como o trabalho, etc. Que estavam muito articuladas a essas outras. E todo o processo de crescente migrao de famlias, de onde elas vinham e tudo o mais. E ns chegamos a fazer esse levantamento. Ento ns fizemos o campo primeiro para uma observao geral. Ela foi pra Santos tambm. Ns alugamos um apartamento em Santos na Ponta da Praia, que era na frente desse bairro, e a ficamos o Hunaldo e eu por um tempo no muito longo, acho que uns dois meses e meio. Mas antes ns fizemos algumas viagens ao campo. Tivemos o suporte de cinco formulrios que ns criamos e fizemos esse levantamento dos dados para ela e entregamos. Nem me lembro se fizemos uma sistematizao desses dados, mas entregamos um material bom, com certeza32Depoimento, maio de 2007.

.

Os problemas, entretanto, comeam se e quando quisssemos averiguar a autoria do documento. Embora assinado por Schaden, nada impede que a prpria Gioconda, a maior interessada no processo, tenha feito ela mesma um rascunho, eventualmente passado a limpo pelo catedrtico e orientador. Mas o problema maior, nesse caso, constitudo pelo fato de que, aparentemente, o projeto apresentado e aprovado pela FAPESP, sobre os migrantes caiaras seria diferente, distinto, do projeto de tese (sobre populaes caiaras do litoral norte de So Paulo, tendo como principal campo de anlise a Ilha de So Sebastio), que se limitaria, nesse caso, a um estudo de comunidade relativamente simples e de menor flego, ao passo que o projeto FAPESP teria alcance bem maior. Parece-me uma hiptese dificilmente aceitvel, a no ser que essa distino no fosse, justamente, uma exigncia do orientador de Gioconda, o prof. Schaden. Se as palavras de Arantes (eu acho que para esse projeto de tese dela, justamente) no ajudam a resolver definitivamente a questo, oportuno lembrar que na vi Reunio Brasileira de Antropologia, realizada em So Paulo em 1963, portanto dois anos antes da redao desse documento, Gioconda apresentaria um texto, intitulado Os japoneses e a pesca comercial no litoral norte de So Paulo. O artigo seria publicado no vol. 14 (1963) da Revista do Museu Paulista, junto aos demais trabalhos daquela Reunio. Abordei-lhe o contedo em outro trabalho (CIACCHI, 2007), situando-o no contexto da produo impressa de Gioconda sobre temas martimos, mas, aqui, ele ajuda na reconstruo do estado adiantado em que se encontravam os seus estudos, num momento, provavelmente, decisivo para o desenvolvimento da sua tese de doutorado. Fico, ento, com a sensao de que aqui flagramos o primeiro contraste entre orientador e orientanda, alis, talvez, o nico contraste pblico entre eles, relativo a um aspecto extremamente relevante, nesses casos, como o prprio recorte da tese. Recorrendo novamente ao Currculo de 1965, cabe assinalar que nele, na seo Trabalhos publicados, em andamento, etc. (pg. 4) meno do artigo de 1963 seguem dois itens:

Est realizando uma pesquisa sobre A contribuio dos japoneses pesca Paulista. Esse trabalho, que visa a integrar o interesse a propsito da organizao da pesca em nosso litoral (principalmente em seus aspectos sociais) e o interesse sobre a aculturao dos japoneses no Brasil, est sendo feito base de pesquisas na Ilha de So Sebastio, na cidade de Santos e na Ilha Grande (Estado do Rio).

Est redigindo a tese de Doutoramento sobre Um estudo de comunidade, que tem como centro de anlise a Ilha de So Sebastio (litoral-norte do Estado de So Paulo). (grifo meu)

completamente vivel, porm, a hiptese de que, na realidade, a tese de doutoramento buscasse integrar aqueles dois interesses; ou seja, que a tese no se configuraria bem como apenas um estudo de comunidade, mas como um trabalho de mais amplo flego terico e metodolgico, que confirmaria tanto as opes epistemolgicas presentes nos trabalhos anteriores quanto a que se manifesta nesse ltimo artigo de 1963. Disso deriva a tambm verossmil hiptese de que foi justamente a dificuldade de tal integrao de perspectivas e mesmo de alcance temtico a dificultar a redao (ou a defesa) da tese, inclusive diante da provvel discordncia do seu orientador, Egon Schaden, quanto fundamentao e oportunidade de tal empreitada.Nessa discusso, parece-me cabvel introduzir um elemento s aparentemente externo. Nesse mesmo ano de 1963, a Revista de Antropologia (fundada por Schaden, mas, como vimos, tocada por Gioconda, com a colaborao de Ruth Cardoso e Eunice Durham) publica o artigo O estudo sociolgico de comunidades, de Maria Sylvia Franco Moreira (que nesse perodo era assistente de Florestan Fernandes na Cadeira de Sociologia i), no qual a autora faz mais um balano crtico da modalidade clssica desses trabalhos (MOREIRA, 1963: 30). No texto, defende-se

a convenincia de completar a pesquisa de campo com a do passado. [...] Realmente, se quisermos compreender de modo mais completo o tipo de relaes presentes na comunidade estudada, no podemos deixar de dar investigao uma dimenso histrica (Idem: 33).

Em nota a esse pargrafo, a autora cita o estudo de Gioconda sobre Persistncia e mudana em sociedade de folk no Brasil (1955) como nico exemplo de algum que reconheceu a necessidade desse procedimento. Ou seja, provindo do grupo de Florestan (que s em 1972, nos textos em que introduz as vrias sees da coletnea Comunidade e Sociedade no Brasil, por ele organizada, iria retomar, publicamente, essa crtica e essas observaes), levanta-se uma voz importante para separar a abordagem de Gioconda da dos demais praticantes dos estudos de comunidade. Mas o que mais me interessa, aqui, registrar que nesse mesmo artigo, Maria Sylvia prope uma espcie de desiderata epistemolgicos que soam muito afinados ao que Gioconda pretendia com a extenso da sua pesquisa de Ilhabela para Santos e o Rio de Janeiro. A citao longa mas esclarece o meu ponto de vista:

Na reconstruo da estrutura scio-econmica das pequenas comunidades no se pode ficar preso, mesmo que se pudesse contar com documentao satisfatria a respeito, aos processos que se referem estritamente aos ajustamentos internos comunidade tomada por objeto; pelo contrrio, esses processos no podem ser vistos isoladamente, mas luz das determinaes essenciais que definem o sentido das relaes na sociedade mais ampla da qual so parte. Essa orientao implica, evidentemente, em que a viso do socilogo no pode ser exclusivamente dirigida para os fenmenos que tm sido focalizados nos estudos de comunidade. Isto nos conduz ao problema da manipulao do conceito de relaes comunitrias e de sua adequao investigao que visem captar no apenas os fenmenos que dizem estritamente respeito organizao interna da comunidade, mas que tm por objetivo compreend-la luz de sua articulao com a sociedade inclusiva, nica orientao que organicamente, tanto do ponto de vista prtico quanto do terico confere sentido aos estudos de comunidade (Idem: 36-37).

Em seguida, a autora retoma a crtica ao uso corrente do conceito de relaes comunitrias (de parentesco, de vizinhana e de ajuda mtua), para sustentar que ele insuficiente para lograr uma compreenso da pequena comunidade do presente, como situao concreta e para apreender os fatores de mudana de que esto permeadas as pequenas comunidades no presente (Idem: 37). No parece ser outro o programa de pesquisa de Gioconda, no projeto sobre o ajustamento do migrante caiara cidade de Santos analisado atravs da atividade da pesca comercial. Essas observaes, por fim, permitem levantar a hiptese de que existe uma relao de forte interdependncia entre a posio de renovao terica qual havia chegado Gioconda Mussolini no comeo dos anos Sessenta (mas, aqui, independentemente do fato de o projeto FAPESP se referir tese de doutorado ou no) e as observaes crticas a muitos dos pressupostos epistemolgicos correntes na modalidade clssica dos estudos de comunidade, que Gioconda vinha, tambm, criticando, desde o final da dcada de Quarenta (como numa resenha a Cunha, obra de Emilio Willems)), mas que aqui flagramos num texto de um nome importante da Sociologia uspiana (e florestaniana), produzido no mesmo perodo em que Gioconda mais claramente imprimia aos seus prprios estudos sobre os caiaras essa marca de renovao. Um outro ponto relevante, aqui, implica na necessidade de avanar, at considerar em que medida a falta de ttulo impediu Gioconda de assumir, como todos esperavam, a titularidade da Ctedra de Antropologia. Segundo Ruth Cardoso (Apud CORRA,1995: 55), houve, em 1967, uma tentativa de proposta de contratao temporria de um docente estrangeiro, que servisse de tampo entre a aposentadoria de Schaden e a defesa da tese de Gioconda. Mas ainda a professora Ruth que observa que apesar da alta estima e admirao que colegas e estudantes tinham por Gioconda Mussolini, nunca lhes passou pela cabea contestar o sistema que impedia que uma pessoa sem o ttulo de doutor ocupasse a ctedra (Idem). Est aqui o n do no? O fato que ningum que possa, hoje, testemunhar nessa matria estava, poca, distanciado dos acontecimentos. Os embates, inclusive, ultrapassavam a cadeira de Antropologia, se, pouco depois da designao de Joo Baptista Borges Pereira, as duas amigas de Gioconda, Ruth Cardoso e Eunice Durham abandonam a ctedra e passam para a rea de Poltica. Esta, por sua vez, pouco tempo, antes, havia sido terreno da disputa entre a prpria Paula Bieguelman e Fernando Henrique Cardoso, egresso da cadeira de Sociologia, que sairia vencedor, graas, inclusive, interveno de Florestan Fernandes33Na opinio de Joo Baptista Borges, em entrevista para esta pesquisa. Cf. tambm SILVA (2008).

fato, alis, que teria ocasionado uma rpida, temporria, mas intensa ruptura entre Florestan e Gioconda, amiga fiel de Paula Bieguelman, como vimos. So escassssimas, pois, as narrativas que permitam esclarecer essa questo. Na realidade, alis, o nico que a comenta com mais liberdade Antnio Augusto Arantes34Em depoimento, maio de 2007. Grifo meu.

:

No momento que o Schaden deixou transparecer que ele sairia, que ia se aposentar, criou um problema srio de sucesso. E a aumentou a presso sobre a Gioconda. Porque ela era a pessoa que poderia e deveria assumir. S que pra que isso acontecesse ela tinha que superar o constrangimento dela mesma com ela. Ento, a fica um conflito pessoal. A abriu uma brecha pra que o Joo Batista entrasse, ele no tinha livre docncia ainda, teve que fazer livre docncia logo depois. [...] A resistncia do Schaden em ter uma mulher como professora. Isso era pelo fato de ser mulher, de ser Gioconda, e pelas duas coisas, dos dois sentidos. Havia uma presso grande na cadeira pra que a Gioconda assumisse. Uma presso de todo mundo. De todo mundo menos o Schaden. E todo mundo menos uns dois ou trs que no acompanhavam. Mas de qualquer forma, era predominante na cadeira de antropologia o entendimento de que a Gioconda deveria assumir a cadeira. Pra isso ela precisaria fazer o concurso pra catedrtico. [...]Mas podia ser que pela insistncia do Florestan, talvez a coisa tenha ficado um pouco pesada com o Florestan, porque eu entendo, at onde eu sei, me parece que o Florestan insistia muito para que a Gioconda defendesse a tese dela. E achava que ela devia fazer porque tinha a obrigao de fazer. Porque ela tinha a obrigao formal. [...] Talvez ela se sentisse assim mais do que cobrada pelos outros. Ela se sentia cobrada. E essa cobrana dela [...] era mais difcil. Porque pra ocupar essa posio, teria que defender o doutorado. [...]. Mas era um enfrentamento. Porque ela era contempornea do Schaden. Eram pessoas da mesma idade, ento, os dois tinham uma tenso entre eles a respeito da cadeira de antropologia e tal, mas era claramente uma tenso. [...] Eles tinham idias diferentes. Eles no se entendiam.

Na falta de outros registros, portanto, no h, ainda, como escapar da fria norma regimental vigente poca. Nem ao fato, de que j temos vrios indcios (na esfera pessoal, na social e na acadmico-institucional), de que existia uma significativa frico entre Schaden e Gioconda. Mas h um outro caminho que nos leva a reencontrar a dor de ser mulher, no destino de Gioconda Mussolini.Todos, mas sobretudo as mulheres entrevistadas, so enfticos em descrever uma Gioconda angustiada por no ter se realizado no casamento: praticamente abandonada no altar duas vezes, a primeira vez por um colega da Faculdade (e de outros momentos institucionais), Mrio Wagner Vieira da Cunha (mais tarde, transferido para o Instituto de Administrao da USP, do qual ser diretor e figura de referncia), a segunda vez por algum totalmente estranho ao meio acadmico, um engenheiro argentino que trabalhava na Volkswagen em So Bernardo do Campo35Informao de Lourdes Sola (maio de 2007).

. Decorre da, tambm, de acordo com elas, a frustrao da maternidade no realizada e transferida para o sobrinho e afilhado, Silvio. Ou tambm deslocada para a sua intensa, carinhosssima relao com os seus alunos, de que temos tantas e significativas evidncias. Esta hiptese permitiria diminuir o peso do seu, tambm to repetido, excesso de insatisfao consigo mesma que, desde o primeiro depoimento de Antonio Candido, parece constituir a verso oficial para a no concluso da tese e para a relativa escassez dos seus trabalhos publicados. Mas como admitir um cenrio em que a mais amada entre todos os professores de Cincias Sociais da FFCL abre mo de peas importantes na sua trajetria institucional e cientfica para substitu-las por um conjunto de afetividades oriundo de frustraes to ntimas? Parece-me que mais do que questionarmo-nos sobre a viabilidade dessa hiptese, cabe refletir se isso poderia ser objeto de narrativas; em outras palavras, se isso teria uma forma de revelabilidade, por parte das tantas pessoas que, interrogadas a respeito de Gioconda, se dispuseram, com entusiasmo, carinho e um toque de indisfarvel saudade, a falar dela. Todas essas pessoas foram alunos da professora Gioconda (inclusive Antonio Candido) e, mais tarde, colegas dela. Podiam perceber isso, poca? Podem revel-lo, agora? No o mais intrigante segredo que ela nos lega, mas algo que aponta para a inadivel necessidade de insistir no desvelamento desse e de outros segredos, certamente capazes de iluminar mais e melhor um momento decisivo da histria da antropologia no Brasil, e, ao mesmo tempo, para a adequao do mtodo biogrfico aqui testado.

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