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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois poetas Retrato de Camões considerado por alguns como bastante fiel e assinado Última fotografia de Fernando Pessoa. Tirada por Augusto Ferreira Gomes Por Ana Sofia Couto Ano Lectivo 2008/2009

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Page 1: Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois poetas Retrato de Camões considerado por alguns como bastante fiel e assinado «Fernando Gomez fêz, em L.ª»

Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo

entre dois poetas

Retrato de Camões

considerado por alguns

como bastante fiel e assinado

«Fernando Gomez fêz, em

L.ª»

Última fotografia de Fernando Pessoa.

Tirada por Augusto Ferreira Gomes

Por Ana Sofia CoutoAno Lectivo 2008/2009

Page 2: Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois poetas Retrato de Camões considerado por alguns como bastante fiel e assinado «Fernando Gomez fêz, em L.ª»

Mensagem e Os Lusíadas

– Um diálogo entre dois poetas Pontos da Apresentação

1. Fernando Pessoa 1.1. Fernando Pessoa e os outros poetas; 1.2. A poesia e a identidade nacional. 2. Mensagem (1934) e Os Lusíadas (1572)2.1. O “desenho” A ‘arquitectura perfeita’ de Mensagem e a estrutura épica sui generis d’Os

Lusíadas;2.2. A visão da História A ‘predestinação’ no poema de Pessoa e o ‘alto valor lusitano’ em Camões; O dado matricial da cultura grega; Os diferentes critérios de selecção das figuras histórias em Pessoa e em

Camões; D. Sebastião – objecto de desejo em Pessoa / razão de esperança em Camões. 2.3. O amor O amor sonhado em Mensagem e o amor vivido (e poeticamente celebrado)

n’Os Lusíadas; 2.4. O mar O mar sem fim de Pessoa e o mar ‘experimentado’ de Camões; O Mostrengo e o Adamastor – figuras do medo. 2.5. O Império (im)possível O imperialismo sem matéria sonhado por Pessoa e o império cantado em

Camões; “Que farei com esta espada?” – o misto de tristeza e esperança no final dos

dois poemas.3. Notas finais

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois poetas

1.Fernando Pessoa (1885-1935)

Retrato de Fernando Pessoa,

por Almada Negreiros (1954)

Caricatura de Fernando Pessoa,

por David Levin (1972)

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1.1. Fernando Pessoa e os outros poetas

Fernando Pessoa e a poesia como “passagem a limpo” ou reescrita

Passar a limpo a Matéria Repor no seu lugar as cousas que os homens desarrumaram Por não perceberem para que serviam Endireitar, como uma boa dona de casa da Realidade, As cortinas nas janelas da Sensação E os capachos às portas da Percepção Varrer os quartos da observação E limpar o pó das ideias simples… Eis a minha vida, verso a verso.

Alberto Caeiro. Poemas Inconjuntos (Alberto Caeiro. Poesia. Ed. de Richard Zenith e Fernando Cabral Martins.

Lisboa, Assírio & Alvim, 2.ª ed. corrigida, 2004, p. 102)

Mensagem é, em certo sentido, uma ‘passagem a limpo’, para uma versão moderna,

do poema Os Lusíadas, de Luís de Camões.

Século XIX: época de mitologização da figura de Camões.

A publicação do poema Camões (1825), de Almeida Garrett,

marca o início deste processo de mitologização.

Mensagem e Os Lusíadas

– Um diálogo entre dois poetas

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Mensagem e Os Lusíadas

– Um diálogo entre dois poetas

1.1. Fernando Pessoa e os outros poetas (continuação)

Mensagem (1934) como ‘resposta’ a Camões…

A criação poética em Pessoa que tem por base um mecanismo de

disputa com outras obras, uma imaginação ciumenta (Eduardo Lourenço)

Para Eduardo Lourenço,

«toda a obra de Pessoa é uma disputa concreta com outra obra sobre a

qual se apoia para a transcender ou lhe imprimir um desvio que

inteiramente a desloca, na forma e na substância, do seu lugar matricial.»

(Eduardo Lourenço, “Camões e Pessoa”, in revista Brotéria,

Lisboa, n.º 7-9, 1980, Julho-Agosto, p. 59).

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 1.1. Fernando Pessoa e os outros poetas (continuação)

Em 1912, com vinte e quatro anos, Pessoa escreve na revista Águia:

A nossa poesia caminha para o seu auge: o grande Poeta proximamente vindouro, que encarnará esse auge, realizará o máximo equilíbrio da subjectividade e da objectividade. [...] Supra-Camões lhe chamamos, e lhe chamaremos, ainda que a comparação implícita, por muito que pareça favorecer, antes amesquinhe o seu génio, que será, não de grau superior, mas mesmo de ordem superior ao do nosso ainda-primeiro poeta.

Fernando Pessoa. «A Nova Poesia Portuguesa» (A Águia, n.os 4, 5, 9, 11 e 12, 2.ª série, Porto, 1912), in Fernando Pessoa.

Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Edições Ática, 1993

[…] só a escolha deste Poeta [i.e. Camões] como elemento de comparação coloca-o [i.e. a Pessoa] no ponto mais alto em relação a todos os que o precederam e seguiram, até ao momento da enunciação.

C. Berardinelli. “Os Lusíadas e Mensagem: um jogo intertextual”, Estudos Camonianos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,

2000.

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas

1.2. A poesia e a identidade nacional

Toda a obra de Pessoa é uma tentativa de superar Camões.

Mas é com Mensagem (1934) que a ‘relação angustiada’ relativamente ao poeta

d’Os Lusíadas se torna particularmente visível. Mensagem é uma resposta(leitura)

“moderna” ao(do) poema de Camões.

Resposta que tem consequências ao nível da “Portugalidade”,

do que define Portugal e os Portugueses.

Pessoa propõe uma nova forma de pensar o que somos como

Portugueses e o que poderá vir a ser Portugal

(“Portugal” foi de facto o primeiro título pensado para a obra Mensagem).

Ou seja: aquilo a que chamamos “identidade nacional” é reavaliado em Mensagem.

Segunda metade do século XIX – é o momento em que os escritores

reflectem seriamente sobre o que é Portugal?

(cf. Eduardo Lourenço, “Da literatura como interpretação de Portugal” (1975).

O Labirinto da Saudade. Lisboa: Gradiva, 2001 [1.ª ed. 1978]

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 1.2. A poesia e a identidade nacional

Para Pessoa, o artista – e o poeta em especial – tem um papel muito importante na vida

cultural de uma nação. É ao poeta que cabe a criação de mitos.

Em Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, encontramos um fragmento onde se lê: «Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais

alto que pode obrar alguém da humanidade».

E na resposta ao inquérito Portugal Vasto Império (1926, 1934) Pessoa afirma claramente: «Há só uma espécie de propaganda com que se pode levantar a

moral de uma nação – a construção ou renovação e a difusão

consequente e multímoda de um grande mito nacional. […] Temos,

felizmente, o mito sebastianista, com raízes profundas no passado e na alma portuguesa».

O mito é para Pessoa a ‘semente’ de toda a possibilidade, o poder de fecundar a

realidade.

A regeneração da Pátria depende da existência de um mito nacional -

ideias que constituem a base filosófica de Mensagem, a ‘equação de que resulta a obra’

(Fernando Cabral Martins, prefácio à edição de Mensagem, Assírio & Alvim, 1997)

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas

2. Mensagem (1934) e Os Lusíadas (1572)

Capas das primeiras edições

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas

Da leitura d’Os Lusíadas ressalta […] a busca de uma solução real para reverter a situação da pátria; dos poemas de Mensagem, ressai, intensificada no poema final, “Nevoeiro”, a proposta de uma solução não mais de dimensão humana, mas transcendente.

C. Berardinelli, “Os Lusíadas e Mensagem: um jogo intertextual”, 2000

A comparação entre Os Lusíadas e a Mensagem impõe-se pelo próprio facto de esta ser, a alguns séculos de distância e num tempo de decadência, o novo canto da pátria portuguesa.

Silvina Rodrigues Lopes, “Apresentação Crítica”, Mensagem de Fernando Pessoa, Lisboa: Editorial

Comunicação, 1986

Dois excertos para ter em mente...

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas

2. Mensagem (1934) e Os Lusíadas (1572)

2.1. O Desenho

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.1. O “desenho”

Mensagem (1934)

«[…] uma das obras mais perfeitamente realizadas da Literatura Portuguesa do século XX […]» (C. Berardinelli. “Mensagem: Poemas in Fieri”, Fernando Pessoa: outra vez te

revejo. Rio de Janeiro: Lacerda, 2004)

Estamos perante uma «arquitectura pensada e harmónica, que torna este livro uma constelação de poemas.»

(Fernando Cabral Martins, 1997)

Abrindo com uma proposição latina (Benedictus Dominus Deus Noster qui dedit nobis signum),

a obra está dividida em três partes:

Primeira Parte – Brasão

Segunda Parte – Mar Português

Terceira Parte – O Encoberto

Proposição que aponta, desde logo, para o

carácter evangélico da

obra

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.1. O “desenho” (continuação)

Primeira Parte – Brasão

- Tempo1 de preparação (apresentação de figuras mitológicas e históricas que ‘criaram’ Portugal) - Estabelecimento da essência (nobreza) de Portugal

Esta essência criou obra no passado (Mar Português)e pode criar no futuro, no porvir (O Encoberto)

Tempo da preparação para a construção do Império; a primeira parte da obra apresenta a «caminhada da terra para o mar» como missão confiada a Portugal (C. Berardinelli, 2004)

‘Bellum sine Bello’ (trd. ‘a guerra sem guerrear’) A epígrafe latina desta primeira parte avisa-nos que a nova Distância não se alcança pela força

Mensagem é um poema de fraternidade e de paz

(simbolismo rosa-cruciano e templário)

1 – A ideia de uma divisão de Mensagem em tempos é sugerida em C. Berardinelli, 2004.

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.1. O “desenho” (continuação)

Primeira Parte – Brasão

Brasão real português utilizado

no século XV

I – Os Campos

Primeiro: O dos Castelos

Segundo: O das Quinas

II – Os Castelos

Primeiro: Ulisses

Segundo: Viriato

Terceiro: O Conde D. Henrique

Quarto: D. Tareja

Quinto: D. Afonso Henriques

Sexto: D. Dinis

Sétimo (I): D. João o Primeiro

Sétimo (II): D. Filipa de Lencastre

III – As Quinas

Primeira: D. Duarte, Rei de Portugal

Segunda: D. Fernando, Infante de Portugal

Terceira: D. Pedro, Regente de Portugal

Quarta: D. João, Infante de Portugal

Quinta: D. Sebastião, Rei de Portugal

IV – A Coroa

Nun’Álvares

V – O Timbre

A cabeça do Grifo: O Infante D. Henrique

Uma asa do Grifo: D. João o Segundo

A outra asa do Grifo: Afonso de Albuquerque

19 poemas

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.1. O “desenho” (continuação)

Primeira Parte – Brasão

Brasão real português utilizado

no século XV

I – Os Campos

(dois poemas)

II – Os Castelos

Sete poemas + um

III – As Quinas

Cinco poemas

IV – A Coroa

Um poema

V – O Timbre

Cabeça (um poema)

Asas (dois poemas)

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.1. O “desenho” (continuação)

Segunda Parte – Mar Português

Tempo de realização e da queda; tempo em que se conquista um Império que depois se perde.

É preciso buscar uma nova Distância, um outro mar (Possessio Maris…).

12 PoemasI. O Infante

II. HorizonteIII. Padrão

IV. O MostrengoV. Epitáfio de Bartolomeu Dias

VI. Os Colombos VII. Ocidente

VIII. Fernão de MagalhãesIX. Ascensão de Vasco da Gama

X. Mar Português XI. A Última Nau

XII. Prece

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.1. O “desenho” (continuação)

Terceira Parte – O Encoberto Tempo de espera;

Tempo de esperança na realização de um projecto indefinível, transcendente, para lá do espaço e do tempo (Pax in Excelsis), do que é dado à razão humana

conhecer.

Terceira Parte/ 13 Poemas / Três Partes( Ideia de unidade contida na estrutura do poema)

I. Os SímbolosPrimeiro: D. Sebastião

Segundo: O Quinto Império

Terceiro: O DesejadoQuarto: As Ilhas

AfortunadasQuinto: O Encoberto

II. Os AvisosPrimeiro: O Bandarra

Segundo: António VieiraTerceiro: (Screvo meu livro à beira-mágoa)

III. Os TemposPrimeiro: Noite

Segundo: Tormenta

Terceiro: CalmaQuarto:

AntemanhãQuinto:

Nevoeiro.

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.1. O “desenho” (continuação)

Os Lusíadas (1572)

Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,Fantásticas, fingidas, mentirosas,

Louvar os vossos, como nas estranhas Musas, de engrandecer-se desejosas.

Os Lusíadas (I, 11)

A obra de Camões, publicada 75 anos depois da chegada de Vasco da Gama à Índia, apresenta uma estrutura não menos rigorosa que a de Mensagem. Assim, temos:

Estrutura externa:

Dez Cantos

Oitavas (1102 estrofes)

10 sílabas métricas

Verso heróico

Estrutura interna:

Proposição

Invocação

Dedicatória

Narração ‘in medias res’

Camões segue

regras do género épico

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.1. O “desenho” (continuação)

Os Lusíadas (1572)

A obra desenvolve-se em quatro planos fundamentais que se entrecruzam na narrativa. São eles:

PLANO DA VIAGEM (viagem de Vasco da Gama à Índia); PLANO DOS DEUSES (que intervêm na viagem dos Portugueses); PLANO DA HISTÓRIA DE PORTUGAL (encaixado no plano da

viagem); PLANO DAS CONSIDERAÇÕES DO POETA (com reflexões filosóficas

e morais, lamentações, críticas ou exortações).

Sobre a unidade do projecto camoniano, escreve António José Saraiva:

Seguindo esse modelo [i.e. o de Virgílio], há uma acção com a qual se ligam todos os acontecimentos passados e futuros: a viagem acidentada de um herói guerreiro e navegante, e sua chegada à terra onde funda um novo reino; o herói é protegido por certos deuses e perseguido por outros, de modo que aquela acção se desenrola conjuntamente no plano humano e no plano divino. A narrativa começa no meio da viagem (“in medias res”), os acontecimentos anteriores são relatados por discursos dos protagonistas humanos ou por obras de arte plástica evocativa; os acontecimentos futuros são anunciados por deuses ou outras personagens dotadas do dom da profecia.

Saraiva, Introdução a Os Lusíadas (1978, 1999), Porto: Livraria Figueirinhas, itálicos meus

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.1. O “desenho” (conclusão)

Mensagem e Os Lusíadas Sobre a classificação dos dois poemas:

Apontando as preocupações arquitectónicas comuns às duas obras, o mesmo autor [i.e. Jacinto do Prado Coelho] ressalta o carácter mais abstracto e interpretativo de Mensagem em relação a Os Lusíadas. A dominante mística é, no poema de Pessoa, solidária da desvalorização da narração e da descrição, características da epopeia, dando relevo a um pensamento unificador, ostensivo na proliferação de símbolos em detrimento da acção e conferindo ao poema uma dimensão mais emblemática do que épica.

Silvina R. Lopes, “Apresentação Crítica”, Mensagem de Fernando Pessoa, 1986

Enfim, dois poemas épicos – ou épico-líricos? – “de espécie complicada”, diria Pessoa, e digo eu: como convinha a Portugal.

C. Berardinelli, “Os Lusíadas e Mensagem: um jogo intertextual”, 2000

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas

2. Mensagem (1934) e Os Lusíadas (1572)

2.2. A visão da História

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.2. A visão da História

Mensagem e Os Lusíadas – Poemas sobre Portugal e a nossa história (dimensão épica)

Os dois poemas estabelecem um laço entre o geográfico e o histórico (a posição geográfica de Portugal “aponta” o caminho

para o mar e para o Ocidente, para a aventura)

Tanto Pessoa como Camões seleccionam, a seu jeito, a história, destacando as figuras que mais lhes interessam para o projecto global da sua obra.

Nos dois poemas, é sublinhado o dado matricial da cultura grega (Ulisses é colocado ao lado de figuras históricas); No tratamento dos reis de Portugal, encontramos diferenças importantes

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.2. A visão da História (continuação)

Em Mensagem, Pessoa selecciona “figuras de pensamento”, de contemplação –

Figuras dotadas de uma capacidade visionária singular (ex. D. Dinis, o ‘plantador de naus a haver’)

N’Os Lusíadas, Camões (ou os seus narradores), selecciona reis que se destacaram pela sua “feição activa” –

Figuras que se destacaram pela sua acção bélica

(ex. D. Afonso III e D. Afonso IV)

Pessoa valoriza a dimensão contemplativa;Camões valoriza a actividade real, combativa.

Ambos os poetas destacam a figura de Nun’Álvares Pereira: ele é a Coroa no poema de Pessoa, e o ‘fortíssimo leão’ n’Os

Lusíadas.

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.2. A visão da História (continuação)

Em Mensagem, a história de Portugal é pensada à luz de um plano de divino. O que somos resulta de um acto de com-sagração, de algo que é predito por Deus:

O homem e a hora são um sóQuando Deus faz e a história é feita.

O mais é carne, cujo póA terra espreita.

Poema “D. João o Primeiro” (1os quatro versos)

N’Os Lusíadas, a intervenção divina aparece como complemento do valor dos Portugueses, valor supremo capaz de escapar à lei da morte.

E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando;

Cantando espalharei por toda a parte,Se a tanto me ajudar o engenho e a arte. Os Lusíadas (I, 1)

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.2. A visão da História (conclusão)

D. Sebastião, Rei de Portugal À distância de quase quatro séculos, Pessoa recria a figura/mito de D. Sebastião de modo a conciliar a ideia de que o Rei pôs a pátria em perigo com o enaltecimento da sua loucura.

Em Mensagem, D. Sebastião é o símbolo da loucura positiva, da sede de infinito que caracteriza o ser humano que pretende ultrapassar a sua própria

natureza.

‘Ser homem é ser descontente’ (poema “O Quinto Império”)

N’Os Lusíadas, D. Sebastião é o “herói épico em potência” (C. Berardinelli, 2000), uma vez que o sonho de conquistar o Norte de África ainda povoa as mentes da época. Na sua dedicatória, Camões incentiva o rei a novas empresas bélicas…

Fazei, Senhor, que nunca os admiradosAlemães, Galos, Ítalos e Ingleses,

Possam dizer que são pera mandados,Mais que pera mandar, os Portugueses

Os Lusíadas (X, 152)

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas

2. Mensagem (1934) e Os Lusíadas (1572)

2.3. O Amor

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.3. O Amor

Em Mensagem, Pessoa não inclui um dos “mitos” que Camões ajudou a criar: o mito de Inês de Castro (só duas mulheres têm lugar no poema de Pessoa: D. Tareja e D. Filipa de Lencastre).

Em Pessoa, o amor e o sentimento são transpostos para umaesfera transcendente – o desejo, em Mensagem, é o desejo de um

mito.

Não encontramos em Mensagem o tratamento poético do amor entre um homem e uma mulher, e muito menos um tratamento da sensualidade, como encontramos, num nível sublime, em Camões:

Num vale ameno, que os outeiros fende,Vinham as claras águas ajuntar-se,

Onde ũa mesa fazem, que se estendeTão bela quanto pode imaginar-se.

Os Lusíadas (IX, 55)

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas

2. Mensagem (1934) e Os Lusíadas (1572)

2.4. O Mar

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.4. O Mar Sobre o “Mar” em Pessoa e em Camões, Eduardo Lourenço caracteriza deste modo aquilo que separa os dois poetas:

Evocando o poema Os Lusíadas, José Régio escreveu que «o mar entrou nele e

coube». Podia caber em oitava rima esse mar nunca dantes navegado que nos

sagrou como nautas modernos porque era um mar ao mesmo tempo vivido e

revisitado graças à intercessão poética de Virgílio. O mar de Pessoa, menos vivido

que o de Camões e plural na sua essência de abismo da natureza e do espírito,

inundou, como nem antes nem depois acontecera na odisseia pouco marítima do

imaginário português, toda a poesia do autor de Mensagem, mas não coube nela.

Eduardo Lourenço, “Os Mares de Pessoa”. O Lugar do Anjo. Ensaios Pessoanos.

Lisboa: Gradiva, 2004

O mar n’Os Lusíadas é possibilidade de realização, coisa presente e exterior; em Mensagem, significa promessa e desafio, o Horizonte

por buscar. Como o mar de Álvaro de Campos, o mar de Mensagem é feito da

«Distância Absoluta», do «Puro longe» (Ode Marítima)

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.4. O Mar

Sobre os perigos do mar, Pessoa e Camões imaginam duas figuras que representam a mesma essência perigosa de toda a aventura, do desejo de partir…

Mostrengo (Mensagem) – figura ameaçadora e agressiva, sem traços de humanidade

Adamastor (Os Lusíadas) –

Monstro dotado da capacidade de amar É a palavra (a capacidade de Vasco da Gama falar com o

monstro) e o amor que nos libertam do Adamastor.

Ao recordar o desgosto de amor que lhe causara a bela Tétis,

o Adamastor desaparece e dá passagem para o Oriente.

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas

2. Mensagem (1934) e Os Lusíadas (1572)

2.5. O Império (Im)possível

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.5. O Império (im)possível

N’Os Lusíadas, o poeta prevê o definhamento da pátria, a decadência do Império. Mas, ao mesmo tempo, aponta a possibilidade um

renascimento, a que a acção de D. Sebastião deveria dar início.

A esperança de Camões é também a de um poeta – a de um homem que deseja voltar a cantar os ‘feitos valerosos’ de

Portugal. Para Camões, a vitalidade da poesia não se desliga da vida da Pátria.

Em Pessoa, a ideia de um novo Império ‘feito de Matéria’ – um império terreno a alcançar pela acção bélica dos homens – é posta de parte.

Num conjunto de textos reunidos sob o nome Sobre Portugal.

Introdução ao Problema Nacional (1978), encontramos um texto onde Pessoa diz:

“Todo o Império que não é baseado no Império Espiritual é uma Morte de pé, um cadáver mandado.”

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.5. O Império (Im)possível

O elemento lírico em Mensagem e n’Os Lusíadas evidencia-se no pendor subjectivo dos dois poemas – i.e. na importância da voz do poeta. Essa voz faz-se ouvir, no caso da obra de Camões, em momentos de auto-reflexão (que não existem em Mensagem) e na crítica à gente da Pátria, à “gente surda e endurecida” (X, 145).

De facto, é num tom marcadamente crítico que Pessoa e Camões

terminam os seus poemas Diálogo na despedidaCamões:

No gosto da cobiça e na rudeza

Dhüa austera, apagada e vil tristeza.

Pessoa:

Este fulgor baço da Terra

Que é Portugal a entristecer

….

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas 2.5. O Império (Im)possível

O tom de tristeza (tom de requiem) comum ao final dos dois poemas mistura-se com uma leve esperança de renovação. Vejamos:

Verso final de Mensagem : “É a Hora!” (seguido de Valete Fratres, uma saudação mística associada à

fraternidade Rosa-Cruz) Três versos d’Os Lusíadas:

Fico que em todo o mundo de vós cante,De sorte que Alexandre em vós se veja,

Sem à dita de Aquiles ter enveja.

Duas soluções diferentesOs Lusíadas

Solução real

Mensagem

Renovação espiritual, literária ou poética –

império imaterial (onde não são ‘precisas

colónias’)

“O mito é o nada que é tudo”

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas

3. Mensagem e Os Lusíadas – Notas Finais

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Mensagem e Os Lusíadas – Um diálogo entre dois

poetas Semelhanças essenciais:

o desejo de superar e a consciência do valor da poesia

É comum a Pessoa e a Camões o desejo de superar –

Camões quer superar os ‘antigos’ substituindo a ficção pela verdade;

Pessoa quer superar Camões e conferir novo ânimo à Pátria

É comum a Pessoa e a Camões a afirmação do valor supremo da

poesia –

Camões sabe que só o canto dos poetas

transforma os homens em seres imortais

(só o poeta liberta da lei do Esquecimento;

por isso, o rei D. Sebastião deve ‘baixar-se’ e contemplar a ‘pintura’ de

Camões…);

Pessoa sabe que só a criação de mitos (tarefa do poeta)

assegura a vitalidade da Pátria, porque a poesia é o Império vivo.

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•Fim

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Nota biográfica sobre a Autora:Ana Sofia Couto é licenciada em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa e Mestre em Teoria da Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.Realizou estágio na Escola Secundária C/3º Ciclo de Pedro Nunes no ano lectivo de 2006/2007, sob a orientação da Prof.ª Maria do Rosário Silva.

Esta comunicação foi apresentada pela Autora nas Turmas de 12º Ano da Professora Maria do Rosário Silva.