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LUIZ ANTNIO REIS COSTA

Da mesa de peregrinos ao banquete do Reinoa dimenso escatolgica da eucaristia no Missal Romano de Paulo VI: anlise teolgico-litrgica de textos seletos

Dissertao apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Teologia. rea de concentrao: Teologia Sistemtica Orientador: Prof. Dr. Francisco Taborda, SJ

BELO HORIZONTE FAJE - Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia2008

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Agradecimento

A Dom Luciano Mendes de Almeida (in memoriam) por tudo que a sua luminosa existncia significou. Arquidiocese de Mariana pelo incentivo ao estudo. Ao Prof. Dr. Francisco Taborda, SJ pela orientao competente e segura ao longo desta pesquisa. Aos familiares e amigos pelo apoio e companheirismo.

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Resumo

A liturgia eucarstica lugar teolgico privilegiado da escatologia.

No centro da

celebrao eucarstica e do tratado escatolgico, est o mistrio pascal de Cristo. Em ambos, a ressurreio de Cristo reconhecida como o evento salvfico que inaugura a realidade definitiva. Esta dissertao tem como objeto de sua anlise o Missal Romano de Paulo VI para a compreenso da relao eucaristia-escatologia.

PalavrasChave

Eucaristia, escatologia, orao eucarstica, liturgia, mistagogia.

Summarium

Liturgia eucharistica praecipuus eschatologiae locus theologicus est. In celebrationis eucharisticae atque tractatus eschatologici corde habetur mysterium paschale Christi. In utroque Christi ressurrectio agnoscitur tamquam eventus salvificus inaugurans realitatem definitivam. Dissertatio haec ut propositum habet resolutionis suae Missale Romanum Pauli VI ad relationem inter eucharistiam et eschatologiam intellegendam.

Verbaprincipalia

eucharistia, eschatologia, prex eucharistica, liturgia, mystagogia.

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SUMRIOSIGLAS ................................................................................................................................. 6 Introduo .............................................................................................................................. 7 1 A Liturgia como lugar teolgico da escatologia............................................................... 111.1 Conceito de lugar teolgico.................................................................................................... 11 1.2 A Liturgia como lugar teolgico ..................................................................................... 13 1.2.1 Liturgia como atualizao do mistrio de Cristo (Lex orandi) ...................................... 13 1.2.2 A liturgia como profisso de f (Lex credendi) ............................................................. 14 1.2.3 A liturgia como fonte da prxis crist (Lex agendi) ...................................................... 15 1.2.4 A liturgia como pregustao e espera da realidade escatolgica.(lex sperandi)............16

2 Status quaestionis da relao escatologia-liturgia ............................................................ 182.1 Breve panorama da questo escatolgica na teologia moderna ............................................. 18 2.2 A temtica escatolgica no Vaticano II e sua relao com a liturgia ..................................... 33 2.2.1 Sacrosanctum Concilium: a dimenso escatolgica da liturgia ..................................... 33 2.2.2 Lumen Gentium: a ndole escatolgica da Igreja ........................................................... 35 2.2.3 Gaudium et Spes: a relao Igreja-mundo luz da esperana escatolgica .................. 37

3 Contexto histrico e estrutura do missal romano de Paulo VI ......................................... 413.1 O carter da reforma litrgica ................................................................................................ 41 3.2 Entre o aprofundamento e a crtica......................................................................................... 43 3.3 O missal romano no contexto da reforma litrgica ................................................................ 46 3.3.1 Critrios da reforma do missal ...................................................................................... 47 3.3.2 A estrutura do missal romano de Paulo VI .................................................................... 48 3.3.3 As edies tpicas do missal romano ............................................................................. 50

4 A dimenso escatolgica da eucaristia: anlise litrgico-teolgica de textos seletos do atual Missal Romano ........................................................................................................... 53

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4.1 A orao Eucarstica............................................................................................................... 54 4.1.1 Aproximao conceitual ................................................................................................ 54 4.1.2 4.1.3 Eucaristia: sacramento da escatologia realizada .................................................... 54 A dimenso escatolgica nas Anforas Romanas .................................................. 57

a) A ao de graas/prefcio ................................................................................................ 58 b) Sanctus ............................................................................................................................. 82 c) O ps-Sanctus................................................................................................................... 85 d) O relato institucional ........................................................................................................ 90 e) Anamnese ......................................................................................................................... 94 f) Epiclese........................................................................................................................... 100 g) As intercesses ............................................................................................................... 108 h) A doxologia final e o Amm .......................................................................................... 115 4.2 Ritos da comunho ............................................................................................................... 117 4.2.1 A Orao do Senhor .................................................................................................... 118 4.2.2 Embolismo................................................................................................................... 120 4.2.3 A aclamao doxolgica.............................................................................................. 121 4.2.4 A orao ps-comunho .............................................................................................. 122 a) Natureza da orao ps-comunho ................................................................................ 122 b) O efeito escatolgico da eucaristia................................................................................. 123

Concluso .......................................................................................................................... 138 BIBILIOGRAFIA.............................................................................................................. 147Fontes ......................................................................................................................................... 147 Instrumentos ............................................................................................................................... 147 Bibliografia principal ................................................................................................................. 148 Bibliografia complementar ......................................................................................................... 149

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SIGLAS

DCFC Dicionrio de Conceitos Fundamentais do Cristianismo DE Dicionrio de Espiritualidade DH Denzinger-Hnermann DL Dicionrio de Liturgia DTF Dicionrio de Teologia Fundamental GS Gaudium et Spes IGMR Instruo geral sobre o missal romano (3 edio) LG Lumen Gentium SC Sacrosanctum Concilium

IntroduoA escatologia e a teologia sacramental esto entre os tratados teolgicos que experimentaram as maiores e mais intensas mudanas desde o Conclio Vaticano II (19621965). A escatologia conheceu uma impressionante reviso do seu discurso teolgico. Uma autntica virada copernicana que a libertou dos limites acanhados do tradicional esquema dos novssimos, transferindo-a para horizontes mais amplos, abertos pelo contato com as fontes de sua reflexo e pelas interpelaes da modernidade. O mesmo pode ser dito da teologia sacramental. A longa vigncia do paradigma escolstico marcou profundamente a reflexo teolgica. Suas categorias e conceitos auxiliaram eficazmente a compreenso do mistrio sacramental. Como no reconhecer o valor e a praticidade de categorias como matria, forma, sujeito, substncia e acidente? Todavia, a clareza conceptual da escolstica, no poucas, vezes reduziu os sacramentos ao mbito dos dados objetivos e impessoais, esvaziando-os de seu contedo simblico e perdendo a sua dimenso existencial, celebrativa e eclesiolgica. Por isso o Vaticano II, impulsionado principalmente pelo esprito dos movimentos litrgico e patrstico, promoveu uma renovao da teologia sacramental e da prxis litrgica. Recuperou-se a centralidade do mistrio pascal e a dimenso eclesial dos sacramentos: a Igreja faz os sacramentos e os sacramentos fazem a Igreja. Da a revalorizao do carter comunitrio da liturgia. A prpria Igreja se redescobriu como proto-sacramento daquele que o sacramento fontal: Cristo. Foi iniciado um processo de resgate do simbolismo sacramental, da dimenso pneumatolgica dos sacramentos e da importncia do sujeito e de sua atitude de f ao celebr-los. A dimenso escatolgica tambm foi redescoberta. Os sacramentos so a expresso celebrativa da graa vivificante e escatolgica que Cristo nos oferece pela ao de seu Esprito. Adite-se que a recente teologia sacramental beneficiria da redescoberta da liturgia como lugar teolgico e da volta ao mtodo mistaggico como forma privilegiada de abordagem dos sacramentos. a partir da perspectiva proporcionada por essa dupla redescoberta que este trabalho pretende dissertar sobre a relao eucaristia-escatologia no Missal Romano de Paulo VI.

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O primeiro captulo apresenta a liturgia como lugar teolgico. O pice da revelao, o mistrio pascal de Cristo, celebrado na liturgia. Por sua vez, a fonte da teologia, que a f da Igreja, tambm se manifesta na celebrao litrgica. A liturgia lugar teolgico porque atualiza sacramentalmente o mistrio de Cristo (lex orandi), professa-o de forma pblica e solene (lex credendi) e gera uma autntica prxis crist (lex agendi). O segundo captulo versa sobre status quaestionis da relao escatologialiturgia. Tendo em vista o tema desta dissertao, traamos tambm um panorama histrico da escatologia crist visando apresentar o contexto situacional, as mudanas e conquistas que o debate teolgico moderno promoveu no mbito da escatologia. Analisamos tambm a temtica escatolgica no Vaticano II e as suas relaes com a liturgia. No intentamos elaborar um estudo exaustivo sobre a doutrina escatolgica presente nos documentos conciliares, mas apresentar em linhas gerais os elementos que incidem mais diretamente sobre o tema deste trabalho. Centramos a ateno em trs documentos significativos. Em primeiro lugar, a constituio Sacrossanctum Concilium sobre a sagrada liturgia. Esta constituio, ao tratar da natureza da liturgia, apresenta a dimenso escatolgica do culto cristo. Em seguida, temos a constituio dogmtica sobre a Igreja Lumen Gentium. A Igreja foi o tema central do Vaticano II. Os padres conciliares, ao refletirem sobre a identidade da Igreja, constataram que, sem uma abordagem de sua ndole escatolgica, tal reflexo ficaria incompleta. Por fim, temos a constituio pastoral Gaudium et Spes, que trata de temas escatolgicos (mistrio da morte, mundo futuro, sentido escatolgico do agir humano e outros) em diversas partes do seu texto sem uma rgida organizao sistemtica, mas referindo-se sempre a Cristo ressuscitado como centro da histria e da renovao do cosmos. Em todos estes documentos, aparecem referncias que apontam para a relao entre a liturgia e a escatologia. O terceiro captulo apresenta o contexto histrico e a estrutura do Missal Romano de Paulo VI. A reforma litrgica foi uma das maiores realizaes do Conclio Vaticano II. A elaborao do Missal Romano aparece situada num contexto histrico marcado por etapas distintas que influenciam na composio deste livro litrgico. Este captulo concludo com uma apresentao esquemtica da estrutura desse missal e a caracterizao de suas trs edies tpicas.

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O quarto captulo traz a anlise litrgico-teolgica da dimenso escatolgica da eucaristia no atual Missal Romano. Nele assumimos a lex orandi como fonte eminente da escatologia. Desta forma intentamos perguntar prpria celebrao eucarstica sobre a sua dimenso escatolgica. Sob esta perspectiva, a eucaristia se apresenta como sacramento da escatologia realizada. O Missal Romano de Paulo VI oferece uma rica e abundante eucologia como objeto de nossa anlise. Por este motivo, praticamente todo o Missal Romano pode ser lido e analisado numa abordagem escatolgica. Todavia, a extenso material indicada para esta dissertao pede uma delimitao clara. Optamos pelo estudo das anforas e de alguns elementos dos ritos de comunho. A pesquisa teolgica atual reconhece a anlise da celebrao litrgica, sobretudo das anforas, como forma privilegiada de compreenso da teologia eucarstica vivida pela Igreja em determinado momento histrico. Na anlise das anforas romanas, seguiremos a seguinte estruturao: prefcio, sanctus, ps-sanctus, primeira epiclese, narrativa da instituio, anamnese, segunda epiclese, intercesses, doxologia final. Na anlise dos ritos de comunho, centramos a ateno na Orao do Senhor e no seu embolismo, na aclamao doxolgica e na orao ps-comunho. A opo que fizemos pela anfora e pelos ritos de comunho se justifica diante da relao que identificamos entre estas duas partes da celebrao da eucaristia. Esta relao se torna clara ao refletirmos sobre dois elementos que constituem os seus dois plos: a epiclese sobre os comungantes e a orao ps-comunho. O termo final da epiclese no a transformao das oblatas em Corpo e Sangue do Senhor, mas a transformao dos comungantes em Corpo eclesial de Cristo. Essa splica o pedido fundamental da orao eucarstica. Com acerto foi nomeada epiclese para a transformao escatolgica dos comungantes. A dinmica da orao eucarstica conduz a assemblia celebrante comunho sacramental. A participao na comunho o pice cultual da celebrao eucarstica. A orao ps-comunho a especificao da epiclese sobre os comungantes. Uma especificao em termos de incidncia existencial na realidade concreta de cada comungante e de toda a assemblia celebrante. Pede-se a encarnao do mistrio eucarstico na vida da comunidade crist. Por isso a eucologia romana coloca forte acentuao escatolgica nas vrias oraes ps-comunho. O efeito

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escatolgico da eucaristia aparece freqentemente relacionado s expresses remisso dos pecados e vida eterna e atravs do uso das metforas do banquete ou do convvio. A eucaristia, por ser o sacramento da escatologia realizada, o sacramento do Reino de Deus. Em sua celebrao, temos o penhor do seu advento. Na eucaristia, acontece a primeira realizao do Reino, cuja plenitude se dar na parusia do Senhor. Todavia, os cristos, enquanto esperam vigilantes a vinda gloriosa do Senhor, j podem pregustar a bem-aventurana celeste e antecipar prolepticamente o Reino na histria ao celebrarem a eucaristia. A Igreja se rejubila pelo dom j recebido e espera o cumprimento da promessa ainda no plenamente realizada. Enquanto isso, caminha pressurosa para o ingresso definitivo no banquete do Reino. Por esta razo, a assemblia eucarstica se reconhece e faz suas estas palavras da Escritura: O Esprito e a esposa dizem: vem! Aquele que ouve tambm diga: vem! (Ap 22,17a).

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1 A Liturgia como lugar teolgico da escatologia

1.1 Conceito de lugar teolgico

A teologia compreende lugar teolgico como o conjunto de princpios organizativos pr-estabelecidos que dirige a reflexo teolgica1. Os lugares teolgicos operam como pontos de vista e critrios mais gerais no mbito da epistemologia e da metodologia teolgicas2. A classificao de determinadas fontes como lugares teolgicos nasceu da influncia da retrica e da filosofia clssicas sobre a metodologia teolgica. Essas antigas expresses do saber possuam coletneas denominadas lugares comuns3. Eram conjuntos ordenados de informaes classificadas por temas (citaes, exemplos histricos, figuras do discurso) que o orador ou escritor tinha sua disposio como auxlio na composio de suas obras. Eram como que smulas da realidade, capazes de fornecer material para a construo de um argumento ou discurso. A teologia ir se apropriar do mtodo e do uso dos loci com grande proveito. Todavia esta apropriao se dar segundo duas formas completamente diferentes4. A primeira elaborao provm do ambiente da Reforma atravs de Philip Melanchton (1479-1560). Trata-se de uma das mais importantes obras da nascente metodologia teolgica protestante intitulada Loci communes rerum theologicarum (1521). Para Melanchton, lugares teolgicos so os temas centrais que constituem a estrutura fundamental da Escritura (condio humana decada, pecado, f, justificao, graa, etc.). So como que a ossatura da Bblia. Ao telogo cumpre percorrer estes lugares teolgicos, relacion-los entre si e apresent-los de forma ordenada, sem se desviar da fidelidade Escritura. No ambiente catlico, destacou-se o tratado metodolgico do dominicano Melchor Cano (1509-1560) que influenciou imensamente a teologia catlica posterior. o De locis theologicis (1563). bem outra a perspectiva deste telogo. Cano entende osCf. WICKS, Jared. Lugares teolgicos. In LATOURELLE, Ren; FISICHELLA, Rino. DTF. Petrpolis/Aparecida: Vozes/Santurio, 1994. p. 551. 2 Cf. LIBANIO, Joo Batista; MURAD, Afonso. Introduo teologia: perfil, enfoques, tarefas. So Paulo: Loyola, 1996. p. 34. 3 Cf. WICKS. DTF, p. 551. 4 Cf. WICKS. DTF, p. 551.1

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lugares teolgicos como reas de documentao nas quais a reflexo teolgica pode encontrar a fundamentao e a justificao das doutrinas que expe ou a refutao das posies tidas como no ortodoxas. Cada lugar teolgico possui a sua especificidade e pede um procedimento prprio para ser interpretado. Nisto se percebe que Cano foi muito influenciado pela configurao dos lugares comuns vinda da antiguidade clssica. J. Wicks5 afirma que Cano baseou-se no De Oratore de Ccero ao indicar os lugares como domiclios de todos os elementos necessrios elaborao de uma reflexo. Cano v os lugares teolgicos dispostos em forma hierrquica6. Esta hierarquia se organiza conforme a maior ou menor vinculao de suas partes com a transmisso da revelao divina. Em primeiro plano, encontram-se as chamadas autoridades. Delas podemos colher as expresses da f professada pela Igreja (fides Ecclesiae). So elas: a Sagrada Escritura (que ocupa o primeirssimo lugar), a Tradio de Cristo e dos Apstolos, a autoridade da prpria Igreja Catlica, os Conclios (sobretudo os ecumnicos nos quais reside a autoridade da Igreja), o magistrio do Romano Pontfice, a autoridade dos Santos Padres e os telogos escolsticos. Em segundo plano, aparece a esfera da razo natural que confirma e respalda racionalmente a revelao. Sua mediao se d atravs da filosofia e das vrias cincias naturais. Em terceiro plano, aparecem as ltimas autoridades, assim nomeadas porque no esto rigorosamente ligadas atividade teolgica. So elas a mediao da filosofia e das lies da histria humana. Uma abordagem contempornea das fontes da teologia incluiria lugares ausentes na hierarquia proposta por Cano tais como o testemunho da liturgia e a experincia das Igrejas regionais ou locais7. A teologia moderna fez uma releitura dos loci e situou-os no novo horizonte da atividade teolgica. Os lugares teolgicos passam a ser abordados no s quanto ao seu contedo, mas tambm a partir do seu aspecto formal. Por isso valoriza-se a perspectiva existencial e histrica que estes podem oferecer teologia. A viragem moderna da teologia nos impulsiona, por exemplo, a descobrir a experincia humana como lugar teolgico, j que esta um privilegiado lugar de sentido. Situaes carregadas de densidade existencial tais como a dor, o sofrimento, a morte, a angstia e o vazio existencial possibilitam novos horizontes para a reflexo teolgica. Contextos histricos desafiantes, como o da Amrica Latina, possibilitaram o surgimento da teologia5 6

Cf. WICKS. DTF, p. 551. Cf. ROVIRA BELLOSO, Jos Maria. Introduccin a la teologia. Madrid: BAC, 2000. p. 123-127. 7 Cf. WICKS, DTF, p. 552.

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da libertao. Uma de suas contribuies originais est em reconhecer o pobre como lugar decisivo para teologizar. Estes novos lugares enriquecem a teologia e colocam o cotidiano humano em destaque8. O surgimento de novos lugares teolgicos marca significativa da teologia, sobretudo na ps-modernidade. Analisar o conceito de lugar teolgico tambm deve nos fazer tomar conscincia de que a Revelao envolve e toca a vida humana de muitos e diversos modos (Hb 1,1). Os variados lugares teolgicos atestam esta multiforme ao reveladora de Deus. Em cada um deles, a nica Palavra de Deus se exprime com intensidade e caractersticas prprias. A multiplicidade dos lugares teolgicos tambm demonstra que nenhum lugar tomado isoladamente pode ter o monoplio da autoridade. Aqui notamos o quanto complexo e vasto o processo do auditus fidei9.

1.2

A Liturgia como lugar teolgico

O evento salvfico transmitido pela Palavra celebrado na liturgia. Culminncia da revelao e do culto o Mistrio Pascal de Cristo. Este mistrio expresso simbolicamente e se atualiza nos sacramentos da Igreja. A liturgia torna manifesta, de forma singular, a realidade da f e a experincia que fazemos dela. Justamente por isso converte-se em fonte da teologia. Isto equivale a dizer que a liturgia cumpre, em sentido estrito, a definio de lugar teolgico proposta por Melchor Cano, pois nela reconhecemos a transmisso eficaz do dado revelado. Podemos compreender a liturgia como lugar teolgico a partir da seguinte afirmao: A liturgia lugar teolgico privilegiado porque atualiza sacramentalmente o mistrio de Cristo (Lex orandi), professa-o de forma pblica e solene (Lex credendi) e matriz geradora de uma autntica prxis crist (Lex agendi).

1.2.1 Liturgia como atualizao do mistrio de Cristo (Lex orandi)

A liturgia torna presente e atuante o acontecimento salvfico em cada celebrao. Dentro das coordenadas do tempo e do espao, o mistrio da salvao se torna8 9

Cf. LIBANIO; MURAD, Introduo teologia, p. 34. Cf. WICKS. DTF, p. 552.

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vivo e atual para cada comunidade e para cada pessoa que participa da ao sagrada. O memorial litrgico nos transporta para a totalidade do mistrio pascal de Cristo que tem incio na encarnao e s ser concludo na parusia do Senhor. Todo esse mistrio se faz presente no momento da celebrao litrgica10. A liturgia memria do mistrio. Todavia, memria em sentido muito peculiar. No se trata de mera recordao afetiva ou intelectual do passado. Na celebrao litrgica, por fora do Esprito do Senhor, passado e futuro se encontram na esfera do momento presente. Isto se d de tal forma que no se recorda o acontecimento central da f como um fato passado, mas como uma realidade viva e atual. Na liturgia tambm j se antecipa e pregusta, no hoje da graa, o cumprimento pleno daquilo que esperamos: o futuro absoluto de Cristo que voltar para Deus ser tudo em todos (cf. 1 Cor 15,28).O que acontece na celebrao eucarstica e em toda celebrao sacramental o encontro entre o tempo e a eternidade, encontro possvel somente na f. Nela somos contemporneos da morte e ressurreio de Cristo, como tambm da plenificao do cosmos, a parusia (...) Nossa contemporaneidade com o passado e o futuro possvel graas ressurreio de Cristo, porque, tendo subido aos cus, nele j se realiza essa juno11.

Com muita propriedade assim se expressa a eucologia do missal romano que analisamos neste trabalho:Concedei-nos, Deus, a graa de participar dignamente da Eucaristia, pois, todas as vezes que celebramos este sacrifcio em memria do vosso Filho, torna-se presente a nossa redeno (Orao sobre as oferendas da Quinta-Feira Santa).

1.2.2 A liturgia como profisso de f (Lex credendi)

A liturgia lugar privilegiado para se professar a f crist. A liturgia no apenas uma expresso histrica e cultural do cristianismo. culto onde se proclama a identidade da f crist. culto prestado ao Pai, pelo Filho, no Esprito Santo, em que se celebra, de maneira ativa e operante, o mistrio cristo. Por ser epifania da Igreja, a liturgia manifesta a sua f. No por acaso que a profisso de f ocupa um lugar de destaque na liturgia eucarstica e nos outros sacramentos da iniciao crist. Ao recitar o smbolo, o cristo aprofunda sua adeso a Cristo e faz memria dos grandes mistrios da f. Evidentemente, a eucologia, enquanto forma de10

Cf. TABORDA, Francisco. Esperando sua vinda gloriosa: eucaristia, tempo e eternidade. Itaici: Revista de Espiritualidade Inaciana, So Paulo, n. 61, p. 10. 11 TABORDA, Esperando sua vinda, p. 14-15.

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profisso de f, no se reduz recitao ou canto do Smbolo. A celebrao litrgica, como um todo e em cada uma das suas partes, confessa a f. Pensemos no sinal da cruz no incio da celebrao ou na orao eucarstica que, conforme a sua ndole prpria, constituem uma significativa profisso de f. Lembremo-nos tambm do ano litrgico como proclamao solene da salvao divina que se encarnou no tempo e na histria humana. A liturgia lugar da ortodoxia. A f da Igreja explicitada no somente nos dogmas e nos variados discursos teolgicos. Esta f vivida e celebrada concretamente nos smbolos e nos ritos litrgicos. A celebrao crist verdadeiramente uma forma de teologia primeira. A teologia feita pelo magistrio e pelos telogos a teologia segunda.A (teologia) primeira no menos importante que a segunda. Pelo contrrio, sem a primeira, a segunda perde o contato vivencial com o mistrio, sua fonte originria, sai do caminho seguro, corre o risco de tornar-se rida e estranha revelao. Dando ateno teologia primeira, o telogo mantm a modstia e a atitude doxolgica12.

Professando a f durante a liturgia a assemblia celebrante abraa toda a revelao divina. E o faz como uma adeso sincera a tudo quanto Deus tem revelado, exprimindo esta adeso de f mediante as frmulas eucolgicas. A participao na liturgia supe esta plena comunho na mesma f. Comunho que fruto da atuao da graa e da resposta humana ao Deus que se revela. igualmente importante ressaltar que a liturgia expressa a f de modo evocativo, em contato com o evento fundador. A finalidade primeira da liturgia no expressar a f racionalmente, mas celebr-la existencialmente e transportar-nos sacramentalmente ao evento base da nossa f13. 1.2.3 A liturgia como fonte da prxis crist (Lex agendi)

A liturgia capaz de estabelecer uma orientao prtica que concretiza a f sob a forma do agir. um aspecto freqentemente olvidado quando se trata da liturgia.Na discusso em torno relao teologia-liturgia e a condio de lugar teolgico desta ltima se esquece facilmente um aspecto da vida crist: a tica,

12

TABORDA, Francisco. Lex orandi lex credendi: origem, sentido e implicaes de um axioma teolgico. Perspectiva Teolgica, Belo Horizonte, n. 95, p. 8, 2003. 13 Cf. TABORDA, Lex orandi lex credendi, p. 82.

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a prtica, a vida concreta, que o cho onde a f celebrada vivida e que esta deve impregnar14.

Dado que a orao litrgica sempre uma orao no Esprito Santo, natural que esta produza comunho no s entre os membros da assemblia celebrante, mas tambm os envie queles que esto margem das vrias formas de agregao humana, a fim de acolh-los no corpo eclesial de Cristo. A liturgia, quando autenticamente celebrada e vivida, coloca-nos em atitude de encontro e servio em relao aos necessitados, pobres e excludos de todo o tipo. A liturgia, consciente e frutuosamente celebrada, transforma-se num imperativo concreto e num impulso efetivo para levar a comunho eclesial aos que carecem de paz, dignidade, alegria, perdo e misericrdia como frutos eminentes do mistrio pascal15. A celebrao litrgica revela e dinamiza uma prxis crist. Prxis gerada pela f e pela esperana em vista de sua concretizao na caridade.A vida crist apresenta trs momentos que lhe so intrnsecos; liturgia-f-tica (compreendendo sob esta ltima a prtica da vida crist de cada dia). Se no se leva em considerao a interdependncia dos trs momentos, no se esclarecem as relaes entre quaisquer dos outros dois componentes da trade. Assim como na Trindade no se podem considerar as relaes entre duas pessoas sem levar a srio a terceira, ou seja, sem considerar as duas pessoas em questo na perspectiva intratrinitria total, assim tambm orao-f-agir so trs aspectos da existncia crist to fundamentalmente unidos que toda reflexo sobre a relao entre dois sem o terceiro inadequada16.

1.2.4 A liturgia como pregustao e espera da realidade escatolgica (Lex sperandi) No centro tanto da escatologia como da liturgia crist est o mistrio pascal de Cristo. Em ambos a ressurreio de Cristo proclamada como o evento que inaugura a realidade definitiva. Desde as ltimas dcadas, a teologia sacramental tem vivido um fecundo reencontro com o mtodo mistaggico. Teologia e mistagogia nos revelam a liturgia, e principalmente a eucaristia, como momento por excelncia da celebraoexperincia e da antecipao-espera da realidade escatolgica.A liturgia da Igreja, como testemunham as fontes mais antigas, sempre expressou de maneira exemplar esta viso escatolgica centralizada na ressurreio de Cristo e na espera de sua vinda, reconduzindo tudo celebrao do mistrio pascal, sntese da histria da salvao17.

TABORDA, Lex orandi lex credendi, p. 82-83. Cf. ROVIRA BELLOSO, Introduccin, p. 144-145. 16 TABORDA, Lex orandi lex credendi, p. 83. 17 CASTELLANO, J. Escatologia. In SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. DL. 3. ed. So Paulo: Paulus, 2004. p. 349.15 14

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Por sua vez, a Igreja em orao se compreende como comunidade escatolgica, constituda pela presena do Senhor Ressuscitado que se manifesta de mltiplas formas (Cf. SC 7). Uma comunidade que o corpo eclesial de Cristo e que, celebrando o seu mistrio pascal, espera sua vinda gloriosa. Na liturgia, os grandes temas da escatologia emergem traduzidos em linguagem eucolgica. esta realidade que possibilita uma reflexo teolgica sobre a escatologia a partir da lex orandi. A liturgia celebra o mistrio pascal de Cristo. A f da Igreja, fonte da teologia, manifesta-se na liturgia. Tudo isso habilita a liturgia a ser reconhecida como lugar teolgico. A esperana da Igreja tambm tem a sua epifania no culto litrgico. Nele se manifesta uma autntica Lex sperandi. Por isso, o testemunho da liturgia pode ser assumido como objeto de uma reflexo teolgica sobre a escatologia.

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2 Status quaestionis da relao escatologia-liturgia No ambiente catlico-romano a escatologia e a teologia sacramental foram dois tratados que experimentaram um impressionante processo de renovao, intensificado a partir do Conclio Vaticano II. A escatologia teve a sua virada copernicana, que a deslocou do tradicional esquema dos novssimos (praticamente limitado aos temas da escatologia individual) para a escatologia renovada que se articula numa escatologia da pessoa, da histria e do mundo. Esse novo horizonte da escatologia foi sendo gradualmente ampliado a partir do sculo XIX. A teologia sacramental tambm foi renovada e ampliada. inegvel a contribuio da teologia do segundo milnio para a compreenso dos sacramentos. Todavia a sua clareza conceitual tendia a compreender os sacramentos de maneira fria e impessoal e a quase isol-los do conjunto formado por toda a liturgia. A rigorosa exatido dos conceitos, a nfase jurdica nas condies de validade e liceidade da celebrao colocaram na penumbra dimenses fundamentais da teologia dos sacramentos e a sua articulao viva com o universo litrgico. A reforma litrgica promovida a partir do Vaticano II, e sobretudo a reflexo teolgica que a acompanhou, buscaram superar estes limites. Por isso indispensvel uma abordagem do status quaestionis que aprofunde a compreenso da dinmica histrica que envolveu a relao escatologia-liturgia.

2.1 Breve panorama da questo escatolgica na teologia modernaA partir do final do sculo XIX, consolidou-se um movimento de resgate da centralidade da escatologia na teologia e na vida crist. Este fenmeno, para ser adequadamente situado e compreendido, exige uma viso histrica sobre o

desenvolvimento da escatologia crist. Esta viso histrica tem merecido a ateno de

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vrios telogos que aprofundam a temtica escatolgica1. Dividiremos o desenvolvimento histrico do discurso escatolgico cristo em cinco fases. A primeira fase corresponde aos trs primeiros sculos da era crist. Neste perodo, considerava-se como iminente a parusia. Todavia a imediata vinda gloriosa do Senhor, tal como era esperada por aquela gerao, no aconteceu. Aparece ento a segunda fase que se estende do sculo V ao incio do sculo XIX. Nela a vivncia cotidiana da f crist e as circunstncias histricas e teolgicas exigiram uma reelaborao da esperana escatolgica e a assimilao de uma postura de espera pela plenitude futura2. Esta nova abordagem da escatologia iniciou o traslado da esperana escatolgica para o campo dos novssimos. uma etapa marcada pelo desenvolvimento intenso da escatologia da pessoa e pela pequena nfase nas suas outras dimenses (histrica e csmica). A terceira fase marcada pelo contexto da modernidade, especificamente pelo perodo da Ilustrao. Suas caractersticas principais so a crtica moderna feita escatologia tradicional e as primeiras reaes da teologia, particularmente com o aparecimento da teologia protestante liberal. A quarta fase regida pelo resgate da centralidade do contedo escatolgico da f crist e pelas vrias leituras que dele se fazem. A multiplicidade de abordagens do problema escatolgico redescobre as suas vrias dimenses e rompe o secular confinamento do tratado escatolgico aos limites dos novssimos. Esta fase pode ser situada entre o final do sculo XIX e o incio da segunda metade do sculo XX. Uma quinta fase se desdobra desde as dcadas de 1950 e 1960 at os dias atuais. Nela se desenvolvem dimenses e aspectos da escatologia olvidados ou tratados de forma germinal na fase anterior. a etapa do aprofundamento da escatologia histrica e do resgate e nova contextualizao da escatologia csmica. A busca da significao original da escatologia crist e o seu sentido para o homem contemporneo permanecem como meta e motivao para a reflexo teolgica sobre a escatologia. Para iniciarmos esse panorama, voltemos o olhar para os sculos IV e V. O ambiente cristo dessa poca foi tentado a interpretar a converso do imprio romano f crist como autntica realizao da escatologia. Todavia, aps o edito de Milo, a vida crist experimentou notvel decadncia e ps em questo esta viso. Emergiu o movimento monstico com uma espiritualidade marcada pela fuga do mundo e pela crtica ao pacto1

Cf. ANCONA, G. Escatologia cristiana. Brescia: Queriniana, 2003; BRANCATO, Francesco. Verso il rinnovamento del trattato di escatologia. Bologna: ESD, 2002; RICO PAVS, Jos. Escatologa Cristiana. Murcia: UCAM, 2002. 2 Cf. LEPARGNEUR, Hubert. A protelao da parusia no incio da secularizao do cristianismo primitivo. Revista Eclesistica Brasileira, Petrpolis, v. 31, n. 121, p. 3- 46, 1971.

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com o imprio. Coube a Santo Agostinho enfrentar o desafio da recomposio do discurso escatolgico, sobretudo diante da crise gerada pela posterior queda do imprio romano. Destrudo o imprio, estaria destruda a esperana escatolgica? Agostinho responde negativamente e demonstra a temeridade da identificao da escatologia realizada com algum perodo histrico ou com uma estrutura de poder humano3. A reflexo agostiniana forneceu os fundamentos para uma rejeio vigorosa das vrias formas de messianismo do seu tempo, mas tambm dos sculos seguintes. Da constatarmos que Santo Agostinho operou uma des-messianizao da histria ao transpor a esperana escatolgica para a esfera dos novssimos. O problema do mal e a vitria final de Cristo passaram a ser interpretados mediante a tenso conflitiva entre as duas cidades. A presena do Reino de Cristo (a cidade de Deus) j perceptvel neste mundo atravs da Igreja que anuncia e representa o Reino. Por isso, ao ingressar na Igreja pelo Batismo, o cristo j experimenta uma primeira ressurreio. A plenitude dessa ressurreio se dar por ocasio da vinda gloriosa do Senhor. No pensamento agostiniano, podemos encontrar o esquema de base para a formulao de uma escatologia de dupla fase (morte e juzo particular, tempo intermedirio, segunda vinda de Cristo e juzo final)4. Este esquema, presente nas obras de Santo Agostinho, no possua uma rgida sistematizao. Esta tarefa foi assumida por Juliano de Toledo (sculo VII) em seu Prognstico do Sculo Futuro, obra que consolidou o clssico esquema dos novssimos5. A Idade Mdia caracterizou-se pela concentrao da reflexo teolgica na escatologia da pessoa. Fatores histricos e culturais tambm favoreceram

consideravelmente tal concentrao. Debateu-se sobre o gnero de vida das almas aps a morte e o modo da ressurreio dos corpos (Hugo de So Vtor e Pedro Lombardo), reeditou-se a expectativa milenarista (Joaquim de Fiore)6, debateu-se sobre o juzo, a necessidade da purificao da alma e os sufrgios (So Boaventura e Duns Scotus)7. O grande expoente do pensamento medieval, Santo Toms de Aquino, no elaborou na Suma Teolgica um tratado sobre os novssimos. Colhido pela morte antes desse feito, viram-seMARROU, Henri-Irine. Teologia da Histria: o sentido da caminhada da humanidade atravs da temporalidade. Petrpolis: Vozes, 1989. p. 39-49. 4 AGOSTINHO, A Cidade de Deus. Petrpolis: Vozes, 1992. Parte II: Livros 18 a 22, p. 313-589. 5 POZO, Candido. La doctrina del Prognosticum Futuri Saeculi de San Julin de Toledo. Estudios Eclesiasticos, Madrid, n. 45, p. 173-201, 1970. 6 LADARIA, L. F. O perodo medieval: sistematizao da escatologia pessoal. In SESBO, Bernard (org.). O homem e a sua salvao. So Paulo: Loyola, 2003. v. 2, p. 372-383. 7 MERINO, Jos Antnio; FRESNEDA, Francisco Martnez (org.). Manual de Teologia Franciscana. Petrpolis: Vozes, 2005. v. 1, p. 404-410.3

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os seus discpulos obrigados a completar a Suma Teolgica com um suplemento haurido em suas reflexes quando jovem professor. No suplemento, destaca-se uma viso antropolgica marcada pela perspectiva da alma separada e pelo esquema tradicional dos novssimos. O princpio da alma como forma do corpo, presente no Toms maduro, ainda no est claro nesses primeiros textos. Ressalta-se neles o valor da missa como o sufrgio por excelncia em favor dos defuntos. Por sua vez, o magistrio eclesistico deste perodo emanar declaraes importantes referentes escatologia. Elas esto no IV Conclio de Latro8, em 1215, (parusia, retribuio final e ressurreio dos corpos), no II Conclio de Lyon9, em 1274, (purgatrio, sufrgios, juzo e retribuio) e, principalmente na constituio Benedictus Deus10, em 1336, que canoniza a escatologia de dupla fase. O conclio de Florena11, em 1439, tratar do purgatrio no contexto do debate com a Igreja grega. O Conclio de Trento12 (1545 -1563) abordou a escatologia no contexto das refutaes s crticas feitas pelos reformadores. Reafirmou-se enfaticamente a existncia do purgatrio e o valor dos sufrgios pelos defuntos. Os referenciais da escatologia medieval permaneceram intactos. Do conclio de Trento ao Vaticano II, no apareceram declaraes significativas do magistrio13. Irrompe a modernidade, mas a vida eclesial ainda se pauta por um discurso e por uma prtica conforme o contexto pr-moderno. Os dogmas cristos comeam a receber crticas cada vez mais violentas. Na linha do dilogo com a modernidade, aparece no sculo XIX a teologia liberal.O termo liberalis theologia (...) tencionava indicar com isso um livre mtodo de investigao histrico-crtica das fontes da f e da teologia, que no se sentisse vinculado aos dados posteriores da tradio dogmtica14.

O empenho dos liberais pela des-helenizao do cristianismo levantou crticas contundentes a todos os dogmas cristos sem poupar a escatologia tradicional. Por sua vez, num total distanciamento deste intenso debate, a pastoral e a espiritualidade dessa poca muito valorizam o tema dos novssimos. Os novssimos marcaram profundamente a religiosidade e o imaginrio popular atravs das santas misses, das pregaes e dos

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Cf. DH 801. Cf. DH 856-859. 10 Cf. DH 1000-1002. 11 Cf. DH 1304-1316. 12 Cf. DH 1820. 13 LADARIA, O Conclio de Trento. In SESBO, O homem e a sua salvao, p. 389-390. 14 GIBELLINI. Rosino. A teologia do sculo XX. So Paulo: Loyola, 1998. p. 19.

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escritos e prticas devocionais. Ganharam grande vulto o medo do inferno, as descries topogrficas do alm e a devoo s almas do purgatrio. O advento da modernidade submeteu a sntese medieval da escatologia crtica e depois rejeio. A mentalidade formada pela idade das luzes afirmava que s poderamos conhecer o que se situa dentro dos referenciais de espao e de tempo. Uma realidade que ultrapassasse esses limites s poderia ser objeto de f religiosa. Estaria no plano das coisas que podem ser esperadas e, por esse motivo, no seriam admitidas pelo discurso racionalista e empirista15. No mximo tal esperana escatolgica poderia sobreviver na crena ntima de cada pessoa. A modernidade reelaborou a escatologia secularizando-a. Hegel apontou para uma escatologia cumprida no horizonte das realizaes do esprito absoluto. Marx faz o mesmo, mas assumindo a transformao da realidade mediante as foras histricas. O cientificismo criou a ideologia do ilimitado progresso cientfico, que conduziria a humanidade plenitude esperada. No h espao para a esperana de um mundo futuro de origem sobrenatural. Tudo o que a humanidade deve realizar haver de ser no aqui e agora e no no alm. A teologia se viu diante desse tremendo desafio do dilogo com uma modernidade crtica e at hostil. A primeira tentativa de dilogo aconteceu no ambiente protestante e foi assumida, como j dissemos, pela chamada teologia liberal. Nesse sentido, assumiu-se uma abordagem da f crist aberta crtica histrica. A exegese bblica e a histria dos dogmas foram objeto de especial anlise e debate. Buscou-se a essncia do cristianismo e concluiu-se que pouca coisa do que temos seria autntica. A chamada helenizao da f teria agregado ao discurso cristo elementos que no lhe pertenciam originalmente. Os dogmas nada mais so que uma forma helenizada de compreenso da f. A partir disso, classificou-se como helenizao a nfase na imortalidade da alma em detrimento da ressurreio e como dualista a antropologia presente na escatologia de dupla fase. No que se refere cristologia, concluiu-se que seria impossvel ter acesso ao Jesus histrico. Importa acolher a mensagem tica deixada por Jesus, tido pelos liberais como o mestre de moral por excelncia. Numa reflexo assim configurada, valorizava-se somente

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LA DUE, William J. O guia trinitrio para a escatologia. So Paulo: Loyola, 2007. p. 45-55.

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o contedo tico do cristianismo16. A esperana escatolgica terminou rotulada como mitologia ultrapassada. O resultado foi o esvaziamento escatolgico da f crist. A abolio da escatologia, decretada na prtica pela teologia liberal, provocou reaes fortssimas. Reaes que tiveram seu nascedouro no mesmo ambiente onde a teologia liberal surgiu: o protestantismo. Urgia repensar a escatologia crist aps crticas to severas. O primeiro caminho a ser trilhado foi a pesquisa bblica. A crtica liberal necessitava de anlise e refutao. A polmica rasgou novos horizontes para os estudos bblicos. Tudo isso ocasionou uma releitura dos Evangelhos e de todo o Novo Testamento. A f crist reapareceu como f radicalmente escatolgica. Investigou-se o teor da esperana escatolgica no cristianismo primitivo e o seu conseqente influxo sobre a formulao e vivncia da f. Estabeleceu-se uma crtica sobre o distanciamento histrico experimentado pela reflexo teolgica e pela prxis crist em relao a essa referncia fundamental Os telogos J. Weiss e Albert Schweitzer redescobriram a centralidade da escatologia na vida e na pregao de Jesus. Jesus no pode ser entendido somente como o eminente pregador moral e mestre da virtude. O centro da sua pregao a iminncia da vinda do Reino de Deus17. Karl Barth reprops toda a teologia a partir da afirmao da transcendncia e primazia do Deus que se revela, salva e plenifica a criao. A escatologia tornou-se um dos eixos centrais de sua reflexo18. Rudolf Bultmann defendeu uma necessria desmitologizao do Novo Testamento e apresentou Jesus Cristo como o prprio evento escatolgico, manifestado no momento presente, diante do qual cada pessoa deve decidir aceitando-o ou no. A escatologia de Bultmann centralizada neste momento presente j que de uma escatologia futura nada se pode afirmar. Sua escatologia se concentra na dimenso contempornea da deciso por Cristo19. Bultmann encara o

schaton como a possibilidade, oferecida pela f, de transformar cada momento da existncia em momento escatolgico. (...) a escatologia absorve a histria e a esperana sofre uma contrao privatizante como esperana da alma isolada20.

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Cf. MONDIN, Battista. Os grandes telogos do sculo XX. So Paulo: Paulus/Teolgica, 2003. p. 24-29. Cf. TAMAYO, Juan-Jos. Escatologia crist. Dicionrio de conceitos fundamentais do cristianismo. So Paulo: Paulus, 1999. p. 219-222. 18 Cf. BARTH, Karl. LEpistola ai Romani. Milano: Feltrinelli, 1962. p. 125-166. 19 Cf. BULTMANN, Rudolf. History and Eschatology: the presence of eternity. New York: Harper & Row, 1957. p. 151-152. 20 GIBELLINI, A teologia, p. 280.

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A posio de Bultmann isola a escatologia da totalidade do processo histrico. Por isso surge uma corrente teolgica disposta a rearticular a relao escatologia-histria. Destacam-se neste empreendimento os nomes de Oscar Culmann, Jrgen Moltmann e Wolfhardt Pannenberg. Oscar Culmann trabalhou a dimenso histrica da salvao proclamada na Escritura e articulou uma compreenso do tempo como Kairs. O evento Cristo o ponto intermedirio do tempo e a partir dele deflagra-se o tempo final. dele o celebre binmio j e ainda no21. Jrgen Moltmann aprofundou a significao histricoexistencial da escatologia crist ao transformar a esperana em princpio teolgico central22. A esperana, enquanto princpio, j encontra a sua causa remota na experincia salvfica da promessa e do xodo, e atinge a sua plenitude em Jesus Cristo. Para Moltmann, a esperana no uma simples virtude moral, mas o fundamento radical, o horizonte definitivo e o princpio operante da teologia e de toda a vida crist. Wolfhardt Pannenberg parte de uma interessante perspectiva ancorada na teologia fundamental. sob este ngulo que se desenvolve uma escatologia centrada em Cristo como prolepse reveladora da consumao da histria23. A revelao divina acontece atravs dos acontecimentos histricos. Estes acontecimentos chegam a ns no como fatos brutos, mas como acontecimentos interpretados, manifestando assim o seu sentido. A Palavra desempenha uma tarefa especfica no s em relao ao acontecimento, mas a tudo o que o acontecimento contm e desvela diante da razo humana. Visando dialogar com o ambiente criado pela Ilustrao, Pannenberg valoriza a racionalidade da pessoa humana. Ele postula que a f no se constitui margem da razo ou contradizendo-a. A f pressupe e assume a razo. A Palavra da revelao no s palavra que se pronuncia na histria. Palavra que assume e pressupe a histria e, mais ainda, Palavra que no faz outra coisa seno desvelar uma racionalidade presente na prpria histria. O sentido da histria est contido em sua consumao ou plenitude. H um acontecimento que antecipa esta consumao para onde a histria caminha: Jesus Cristo ressuscitado. Cristo, enquanto prolepse24 antecipatria da plenitude, a mais radical instncia hermenutica do homem e da histria. Cristo quem desvela ao homem o pleno sentido do seu ser e da sua histria. Pannenberg se dispe a algo que mais que uma anlise teolgica da histria emprica,21 22

Cf. CULMANN, Oscar. Salvation in History. New York: Harper & Row, 1967. Cf. MOLTMANN, Jrgen. Teologia da Esperana: estudos sobre os fundamentos e as conseqncias de uma escatologia crist. So Paulo: Herder, 1971. 23 PANNENBERG, Wolfhardt. The Apostles Creed. Philadelphia: Westminster, 1972. p. 171-175. 24 Prolepse entendida como aquilo que se refere realidade futura e, de certa forma, j antecipao dela. O Ressuscitado, por sua condio de primcias da nova criao, antecipa em si a plenitude escatolgica.

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centrada no evento Cristo, tal como fizeram Santo Agostinho ou Culmann. Seu intento refletir sobre o processo que conduz a esta plenitude. Processo que se articula tomando como referncia e fundamento a autotranscendncia do ser humano e a ressurreio do Cristo Senhor25. Dentro desta vertente histrica, a escatologia tambm foi relida numa perspectiva tico-poltica libertadora tanto pela teologia poltica de J. B. Metz quanto pela teologia da libertao. Aqui j presenciamos um intercmbio entre a reflexo teolgica protestante e catlica. Essas teologias conseguem ir alm da reflexo de Moltmann. Elas propem mediaes histricas concretas para a esperana crist, tentam relacionar as utopias histricas com esta esperana e fomentam um engajamento em prol da transformao da realidade26. Com grande sensibilidade histrica, mas sem o vis liberacionista, Paul Tillich na sua Teologia Sistemtica27 aborda uma srie de temas de cunho escatolgico (relao entre o temporal e o eterno, Igreja e Reino escatolgico, Juzo, vida eterna e condenao, ressurreio do corpo), alm de elaborar categorias prprias para desenvolver sua reflexo (essencializao, interesse ltimo e novo ser)28. Todo esse debate fez com que a escatologia voltasse a ser conhecida como um dos eixos centrais da f crist. Fosse omitida esta dimenso, o cristianismo perderia a sua identidade e fora de atrao. Terminaria rebaixado a um balbucio de palavras piedosas que s os ingnuos aceitariam como substituio da realidade29. Apesar de diversificada, h na crtica moderna da escatologia um ponto de convergncia que despertou a ateno e a apreenso de telogos e pastores: a crena de que a construo da histria e a realizao do futuro constituem uma obra que de autoria exclusiva do homem. Estamos diante de perspectivas que rejeitam abertamente ou sequer consideram a possibilidade da presena e da atuao de Deus na histria. As chamadas escatologias imanentes so fundamentalmente de orientao materialista e atia, ainda que nem todas explicitem esta direo diante de um primeiro olhar. A reflexo teolgica reconheceu esta realidade e sentiu-se chamada a tomar um posicionamento.25 26

BRENA, G. La teologia di Pannenberg: cristianesimo e modernit. Casale Monferrato: Marietti, 1993. Cf. TAMAYO, DCFC, p. 220-221. 27 Cf. TILLICH, Paul. Teologia Sistemtica. So Paulo: Paulinas/Sinodal, 1984. p. 297-337. 28 Cf. LA DUE, O Guia Trinitrio, p. 75-82. 29 Cf. AUER, Johann; RATZINGER, Joseph. Escatologa: la muerte y la vida eterna. Barcelona: Herder, 1984.

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Todas estas teorias tornaram mais vigilante o pensamento teolgico sobre o sentido da histria, sobre a esperana crist como construo ativa do futuro, sobre o compromisso com o temporal como preparao indireta para a vinda de Cristo30.

O ambiente catlico, inicialmente fechado e resistente modernidade, teve tambm de ingressar nesse processo. Telogos catlicos, abertos aos desafios de sua poca e desejosos de uma abordagem moderna da teologia catlica, se viram diante de uma dupla tarefa. A primeira era apresentar de forma renovada ao homem moderno os dados da f sobre a escatologia. A segunda tarefa consistia em questionar a teologia clssica e a sua forma de tratar os novssimos, bem como repropor um novo modelo, construdo conforme o aprofundamento dos dados da revelao. Este aprofundamento gerou a rejeio de uma compreenso individualista da escatologia, a superao de uma antropologia dualista e a adoo de formas mais sbrias ao se discursar sobre certos tpicos deste tratado. Deve-se notar que a compreenso da comunidade eclesial sobre as realidades escatolgicas recebeu uma inegvel influncia do imaginrio cultural. Influncia muito maior do que uma abordagem especificamente teolgica. Tratava-se de renovar e recompor todo o discurso escatolgico catlico e, ao mesmo tempo, cuidar da forma pastoral de exp-lo comunidade de f.A expanso escatolgica (...) apanhou desprevenida a antiga escatologia. Tinhase a impresso, por justos motivos, de que a resposta no estava adequada interrogao. Falou-se ento em encerrar o assunto e afixar o cartaz: fechado para restauro. E comeou-se a trabalhar intensamente a fim de colmatar a diferena que parecia cada vez mais incmoda31.

O cumprimento dessa dupla tarefa teve antes que superar tremendas barreiras dentro da prpria teologia catlica. Desde a condenao do movimento modernista no incio do sculo XX, a teologia vigente era a neo-escolstica. Nesse contexto, a escatologia permanecia sendo tratada conforme as referncias dadas pela Suma Teolgica. Era praticamente inadmissvel uma crtica histrica ou um aprofundamento antropolgico das questes escatolgicas. Tais iniciativas corriam o srio risco de serem imediatamente rotuladas como heresia modernista. Os avanos e descobertas promovidos pela exegese bblica moderna eram desconhecidos ou vistos com receio pela maioria dos telogos catlicos, por causa da origem protestante dessas novidades. Todavia era inevitvel um processo que culminasse na releitura do tratado escatolgico no ambiente catlico. O dilogo com a modernidade, mais cedo ou mais tarde, clamaria por essa iniciativa.CASTELLANO, DL, p. 349. FROSINI. Giordano. A teologia hoje: sntese do pensamento teolgico. Vila Nova de Gaia: Perptuo Socorro, 2001. p. 260.31 30

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A realizao de to exigentes tarefas recebeu um notvel impulso a partir do Conclio Vaticano II (1962-1965)32. Entretanto, antes mesmo deste conclio, uma grande movimentao j se fazia perceber. Em primeiro lugar notamos o pioneirismo de Teilhard de Chardin, que inaugura uma nova orientao interpretativa da escatologia. Igualmente importante foi o debate, no perodo pr-conciliar, entre escatologistas e encarnacionistas. Teilhard, influenciado pela contemplao da dinmica evolutiva do cosmos, considera que no existe uma ruptura entre o nosso on e o futuro, que em Deus totalmente novo. H uma continuidade entre os dois ons. O futuro no se impor como algo que vem de fora, erguendo-se sobre a destruio do presente. Pelo contrrio: o fim do mundo antes a sua consumao. A parusia se manifestar numa criao que extravasa as suas potencialidades de comunho. Cristo consumar a unificao universal superando tudo o que provoca dissociao e potencializando tudo o que fora de unidade. Assim estar constitudo o pleroma como complexo orgnico onde Deus e o cosmos se unem numa comunho plena33. A histria evolui irreversivelmente para este estado e, neste processo histrico-evolutivo, o homem chamado a tomar parte ativa. A reflexo de Teilhard de Chardin marcada por um profundo otimismo diante da histria e por uma radical valorizao das realidades deste mundo34. Sua singular hermenutica da escatologia influenciou profundamente o Vaticano II quando este conclio tratou da relao entre Igreja e mundo moderno, da valorizao das realidades terrenas e da compreenso crist da histria35. Aps a 2 Guerra Mundial, os telogos catlicos debateram intensamente sobre o papel da atividade humana na preparao para a parusia. Dois grupos diferentes se formaram. Os chamados escatologistas (L. Bouyer, J. Danilou, Y. Congar) defendiam que a preparao de novos cus e nova terra de ndole interior e invisvel, realizada pelas virtudes da f, da esperana e da caridade. As realizaes da ao humana no tinham nenhum influxo sobre a consumao escatolgica. Queriam assim ressaltar a iniciativa, a absoluta gratuidade e a onipotncia de Deus na nova criao. Os encarnacionistas (D. Dubarle, G. Thils) faziam uma interpretao positiva da histria, vista como uma32

A escatologia presente no Conclio Vaticano II ser objeto de anlise num tpico especfico desta dissertao. 33 Cf. LIBANIO, Joo Batista; BINGEMER, Maria Clara. Escatologia crist: o novo cu e a nova terra. Petrpolis: Vozes, 1985. p. 70-71. 34 Cf. MANCINI, I. (org.). Teilhard de Chardin: materia, evoluzione, speranza. Roma: Paoline, 1983. 35 Cf. GIBELLINI, Rosino. Teilhard de Chardin: Lopera e Le interpretazioni. Brescia: Queriniana, 1980.

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aproximao gradual do Reino de Deus. Afirmavam que haveria certa continuidade da atividade humana no mundo futuro e que o agir humano serve como uma preparao dispositiva para a realidade definitiva. Cada ao humanizadora, limpa de toda mancha e transfigurada por Cristo, poder permanecer no mundo que vir. Todavia desconhecemos como isso se dar. A corrente encarnacionista influenciou fortemente o debate conciliar e deixar a sua marca otimista, sobretudo na constituio pastoral Gaudium et Spes36. Em termos de inovao, cabe tambm ressaltar as notveis contribuies de Karl Rahner, sobretudo o seu empenho em busca de uma hermenutica moderna da doutrina escatolgica37. Rahner, ainda na dcada de 1950, abordou corajosamente o tema da significao teolgica da morte e analisou o artigo do credo que professa a ressurreio da carne. Em sua reflexo, dialogou com as abordagens modernas oriundas do protestantismo e reconheceu a necessidade de uma desplatonizao da escatologia catlica. Constatou que a escatologia de dupla fase justificava a imortalidade da alma, mas no resolvia satisfatoriamente a questo da ressurreio do corpo. Aprofundando sua reflexo a partir dos textos de Santo Toms de Aquino, Rahner insistiu que preciso considerar, da maneira mais sria possvel, que o corpo forma da alma e disto tirar as devidas conseqncias ao tratar de sua ressurreio. Levando em conta os valores da liberdade e da autonomia, to caros ao homem moderno, Rahner reinterpreta a morte como o momento decisrio por excelncia. a chance suprema que tem o homem de realizar o seu maior ato de liberdade38.Karl Rahner deu um carter sistemtico s suas reflexes. Sobre as afirmaes escatolgicas diz que no so uma reportagem sobre os acontecimentos futuros, mas nascem do presente e so uma projeo ou uma extenso do j ao ainda no. J em posse das promessas futuras, ns estamos plenamente autorizados a firmar a sua completa realizao. Os estados finais, j em ato no nosso presente, encontraro no futuro o seu pleno cumprimento. (...). Repete-se, de maneira inversa, tudo quanto o prprio Rahner tinha afirmado a propsito das proposies protolgicas, isto , relativas ao comeo do mundo. Tambm elas no podem ser consideradas como reportagem do passado, mas nascem, sim, da reflexo sobre o presente. a partir da situao atual de misria que o hagigrafo deduz a existncia de uma interveno do homem modificadora do plano de Deus. No caso das afirmaes protolgicas temos a explicao do presente luz do passado, e, no caso das afirmaes escatolgicas, a explicao do presente luz do futuro39.

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Cf. SAYS, Jos Antonio. Escatologa. Madrid: Pelicano, 2006. p.159-160 Cf. RAHNER. Karl. The hermeneutics of Eschatological assertions. In ____. Theological Investigations/IV. Baltimore: Helicon Press, 1966. 38 Cf. RAHNER. Karl. Curso fundamental da f. So Paulo: Paulinas, 1989. p. 502-504. 39 FROSINI, Teologia hoje, p. 261-262.

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Ladislau Boros aprofunda a reflexo sobre o mistrio da morte e sua relao com a opo final40. A avaliao crtica de toda esta retomada da escatologia foi tarefa assumida por Joseph Ratzinger. Ratzinger reconhece a importncia e a centralidade dadas escatologia pelos biblistas e telogos modernos. A teologia da esperana e a teologia da libertao so por ele criticadas por transformarem a escatologia em teologia poltica. O futuro Bento XVI ope-se tambm proposta da ressurreio corporal logo aps a morte e reabilitao contempornea da Apocatstase de Orgenes. Em sua obra encontramos uma releitura moderna da temtica escatolgica e a preocupao de que esta releitura acontea de forma ortodoxa. O diferencial da teologia de Ratzinger reside na busca intensa por uma sintonia com a grande Tradio da Igreja41. Com o propsito de aprofundamento teolgico situa-se a teologia de Jean Danilou. Este telogo toma o movimento de volta s fontes, proposto pelo Vaticano II, e o dilogo ecumnico como suas grandes referncias teolgicas. Danilou redescobriu novos horizontes tanto na abordagem teolgica da histria como na valorizao das fontes bblicas, litrgicas e patrsticas ao tratar da escatologia42. Sua reflexo revela um profundo conhecimento no s da tradio catlica (ocidental e oriental), mas da teologia protestante. Hans Urs Von Balthasar enfatiza a vontade salvfica de Deus como vontade universal que abarca toda a humanidade e toda a criao. Von Balthasar no assume explicitamente a posio de Orgenes sobre a salvao universal. Todavia conhecida a sua insistncia na esperana que devemos nutrir acerca da salvao de todos43. Michael Schmaus, dentro de um esforo por maior sistematizao desta nova fase da escatologia catlica, assume as importantes categorias do Reino de Deus e da histria como ncleos da revelao e referenciais irrenunciveis para se refletir sobre a escatologia44. Em Gustavo Gutirrez, Joo Batista Libanio e Leonardo Boff45, encontramos essa mesma preocupao por uma sistematizao mais clara, porm com uma nfase relacional (pessoa, histria e cosmos) dada pelo enfoque tpico da teologia da libertao e por sua abordagem a partir da

Cf. BOROS, Ladislau. The Moment of Truth: Mysterium Mortis. London: Burns & Oates, 1965. p. 23-29. Cf. AUER; RATZINGER, Escatologa. 42 Cf. DANILOU, Jean. Sobre o mistrio da histria: a esfera e a cruz. So Paulo: Herder, 1964. p. 215224, 238-246. 43 Cf. VON BALTHASAR, Hans Urs. Teodramtica: el ltimo acto. Madrid: Encuentro, 1997. v. 5. 44 Cf. SCHMAUS, Michael. A f da Igreja VI: justificao do indivduo e escatologia. Petrpolis: Vozes, 1981. p. 149-242. 45 Cf. CAMBN, Enrique. A escatologia na teologia latino-americana. In HEINZ, Hanspeter et al. A esperana crist. So Paulo: Cidade Nova, 1992. p. 219-232.41 40

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realidade da Amrica Latina. Ruiz de La Pea46 analisa o contexto histrico das grandes afirmaes do magistrio sobre a escatologia e apresenta uma nova hermenutica. Aparece sua interessante reflexo sobre a eviternidade como forma de conciliar os avanos da teologia contempornea com os dados da Tradio. A dimenso csmica da escatologia tem merecido uma ateno cada vez maior. Ruiz de La Pea trata a escatologia como a Pscoa da Criao. A teologia escatolgica tem diante de si um novo horizonte que se abre cada vez mais. Surge a questo ecolgica que pode ser singularmente iluminada pela escatologia csmica. O mesmo se pode afirmar para os desafios apresentados pelo ecumenismo e pelo dilogo inter-religioso como espaos de debate e aprofundamento. Este breve panorama nos leva a perceber que a reflexo teolgica sobre a escatologia conheceu sensveis mudanas e grandes avanos nas ltimas dcadas. O tratado da escatologia passa pela experincia de um verdadeiro deslocamento no s no que se refere amplitude de sua temtica, mas tambm quanto sua metodologia e hermenutica. O confinamento da escatologia aos novssimos e escatologia da pessoa foi rompido. Ampliaram-se suas fronteiras com o desenvolvimento das dimenses histrica e csmica. Essa nova configurao da escatologia, particularmente na teologia catlica, j possui traos identificveis. Tais traos enriquecem e abrem a reflexo teolgica para novas possibilidades e releituras. Dentre elas a abordagem teolgico-litrgica da temtica escatolgica. Em resumo as grandes caractersticas da escatologia contempornea podem ser assim elencadas: 1- A escatologia coletiva e definitiva (parusia, ressurreio dos mortos, restaurao csmica) ganhou maior relevo frente escatologia individual e intermediria (juzo particular, purgatrio, etc.). 2- A ressurreio de Cristo novamente assumida como o fato escatolgico fundamental. 3- redimensionada a relao entre passado e futuro. Acolhe-se o esquema do j e ainda no para compreender a presena do futuro no presente e como chave de leitura escatolgica da experincia da Igreja e da prpria histria.

46

Cf. RUIZ DE LA PEA, Juan. La pscua de la creacin. Madrid: BAC, 2000.

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4- Elabora-se uma viso mais otimista do mundo e da histria. O destino ltimo de toda a criao (novos cus e nova terra) converte-se em fonte de valorizao das realidades e compromisso em vista de sua transformao. 5- Assume-se uma maior cautela e sobriedade quanto reflexo sobre a escatologia intermediria. Afirma-se a sua realidade, mas evita-se uma descrio minuciosa destes estados e uma conseqente topografia do alm47. 6- Permanece aberto o debate em vista da adequada harmonizao entre a escatologia (sobretudo a escatologia intermediria) e a nova viso antropolgica assumida pela teologia moderna. Pergunta-se pela

possibilidade de uma opo fundamental por Deus imediatamente aps a morte e ainda antes do juzo. Busca-se aprofundar a significao salvfica do purgatrio. Levanta-se a problemtica referente condenao eterna (dvidas quanto existncia de rprobos de fato e eternidade das penas). 7- Acirra-se intenso debate sobre o sentido da existncia humana no ps-morte sem o corpo, sendo este parte integrante do eu humano, e surge a conseqente crtica aos conceitos de alma separada e imortalidade da alma, tidos mais como herana helenista que dado bblico cristo48. 8- redescoberta a categoria Reino de Deus como elemento fundamental da escatologia da histria. O Reino j comea aqui e suas foras esto atuando agora, dentro da histria. Todavia a forma futura do Reino no consistir na mera revelao do que j se realiza agora. O Reino de Deus dom do alto que o homem pode acolher. Isto no o dispensa da responsabilidade diante da histria. A entrada no Reino significa uma deciso radical por Cristo. Deciso que no deixa de ter profundas conseqncias na vida individual e social e de promover uma prxis renovada49.47

Exemplifica esta prudncia, que evita cuidadosamente a descrio ou referncia a uma topografia do alm, a traduo no literal do memento dos mortos do Cnon Romano que encontramos na 1 e na 2 edio tpica do missal romano para o Brasil. O texto latino reza: ipsis, Dmine, et mnibus in Christo quiescntibus, locum, refigrii, lucis et pacis ut indlgeas, deprecmur. Por sua vez, esse trecho assim foi traduzido: A eles, e a todos os que adormeceram no Cristo, concedei a felicidade, a luz e a paz. Aqui temos uma referncia que poderia ser tomada como marco espacial (locum refrigrii, lucis et pcis) traduzida de forma que a nfase recaia sobre o estado existencial (felicidade, luz e paz). 48 Cf. CASTELLANO, DL, p. 350. 49 Cf. SCHMAUS, A f da Igreja VI, p. 159-170.

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Conclumos esse panorama indicando o posicionamento magisterial mais recente. Aps o Conclio Vaticano II, o magistrio da Igreja sentiu a necessidade de se posicionar sobre a temtica escatolgica. A Profisso de F de Paulo VI em 1968 (Credo do Povo de Deus) elencou alguns temas da escatologia intermediria que naquela poca estavam sendo questionados ou at mesmo negados50. Em 1979, incio do pontificado de Joo Paulo II, apareceu uma interveno mais incisiva sobre esta questo intitulada Sobre algumas questes concernentes escatologia51. Neste documento, buscou-se salvaguardar a integridade da f catlica diante de interpretaes e hipteses difundidas entre os fiis a ponto de causar dvidas e perplexidades. No surgiram novidades teolgicas, mas reafirmou-se o que a Igreja ensina no que se refere morte do cristo e sua ressurreio final52. Reforando esses posicionamentos surge em 1992 uma declarao da comisso teolgica internacional53. Reafirmou-se a ressurreio dos mortos como evento que abrange o homem por inteiro. Aps a morte, subsiste o eu humano, mesmo destitudo de corpo. Esta parte espiritual do homem que sobrevive morte o que a Igreja nomeia com o termo alma. Afirmou-se tambm a espera da parusia do Senhor como elemento constitutivo da esperana crist. A parusia ser o encontro definitivo com o Senhor em sua segunda vinda, o que no exclui a retribuio, imediatamente depois da morte de cada um, em funo da suas obras e da sua f54. Mencionou-se a situao de bem-aventurana eterna dos justos, a possibilidade da condenao eterna e a possibilidade de purificao (purgatrio) que os justos podem experimentar antes de ingressar na viso de Deus. Interessante notar que este documento, ao referir-se liturgia, assume-a como lugar teolgico da escatologia e critrio de discernimento. O culto litrgico busca expressar com clareza a f da Igreja neste aspecto55.Os textos litrgicos s fundamentam um pensamento teolgico sobre a escatologia medida que refletem os dados da revelao e a doutrina do magistrio. A liturgia, por conseguinte, sofreu apenas muito pouco a influncia do pensamento escatolgico moderno: ela serviu de ponto de referncia, de lugar teolgico para o discernimento de hipteses e de teorias modernas e como fator

50 51

Cf. PAULO VI, Credo do Povo de Deus. Mariana: Dom Vioso, 1968. Cf. CONGREGAZIONE per la dottrina della fede. Alcune questioni di escatologia. Enchiridion Vaticanum 6: documenti ufficiali della Santa Sede. Bologna: Dehoniane, 1999. p. 1035-1046. 52 Cf. LADARIA, Escatologia no Vaticano II. In SESBO, O homem e a sua salvao, p. 390-399. 53 COMISSIO Theologica Internationalis, Problemi attuali di escatologia. Gregorianum, Roma, n. 73, p. 395435, 1992. 54 Catecismo da Igreja Catlica n. 1021. 55 Cf. RUDONI, A. Lannuncio dei novissimi oggi. Roma: Paoline, 1980.

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de renovao em vista de uma escatologia mais centralizada no mistrio de Cristo e da Igreja56.

O testemunho da liturgia freqentemente tem sido invocado em favor de uma escatologia fundada no essencial, centrada na parusia e na ressurreio final e marcada por expresses sbrias. Uma escatologia que conduza experincia da liturgia como comunho orante com a Igreja celeste e lugar onde se pregustam as realidades definitivas. Uma liturgia que anuncie e antecipe a glorificao dos cosmos e mova a comunidade orante ao compromisso histrico, sinal de sua pertena ao Reino definitivo. Tomada na sua globalidade a liturgia pode ajudar-nos a fazer uma releitura do problema escatolgico contemporneo57.

2.2 A temtica escatolgica no Vaticano II e sua relao com a liturgiaO evento mais importante e de maior repercusso na histria recente da Igreja foi o Conclio Vaticano II (1962-1965). Neste conclio, a Igreja disps-se a refletir sobre si mesma e sobre suas relaes com o mundo moderno. A eclesiologia foi no s um dos grandes temas, mas o tema central e a pea mestra do Vaticano II. nesse cenrio de intenso debate eclesiolgico que surgem todos os documentos conciliares.

2.2.1 Sacrosanctum Concilium: a dimenso escatolgica da liturgia

Embora o objetivo primeiro desse Conclio no tenha sido promover um debate sobre questes escatolgicas, nem por isso a presena do tema escatolgico deixou de ser significativa em seus documentos. Isso demonstra que os padres conciliares consideravam o aspecto escatolgico como um elemento essencial para uma compreenso plena da Igreja. Sem a escatologia, a viso sobre a Igreja ficaria incompleta. De maneira sinttica passaremos pelos principais documentos conciliares que abordam a escatologia, visando suas interfaces com a liturgia e a teologia.

56 57

CASTELLANO, DL, p. 351. CASTELLANO, DL, p. 351.

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Em primeiro lugar, temos a Constituio Sacrosanctum Concilium sobre a sagrada liturgia. No fato de menor relevo que a primeira afirmao sobre a natureza da Igreja feita pelo Vaticano II aparea justamente no contexto de um documento referente liturgia e se ligue tambm escatologia:Caracteriza-se a Igreja de ser, a um tempo, humana e divina, visvel, mas ornada de dons invisveis, operosa na ao e devotada contemplao, presente no mundo e no entanto peregrina. E isso de modo que nela o humano se ordene ao divino e a ele se subordine o visvel ao invisvel, a ao contemplao e o presente cidade que buscamos (SC 2).

Este tpico da Sacrosanctum Concilium oferece, sob a forma de sntese, a escatologia que pode ser experienciada na liturgia da Igreja: a escatologia antecipada que presena do divino no humano, do invisvel no visvel, do eterno no temporal. A liturgia se constitui tambm como abertura para o futuro onde se atinge a medida da plenitude de Cristo (Ef 4,13) na cidade futura para a qual peregrinamos (cf. Hb 13,14)58. Ao apresentar a natureza da liturgia (cf. SC 5-8), os padres conciliares mais uma vez aludem ao carter escatolgico da mesma, centrado na presena do Senhor que j est na liturgia, mas que ainda h de vir na glria. A presena do Ressuscitado une o eterno ao presente, promove a comunho entre a Igreja Peregrina e a Celeste e converte o tempo da Igreja em tempo de vigilante espera de seu retorno.Na liturgia terrena, antegozando, participamos da Liturgia celeste, que se celebra na cidade santa de Jerusalm, para a qual, peregrinos, nos encaminhamos. L, Cristo est sentado direita de Deus, ministro do santurio e do tabernculo verdadeiro; com toda a milcia do exrcito celestial entoamos um hino de glria ao Senhor e, venerando a memria dos Santos, esperamos fazer parte da sociedade deles; suspiramos pelo Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo, at que Ele, nossa vida, Se manifeste, e ns apareamos com Ele na glria (SC 8).

Em outras partes da Sacrosanctum Concilium indica-se a dimenso escatolgica das celebraes litrgicas59. O Sacrifcio Eucarstico deve ser celebrado at que o Senhor volte e penhor da glria futura (cf. SC 47). O Ofcio Divino, louvor cantado por todo o sempre nas habitaes celestes, trazido pelo Cristo terra e a ele associa a sua esposa, a Igreja (cf. SC 83). O rito das exquias dever exprimir mais claramente a ndole pascal da morte crist (cf. SC 81). O ano litrgico testemunha a orientao escatolgica da prpria Igreja que celebra o mistrio de Cristo enquanto espera a vinda gloriosa do Senhor (cf. SC 102). Na celebrao anual dos mistrios de Cristo, a Igreja venera com especial amor Maria, Me de Deus, e a contempla como uma purssima imagem daquilo que ela58 59

Cf. CASTELLANO, DL, p. 353. Cf. CASTELLANO, DL, p. 353-354.

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mesma anseia e espera ser (SC 103). Tambm celebra-se a memria dos mrtires e dos santos que, conduzidos perfeio pela multiforme graa de Deus e recompensados com a salvao eterna, cantam nos cus o perfeito louvor de Deus e intercedem em nosso favor (SC 104).

2.2.2 Lumen Gentium: a ndole escatolgica da Igreja

Em seguida, temos a constituio dogmtica sobre a Igreja Lumen Gentium. Neste documento, a escatologia se concentra no captulo VII, intitulado ndole escatolgica da Igreja. Este captulo articula-se conforme uma diviso temtica: vocao escatolgica da Igreja (LG 48), comunho da Igreja Celeste com a Igreja Peregrina (LG 49), relaes entre a Igreja Peregrina e Celeste (LG 50) e as disposies pastorais (LG 51). Oferecer uma breve sntese da escatologia catlica, tomando como base o mistrio da Igreja, o escopo da Lumen Gentium neste captulo VII. Predomina a linguagem bblica, pois quase todo o texto est construdo com citaes e aluses Sagrada Escritura. Discursando sobre a Igreja, a Lumen Gentium favorece a perspectiva universal da escatologia e ressalta a centralidade da histria salvfica em Cristo. Modificase assim a tendncia dos documentos do magistrio eclesistico que, desde a Idade Mdia e Trento, devido s circunstncias histricas, referiam-se de modo primordial escatologia individual60. Peregrinando na terra, a Igreja anuncia que a sua consumao plena se dar em Deus. Por esta consumao ela aguarda vigilante.A Igreja para a qual todos somos chamados em Cristo Jesus e na qual pela graa de Deus adquirimos a santidade se consumar na glria celeste, quando chegar o tempo da restaurao de todas as coisas (cf. At 3,21). E com o gnero humano tambm o mundo todo, que est intimamente ligado ao homem e que por ele chega a seu fim, ser perfeitamente restaurado em Cristo (cf. Ef 1,1; Cl 1,20; 2Pd 3,10-13) (LG 48).

O princpio de compreenso da escatologia na Lumen Gentium o mistrio pascal anunciado, vivido e celebrado pela Igreja. Os padres conciliares reconheceram a ndole e vocao escatolgica da Igreja. Para a Igreja, toda a humanidade chamada em Cristo. Todos os homens e mulheres so vocacionados a ingressar num dinamismo vital que s se consumar na glria celeste. Esse dinamismo, desde j, redime do pecado, eleva e plenifica a vida humana mediante a participao na vida divina. Todo esse processo tem60

Cf. LADARIA, Escatologia no Vaticano II. In SESBO, O homem e a sua salvao, p. 392.

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um fundamento inabalvel, pois se radica em Cristo, morto e ressuscitado, primcias da nova criao, novo Ado e doador do Esprito vivificante. A plenitude escatolgica, que o prprio Cristo Ressuscitado, transborda para o seu corpo eclesial. Mesmo levando consigo a figura passageira deste mundo, inclusive nos sacramentos e nas instituies que so prprios da presente era, a Igreja caminha para a glorificao j alcanada em Cristo.A era final j chegou at ns (cf. 1Cor 10,11) e a renovao do mundo foi irrevogavelmente decretada e, de um certo modo, j antecipada nesta terra. Pois j na terra a Igreja assinalada com a santidade embora imperfeita (LG 48).

Todo este movimento escatolgico rumo plenitude obra do Esprito Santo. Nota-se, portanto, um trao pneumatolgico na escatologia da Lumen Gentium. A ao do Parclito no ficou confinada ao Pentecostes. Todo o tempo da Igreja envolvido pela presena eficaz do Esprito Santo. ele quem conduz a Igreja da irrupo escatolgica, o evento Jesus Cristo, at a sua consumao61.A prometida restaurao que esperamos j comeou em Cristo, levada adiante na misso do Esprito Santo e por Ele continua na Igreja, na qual pela f somos instrudos tambm sobre o sentido da nossa vida temporal, enquanto, com esperana dos bens futuros, levamos a termo a obra entregue a ns no mundo pelo Pai e efetuamos a nossa salvao (LG 48).

Ao relacionar escatologia e liturgia, a Lumen Gentium enfatiza a Igreja enquanto comunho. O lugar eminente desta comunho a liturgia, de modo especial a eucaristia. A Lumen Gentium proclama que a presena do Ressuscitado e do seu Esprito atua salvificamente na liturgia.Estando assentado direita do Pai, opera continuamente no mundo para conduzir os homens Igreja e por ela lig-los mais estreitamente a Si e faz-los participantes da sua vida gloriosa nutrindo-os com o seu prprio Corpo e Sangue (LG 48).

A liturgia forma eminente de comunho. O comum louvor e a adorao Trindade Santa e a intercesso pela humanidade constituem o que chamamos de liturgia celeste. A esta liturgia gloriosa se une a Igreja Peregrina quando celebra o culto divino e dele haure maior valor e eficcia para a sua vida e misso. Dentro desta comunho dos santos, os bem-aventurados que j esto na glria celeste, em vista da sua unio total com Cristo, podem interceder por ns junto ao Pai, apresentando os mritos que alcanaram na terra pelo nico mediador de Deus e dos homens, Cristo Jesus e fortalecem a Igreja terrena pela comunicao de bens espirituais, pois pela sua fraterna solicitude a nossa fraqueza recebe (deles) mais valioso auxlio (LG 49). 61

Cf. POZO, Candido. Teologa del ms All. Madrid: BAC, 1968. p. 18-19.

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Proclama o Conclio que o pice da comunho da Igreja Peregrina com a Igreja Celeste se d na liturgia:Nossa unio com a Igreja celeste se realiza de modo nobilssimo mormente na sagrada liturgia, em que a fora do Esprito Santo atua sobre ns por meio dos sinais sacramentais, quando em comum exaltao cantamos os louvores da divina majestade, e todos, redimidos no sangue de Cristo, de toda tribo e lngua, e povo e nao (cf. Ap 5,9), congregados numa s Igreja, em um s cntico de louvor, engrandecemos o Deus Uno e Trino (LG 50).

Nesse sentido, ocupa posto eminente e central a celebrao eucarstica: na celebrao do sacrifcio eucarstico certamente nos unimos mais estreitamente ao culto da Igreja celeste (LG 50). Conclui-se o Captulo VII da Lumen Gentium declarando que j nesta terra temos o incio da vida futura. Na comunho eclesial, realiza-se a vocao da Igreja e pregusta-se a glria consumada (cf. LG 51). A glorificao de Deus na liturgia antecipa o que se dar na consumao dos tempos. A realidade das relaes entre a Igreja terrestre e a Igreja Celeste, precisamente na adorao, no louvor e na ao de graas constitui a meta desses contatos, o mvel em que se inspiram e a norma intrnseca do seu desenvolvimento. por este meio que o gnero humano completar definitivamente a humanidade do Verbo Encarnado e contribuir, conforme o desgnio divino, para a plena e perfeita glorificao da Santssima Trindade, fim supremo de toda a histria da salvao62.

2.2.3 Gaudium et Spes: a relao Igreja-mundo luz da esperana escatolgica A constituio pastoral Gaudium et Spes tem por meta repropor a relao entre a Igreja e o mundo moderno. evidente o desejo de situar a Igreja frente aos grandes problemas e desafios da histria. A caridade pastoral a grande impulsionadora deste envio ao mundo: envio que capacita a Igreja a se irmanar com toda a humanidade em suas alegrias e esperanas, tristezas e angstias, sobretudo aquelas vividas pelos mais pobres (cf. GS 1).

62

Cf. MOLINARI, Paolo. Igreja escatolgica. In BARANA, Guilherme. A Igreja do Vaticano II. Petrpolis: Vozes, 1965. p. 1147.

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O problema escatolgico na Gaudium et Spes tratado em diferentes lugares e no objeto de um estudo sistemtico63. Os temas escatolgicos encontram-se dispostos em diferentes partes do texto. Encontramos o mistrio da morte e a resposta dada pela f crist (cf. GS 18), o desejo do mundo futuro suscitado nos homens por Cristo Ressuscitado (cf. GS 38), o valor escatolgico da atividade humana no mundo (cf. GS 39), a distino e a proximidade entre progresso terreno e crescimento do Reino de Deus (cf. GS 39) e o Cristo como princpio e fim de todas as coisas e centro e sentido da histria humana (cf. GS 45). sabido que o tema escatolgico foi retomado pela Gaudium et Spes numa viso que poderamos definir como sendo mais antropolgica, social e csmica. O destino final da Igreja e de cada cristo incide luz sobre as ltimas realidades do homem e do cosmo. A linguagem permanece mais aberta, fortemente assinalada pelo otimismo e pela esperana que tem como fundamento Cristo, o homem novo, e o mistrio pascal como realidade que ilumina e eleva at a perfeio a atividade humana64.

No que se refere relao liturgia-escatologia devemos antes notar que sua elaborao neste documento muito breve. Todavia trs textos se destacam de forma significativa. O primeiro (GS 22) se situa na resposta que a f da Igreja oferece diante da dor e da morte. Esta resposta um verdadeiro querigma pascal que o conclio proclama diante do mundo moderno. Um texto da liturgia pascal bizantina est inserido nesta proclamao de f. Nele exalta-se o Ressuscitado presente na liturgia da Igreja. O Senhor glorioso, ao destruir a morte e oferecer a esperana da vida eterna, ilumina o destino do homem e de todo o cosmo65.Por Cristo e em Cristo, portanto, ilumina-se o enigma da dor e da morte, que fora do Evangelho nos esmaga. Cristo ressuscitou, com sua morte destruiu a morte e nos concedeu a vida, para que, filhos no Filho, clamemos no Esprito: Abb, Pai! (GS 22).

O segundo texto (GS 38) volta-se para a escatologia universal e alude renovao do cosmos. Apresenta-se a Eucaristia no contexto da valorizao da atividade humana e da consumao da histria. Nesse sentido, a Eucaristia se manifesta como sacramento da Pscoa da humanidade e de toda a criao.O Senhor deixou para os seus um penhor desta esperana e um vitico para esta caminhada: aquele sacramento de f, no qual os elementos da natureza, cultivados pelo homem, se convertem no Corpo e no Sangue glorioso, na ceia da comunho fraterna e prelibao do banquete celeste (GS 38).

63 64

Cf. LADARIA, Escatologia no Vaticano II. In SESBO, O homem e a sua salvao, p. 393. CASTELLANO, DL, p. 354. 65 Trata-se do solene troprio pascal Christs ansti. Cf. http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/liturgia/afesta-da-pascoa-na-igreja-ortodoxa.html. Acesso em 19/08/2008.

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igualmente importante ressaltar que a Gaudium et Spes demonstra que a verdadeira esperana escatolgica jamais causa de alienao diante da realidade. Pelo contrrio, a escatologia crist fornece um motivo elevado para se assumir as realidades temporais e se engajar na transformao da realidade deste mundo (cf. GS 33-39). A autntica celebrao da liturgia crist matriz geradora de uma prxis que ilumina e transforma o mundo a partir do mistrio pascal de Cristo. Texto de particular relevncia no que se refere escatologia GS 39. Nele a significao escatolgica da atividade humana situada pelo conclio no seu termo de realizao: a nova terra e o novo cu. A humanidade e todo o cosmos se convertero em realidade nova pelo poder de Deus. A atividade humana foi assumida no processo salvfico da restaurao de todas as coisas em Cristo. J anteriormente os padres conciliares haviam afirmado que as vitrias do gnero humano so um sinal da magnitude de Deus e fruto de seu inefvel desgnio (GS 34). empolgante e maravilhosa essa doutrina do Vaticano II! Deus louvado e glorificado mediante a sujeio de todas as coisas ao homem, sua imagem (...). Dessa maneira o homem se transforma em autntico sacerdote da criao: nele (que sintetiza em si os elementos do mundo material) e por ele o mundo apresenta livremente ao Criador uma voz de louvor (GS 14); por ele (per eum) o mundo chega a seu fim (LG 48). No apenas pronunciando ou cantando palavras de louvor que o homem glorifica a Deus: trabalhando, inventando, aperfeioando o mundo, subjugando-o, tornando-o mais dcil e humano (...) assim o homem dar glrias ao Criador66.

A atividade humana assumida no processo salvfico de restaurao de todas as coisas em Cristo. Embora o progresso terreno deva ser distinguido do aumento do Reino de Cristo, este contribui para organizar a sociedade humana. Os bons frutos da criao e da atividade humana ns os reencontraremos novamente, limpos contudo de toda impureza, iluminados e transfigurados, quando o Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal: reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graa, reino de justia, de amor e de paz67 (cf. GS 39).Nada do que em ns h de bom transitrio; tudo de bom definitivo. O tempo no capaz de erodi-lo; mantm-se inclume atravs da nossa histria pessoal e amadurece para a eternidade. E isso por qu? Porque, mesmo sendo nosso, no procede s de ns, mas de Deus. E, enquanto dom de Deus participa da sua incorruptibilidade, ou, o que d no mesmo, de sua irrevogabilidade escatolgica. . Quando se manifestar o que seremos (1Jo 3,2), poderemos comprovar que

66

KLOPPENBURG. Boaventura. Noes basilares humanas na Gaudium et Spes. Teocomunicao. Porto Alegre, n. 150, p. 681, 2005. 67 Esta ltima frase um trecho do prefcio da solenidade de Cristo Rei.

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no se perde nada do realizado, mas o que aconteceu foi a plena realizao do 68 que seramos; no fica nenhum resto sem ser aproveitado .

A recapitulao de todas as coisas em Cristo uma recapitulao no amor. Permanecero o amor e a sua obra e ser libertada da servido da vaidade toda aquela criao que Deus fez para o homem (GS 39). O Esprito Santo enviado pelo Senhor aps sua ressurreio oferece aos seres humanos a graa de se transformarem e transformarem o mundo a partir da vivncia do mandamento do amor. Desta forma preparam a matria do reino celestial e manifestam o desejo da habitao celeste (cf. GS 38). A Gaudium et Spes prossegue considerando que nesta terra cresce o Corpo da nova famlia humana que j pode apresentar algum esboo do novo sculo (GS 39). Por isso o texto conciliar pode proclamar que o Reino j est presente em mistrio na terra. Chegando o Senhor, ele se consumar (GS 39).

68

RUIZ DE LA PEA, Juan. O dom de Deus: antropologia teolgica. Petrpolis: Vozes, 1997. p. 364-365.

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3 Contexto histrico e estrutura do missal romano de Paulo VI3.1 O carter da reforma litrgicaA reforma litrgica foi uma das principais realizaes do Conclio Vaticano II. Os padres conciliares tinham clara conscincia da contribuio decisiva que a liturgia oferece aos fiis para exprimir em suas vidas o mistrio de Cristo e manifestar ao mundo a genuna misso da Igreja (cf. SC 2). A renovao da liturgia ergueu-se sobre os fundamentos lanados pelo prprio conclio1. Em primeiro lugar, definiu-se a liturgia como exerccio eclesial do sacerdcio de Cristo em vista da salvao da humanidade. Depois, afirmou-se que a liturgia no esgota toda a ao da Igreja, mas o cume desta ao e a fonte da sua fora (cf. SC 9-10). Por fim, estabeleceu-se como horizonte a promoo da participao ativa e consciente dos fiis (cf. SC 14,19). As diretrizes centrais da reforma litrgica determinaram as instncias prprias de sua regulamentao (Santa S, Conferncias Episcopais, Bispos), a manuteno do necessrio equilbrio entre a s tradio e o progresso legtimo, a importncia da Sagrada Escritura, a primazia da celebrao comunitria, a redescoberta dos ministrios litrgicos, a nobre simplicidade, a clareza e brevidade, a adaptao sensibilida