menino lambari - 2012.indd

132
1 MENINO DIAMANTINO APRESENTA NICOLAS BEHR EM A LENDA DO MENINO LAMBARI uma pescaria poética da Anzol sem Isca Produções Diamantino,MT / Brasília,DF 2012 menino lambari - 2012.indd 1 23/03/2012 17:20:56

Upload: dinhkhuong

Post on 07-Jan-2017

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: menino lambari - 2012.indd

1

MENINO DIAMANTINO APRESENTA

NICOLAS BEHR

EM

A LENDA DO MENINO LAMBARI

uma pescaria poética da Anzol sem Isca Produções

Diamantino,MT / Brasília,DF

2012

menino lambari - 2012.indd 1 23/03/2012 17:20:56

Page 2: menino lambari - 2012.indd

2

A LENDA DO MENINO LAMBARI (c) Nicolas Behr Edição do autor

Capa: ilustração de David William Pivotto Arte: Bruno SchürmannEditoração eletrônica: Marcus Polo Duarte

Contato:[email protected] Cx. Postal 8666 - CEP 70312-970 Brasília - DF - (61) 3468 3191 www.nicolasbehr.com.br

Agradeço: aos padres jesuítas pelas fotos antigas de Diamantino, pelas fotos que minha mãe Therese von Behr fez e pelos lindos desenhos das crianças. Agradeço especialmente ao meu menino por tantos poemas, emoções e lembranças. Obrigado, Noélia Ribeiro.

E à Prefeitura Municipal de Diamantino pelo patrocínio.

menino lambari - 2012.indd 2 23/03/2012 17:20:56

Page 3: menino lambari - 2012.indd

3

Apresentação

É uma grande alegria para mim participar do livro do poeta Nicolas Behr, cidadão honorário de Diamantino, como eu.

Além dos poemas, certamente, o grande destaque deste livro são os desenhos dos alunos e alunas da Escola Municipal Castro Alves, no Assentamento Caeté, neste município. As crianças, na sua espontaneidade, souberam apreender de maneira singular o cotidiano desta fase tão importante da nossa vida, que é a infância.

Viabilizar a edição do livro A LENDA DO MENINO LAMBARI é para nós motivo de orgulho. Com esta publicação valorizamos nossa cultura e ao mesmo tempo incentivamos a leitura de poesia, principalmente nas escolas da rede pública.

Agradecemos ao poeta por compartilhar conosco as suas emoções de infância pela nossa querida Diamantino.

Juviano Lincoln Prefeito de Diamantino

menino lambari - 2012.indd 3 23/03/2012 17:20:56

Page 4: menino lambari - 2012.indd

4

QUE A TERRA TE SEJA LEVE

Aqui repousa o vaqueiro “Chimitinho”(João Francisco Alves da Guia), na beira da estrada, entre a BR 364 e a grande criação de suinos, protegido por um pé de sucupira. Na foto ao lado, com o autor.

menino lambari - 2012.indd 4 23/03/2012 17:20:57

Page 5: menino lambari - 2012.indd

5

vai pégaso

pangaré alado

cimento de raça

avoa

menino lambari - 2012.indd 5 23/03/2012 17:20:57

Page 6: menino lambari - 2012.indd

6

infância eterna

sem começo nem fim

infância que atravessa

o rio, atravessa

diamantino,

o pasto, a vida

infância que sobe o morro

para admirar, lá de cima,

a mais fantástica

das infâncias

esta não

menino lambari - 2012.indd 6 23/03/2012 17:20:57

Page 7: menino lambari - 2012.indd

7

cinquenta anos e nenhum poema

sobre a infância, esse tempo sem memória

cinquenta poemas e nenhum sobre

os joelhos machucados, as mãos cortadas,

a cabeça sangrando, os olhos esbugalhados

cinquenta livros e nenhum sobre o nada

cinquenta filhotes de lambari engolidos vivos

para aprender a nadar

cinquenta poemas para fazer uma canoa e mesmo assim afundar

menino lambari - 2012.indd 7 23/03/2012 17:20:57

Page 8: menino lambari - 2012.indd

8

empurrei fiz força chamei um trator uso explosivos?

a casa da fazenda não cai quer que eu derrube, quer?pergunta o tempo

para Francisco Alvim

menino lambari - 2012.indd 8 23/03/2012 17:20:57

Page 9: menino lambari - 2012.indd

9

Abertura do livro “Escritos em verbal de ave”, de Manoel de Barros, Texto Editores Ltda; Grupo Leya, São Paulo, 2011

menino lambari - 2012.indd 9 23/03/2012 17:20:58

Page 10: menino lambari - 2012.indd

10

curimbatá lambari mandou dizê

que a piaba tá doente

com saudade de ocê (modinha que cantávamos a caminho das pescarias)

menino lambari - 2012.indd 10 23/03/2012 17:20:58

Page 11: menino lambari - 2012.indd

11

escrever um poema é como atravessar

uma vereda

a vida é um grande atoleiro

menino lambari - 2012.indd 11 23/03/2012 17:20:58

Page 12: menino lambari - 2012.indd

12

Os desenhos deste livro foram criados pelos(as) alunos(as) da Escola Municipal Castro Alves, dirigida pela Professora Laudelina Dias Ferreira, no Assentamento Caeté, Diamantino, MT. Em troca dos desenhos, o autor plantou 20 árvores na Escola, com o apoio do Viveiro Primavera, do Sr. José de Alencar - (BR 364 - km 613)

VAMOS COLORIR O LIVRO!

O autor com os alunos e alunas da Escola, as mudas e o “berço”. (2010)

menino lambari - 2012.indd 12 23/03/2012 17:20:59

Page 13: menino lambari - 2012.indd

13

pronto cheguei

aqui estou, diamantino

volto?

enraizo e me corto

tôco

toco em frente

menino lambari - 2012.indd 13 23/03/2012 17:20:59

Page 14: menino lambari - 2012.indd

14

dividi a fazenda

em várias infâncias

as cercas eram nuvens

pastos suspensos

montanhas cortadas ao meio

rios errados

mapas que desorientam

menino lambari - 2012.indd 14 23/03/2012 17:21:00

Page 15: menino lambari - 2012.indd

15

infância é não-lugar

infância é sítio arqueológico, procura inútil

infância é perda, remorso

irrecuperável manga

menino lambari - 2012.indd 15 23/03/2012 17:21:00

Page 16: menino lambari - 2012.indd

16

menino lambari - 2012.indd 16 23/03/2012 17:21:00

Page 17: menino lambari - 2012.indd

17

menino lambari - 2012.indd 17 23/03/2012 17:21:01

Page 18: menino lambari - 2012.indd

18

diamantino é índia diamantino é brancadiamantino é negra

arco-íris de raças

lambaris de todas as cores

veias misturadas nesse rio-sangue

menino lambari - 2012.indd 18 23/03/2012 17:21:01

Page 19: menino lambari - 2012.indd

19

Sou bem-nascido. MeninoFui, como os demais,feliz. Depois, veio o mau destinoE fez de mim o que quis.

Manuel Bandeira

menino lambari - 2012.indd 19 23/03/2012 17:21:01

Page 20: menino lambari - 2012.indd

20

aqui na beira do ribeirão amolar tudo é muito forte

menos a correnteza

menino lambari - 2012.indd 20 23/03/2012 17:21:01

Page 21: menino lambari - 2012.indd

21

da varanda da casa de dona nilde contemplo diamantino

olho o verde vejo a igreja

o casario as mangueiras

a vida brinca de pique-esconde

por entre os neurônios ensolarados

é manhã de domingo

só da varanda da casa de dona nilde

eu tenho a absoluta certeza de que estou vivo

menino lambari - 2012.indd 21 23/03/2012 17:21:01

Page 22: menino lambari - 2012.indd

22

David William Pivotto

menino lambari - 2012.indd 22 23/03/2012 17:21:02

Page 23: menino lambari - 2012.indd

23

menino lambari - 2012.indd 23 23/03/2012 17:21:02

Page 24: menino lambari - 2012.indd

24

DEVER DE CASA

se a cada 30 minutos cai uma manga do pé de abacate quantas jacasexplodem por horadentro do jenipapo?

menino lambari - 2012.indd 24 23/03/2012 17:21:02

Page 25: menino lambari - 2012.indd

25

o menino dita eu escrevo

quero beberágua em pó

engarrafar nuvens

subir em pé de melancia

pular de cima de pé de abóbora

cuspir faísca dentro de pedra

menino lambari - 2012.indd 25 23/03/2012 17:21:02

Page 26: menino lambari - 2012.indd

26

menino lambari - 2012.indd 26 23/03/2012 17:21:03

Page 27: menino lambari - 2012.indd

27

menino lambari - 2012.indd 27 23/03/2012 17:21:03

Page 28: menino lambari - 2012.indd

28

a ponte existiu sim

fui lá ver no pitomba

ponte que o rio levou mas a lembrança trouxe de volta

menino lambari - 2012.indd 28 23/03/2012 17:21:03

Page 29: menino lambari - 2012.indd

29

menino lambari - 2012.indd 29 23/03/2012 17:21:04

Page 30: menino lambari - 2012.indd

30

pra pescar um bom peixe é preciso sorte

pra escrever um bom poema é preciso sorte

azar de quem acredita nisso

menino lambari - 2012.indd 30 23/03/2012 17:21:04

Page 31: menino lambari - 2012.indd

31

MENINO SABIDO

escolher um lugar limpo

procurar folha nova,larga,lisa e macia ao alcance da mão

sem marimbondo embaixo sem cocô de passarinho em cima

pra limpar a bunda não tem melhor

menino lambari - 2012.indd 31 23/03/2012 17:21:04

Page 32: menino lambari - 2012.indd

32

menino lambari - 2012.indd 32 23/03/2012 17:21:06

Page 33: menino lambari - 2012.indd

33

os muros do lar do menor caídos na beira do ribeirão buritizinho

menino lambari - 2012.indd 33 23/03/2012 17:21:08

Page 34: menino lambari - 2012.indd

34

somos heróisde nós mesmos

menino lambari - 2012.indd 34 23/03/2012 17:21:08

Page 35: menino lambari - 2012.indd

35

derrubamos os muros do lar do menor na base do estilinguee da espingarda de chumbinho

o poder das sandálias de dedo

menino lambari - 2012.indd 35 23/03/2012 17:21:09

Page 36: menino lambari - 2012.indd

36

desabutino, diamantino

(paródia de um poema de Ricardo Chacal)

quem quer saber de catar bocaiuvas se a cotação da bolsa de chicago indica que o preço da soja tende a cair?

quem quer saber de pescar lambari se o frigorífico está pagando apenas quarenta reais pela arroba do boi?

quem quer saber de escrever poemas se essa tal de poesia ainda não virou financiamentopra comprar trator, adubo e sementes? quem quer saber de mim na cidade-que-só-na-minha-imaginação-existe?

menino lambari - 2012.indd 36 23/03/2012 17:21:09

Page 37: menino lambari - 2012.indd

37

Internos na frente do Lar do Menor, em meados dos anos 60. O

autor, cabeça branca, é o sétimo da esquerda para a direita,

sentado sobre o muro. Note o calçamento de pedra, obra de

escravos, segundo nos diziam. O Lar do Menor foi demolido,

e hoje no local funciona a Casa Edith.

menino lambari - 2012.indd 37 23/03/2012 17:21:10

Page 38: menino lambari - 2012.indd

38

criei coragem e não entrei na casa da fazenda

fiquei na porta esperando a coragem passar

menino lambari - 2012.indd 38 23/03/2012 17:21:10

Page 39: menino lambari - 2012.indd

39

coloca a isca no anzol assim ó

coloca a poesia na palavra assim ó

joga o anzol na água assim ó

joga o poema na página assim ó

para o duca

menino lambari - 2012.indd 39 23/03/2012 17:21:10

Page 40: menino lambari - 2012.indd

40

ENCYCLOPEDIA E DICCIONÁRIO INTERNACIONAL

LISBOA, PORTUGAL, 1910

menino lambari - 2012.indd 40 23/03/2012 17:21:11

Page 41: menino lambari - 2012.indd

41

menino lambari - 2012.indd 41 23/03/2012 17:21:12

Page 42: menino lambari - 2012.indd

42

encontramos ouro muito ouro e também diamantes

escravizamos índios trouxemos negros da áfrica

abrimos buracosdesviamos rios

traçamos ruas construímos casas

o ouro acabou o diamante acabou os índios morreram os negros fugiram

nem tapamos os buracos

fomos embora

menino lambari - 2012.indd 42 23/03/2012 17:21:12

Page 43: menino lambari - 2012.indd

43

duas estradas dois caminhos

um menino

a estrada da vida a estrada da morte

uma indo para o sul outra para o norte

não rime morte com norte

a vida não tem direção

Fazenda Amolar, 1979

menino lambari - 2012.indd 43 23/03/2012 17:21:12

Page 44: menino lambari - 2012.indd

44

menino lambari - 2012.indd 44 23/03/2012 17:21:13

Page 45: menino lambari - 2012.indd

45

menino lambari - 2012.indd 45 23/03/2012 17:21:14

Page 46: menino lambari - 2012.indd

46

menino intrigado com a igreja de paredes grossas e sem janelas

como deus vai ouvir nossas preces? por que não rezamos logolá fora?

menino lambari - 2012.indd 46 23/03/2012 17:21:14

Page 47: menino lambari - 2012.indd

47

RIBEIRÃO DO OURO

atravessar o ribeirãopulando entre as pedras é facil

difícil é tirar aquelas pedras do lugar

viver é tirar pedras do lugar

recordar é tentar colocá-las de volta

menino lambari - 2012.indd 47 23/03/2012 17:21:15

Page 48: menino lambari - 2012.indd

48

menino lambari - 2012.indd 48 23/03/2012 17:21:16

Page 49: menino lambari - 2012.indd

49

menino lambari - 2012.indd 49 23/03/2012 17:21:16

Page 50: menino lambari - 2012.indd

50

aqui nasceu meu irmão ali nasci eu ali mais à frente nasceu outro irmão meu

meu pai não nasceu aqui minha mãe também não

aqui está enterrado meu irmão ali estou eu logo ali outro irmão

a casa da fazenda caiu todos foram embora

mortos são aqueles que não mais existem

menino lambari - 2012.indd 50 23/03/2012 17:21:16

Page 51: menino lambari - 2012.indd

51

lambari é um tipo de pássaro aquático

que vive dentro da terra

mas sonha em voar como os peixes

menino lambari - 2012.indd 51 23/03/2012 17:21:16

Page 52: menino lambari - 2012.indd

52

menino lambari - 2012.indd 52 23/03/2012 17:21:17

Page 53: menino lambari - 2012.indd

53

menino lambari - 2012.indd 53 23/03/2012 17:21:17

Page 54: menino lambari - 2012.indd

54

não parei nem fotografei nada perguntei

não escrevi

não senti nem me emocionei nada lembrei

terminei

menino lambari - 2012.indd 54 23/03/2012 17:21:18

Page 55: menino lambari - 2012.indd

55

me empresta a sua infância que eu esqueci a minha

na beira do rio diamantino

juro que não devolvo

menino lambari - 2012.indd 55 23/03/2012 17:21:18

Page 56: menino lambari - 2012.indd

56

a criança ferida se revoltacom as indiferenças cortantes

separar cacos de telha de cacos de vidro

a criança ferida não encara seu malfeitor porque não há malfeitor maior que a sua própria dor

quando a criança ferida disser que está doendo, acredite, assopre, faça um curativo

criança ferida, de sentimentos mutilados

colisão com a realidade deixa criança ferida, disse o repórter na tv

a criança ferida ainda não disse tudo: quer abraçar este poema, cuidar dele, ser pai e mãe do poema, colocá-lopara dormir que, talvez, assim, a dor do poema passe

passou?

menino lambari - 2012.indd 56 23/03/2012 17:21:18

Page 57: menino lambari - 2012.indd

57

olha eu olha eu revela a fotografia

menino com a mão no chifre do boi engole sucuris pica escorpiões

menino morde piranhasdá coice em cavalos

pisa em cobrasmenino corre atrás de onça

subir na mais alta das árvores e pular

salto mortal copa adentro

para escrever um poema é preciso coragem

menino lambari - 2012.indd 57 23/03/2012 17:21:18

Page 58: menino lambari - 2012.indd

58

menino lambari - 2012.indd 58 23/03/2012 17:21:18

Page 59: menino lambari - 2012.indd

59

menino lambari - 2012.indd 59 23/03/2012 17:21:19

Page 60: menino lambari - 2012.indd

60

sumiu a paca sumiu a cotia sumiu a anta sumiu a onça sumiu o lobo sumiu o caititu

e o lambari?do lambari nem o rastro

lambari apaga o rastro com água

menino lambari - 2012.indd 60 23/03/2012 17:21:19

Page 61: menino lambari - 2012.indd

61

menino lambari - 2012.indd 61 23/03/2012 17:21:20

Page 62: menino lambari - 2012.indd

62

a dor é inevitável

o sofrimento, opcional

(anônimo)

menino lambari - 2012.indd 62 23/03/2012 17:21:20

Page 63: menino lambari - 2012.indd

63

só acredito no que imagino

na minha infância, por exemplo

menino lambari - 2012.indd 63 23/03/2012 17:21:20

Page 64: menino lambari - 2012.indd

64

a mãe campeia dores

que o pai

guarda no curral

e o menino,

bezerro enjeitado,

espera a noite branca

se derramar

do úbere do céu

para mamar

a via láctea

menino lambari - 2012.indd 64 23/03/2012 17:21:20

Page 65: menino lambari - 2012.indd

65

os poemas dentro de mim sentem que vou à diamantino

e começam a se apresentar

me puxam pela camisa

enquanto tropeço

em emoções inacabadaspelas ruas

de diamantino

menino lambari - 2012.indd 65 23/03/2012 17:21:20

Page 66: menino lambari - 2012.indd

66

menino lambari - 2012.indd 66 23/03/2012 17:21:21

Page 67: menino lambari - 2012.indd

67

menino lambari - 2012.indd 67 23/03/2012 17:21:21

Page 68: menino lambari - 2012.indd

68

posar para a fotografia

e deixar o lambari à vontade

menino lambari - 2012.indd 68 23/03/2012 17:21:21

Page 69: menino lambari - 2012.indd

69

dar a mão ao menino

sem mão

paisagem amputada

rio sem braço de rio

menino lambari - 2012.indd 69 23/03/2012 17:21:22

Page 70: menino lambari - 2012.indd

70

menino engoliu dente de leite

engoli!

não era de leite?

menino lambari - 2012.indd 70 23/03/2012 17:21:22

Page 71: menino lambari - 2012.indd

71

os ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que dois papagaios

para Carlos Drummond de Andrade

menino lambari - 2012.indd 71 23/03/2012 17:21:22

Page 72: menino lambari - 2012.indd

72

menino lambari - 2012.indd 72 23/03/2012 17:21:24

Page 73: menino lambari - 2012.indd

73

menino lambari - 2012.indd 73 23/03/2012 17:21:25

Page 74: menino lambari - 2012.indd

74

1979

SOMOS LOUCOS MAS NÃO SOMOS ANORMAIS (Michel Foucault)Asilo São Roque

menino lambari - 2012.indd 74 23/03/2012 17:21:26

Page 75: menino lambari - 2012.indd

75

menino lambari - 2012.indd 75 23/03/2012 17:21:26

Page 76: menino lambari - 2012.indd

76

desenho um rio a alegria de desenhar um rio quase deságua em mim, fosse eu foz desenho um menino pescando desenho o lambari que pesquei

ficou bonito o meu desenho, professora?menino sem mimo, sem elogio mas orgulhoso, com o lambari na mão

aquarela vivada infância

natureza morta

menino lambari - 2012.indd 76 23/03/2012 17:21:26

Page 77: menino lambari - 2012.indd

77

menino lambari - 2012.indd 77 23/03/2012 17:21:26

Page 78: menino lambari - 2012.indd

78

do infinito até diamantino é uma distância e tanto, disse o grilo falante

que nada, da porta da minha casa até diamantino é um palmo e meio, retrucou o caramujo mudo

cobrir grandes distâncias sem sair do lugar quanto mais se afastar mais perto estar

recusar caronas, evitar desvios, dinamitar pontes, furar pneus, fundir motores, rasgar mapas, destruir placas, errar o caminho, tentar voltar

menino lambari - 2012.indd 78 23/03/2012 17:21:26

Page 79: menino lambari - 2012.indd

79

de brasília até diamantino descalço sobre

o asfalto quente

do avião se vê um pontinho na rodovia

— é ele! é ele! e a aeromoça me pergunta:

— onde o senhor pensa que vai?

andarilho com destino: destino diamantino

menino lambari - 2012.indd 79 23/03/2012 17:21:26

Page 80: menino lambari - 2012.indd

80

aqui, em volta do pelourinho, é território sagrado

montanhas deprimidascalçadas caladashistórias humilhadasrios tristes

ouro que não reluz

diamante que não é para sempre

chibatadas em quem já não sente mais dor

menino lambari - 2012.indd 80 23/03/2012 17:21:26

Page 81: menino lambari - 2012.indd

81

tirei todos os pregos

da velha ponte do ribeirão amolar como se estivesse faltando um em mim

finalmente me atravessei

menino lambari - 2012.indd 81 23/03/2012 17:21:26

Page 82: menino lambari - 2012.indd

82

menino lambari - 2012.indd 82 23/03/2012 17:21:27

Page 83: menino lambari - 2012.indd

83

menino lambari - 2012.indd 83 23/03/2012 17:21:27

Page 84: menino lambari - 2012.indd

84

menino lambari - 2012.indd 84 23/03/2012 17:21:27

Page 85: menino lambari - 2012.indd

85

quando fui menino grande

daqui a muitos anos vai acontecer

a infância que já vivi

para hugo, sobrinho

menino lambari - 2012.indd 85 23/03/2012 17:21:27

Page 86: menino lambari - 2012.indd

86

a gente de diamantino é simples

como este poema

que só eles vão entender

menino lambari - 2012.indd 86 23/03/2012 17:21:27

Page 87: menino lambari - 2012.indd

87

no garimpo abandonado desta minha alma esburacada pelas

picaretadas incertas da vida

encontrei este poema xibio

pequenino poema sem valor

menino lambari - 2012.indd 87 23/03/2012 17:21:28

Page 88: menino lambari - 2012.indd

88

do encontro de dois rios

nasceu diamantino

do cruzamento

de dois eixos

surgiu brasília

eixo ribeirão do ouro sul

eixo rio diamantino norte

rodoviária submersa

lambaris passageiros

iscas de pastéis

rios de caldo de cana

menino lambari - 2012.indd 88 23/03/2012 17:21:28

Page 89: menino lambari - 2012.indd

89

jesus subiu aos céus as nuvens evaporaram a missa acabou o padre foi embora levaram o altar e os bancos cortaram as árvores o capim pegou fogo a capelinha desabou a cruz sumiu

o resto o tempo apagou

menino lambari - 2012.indd 89 23/03/2012 17:21:28

Page 90: menino lambari - 2012.indd

90

nabor estivado sete lagoas levanta-saia caixa furada fazenda amolar ribeirão frei manoel chora café-sem-troco arrossemsal acaba-vida buriti alegre gurixa piraputanga tira-sentido quebra-canela mata-fome morro do mil réis lençol-queimado serra do tombador caramba

pronuncie um desses nomes e serás feliz

menino lambari - 2012.indd 90 23/03/2012 17:21:28

Page 91: menino lambari - 2012.indd

91

sem medo sem sapato

menino lambari - 2012.indd 91 23/03/2012 17:21:28

Page 92: menino lambari - 2012.indd

92

o flamboyant

da casa da fazenda

enraizou em mim

celulose e carnes

se entrelaçando

por isso

nos rabiscamos

trocamos de casca

florimos

menino lambari - 2012.indd 92 23/03/2012 17:21:28

Page 93: menino lambari - 2012.indd

93

menino lambari - 2012.indd 93 23/03/2012 17:21:28

Page 94: menino lambari - 2012.indd

94

o que transportam esses caminhões?

transportam minha infância

soja

menino lambari - 2012.indd 94 23/03/2012 17:21:28

Page 95: menino lambari - 2012.indd

95

fui em busca do meu tesouro

mas não o encontrei

se eu tivesse feito um sinal

na pedra, deixado um marco

na beira do rio, uma vara

de pescar fincada no chão

minha infância

está enterrada

em mim

menino lambari - 2012.indd 95 23/03/2012 17:21:29

Page 96: menino lambari - 2012.indd

96

não mexe com o marimbondo que ele corre atrás da gente

marimbondo não corre, avoa

eu também avoo

mas só que debaixo do chão

menino lambari - 2012.indd 96 23/03/2012 17:21:29

Page 97: menino lambari - 2012.indd

97

lígia ou lídia?mulher

do vaqueiro ou mulher

do tratorista?

ama de leite que não conheci

(só senti)

leite preto leite branco

leite bom

menino lambari - 2012.indd 97 23/03/2012 17:21:29

Page 98: menino lambari - 2012.indd

98

menino lambari - 2012.indd 98 23/03/2012 17:21:30

Page 99: menino lambari - 2012.indd

99

é verdade que dentro de todo adulto

tem uma criança? como ela entrou lá? por onde?

um dia ela sai ou fica lá para sempre?

leva muito tempo pra virar menino?

depois da infância vem o quê? um abismo?

por que a infância acontece

quando a gente é pequeno?

por que a criança não pode ser egoísta também?

por que temos sempre que dizer sim?

se a criança não chora é porque está doente?

antes da infância vem o quê?

se a infância não acontece, acontece o quê?

alguém avisa quando a infância acaba?

por que a criança tem que crescer?

crescer é um tipo de castigo?

pode trocar por outro?

por que dizem sempre pra gente não chorar?

se o menino não tem lembrança

é porque já veio pronto?

é verdade que todo mundo tem infância,

menos as pedras, os patos e os poetas?

menino lambari - 2012.indd 99 23/03/2012 17:21:30

Page 100: menino lambari - 2012.indd

100

menino lambari - 2012.indd 100 23/03/2012 17:21:30

Page 101: menino lambari - 2012.indd

101

menino lambari - 2012.indd 101 23/03/2012 17:21:30

Page 102: menino lambari - 2012.indd

102

menino lambari - 2012.indd 102 23/03/2012 17:21:31

Page 103: menino lambari - 2012.indd

103

dar de comer à ema

tirando comida da boca do poema

menino lambari - 2012.indd 103 23/03/2012 17:21:31

Page 104: menino lambari - 2012.indd

104

velha infância que carrego

bato no peito e pergunto: tem alguém aí?

quantos lambaris se afogam dentro de mim?

menino lambari - 2012.indd 104 23/03/2012 17:21:31

Page 105: menino lambari - 2012.indd

105

menino lambari - 2012.indd 105 23/03/2012 17:21:32

Page 106: menino lambari - 2012.indd

106

o barranco é um livro

usar a imaginação como isca

o anzol é a memória

linha não tem chumbada mas a saudade pesa

a vara é o tempo que segura

o peixe é este poema

o rio é a própria vida

escrever na água

menino lambari - 2012.indd 106 23/03/2012 17:21:32

Page 107: menino lambari - 2012.indd

107

menino lambari - 2012.indd 107 23/03/2012 17:21:32

Page 108: menino lambari - 2012.indd

108

amanhece em diamantino e aos poucos o sol se põe e todos se recolhem e sonham que estão sonhando o sonho do rio diamantino

sonham que o ribeirão do ouro parou de correr e que as pedras se exercitam para subir a serra

sonham que as águas do rio diamantino congelaram e que nele pacas e cotias patinam sobre o gelo

sonham que nos hospitais os plantonistas também dormem e sonham com bebês que ainda não aprenderam a chorar

os raríssimos ladrões se recolhemos bêbados nada bebem e falam baixinho dentro das garrafas as corujas não piam

menino lambari - 2012.indd 108 23/03/2012 17:21:32

Page 109: menino lambari - 2012.indd

109

os sapos não coaxam as luzes das ruas se apagam (a cidade toda iluminada)

no sonho das pessoas que sonham que dormem em diamantino o vento para de soprar, a terra não gira, as estrelas nem piscam, as folhas não tagarelam quem sonha que dorme em diamantino tem insônias profundas e pesadelos que a ninguém assusta

os galos, distraídos, esticam a madrugada os cães não latem, os motores não funcionam, raramente chove e, se chover, chuva fininha, que some antes de tocar o telhado

quem sonha que dorme em diamantino sabe que a noite em diamantino sonha que também dorme

menino lambari - 2012.indd 109 23/03/2012 17:21:32

Page 110: menino lambari - 2012.indd

110

vendo minha infância outroco por lambaris usados

aceito pipas rasgadas picolés derretidosbicicletas sem rodas

leva de brinde um menino embrulhadoem folhas de bananeiras

menino lambari - 2012.indd 110 23/03/2012 17:21:32

Page 111: menino lambari - 2012.indd

111

saudade é um sentimento de natureza arenosa,

transportada pelo tempo na forma de minúsculas

lembranças que vão se acumulando no fundo da memória, como areia que vai pro fundo do rio

menino lambari - 2012.indd 111 23/03/2012 17:21:32

Page 112: menino lambari - 2012.indd

112

menino lambari - 2012.indd 112 23/03/2012 17:21:33

Page 113: menino lambari - 2012.indd

113

QUEM FOI A BARONEZA DA FAZENDA BARONESA

Agnete von Engelhardt, a quem chamávamos de “Tante Spatz”,(Tia Pardal), nasceu na Estônia, nos Países Bálticos, em 1906. Casou-se com o Barão Erich von Engelhardt, que morreu em 1946. A “Baroneza”, como era conhecida, era irmã do meu avô Nicolas, portanto tia do meu pai Anatol von Behr. Chegou ao Brasil em 1948, indo morar em São Paulo, onde se dedicou a intermediar e vender terras em Mato Grosso, principalmente para estrangeiros, pois era fluente em 5 idiomas. Foi responsável por trazer meu pai ao Brasil. Através dela o Principe João von Thurn und Taxis adquiriu a Fazenda São João, da qual meu pai foi o primeiro administrador. Em 1959 nós nos estabelecemos na Fazenda Amolar onde a “ Baroneza”, construiu um enorme casarão, no qual nunca residiu. Os dizeres “Fazenda Baronesa”, hoje são referência para quem passa pela BR 364, entre Diamantino e o Posto Gil. Faleceu em São Paulo em 1987.

menino lambari - 2012.indd 113 23/03/2012 17:21:33

Page 114: menino lambari - 2012.indd

114

menino lambari - 2012.indd 114 23/03/2012 17:21:33

Page 115: menino lambari - 2012.indd

115

menino lambari - 2012.indd 115 23/03/2012 17:21:34

Page 116: menino lambari - 2012.indd

116

É ainda melhor ser criança quando não somos mais. É bom ser criança quando olhamos a criança como uma lembrança. Ana Miranda

menino lambari - 2012.indd 116 23/03/2012 17:21:34

Page 117: menino lambari - 2012.indd

117

dona nilde, o pé de manga rosa...morreu? morreufoi cupim?não, foi mão ruim

menino lambari - 2012.indd 117 23/03/2012 17:21:34

Page 118: menino lambari - 2012.indd

118

navios negreiros sobem o rio diamantino, afluente do alto congo, para jogar, no caramba, sua carga humana

negros tocam tambores na beira do ribeirão do ouro saudando novos orixás parecis

okê arô oxossi

menino lambari - 2012.indd 118 23/03/2012 17:21:34

Page 119: menino lambari - 2012.indd

119

quando voltei já tinha gente

morando na minha infância

a casa ocupada as lembranças todas

do lado de fora

meninos ariscoscorrem atrás de

lambaris assustados

menino lambari - 2012.indd 119 23/03/2012 17:21:34

Page 120: menino lambari - 2012.indd

120

eu voltei para nunca mais voltar para diamantino

eu vim sozinho, no meio da noite eu voltei para demolir o lar do menor eu vim para me levantar, pois estava ajoelhado no milho eu vim porque todos os caminhos levam a diamantino eu vim buscar o que não pode mais ser encontrado eu vim soltar todos os lambaris que pesquei no rio diamantino eu vim porque tinha que vir, diamantino eu vim chorar sobre o leite derramado eu vim para tirar todo o lixo do rio diamantino eu vim encontrar o meu amigo inácio, da tribo iranxi eu vim pois não me restou outra diamantino eu vim porque nunca se deve voltar ao lugar onde se foi feliz

menino lambari - 2012.indd 120 23/03/2012 17:21:34

Page 121: menino lambari - 2012.indd

121

eu vim reescrever a minha história

eu vim defender todas as bolas que deixei passar quando fui goleiroeu vim e não encontrei mais diamantino eu vim falar com meu pai eu vim entregar todas as armas eu vim mapear os pés de bocaiuva eu voltei para enterrar este poema em frente à igreja matriz

eu voltei para esquecer diamantino

menino lambari - 2012.indd 121 23/03/2012 17:21:34

Page 122: menino lambari - 2012.indd

122

sem flores nos colorirá

sem folhas nos sombreará

sem casca nos protegerá

sem tronco nos sustentará

velho pé de flamboyantna porta da casa da fazenda

que mesmo morto viverá

menino lambari - 2012.indd 122 23/03/2012 17:21:34

Page 123: menino lambari - 2012.indd

123

toda criança é infeliz toda infância é impura

todo poeta é falso

menino lambari - 2012.indd 123 23/03/2012 17:21:34

Page 124: menino lambari - 2012.indd

124

menino lambari - 2012.indd 124 23/03/2012 17:21:35

Page 125: menino lambari - 2012.indd

125

passei pela fazenda

nem olhei pra trás

infância que ainda está

por vir

menino lambari - 2012.indd 125 23/03/2012 17:21:35

Page 126: menino lambari - 2012.indd

126

o tempo passa a infância não passa

o passado não passa

infância imóvel

parece que foi ontem e ainda nem aconteceu

menino lambari - 2012.indd 126 23/03/2012 17:21:35

Page 127: menino lambari - 2012.indd

127

DONA NILDE NO CÉU

antes de se sentar entre os bem-aventurados

são pedro se aproximade dona nilde e diz: “aqui é o céu, dona nilde, deixa que a

gente mesmo se serve

e que, de amanhã em diante,

o seu sorrisoseja o nosso

alimento”

e assim se fez

menino lambari - 2012.indd 127 23/03/2012 17:21:35

Page 128: menino lambari - 2012.indd

128

menino lambari - 2012.indd 128 23/03/2012 17:21:35

Page 129: menino lambari - 2012.indd

129

menino lambari - 2012.indd 129 23/03/2012 17:21:35

Page 130: menino lambari - 2012.indd

130

cheguei bem perto do rio mas não pesquei

dessa vez não sofri

nem eu nem o lambari

menino lambari - 2012.indd 130 23/03/2012 17:21:35

Page 131: menino lambari - 2012.indd

131

poesia se faz com caderno lápis e borracha

caderno pra escrever

borracha pra apagar

lápis pra esquecer

menino lambari - 2012.indd 131 23/03/2012 17:21:35

Page 132: menino lambari - 2012.indd

132

a primeira morte é a da infância

as outras mortes vêm antes

já nascemos enterrados

menino lambari - 2012.indd 132 23/03/2012 17:21:35