memÓrias na ilha de santa catarina: o aterro da baÍa...

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MEMÓRIAS NA ILHA DE SANTA CATARINA: O ATERRO DA BAÍA SUL E A PRÁTICA DO REMO 1 Ileana Wenetz* 2 Alexandre Fernandez Vaz* 3 1. Dos espaços na Cidade [...] seria preciso fazer uma “históriados espaços” – que seria ao mesmo tempo uma “história dos poderes” – que estudasse desde as grandes estratégias da geopolítica até as pequenas táticas do habitat, da arquitetura institucional [...], passando pelas implantações econômico-políticas (FOUCAULT, 2002b:212). Espaços, urbanização, arquitetura, organização, tempo, deslocamentos, sociabilidade e cidade... Podem parecer poucas as relações possíveis entre esses conceitos e experiências, mas elas constituem o que é próprio da cidade. Foucault (2010:94) dizda arquitetura que ela “pode produzir e produz efeitos positivos quando [suas] intenções libertadoras [...] coincidem com a prática real da gente em exercício de sua liberdade”. A prática de liberdade não é outorgada a priori pela natureza dos objetos, mas pelo exercício dos sujeitos (com a arquitetura operando no mesmo sentido). A arquitetura de um lugar pode ser observada como uma “textualidade” que se encontra conformada por uma ordem “que transmite, através de seus traçados e símbolos, uma determinada semântica, ou seja, uma cultura” (ESCOLANO, 2000:102). Uma cultura que permite uma articulação com a identidade. Haesbaert (1999:175) entende que toda identidade implica uma territorialização, pois a territorialização possibilita certa permanência identitária produzida nos diferentes grupos sociais e por meio das relações de poder, mas “ela nunca é uma, é múltipla”. Na convivência da cidade, produzem-se múltiplos sentidos nas negociações culturais ou em atributos identitários. Segundo Silva e Benhur (s/d: 3), é nesse jogo de negociações de identidade que se produzem “múltiplas apropriações sociais em grande escala (em micropartes do espaço urbano)”. Nessa direção, 1 O texto é resultado parcial do projeto Onde foi o brincar? Lembranças “urbanas” depois do Aterro da Baía Sul em Florianópolis, financiado por uma bolsa de pós-doutorado CNPq e realizado no Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC. Ele faz parte do Programa de Pesquisas Teoria Crítica, Racionalidades e Educação (IV), financiado com recurso de diferentes editais do CNPq, inclusive bolsas de produtividade em pesquisa, apoio técnico à pesquisa e iniciação científico, além de auxílios-pesquisa. *Doutora pela UFRGS e pós doutoranda pela UFSC. Texto com apoio da bolsa de pós-doutorado do CNPq. *Doutor em Ciências Humanas e Sociais (Dr. Phil.) pela Leibniz Universität Hannover, Alemanha. Coordenador do Núcleo de Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea.

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MEMÓRIAS NA ILHA DE SANTA CATARINA: O ATERRO DA BAÍA SUL E A PRÁTICA DO REMO1

Ileana Wenetz*2

Alexandre Fernandez Vaz*3

1. Dos espaços na Cidade

[...] seria preciso fazer uma “históriados espaços” – que seria ao mesmo tempo uma “história dos poderes” – que estudasse desde as grandes estratégias da geopolítica até as pequenas táticas do habitat, da arquitetura institucional [...], passando pelas implantações econômico-políticas (FOUCAULT, 2002b:212).

Espaços, urbanização, arquitetura, organização, tempo, deslocamentos, sociabilidade e

cidade... Podem parecer poucas as relações possíveis entre esses conceitos e experiências, mas

elas constituem o que é próprio da cidade. Foucault (2010:94) dizda arquitetura que ela “pode

produzir e produz efeitos positivos quando [suas] intenções libertadoras [...] coincidem com a

prática real da gente em exercício de sua liberdade”. A prática de liberdade não é outorgada a

priori pela natureza dos objetos, mas pelo exercício dos sujeitos (com a arquitetura operando

no mesmo sentido). A arquitetura de um lugar pode ser observada como uma “textualidade”

que se encontra conformada por uma ordem “que transmite, através de seus traçados e

símbolos, uma determinada semântica, ou seja, uma cultura” (ESCOLANO, 2000:102).

Uma cultura que permite uma articulação com a identidade. Haesbaert (1999:175)

entende que toda identidade implica uma territorialização, pois a territorialização possibilita

certa permanência identitária produzida nos diferentes grupos sociais e por meio das relações

de poder, mas “ela nunca é uma, é múltipla”. Na convivência da cidade, produzem-se

múltiplos sentidos nas negociações culturais ou em atributos identitários. Segundo Silva e

Benhur (s/d: 3), é nesse jogo de negociações de identidade que se produzem “múltiplas

apropriações sociais em grande escala (em micropartes do espaço urbano)”. Nessa direção,

1O texto é resultado parcial do projeto Onde foi o brincar? Lembranças “urbanas” depois do Aterro da Baía Sul

em Florianópolis, financiado por uma bolsa de pós-doutorado CNPq e realizado no Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC. Ele faz parte do Programa de Pesquisas Teoria Crítica,

Racionalidades e Educação (IV), financiado com recurso de diferentes editais do CNPq, inclusive bolsas de produtividade em pesquisa, apoio técnico à pesquisa e iniciação científico, além de auxílios-pesquisa. *Doutora pela UFRGS e pós doutoranda pela UFSC. Texto com apoio da bolsa de pós-doutorado do CNPq. *Doutor em Ciências Humanas e Sociais (Dr. Phil.) pela Leibniz Universität Hannover, Alemanha. Coordenador do Núcleo de Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea.

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ocorrem cristalizações dos atributos culturais das identidades. Estas “disputam seu lugar no

espaço, procuram se territorializar, definindo as pessoas pertencentes àquele grupo e àquele

território e segregando ou sendo segregadas de/por outros” (SILVA; BEHHUR, s/d :3).

Continuando com as ideias de Benhur,as microterritorializações são produzidas no contexto

do espaço urbano e são representadas “pelos processos de identificação que se produzem e se

reproduzem pelas práticas culturais do microagregadosocioespacial em diferenciação com

outros” (ibidem:6). Desse modo, cada um “do agregado social territorializado no espaço

urbano é constituído por sua identificação coletiva e sua cultura” (ibidem:6). É possível aqui

destacar que esse conceito ajuda a aprofundar as relações e as características dos grupos

culturais que se territorializavam no espaço do aterro da Baía Sul, em Florianópolis.

As histórias dos espaços de Florianópolis falam de suas mudanças urbanas que

levaram uma ilha marítima a ficar sem porto e, como se ouve, “de costas para o mar”.

Segundo Santos (1997: 88), “a desportuarização abrupta causada pelas dragas [que

construíram o Aterro] levou a uma perda da sociabilidade marina” determinando “uma

escolha para a circulação urbana” (SANTOS, 1997: 88).

Nesse texto, trazemos alguns recortes de entrevistas realizadas com atletas de remo e

uma breve análise de matérias publicadas no jornal O Estado entre as décadas de 1970 e 1980,

demarcando uma nova fase para o esporte durante e posterior à construção do Aterro da Baía

Sul.

2. Florianópolis e a prática do remo

Carla Saroti (2013) pesquisou o Remo em Florianópolis e destaca que em meados do

século XIX, a Sociedade de Regatas se compunhade Coronéis da Marinha e da Escola de

Menores e Marinheiros da Canhoneira. Na virada do século, a fundação do Clube 29 de Abril

permitiria que as atividades relacionadas ao remo fossem oferecidas a todos que se

associassem ao Clube. Mas somente em 1915 e 1918, com a emergência dos Clubes Náuticos

Riachuelo e Martinelli e do Clube de Regatas Aldo Luz, é que o esporte adquire sua

característica de prática corporal vista como salutar ao homem. Com a finalidade de

exemplificar como o ideal do corpo saudável foi ligado ao remo, a autora explora as origens

do esporte na França e como foi paulatinamente sendo incorporado noRio de Janeiro, Rio

Grande do Sul e Santa Catarina, especificamente em Florianópolis.

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Naquele período, entre as transformações urbanas que ocorriam em Florianópolis, que

visavam higienizar a cidade e dar ares modernos aos seus habitantes, o remo e sua prática

foram incentivados. Intelectuais, imprensa e sociedade em geral dedicaram atenção à prática

náutica, pois durante as regatas os remadores tornar-se-iam verdadeiros heróis ao exibirem

sua força, beleza e disciplina. Os clubes de regatas e a competição entre eles se fortificava

com a promoção de regatas com atletas locais e, paulatinamente, nacionais.

Após esse período, com o objetivo de promover a capital como uma cidade moderna,

várias mudanças foram realizadas,afetando a circulação e a convivência das pessoas. Ruas

foram calçadas, ajardinou-se praças, instalou-se rede elétrica e foi criada a rede de águas e

esgotos. Posteriormente, até final da década do 1920 a Avenida Hercílio Luz, a ponte Hercílio

Luz e o Miramar são construídos. Práticas como criação de galinhas e pendurar roupas nas

janelas, vinculadas a um passado recente, passar a ser proibidas (ARAUJO,2004).

Naquela década o remo experimentou seu auge,segundo Costa (2013), pois foi

fundada a Liga Náutica de Santa Catarina em 1923 (com estatuto) e foram observadas

constantes notas em jornais, publicadas sobre as atividades dos remadores.Os Clubes

Náuticos e de Regata, seus associados e simpatizantes, todos devidamente uniformizados e

portando os pavilhões de seus Clubes envolviam-se em atividades culturais, intelectuais e

políticas que o Remo proporcionava (COSTA, 2013).

A cidade de Florianópolis foi crescendo e, a partir dos anos 1960, recebeu

investimentos que viriam a modificar sua forma. A construção e a instalação da Universidade

Federal de Santa Catarina, a construção da rodovia BR-101 e da Beira-mar Norte (Av. Rubens

Arruda Ramos), iniciaram um momento de construção verticalizada no núcleo urbano4.

Somadas ainda ao movimento turístico (em grande medida dos países do Cone Sul,

especialmente da Argentina), fizeram com que emergisse a discussão sobre a vocação da

cidade, que parecia querer se tornar não só um polo industrial, mas também turístico (RIZO,

2005).

Segundo Faccio (apud BOPPRÉ, 2003:48), nas décadas anteriores a cidade viveu

períodos de pouco crescimento urbano a causa do porto e o comercio mas no ano 1930 a

economia da cidade passou a depender da função urbana (sede administrativa do Governo).

4Nessa direção, embora mais afastadas geograficamente, as empresas Telesc e Selesc e a Faculdade Estadual (Udesc) também contribuíram para esse crescimento.

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Isto transformou a capital. Desse modo, por meio de investimentos tanto públicos quanto

privados, Florianópolis começou a experimentar grandes transformações como, por exemplo,

o aterro da Baía Sul, a construção da segunda ponte que articularia o continente à ilha, o

Campus da UFSC no bairro Trindade5, a Eletrosul no bairro Pantanal e a Via Expressa. O

conjunto de obras provocou implicações diretas nos bairros em que se realizaram

intervenções, assim como repercutiu indiretamente na organização da cidade como um todo.

O Aterro da Baía Sul e a construção da Beira-mar Sul, ao contrário da Beira-mar

Norte, receberam muitas críticas. Pimenta (2005:58) entende que, no planejamento, era para

ser um grande parque na cidade, mas que “atualmente está sendo totalmente destruído [...]

além de arruinarem a paisagem, propõem a negação da vida urbana, onde os corredores de

circulação automotiva são prioritários ao espaço de convívio”. Monteiro (2005:19) reflete e

lamenta que, embora fosse indiscutível a necessidade da construção do terminal rodoviário e o

acesso à nova ponte e a circulação nesse espaço urbano, o coração da cidade, que era

“impregnado de maritimidade, houvesse sido subtraído dela”. Além desses investimentos

urbanos, nos anos 1960 até finais da década de 1970, a cidade viu crescer investimentos da

indústria da construção civil por empresas privadas como Gonzaga, Emedaux e Ceisa, que

impulsionam a verticalização urbana nos espaços em que antes havia residências e chácaras.

Naqueles época existia uma proximidade do mar. Isso permitia uma série de

atividades, como o transporte de passageiros, cargas, pescaria e lazer, particularmente o remo.

Na cidade, consolidavam-se três clubes de remo: Martinelli, Aldo Luz e Riachuelo. Santos

(1997:55) afirma que, “recebendo grande apoio da impressa local, ocupavam mais espaço nos

jornais do período que qualquer outra modalidade esportiva”.

O remo contava com campeonatos, atletas de destaque nacional e bom público. Os

clubes distinguiam-se pelas cores e o lugar que ocupavam na orla sul. Com o Aterro da Baía

Sul, ficaram distantes do mar, pois foram construídas novas garagens, logo na cabeceira da

ponte, mas em lugar que não favorecia a navegação. Este fato, junto às dificuldades

financeiras que vieram a atravessar no final da década de 1960 e no início dos anos 1970,

colocou o remo em situação decadente6.

5Monteiro afirma que o bairro Trindade era um espaço que, antes da instalação da UFSC, se caracterizava por um núcleo rural, onde não tinha nem linha de ônibus. Lá acontecia a famosa festa da Santíssima Trindade ou festa da Laranja, pois a “fartura de bergamotas era a principal prenda nos leilões da igreja” (MONTEIRO, 2005:16). 6Para mais informações sobre o remo, consultar Santos (1997).

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A necessidade do aterro da Baía Sul teve e tem argumentos contrários e favoráveis.

Mais do que tomar um lado verdadeiro nessa discussão, trata-se de identificar diferentes

acontecimentos políticos, sociais, econômicos e históricos que condicionaram sua realização.

Além disso, o modo como foi realizado o aterramento, a demora na construção das obras e a

não conclusão de outras até os dias de hoje, transmitem para a população em geral a sensação

de descaso.

Em relação à necessidade de implantação do Aterro, vários elementos podem ser

elencados. Naquela época, falava-se de um esgotamento do tráfego, que ficava atrelado a uma

única ponte não pavimentada (Hercílio Luz). Longas filas se formavam e era preciso horas

para realizar o deslocamento entre a ilha e o continente. Paralelamente, no ano de 1967, as

notícias da queda da ponte Silver Bridge, em Ohio, considerada irmã-gêmea da

florianopolitana, amedrontava os moradores que precisavam diariamente atravessá-la.

Articulado a isso, Santa Catarina encontrava-se em um momento desenvolvimentista, em

concordância com a política nacional. Segundo Santos (1997:60), “a construção da segunda

ponte, ao que tudo indica, parece se inscrever no conjunto de obras de modernização do país,

que reificará o automóvel e as autoestradas como símbolo de progresso e desenvolvimento”.

Mas ao perguntar sobre algum benefício do Aterro, os remadores têm dificuldade em

encontra-los7. Um deles afirma: “Pra nós, não” e acrescenta

Para história do remo e até para a cidade teve uma divisão. Essa divisão foi o

Aterro e a construção dessa ponte. Antes do Aterro os clubes de remo e a população

acompanhavam os treinamentos, já que o clube ficava bem de frente do mar (Paulo,

2013: 17).

Outro atleta afirma

Nossa ilha era muito bonita, entendeu? Então, por isso que eu condeno, está bem?

Eu condeno o Aterro. Foi o maior erro que cometeram fazendo esse Aterro. Eles

quiseram... Quem fez aquilo pensou muito pequeno. Que eles achavam que a ilha ia

crescer só com esse pedaço do Aterro, só, mais nada? Não. A ilha, cada dia que

passa, ela cresce cada vez mais. Eu digo, não é a ilha que cresce, mas o

desenvolvimento na ilha(Paulo, 2013:7).

Ao buscar matérias do jornal das décadas do 1970, identificamos no ano de 197143

matérias sobre o remo, em 1972, 17, em 1973, 93, em 1974, 32, em 1975 apenas5, em 1976

7Os entrevistados assinaram o consentimento Livre e informado. Paulo rema desde o ano 1964, então tem 54 anos de remo ininterruptos, participou dos três clubes em diferentes períodos de sua vida e foi atleta destacado. É funcionário público e formado em Educação física. Hoje está no Clube Aldo Luz e nunca parou de Remar. Já foi presidente e ocupou diversas posições administrativas no clube (os nomes dos entrevistados foram substituídos).

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33, em 1977, 17, em 1978, 21, em 1979: 17 e finalmente no ano 1980,13 registros. Sem

dúvida é possível observar uma oscilação, mas o importante é saber o que essas matérias

destacam para quem se endereçavam, processo que está sendo realizado mas sobre o qual já é

possível observar alguns deslocamentos.

Para citar um exemplo, das 93 reportagens de 1973, a maioria se centra nas

atividades de preparação para participação nos eventos, treinamentos, expectativas das provas

e dos resultados (em geral positivos) dos atletas. Algumas matérias destacam problemas

internos e de organização dos clubes ou regatas, mas principalmente desse total de 93

registros, somente 5 matérias começam a vislumbrar os problemas da prática do remo na

cidade, como por exemplo: “Falta apoio ao nosso remo” (31/01/1973: 7), “Remo; Martinelli

fecha as portas” (2/02/1973:7), “Clubes decretam morte lenta do esporte amador” (7/02/1973:

8), “Clubes náuticos e o aterro problema ainda sem solução (15/03/1973: 8). “Governador

prometeu dar apoio ao remo catarinense no próximo ano” (4/12/1973 :8).

O processo de construção do Aterro durou aproximadamente três anos e durante esse

período as dificuldades dos remadores se intensificaram, como pode ser observado na Figura

(1) pois os clubes começaram a ficar mais afastados do mar e os remadores tinham que levar

os barcos carregando-os (como pode ser observado nas fotos). Thiago8 também relata que:

Daqui até onde foi o Aterro, nós ficava sete metros fora d'água. A gente tinha que

carregar o barco nas costas 800 metros. Carregar pra lá não era nada. Daí

treinava, depois de treinar tinha que trazer. E não era assim plano. Era cheio de

lagoa, de duna... (2013:1).

8Thiago nasceu em 1930 e tem 131 competições faz quarenta anos que não compete oficialmente mas hoje comerciante aposentado continua remando e participando de algumas competições/encontros e participa do clube. Foi atleta, presidente e também ocupou diversos cargos administrativos. Faz 66 anos que ele está envolvido com o remo e representa hoje um dos remadores mais antigos de Florianópolis.

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Figura 1: Jornal o Estado. “O remo já foi forte, agora está abandonado. Clubes prometem fechar”. 27/11/1976. Pag.7.

Como pode ser identificado na matéria o Aterro afetou de maneiras diferentes cada

clube, o mais próximo do mar não foram afetados ou tiveram dificuldades em graduações

diferentes. Nessa matéria é notável a palavra “abandono” destinada aoremo de Florianópolis.

O clube Riachuelo aparece prejudicadono desembarque de barcos e de material que levará ao

fechamento do clube. O treinador Orlindo Lisboa destaca que se vinha treinado muito bem,

mas com grandes dificuldades internas no clube, porque além do Aterro havia ainda um muro

de pedras que não permitia o acesso ao mar: “em Florianópolis praticar remo está se tornando

sacrifício e por isso nenhum jovem tem que se sujeitar”.

Algumas matérias posteriores destacam outros problemas decorrentes do Aterro da

Baía Sul.Como foi ele um aterro hidráulico, o processo jogava a areia com a água no mar e,

em consequência, formava-se lodo. Passado um tempo, o terreno começa a ceder. Além disso,

como um lado é sólido e outro é o mar, é para este que o lodo se destina, de forma que hoje ao

entrar na água, a pessoa quase não consegue andar. Ante nossa surpresa de como os

remadores fazem para andar um deles responde,em tom de anedota, que “o negócio é não

virar!” Vejamos a matéria sobre os galpões que, embora novos, começavam a rachar.

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Figura 2:Jornal o Estado. Clubes não podem utilizá-los. Paredes começam a fechar. 24/08/1978. Esportes. Pag.7.

A matéria destaca como os galpões dos três clubes não poderiam ser ocupados por

não oferecerem segurança,com rachaduras e inclusive risco de desabamento, principalmente

no Clube Aldo Luz. Aqui se destaca como o próprio presidente SadiBerger evita fazer

comentários com medo que os clubes sofram represarias. O desenvolvimento dessas obras foi

financiado por cada clube. Ao ser perguntado sobre a reforma, Sadi comenta:

Porque o Aldo Luz estava implodindo, o Aldo Luz estava fazendo assim, ó [fazendo

sinais de inclinação]. O que é que nós tivemos de fazer? Estaquear novamente. Aqui

eles fizeram com estaca batida. Aí, fizeram aquela sapata e estava a mais de 2

metros de altura. E que baixou tudo duas vezes.

Ainda descreve:

O piso era, já era assim, era de lajota. Fizeram de lajota para isso mesmo. Nós

tivemos que retirar todos os barcos, tirar a lajota toda e botar aterro outra vez,

para poder subir. Três vezes fizemos isso. Mas não adiantava. Chamamos o

engenheiro (...) e fizeram um novo estaqueamento com ferro, com T, assim. (...) Tem

estaca aqui de ferro de 25 a 38 metros até chegar no [chão] fixo (Thiago, 2013:17).

A indignação não foi apenas dos atletas, os espectadores também se expressaram no

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jornal na seção Carta do Leitor,destacando que não existiria posição oficial sobre os

acontecimentos dos galpões do remo. Um leitor escreve:

Estou sentindo que nossos tradicionais clubes de Remos terão que penar ainda mais

alguns anos com a falta de acomodações adequadas. A persistir essa situação por

muito tempo, esse esporte náutico, que em outros tempos tantas glórias trouxe a

Florianópolis, tendera a desaparecer. O que, convenhamos, será lamentável. Urge,

pois, uma explicação do Governo Ubaldo Lúcio de Siqueira. Florianópolis (Galpões

do Remo – Carta ao leitor. Pag.4.editorial.8/09/1978. Jornal o Estado).

Os galpões foram arrumados e mantidos pelos clubes e continuam até hoje a ser

referência para os espaços de treino, mas cada vez menos competições. Atletas lidam com as

dificuldades da lama e das mares da Baía Sul que dificultam os treinamentos. Paralelamente, a

não profissionalização possivelmente levou à concentração dos melhores resultados a apenas

um dos três clubes tradicionais, inibindo rivalidades e fazendo encolher a modalidade como

um todo, mesmo com sua presença no plano nacional e como espetáculo que, naquelas

décadas, frequentou a programação televisiva. Mas a prática ainda sobrevive, como destaca

Thiago: “porque remo de Florianópolis é como pobre, vive de teimoso (2013: 21).

3. Referências Bibliográficas

ARAUJO, H. R. de. Fronteiras Internas; urbanização e Saúde Pública em Florianópolis nos anos 20, In: Brancher A. (org.) História de Santa Catarina, estudos contemporâneos, Letras contemporâneas. Florianópolis, 2004.

BOPPRÉ, Afrânio Tadeu. Expansão urbana em Florianópolis: conflito entre a cidade real e a cidade legal. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003.

ESCOLANO, Agustín. El espacio escolar como escenario y como representación. Teias, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 99-133, jul./dez. 2000.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2002a.

______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2002b.

HAESBAERT, R. C da. Identidades territoriais. In: ROSENDHAL, Z.; COOREA, R. L. Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: Ed: UERJ, 1999. p. 1-9.

MONTEIRO, C. A. de F. Florianópolis: o direito e o avesso. In: PIMENTA, M. de C. (org.). Florianópolis do outro lado do espelho. Florianópolis: Editora da UFSC, 2005. p. 7-34.

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PIMENTA, M. de C. Florianópolis como espaço público. In: PIMENTA, M. de C. (org.). Florianópolis do outro lado do espelho. Florianópolis: Editora da UFSC, 2005. p. 35-60.

SANTOS. P. C. dos. Espaço e memória: o aterro da baía sul e o desencontro marítimo de Florianópolis. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1997.

SARTORI, C. Na alvorada de um sport: o remo na ilha de Santa Catarina. Dissertação de História social. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). 2013.

WENETZ, I. Presentes na escola e ausentes na rua: brincadeiras de crianças marcadas pelo gênero e pela sexualidade. Tese (Doutorado). Escola de Educação Física (ESEF) da Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS), 2012.