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TRANSCRIPT
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MENINO DIAMANTINO APRESENTA
NICOLAS BEHR
EM
A LENDA DO MENINO LAMBARI
uma pescaria poética da Anzol sem Isca Produções
Diamantino,MT / Brasília,DF
2012
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A LENDA DO MENINO LAMBARI (c) Nicolas Behr Edição do autor
Capa: ilustração de David William Pivotto Arte: Bruno SchürmannEditoração eletrônica: Marcus Polo Duarte
Contato:[email protected] Cx. Postal 8666 - CEP 70312-970 Brasília - DF - (61) 3468 3191 www.nicolasbehr.com.br
Agradeço: aos padres jesuítas pelas fotos antigas de Diamantino, pelas fotos que minha mãe Therese von Behr fez e pelos lindos desenhos das crianças. Agradeço especialmente ao meu menino por tantos poemas, emoções e lembranças. Obrigado, Noélia Ribeiro.
E à Prefeitura Municipal de Diamantino pelo patrocínio.
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Apresentação
É uma grande alegria para mim participar do livro do poeta Nicolas Behr, cidadão honorário de Diamantino, como eu.
Além dos poemas, certamente, o grande destaque deste livro são os desenhos dos alunos e alunas da Escola Municipal Castro Alves, no Assentamento Caeté, neste município. As crianças, na sua espontaneidade, souberam apreender de maneira singular o cotidiano desta fase tão importante da nossa vida, que é a infância.
Viabilizar a edição do livro A LENDA DO MENINO LAMBARI é para nós motivo de orgulho. Com esta publicação valorizamos nossa cultura e ao mesmo tempo incentivamos a leitura de poesia, principalmente nas escolas da rede pública.
Agradecemos ao poeta por compartilhar conosco as suas emoções de infância pela nossa querida Diamantino.
Juviano Lincoln Prefeito de Diamantino
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QUE A TERRA TE SEJA LEVE
Aqui repousa o vaqueiro “Chimitinho”(João Francisco Alves da Guia), na beira da estrada, entre a BR 364 e a grande criação de suinos, protegido por um pé de sucupira. Na foto ao lado, com o autor.
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vai pégaso
pangaré alado
cimento de raça
avoa
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infância eterna
sem começo nem fim
infância que atravessa
o rio, atravessa
diamantino,
o pasto, a vida
infância que sobe o morro
para admirar, lá de cima,
a mais fantástica
das infâncias
esta não
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cinquenta anos e nenhum poema
sobre a infância, esse tempo sem memória
cinquenta poemas e nenhum sobre
os joelhos machucados, as mãos cortadas,
a cabeça sangrando, os olhos esbugalhados
cinquenta livros e nenhum sobre o nada
cinquenta filhotes de lambari engolidos vivos
para aprender a nadar
cinquenta poemas para fazer uma canoa e mesmo assim afundar
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empurrei fiz força chamei um trator uso explosivos?
a casa da fazenda não cai quer que eu derrube, quer?pergunta o tempo
para Francisco Alvim
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Abertura do livro “Escritos em verbal de ave”, de Manoel de Barros, Texto Editores Ltda; Grupo Leya, São Paulo, 2011
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curimbatá lambari mandou dizê
que a piaba tá doente
com saudade de ocê (modinha que cantávamos a caminho das pescarias)
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escrever um poema é como atravessar
uma vereda
a vida é um grande atoleiro
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Os desenhos deste livro foram criados pelos(as) alunos(as) da Escola Municipal Castro Alves, dirigida pela Professora Laudelina Dias Ferreira, no Assentamento Caeté, Diamantino, MT. Em troca dos desenhos, o autor plantou 20 árvores na Escola, com o apoio do Viveiro Primavera, do Sr. José de Alencar - (BR 364 - km 613)
VAMOS COLORIR O LIVRO!
O autor com os alunos e alunas da Escola, as mudas e o “berço”. (2010)
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pronto cheguei
aqui estou, diamantino
volto?
enraizo e me corto
tôco
toco em frente
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dividi a fazenda
em várias infâncias
as cercas eram nuvens
pastos suspensos
montanhas cortadas ao meio
rios errados
mapas que desorientam
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infância é não-lugar
infância é sítio arqueológico, procura inútil
infância é perda, remorso
irrecuperável manga
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diamantino é índia diamantino é brancadiamantino é negra
arco-íris de raças
lambaris de todas as cores
veias misturadas nesse rio-sangue
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Sou bem-nascido. MeninoFui, como os demais,feliz. Depois, veio o mau destinoE fez de mim o que quis.
Manuel Bandeira
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aqui na beira do ribeirão amolar tudo é muito forte
menos a correnteza
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da varanda da casa de dona nilde contemplo diamantino
olho o verde vejo a igreja
o casario as mangueiras
a vida brinca de pique-esconde
por entre os neurônios ensolarados
é manhã de domingo
só da varanda da casa de dona nilde
eu tenho a absoluta certeza de que estou vivo
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David William Pivotto
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DEVER DE CASA
se a cada 30 minutos cai uma manga do pé de abacate quantas jacasexplodem por horadentro do jenipapo?
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o menino dita eu escrevo
quero beberágua em pó
engarrafar nuvens
subir em pé de melancia
pular de cima de pé de abóbora
cuspir faísca dentro de pedra
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a ponte existiu sim
fui lá ver no pitomba
ponte que o rio levou mas a lembrança trouxe de volta
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pra pescar um bom peixe é preciso sorte
pra escrever um bom poema é preciso sorte
azar de quem acredita nisso
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MENINO SABIDO
escolher um lugar limpo
procurar folha nova,larga,lisa e macia ao alcance da mão
sem marimbondo embaixo sem cocô de passarinho em cima
pra limpar a bunda não tem melhor
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os muros do lar do menor caídos na beira do ribeirão buritizinho
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somos heróisde nós mesmos
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derrubamos os muros do lar do menor na base do estilinguee da espingarda de chumbinho
o poder das sandálias de dedo
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desabutino, diamantino
(paródia de um poema de Ricardo Chacal)
quem quer saber de catar bocaiuvas se a cotação da bolsa de chicago indica que o preço da soja tende a cair?
quem quer saber de pescar lambari se o frigorífico está pagando apenas quarenta reais pela arroba do boi?
quem quer saber de escrever poemas se essa tal de poesia ainda não virou financiamentopra comprar trator, adubo e sementes? quem quer saber de mim na cidade-que-só-na-minha-imaginação-existe?
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Internos na frente do Lar do Menor, em meados dos anos 60. O
autor, cabeça branca, é o sétimo da esquerda para a direita,
sentado sobre o muro. Note o calçamento de pedra, obra de
escravos, segundo nos diziam. O Lar do Menor foi demolido,
e hoje no local funciona a Casa Edith.
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criei coragem e não entrei na casa da fazenda
fiquei na porta esperando a coragem passar
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coloca a isca no anzol assim ó
coloca a poesia na palavra assim ó
joga o anzol na água assim ó
joga o poema na página assim ó
para o duca
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ENCYCLOPEDIA E DICCIONÁRIO INTERNACIONAL
LISBOA, PORTUGAL, 1910
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encontramos ouro muito ouro e também diamantes
escravizamos índios trouxemos negros da áfrica
abrimos buracosdesviamos rios
traçamos ruas construímos casas
o ouro acabou o diamante acabou os índios morreram os negros fugiram
nem tapamos os buracos
fomos embora
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duas estradas dois caminhos
um menino
a estrada da vida a estrada da morte
uma indo para o sul outra para o norte
não rime morte com norte
a vida não tem direção
Fazenda Amolar, 1979
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menino intrigado com a igreja de paredes grossas e sem janelas
como deus vai ouvir nossas preces? por que não rezamos logolá fora?
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RIBEIRÃO DO OURO
atravessar o ribeirãopulando entre as pedras é facil
difícil é tirar aquelas pedras do lugar
viver é tirar pedras do lugar
recordar é tentar colocá-las de volta
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aqui nasceu meu irmão ali nasci eu ali mais à frente nasceu outro irmão meu
meu pai não nasceu aqui minha mãe também não
aqui está enterrado meu irmão ali estou eu logo ali outro irmão
a casa da fazenda caiu todos foram embora
mortos são aqueles que não mais existem
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lambari é um tipo de pássaro aquático
que vive dentro da terra
mas sonha em voar como os peixes
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não parei nem fotografei nada perguntei
não escrevi
não senti nem me emocionei nada lembrei
terminei
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me empresta a sua infância que eu esqueci a minha
na beira do rio diamantino
juro que não devolvo
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a criança ferida se revoltacom as indiferenças cortantes
separar cacos de telha de cacos de vidro
a criança ferida não encara seu malfeitor porque não há malfeitor maior que a sua própria dor
quando a criança ferida disser que está doendo, acredite, assopre, faça um curativo
criança ferida, de sentimentos mutilados
colisão com a realidade deixa criança ferida, disse o repórter na tv
a criança ferida ainda não disse tudo: quer abraçar este poema, cuidar dele, ser pai e mãe do poema, colocá-lopara dormir que, talvez, assim, a dor do poema passe
passou?
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olha eu olha eu revela a fotografia
menino com a mão no chifre do boi engole sucuris pica escorpiões
menino morde piranhasdá coice em cavalos
pisa em cobrasmenino corre atrás de onça
subir na mais alta das árvores e pular
salto mortal copa adentro
para escrever um poema é preciso coragem
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sumiu a paca sumiu a cotia sumiu a anta sumiu a onça sumiu o lobo sumiu o caititu
e o lambari?do lambari nem o rastro
lambari apaga o rastro com água
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a dor é inevitável
o sofrimento, opcional
(anônimo)
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só acredito no que imagino
na minha infância, por exemplo
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a mãe campeia dores
que o pai
guarda no curral
e o menino,
bezerro enjeitado,
espera a noite branca
se derramar
do úbere do céu
para mamar
a via láctea
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os poemas dentro de mim sentem que vou à diamantino
e começam a se apresentar
me puxam pela camisa
enquanto tropeço
em emoções inacabadaspelas ruas
de diamantino
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posar para a fotografia
e deixar o lambari à vontade
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dar a mão ao menino
sem mão
paisagem amputada
rio sem braço de rio
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menino engoliu dente de leite
engoli!
não era de leite?
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os ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que dois papagaios
para Carlos Drummond de Andrade
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SOMOS LOUCOS MAS NÃO SOMOS ANORMAIS (Michel Foucault)Asilo São Roque
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desenho um rio a alegria de desenhar um rio quase deságua em mim, fosse eu foz desenho um menino pescando desenho o lambari que pesquei
ficou bonito o meu desenho, professora?menino sem mimo, sem elogio mas orgulhoso, com o lambari na mão
aquarela vivada infância
natureza morta
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do infinito até diamantino é uma distância e tanto, disse o grilo falante
que nada, da porta da minha casa até diamantino é um palmo e meio, retrucou o caramujo mudo
cobrir grandes distâncias sem sair do lugar quanto mais se afastar mais perto estar
recusar caronas, evitar desvios, dinamitar pontes, furar pneus, fundir motores, rasgar mapas, destruir placas, errar o caminho, tentar voltar
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de brasília até diamantino descalço sobre
o asfalto quente
do avião se vê um pontinho na rodovia
— é ele! é ele! e a aeromoça me pergunta:
— onde o senhor pensa que vai?
andarilho com destino: destino diamantino
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aqui, em volta do pelourinho, é território sagrado
montanhas deprimidascalçadas caladashistórias humilhadasrios tristes
ouro que não reluz
diamante que não é para sempre
chibatadas em quem já não sente mais dor
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tirei todos os pregos
da velha ponte do ribeirão amolar como se estivesse faltando um em mim
finalmente me atravessei
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quando fui menino grande
daqui a muitos anos vai acontecer
a infância que já vivi
para hugo, sobrinho
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a gente de diamantino é simples
como este poema
que só eles vão entender
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no garimpo abandonado desta minha alma esburacada pelas
picaretadas incertas da vida
encontrei este poema xibio
pequenino poema sem valor
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do encontro de dois rios
nasceu diamantino
do cruzamento
de dois eixos
surgiu brasília
eixo ribeirão do ouro sul
eixo rio diamantino norte
rodoviária submersa
lambaris passageiros
iscas de pastéis
rios de caldo de cana
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jesus subiu aos céus as nuvens evaporaram a missa acabou o padre foi embora levaram o altar e os bancos cortaram as árvores o capim pegou fogo a capelinha desabou a cruz sumiu
o resto o tempo apagou
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nabor estivado sete lagoas levanta-saia caixa furada fazenda amolar ribeirão frei manoel chora café-sem-troco arrossemsal acaba-vida buriti alegre gurixa piraputanga tira-sentido quebra-canela mata-fome morro do mil réis lençol-queimado serra do tombador caramba
pronuncie um desses nomes e serás feliz
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sem medo sem sapato
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o flamboyant
da casa da fazenda
enraizou em mim
celulose e carnes
se entrelaçando
por isso
nos rabiscamos
trocamos de casca
florimos
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o que transportam esses caminhões?
transportam minha infância
soja
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fui em busca do meu tesouro
mas não o encontrei
se eu tivesse feito um sinal
na pedra, deixado um marco
na beira do rio, uma vara
de pescar fincada no chão
minha infância
está enterrada
em mim
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não mexe com o marimbondo que ele corre atrás da gente
marimbondo não corre, avoa
eu também avoo
mas só que debaixo do chão
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lígia ou lídia?mulher
do vaqueiro ou mulher
do tratorista?
ama de leite que não conheci
(só senti)
leite preto leite branco
leite bom
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é verdade que dentro de todo adulto
tem uma criança? como ela entrou lá? por onde?
um dia ela sai ou fica lá para sempre?
leva muito tempo pra virar menino?
depois da infância vem o quê? um abismo?
por que a infância acontece
quando a gente é pequeno?
por que a criança não pode ser egoísta também?
por que temos sempre que dizer sim?
se a criança não chora é porque está doente?
antes da infância vem o quê?
se a infância não acontece, acontece o quê?
alguém avisa quando a infância acaba?
por que a criança tem que crescer?
crescer é um tipo de castigo?
pode trocar por outro?
por que dizem sempre pra gente não chorar?
se o menino não tem lembrança
é porque já veio pronto?
é verdade que todo mundo tem infância,
menos as pedras, os patos e os poetas?
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dar de comer à ema
tirando comida da boca do poema
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velha infância que carrego
bato no peito e pergunto: tem alguém aí?
quantos lambaris se afogam dentro de mim?
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o barranco é um livro
usar a imaginação como isca
o anzol é a memória
linha não tem chumbada mas a saudade pesa
a vara é o tempo que segura
o peixe é este poema
o rio é a própria vida
escrever na água
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amanhece em diamantino e aos poucos o sol se põe e todos se recolhem e sonham que estão sonhando o sonho do rio diamantino
sonham que o ribeirão do ouro parou de correr e que as pedras se exercitam para subir a serra
sonham que as águas do rio diamantino congelaram e que nele pacas e cotias patinam sobre o gelo
sonham que nos hospitais os plantonistas também dormem e sonham com bebês que ainda não aprenderam a chorar
os raríssimos ladrões se recolhemos bêbados nada bebem e falam baixinho dentro das garrafas as corujas não piam
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os sapos não coaxam as luzes das ruas se apagam (a cidade toda iluminada)
no sonho das pessoas que sonham que dormem em diamantino o vento para de soprar, a terra não gira, as estrelas nem piscam, as folhas não tagarelam quem sonha que dorme em diamantino tem insônias profundas e pesadelos que a ninguém assusta
os galos, distraídos, esticam a madrugada os cães não latem, os motores não funcionam, raramente chove e, se chover, chuva fininha, que some antes de tocar o telhado
quem sonha que dorme em diamantino sabe que a noite em diamantino sonha que também dorme
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vendo minha infância outroco por lambaris usados
aceito pipas rasgadas picolés derretidosbicicletas sem rodas
leva de brinde um menino embrulhadoem folhas de bananeiras
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saudade é um sentimento de natureza arenosa,
transportada pelo tempo na forma de minúsculas
lembranças que vão se acumulando no fundo da memória, como areia que vai pro fundo do rio
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QUEM FOI A BARONEZA DA FAZENDA BARONESA
Agnete von Engelhardt, a quem chamávamos de “Tante Spatz”,(Tia Pardal), nasceu na Estônia, nos Países Bálticos, em 1906. Casou-se com o Barão Erich von Engelhardt, que morreu em 1946. A “Baroneza”, como era conhecida, era irmã do meu avô Nicolas, portanto tia do meu pai Anatol von Behr. Chegou ao Brasil em 1948, indo morar em São Paulo, onde se dedicou a intermediar e vender terras em Mato Grosso, principalmente para estrangeiros, pois era fluente em 5 idiomas. Foi responsável por trazer meu pai ao Brasil. Através dela o Principe João von Thurn und Taxis adquiriu a Fazenda São João, da qual meu pai foi o primeiro administrador. Em 1959 nós nos estabelecemos na Fazenda Amolar onde a “ Baroneza”, construiu um enorme casarão, no qual nunca residiu. Os dizeres “Fazenda Baronesa”, hoje são referência para quem passa pela BR 364, entre Diamantino e o Posto Gil. Faleceu em São Paulo em 1987.
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É ainda melhor ser criança quando não somos mais. É bom ser criança quando olhamos a criança como uma lembrança. Ana Miranda
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dona nilde, o pé de manga rosa...morreu? morreufoi cupim?não, foi mão ruim
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navios negreiros sobem o rio diamantino, afluente do alto congo, para jogar, no caramba, sua carga humana
negros tocam tambores na beira do ribeirão do ouro saudando novos orixás parecis
okê arô oxossi
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quando voltei já tinha gente
morando na minha infância
a casa ocupada as lembranças todas
do lado de fora
meninos ariscoscorrem atrás de
lambaris assustados
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eu voltei para nunca mais voltar para diamantino
eu vim sozinho, no meio da noite eu voltei para demolir o lar do menor eu vim para me levantar, pois estava ajoelhado no milho eu vim porque todos os caminhos levam a diamantino eu vim buscar o que não pode mais ser encontrado eu vim soltar todos os lambaris que pesquei no rio diamantino eu vim porque tinha que vir, diamantino eu vim chorar sobre o leite derramado eu vim para tirar todo o lixo do rio diamantino eu vim encontrar o meu amigo inácio, da tribo iranxi eu vim pois não me restou outra diamantino eu vim porque nunca se deve voltar ao lugar onde se foi feliz
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eu vim reescrever a minha história
eu vim defender todas as bolas que deixei passar quando fui goleiroeu vim e não encontrei mais diamantino eu vim falar com meu pai eu vim entregar todas as armas eu vim mapear os pés de bocaiuva eu voltei para enterrar este poema em frente à igreja matriz
eu voltei para esquecer diamantino
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sem flores nos colorirá
sem folhas nos sombreará
sem casca nos protegerá
sem tronco nos sustentará
velho pé de flamboyantna porta da casa da fazenda
que mesmo morto viverá
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toda criança é infeliz toda infância é impura
todo poeta é falso
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passei pela fazenda
nem olhei pra trás
infância que ainda está
por vir
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o tempo passa a infância não passa
o passado não passa
infância imóvel
parece que foi ontem e ainda nem aconteceu
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DONA NILDE NO CÉU
antes de se sentar entre os bem-aventurados
são pedro se aproximade dona nilde e diz: “aqui é o céu, dona nilde, deixa que a
gente mesmo se serve
e que, de amanhã em diante,
o seu sorrisoseja o nosso
alimento”
e assim se fez
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cheguei bem perto do rio mas não pesquei
dessa vez não sofri
nem eu nem o lambari
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poesia se faz com caderno lápis e borracha
caderno pra escrever
borracha pra apagar
lápis pra esquecer
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a primeira morte é a da infância
as outras mortes vêm antes
já nascemos enterrados
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