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“DES OGE MAIS QUER' EU TROBAR POLA SENNOR ONRRADA”: A ICONOGRAFIA E OS MOTIVOS ARQUITETÔNICOS PRESENTES NOS TEXTOS DAS CANTIGAS DE SANTA MARÍA (SÉC. XIII). Bárbara Dantas 1 1) PERMANÊNCIAS DE UM PASSADO LONGÍNQUO Um oceano profundo nos separa dos homens que produziram as Cantigas de Santa María. Para eles, medievais, um livro era um bem precioso. Obra valiosa por seu valor espiritual, intelectual e material. Hoje ele é mais um objeto reprodutível. Por sua vez, os códices medievais nos surpreendem. Em um tempo que nos parece em constante aceleração devido a uma realidade que rapidamente envelhece bens e ideias, deparamo-nos, através deles, com as lentas mudanças, com as firmes permanências de um passado longínquo, considerado morto, todavia, ainda manifesto pelo costume (NORA, 1981: 7). O costume é um hábito que se estende através do tempo. Mutável, mas duradouro. A pesquisa, no entanto, é sempre conduzida pelo presente. Em sua prática, o historiador carrega este emblema. Não pode esquecê-lo. Caso contrário, corre o risco de, na junção da prática com o discurso, ter sua produção mais ideológica que histórica. Desde as primeiras leituras da fonte, o historiador deve, sobretudo, tentar entender como aquela sociedade se percebia. Para Michel de Certeau (1982: 4-11), a história é nosso mito. Ela combina o ‘pensável’ e a origem. A fonte é a origem. Nosso olhar, o mito. Por isso devemos ter o cuidado para não diminuirmos o valor de dogmas, antes significativos, em favor de um olhar atual. Desta forma, adentramo-nos nos estudos da iconografia e dos motivos arquitetônicos presentes nos textos das Cantigas de Santa María com o coração e a mente abertos a este passado distante. A um mundo no qual o espiritual e o terrestre estavam intimamente ligados. Por analogia. Por anagogia. Estreita união entre as manifestações visíveis e as 1 Graduanda de História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Bolsista/UFES do Projeto interinstitucional de pesquisa (UFES-UNESP/Marília) Manifestações estéticas da Arte Românica na Península Ibérica Medieval (sécs. XI-XIII) coordenado pelo Prof. Dr. Ricardo da Costa (www.ricardocosta.com). E-mail: [email protected].

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“DES OGE MAIS QUER' EU TROBAR POLA SENNOR ONRRADA”: A ICONOGRAFIA E OS MOTIVOS ARQUITETÔNICOS PRESENTES NOS

TEXTOS DAS CANTIGAS DE SANTA MARÍA (SÉC. XIII).

Bárbara Dantas1

1) PERMANÊNCIAS DE UM PASSADO LONGÍNQUO

Um oceano profundo nos separa dos homens que produziram as Cantigas de Santa María.

Para eles, medievais, um livro era um bem precioso. Obra valiosa por seu valor espiritual,

intelectual e material. Hoje ele é mais um objeto reprodutível. Por sua vez, os códices

medievais nos surpreendem. Em um tempo que nos parece em constante aceleração devido

a uma realidade que rapidamente envelhece bens e ideias, deparamo-nos, através deles,

com as lentas mudanças, com as firmes permanências de um passado longínquo,

considerado morto, todavia, ainda manifesto pelo costume (NORA, 1981: 7).

O costume é um hábito que se estende através do tempo. Mutável, mas duradouro. A

pesquisa, no entanto, é sempre conduzida pelo presente. Em sua prática, o historiador

carrega este emblema. Não pode esquecê-lo. Caso contrário, corre o risco de, na junção da

prática com o discurso, ter sua produção mais ideológica que histórica. Desde as primeiras

leituras da fonte, o historiador deve, sobretudo, tentar entender como aquela sociedade se

percebia. Para Michel de Certeau (1982: 4-11), a história é nosso mito. Ela combina o

‘pensável’ e a origem. A fonte é a origem. Nosso olhar, o mito. Por isso devemos ter o

cuidado para não diminuirmos o valor de dogmas, antes significativos, em favor de um

olhar atual.

Desta forma, adentramo-nos nos estudos da iconografia e dos motivos arquitetônicos

presentes nos textos das Cantigas de Santa María com o coração e a mente abertos a este

passado distante. A um mundo no qual o espiritual e o terrestre estavam intimamente

ligados. Por analogia. Por anagogia. Estreita união entre as manifestações visíveis e as

1 Graduanda de História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Bolsista/UFES do Projeto interinstitucional de pesquisa (UFES-UNESP/Marília) Manifestações estéticas da Arte Românica na

Península Ibérica Medieval (sécs. XI-XIII) coordenado pelo Prof. Dr. Ricardo da Costa (www.ricardocosta.com). E-mail: [email protected].

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divinas (FRANCO JÚNIOR, 2010: 96). Assim são as Cantigas. Um códice profano que

representa a religiosidade daquele período, a Idade Média. E naquela região “corrompida”,

a España.

2) O CÓDICE E SUAS CÓPIAS

Na mentalidade da época, as graças divinas recaíam sobre os nobres homens. Estes, em

agradecimento, deveriam fazer valiosas ofertas. Para um rei, quanto maior seu poder,

maior sua oferta: objetos litúrgicos, vitrais, catedrais. Um livro ricamente iluminado

poderia ter o mesmo valor de uma vila inteira. Assim, o projeto inicial de Afonso X (1221-

1284), rei de Castela e Leão, foi produzir 100 cantigas, mas estendeu-se até cerca de 420

cantigas (METTMANN, 1989: 21-22).

Entre louvores e relatos de milagres de Santa Maria, cada uma das Cantigas é

acompanhada de uma iluminura de página inteira com a representação iconográfica da

história ou louvor do texto poético. Inclui também notações musicais, pois deveriam ser

cantadas nas principais festividades do calendário cristão em homenagem à Virgem Maria

(O’CALLAGHAN, 1999: 185-186). As diferentes artes − pintura, música e literatura –

estão magnificamente entrelaçadas neste códice.

No séc. XIII, a relação imagem/texto atingiu um grau nunca antes visto. Nos reinos da

França, da Inglaterra e do Sacro Império, produziram-se manuscritos religiosos e profanos

riquíssimos, tanto em materiais, como ouro, quanto em conteúdo textual e imagético.

Destes, fizeram-se cópias. Algumas feitas no próprio scriptorium. Outras, em períodos

posteriores. Assim, chegaram até nós quatro códices das Cantigas, todos feitos sob a

supervisão de Afonso X:

• Códice Toledano. Biblioteca Nacional de Madrid.

• Dois códices que estão na Biblioteca de San Lorenzo e no Complexo de El Escorial,

em Madri: Códice Rico e o de El Escorial.

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• Códice de Florença. Biblioteca Nacional de Florença.

(LEÃO, 2007: 29-30)

Nossa fonte é o fac-símile da PUC-Minas, feita a partir do Códice Rico. Boa parte das

Cantigas possui como temática as relações sociais entre os crentes das três religiões

(Cristianismo, Judaísmo e Islamismo) ou do cotidiano em geral. Acontecimentos históricos

também são recorrentes, especialmente as principais batalhas da Reconquista Ibérica

(séculos VIII-XV). Os relatos de milagres não se restringiram à Península. Muitos deles

ocorreram em cidades da França, em Jerusalém, na Inglaterra, entre outras. Em diferentes

períodos da Idade Média. Peregrinos, reis, comerciantes e artífices são alguns dos

personagens representados que dão um valor histórico imensurável às Cantigas de Santa

María.

3) ICONOGRAFIA DAS CANTIGAS

Graças à metodologia de análise iconográfica proposta por Erwin Panofsky (1976: 64),

identificamos algumas características formais que são destacadas e, repetidas vezes,

utilizadas na série iconográfica das Cantigas. O método do teórico alemão é uma

abordagem em três etapas distintas que, no entanto, formam um único processo: descrição

pré-iconográfica, análise iconográfica e, por fim, interpretação iconológica. Utilizamos as

duas primeiras etapas: descrição e análise.

Motivos artísticos, História. Imagens são representações de um grupo, de uma dada

sociedade. Como ela se via. Como via o outro. Em forma de alegoria. A iconografia

medieval tinha estreita relação com os símbolos que uniam as manifestações terrestres com

as divinas. Fruto de uma mentalidade e de práticas que perpassaram as gerações, as

oficinas de manuscritos na Idade Média, por tradição, trabalhavam segundo suas

particulares normas e estilo (FOCILLON, 1980: 297). As características estéticas e formais

das iluminuras não variaram no decorrer dos anos que os manuscritos das Cantigas de

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Santa María foram produzidos. Os iluminadores seguiram um método e estilo bem

definidos pela oficina de trabalho através da junção de conteúdos tradicionais do românico

germânico junto aos conteúdos inovadores do gótico francês2. Sob a repetição de motivos

artísticos clássicos ou de outra região, prática comum entre os artífices medievais, estava a

inovação de cada obra (ECO, 1989: 12).

Tema religioso secular. Junção de estilos. Renovação gótica. As iluminuras de página

inteira são representações iconográficas dos textos das Cantigas, sejam louvores ou relatos

de milagres. A ornamentação das iluminuras não varia muito de um fólio para outro.

Muitos elementos se repetem, como nas laterais, onde estão duas fileiras de ornamentos em

formato quadrilobado (TOMAN, 2000: 30-31). Nota-se, também, a ornamentação em

forma de cruz grega. Separa os quadros da imagem ou limita os quadros da própria

iluminura: iconografia historiada dividida em seis quadros sequenciais nos quais se conta

a história: do início (alto à direita) até seu fim (último quadro à esquerda).

Há representações heráldicas dos reinos de Leão (leão), Castela (torre) e do Sacro Império

Romano Germânico (águia) – título que Afonso X almejou durante boa parte de sua vida

graças ao seu estreito grau de parentesco com o falecido imperador germânico (era neto de

Frederico II). Estão presentes nos pequenos quadros dentro das fileiras de ornamentos ou

entre os quadros de iconografia historiada (WALTHER, 2005: 188-189).

A luz e o brilho das cores primárias tinham o objetivo de entusiasmar aqueles que

contemplassem as imagens. O uso dos contrastes de cores foi prática corrente na pintura do

Ocidente Medieval a partir do séc. XII (WOLF, 2007: 18). Das iluminuras aos vitrais, o

colorido foi enaltecido como instrumento que aproximava o homem da “luz” divina

(COSTA, 2009). Desta forma, o vermelho e o azul são cores recorrentes nas iluminuras das

Cantigas. Largamente utilizado nas representações de vestimentas, tanto no altar da

Virgem quanto na ornamentação marginal.

As formas arquitetônicas das iluminuras são estreitamente ligadas ao estilo gótico. São um

marco temporal, limite entre o ambiente externo e interno, ou representação do local no

qual se passa a história (ambiente urbano ou rural, por exemplo). O livro medieval é a

2 Oficina: taller em francês ou scriptorium em latim.

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arquitetura e a iluminura é uma composição de arquiteto pelos elementos que a

enquadram, todos eles, similares aos usados nos edifícios: colunas, arcadas, etc.

(FOCILLON, 1980: 297).

Graças às citações de elementos arquitetônicos, de pintura ou de escultura nos textos,

montamos o quadro da iconografia nas Cantigas de Santa María. Analisamos toda a série

documental, cerca de 420, e em sua língua original, o galego-português, nos 04 volumes da

obra do filólogo Walther Mettmann (Vol. I, II, III, IV, 1989). Enumeramo-las segundo os

elementos artísticos inseridos nos textos.

Dezenove textos das Cantigas mencionam motivos arquitetônicos. A Cantiga 26, por

exemplo, conta como Santa Maria salvou a alma de um romeiro que pecou à caminho de

Santiago de Compostela e foi enganado pelo diabo (METTMANN, Vol. I, 1989: 123-126).

Um trecho da Cantiga cita a beleza da fachada externa de uma capela: E u passavan ant´

hua capela de San Pedro, muit´aposta e bela (METTMAN, 1989, V. I: 125, 62-63).

Dentre as 35 Cantigas que citam uma escultura, na Cantiga 04, identificamos no texto e

na iluminura menções a um objeto tridimensional, escultural (COSTA; DANTAS, 2013):

O judeucỹo prazer ouve, ca lle parecia que ostias a comer lles dava Santa Maria, que viia

resprandecer eno altar u siia e enos braços tẽer seu Fillo Hemanuel (METTMANN, Vol.

I. 1989: 64, 34-41).

Por fim, localizamos 09 Cantigas que mencionam a pintura. Dentre elas, escolhemos a

fenomenal história do pintor que enfrentou o diabo, na cantiga 74: u estava pintando, com'

aprendi, a omagen da Virgen, segund' oý, e punnnava de a mui ben compõer

(METTMANN. Vol. I. 1989: 243, 26-28).

Alguns obstáculos requereram um maior cuidado para a identificação destes três tipos

artísticos. O mais interessante foi a encruzilhada na qual nos deparamos com a palavra

omagen no galego-português da fonte textual. Ela tem vários significados, cada um

estreitamente ligado ao conteúdo do texto no qual está inserido, o que dificulta a

identificação de qual tipo de imagem a cantiga se refere. Em alguns casos, nem se referia a

um objeto, mas à imagem da Virgem em pessoa, uma visão espiritual. Segundo o glossário

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das edições de Mettman (Vol. IV. 1989: 640), o termo omagen se refere a uma imagem da

Virgem: pintura e escultura, não a uma "visão" da mesma.

Por exemplo, a palavra omagen,

• na cantiga 09, entre outras, foi identificada como pintura;

• na cantiga 361 e outras, como escultura;

• na cantiga 77 e outras, deixamos uma observação para a identificação do suporte.

Determinamo-la ao analisar sua iluminura correspondente;

• na cantiga 42, omagen significa uma imagem visionária da Virgem em sonho (não

quantificadas nesta pesquisa). Portanto, não associada a um objeto, fosse ele pintura

ou escultura.

Levantamento lexicográfico árduo, mas envolvente. Encontrar estes elementos nos textos

fez das nossas atividades uma experiência ímpar. Posteriormente, traçamos em alguns

artigos um paralelo entre o que o texto narra com a iconografia historiada da sua iluminura

correspondente. Uma relação imagem-texto, pois a imagem é tão importante quanto o texto

(SCHMITT, 2007: 34). Uma nova forma associativa de apreciar esteticamente o conteúdo

textual.

4) ARQUITETURA, ESCULTURA E PINTURA

Na Idade Média, a relação entre os três tipos artísticos (arquitetura, pintura e escultura) era

estreita. Interagiam e se influenciavam continuamente. Desde o período carolíngio, era

comum os artesãos e mestres escultores utilizarem imagens pintadas em códices como base

formal, estilística e temática para suas produções em pintura (TOMAN, 2000: 385).

4.1) PINTURA: CANTIGA 74

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FIGURA 6: Cantigas de Santa María. Rei Afonso X de Leão e Castela. Séc. XIII. Biblioteca de El Escorial, Madri – Espanha. Cantiga 74. Detalhe da iluminura.

Este relato de milagre da Virgem Maria ocorreu com um pintor que sempre retratou o diabo

de modo grotesco. Este, um dia, perguntou-lhe por que fazia isso. O pintor explicou que o

pintava assim porque ele era mau. O diabo, furioso, ameaçou matar o pintor e se retirou.

Posteriormente, quando o pintor retratava uma imagem da Virgem no tímpano de um arco

(TOMAN, 2000: 30), o diabo fez um vento soprar contra o andaime no qual o pintor estava

de pé. O pintor rogou proteção à Virgem. Antes de cair, Ela o deixou suspenso no ar, graças

ao pincel que tocava a parede. As pessoas que ouviram o barulho do cadafalso cair no chão

correram em socorro ao pintor. Depararam-se com o diabo derrotado, a fugir da igreja. Ao

verem o pintor pendurado apenas por seu pincel, todos louvaram a Mãe de Deus

(OXFORD, 2013).

4.2) ESCULTURA: CANTIGA 04

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FIGURA 07: Cantigas de Santa María. Rei Afonso X de Leão e Castela – Espanha. Séc. XIII. Biblioteca de El

Escorial, Madri – Espanha. Cantiga 4. Detalhe da iluminura.

A Cantiga 04 é o relato de um milagre da Virgem Maria ocorrido em Bourges. Um menino

judeu estudava com um grupo de crianças cristãs na escola anexa à catedral da cidade. Isso

desagradava seu pai, Samuel. Em um dia da Páscoa, enquanto seus colegas recebiam a

hóstia do abade, o menino viu a imagem “miraculosa” de Maria estender sua mão a ele

com uma hóstia para que comungasse também. Em casa, ele contou o ocorrido a seu pai

que, enfurecido, jogou-o dentro de um forno em chamas usado para a fabricação de vidros.

A mãe do menino, desesperada, correu para a rua para pedir ajuda. Quando os transeuntes

chegaram, ao abrirem o forno, ficaram estupefatos: lá estava o menino ileso, pois a Virgem

o protegera do fogo com seu manto. Eles então retiraram-no para, a seguir, jogar o cruel

pai que colocara o próprio filho no forno (OXFORD, 2013).

Os milagres associados a imagens esculturais da Virgem fizeram parte do crescente culto

dedicado à Santa a partir do séc. XI. A Virgem se tornou, gradativamente, o símbolo maior

de mãe dedicada, além de mediadora do perdão e súplicas que os homens pediam a Deus.

Assim como a produção de esculturas da Virgem se multiplicou, os relatos de milagres da

Santa tornaram-se prática corrente. Sobretudo nos locais de peregrinação as estátuas

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realizavam curas milagrosas e podiam manifestar ira ou compaixão. Estes relatos foram

registrados em compilações de milagres da Virgem Maria como os que vemos nas

Cantigas de Santa María (WILLIAMSSON, 1998: 02).

Na iluminura, esta passagem do texto é representada com uma escultura da Virgem no altar

da catedral. Segunda divisão, acima à esquerda, a Santa veste um manto azul e seu Filho,

um manto vermelho. O panejamento das vestes é pouco estilizado, mais natural e

volumoso. Acompanham seus movimentos e forma do corpo, segundo a nova concepção

da produção de esculturas utilizada no estilo gótico (GOZZOLI, 1986: 38-41).

4.3) ARQUITETURA: CANTIGA 26

FIGURA 08: Cantigas de Santa María. Rei Afonso X de Leão e Castela – Espanha. Séc. XIII. Biblioteca de El

Escorial, Madri – Espanha. Cantiga 26. Detalhe da iluminura.

Anualmente um homem fazia uma peregrinação a Santiago de Compostela. Certa vez,

antes de sair, ele passou a noite com uma prostituta e seguiu sua jornada sem confessar seu

pecado. O diabo lhe apareceu "mais brancos que arminho" sob o disfarce de São Tiago.

Ordenou-lhe para cortar seu pênis e sua própria garganta. O peregrino fez como lhe foi

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dito. Seus companheiros encontraram-no morto. Fugiram. Não queriam ser acusados de

assassinato. O demônio, contente, veio levar a alma do infeliz peregrino para o inferno.

Mas enquanto avançava pelos céus com a alma do homem pendurada pelos pés, passou

sobre uma capela dedicada a São Pedro muit´aposta e bela (METTMAN, 1989, V. I: 125).

São Tiago saiu dela correndo e acusou-os de conquistar a alma enganosamente. O demônio

protestou. Argumentou que o peregrino cometeu más ações e se suicidou. São Tiago pediu

à Virgem para resolver o problema daquela alma desvairada. A Santa ordenou que a alma

fosse devolvida ao corpo do peregrino e ressuscitada. No entanto, seu membro sexual não

foi restaurado em lembrança perpétua do pecado que cometera e da piedade da Virgem

Maria (OXFORD, 2014).

5) CONCLUSÃO

A riqueza está no detalhe, o que poucos veem. Encontrar a ideia de um objeto de estudo é

algo que faz do historiador um pesquisador das particularidades, dos pormenores.

(GINZBURG, 1989: 143-179). A recorrência de uma palavra, por exemplo, indica sua

importância na composição do documento. No entanto, pode ser uma armadilha, pois seu

significado é compreendido a partir do extrato textual no qual está inserido, não de sua

acepção geral na série documental. Por isso, é fundamental, em qualquer pesquisa,

conhecer a totalidade de sua documentação.

Omagen. Caso trabalhássemos com o método semiótico, verificaríamos seu valor por sua

recorrência nas Cantigas de Santa María. Ou, se pedíssemos licença à Filologia,

notaríamos seus múltiplos significados. Os vocábulo são multifacetados, pois pertencem a

uma língua (o galego-português) ainda em formação e que se pretendia a ponte entre o

sagrado e o profano.

Assim, tentamos transpor para a atualidade os valores que as representações iconográficas

tiveram na composição desta obra excepcional, como o paralelismo entre as artes

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(literatura e imagem) formaram um códice no qual diferentes aspectos da sociedade do

século XIII foram abordados. Para nós historiadores, felizmente identificáveis.

6) REFERÊNCIAS:

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, cap. 1.

COSTA, Ricardo da. “A luz deriva do bem e é a imagem da bondade”: a metafísica da luz do Pseudo Dionísio Aeropagita na concepção artística do abade Suger de Saint-Denis. Disponível em: http://www.ricardocosta.com/artigo/luz-deriva-do-bem-e-e-imagem-da-bondade-metafisica-da-luz-do-pseudo-dionisio-areopagita-na. Acesso em: 18 mar 2013. COSTA, Ricardo; DANTAS, Bárbara. A falssidade dos judeus é grand: uma representação de judeus nas Cantigas de Santa Maria (séc. XIII). In: Atas do X

Encontro Internacional de Estudos Medievais (EIEM) da

Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) – Diálogos Ibero-americanos. Brasília: ABREM/PEM-UnB, 2013, p. 507-514. ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Globo, 1989. FOCILLON, Henri. Arte do Ocidente: a Idade Média Românica e Gótica. Lisboa: Estampa, 1978. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Modelo e imagem: o pensamento analógico medieval. In: Os três dedos de Adão. São Paulo: EDUSP, 2010, p. 93-128. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: ____. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 143-179. GOZZOLI, M. C. Escultura. In: Como reconhecer a arte gótica. São Paulo: Martins Fontes, 1986. LEÃO, Angela Vaz. As Cantigas de Santa Maria de Afonso X, O Sábio: Aspectos culturais e literários. São Paulo: Linear B, 2007.

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METTMANN, Walter. Cantigas de Santa Maria. Vol. I, II, III e IV. Madri: Castalia, 1989.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, ano 1, n. 1, p. 7-28. O’CALLAGHAN, Joseph F. El Rey Sabio. El reinado de Alfonso X de Castilla. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1999. PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1955. SCHMITT, Jean Claude. O historiador e as imagens. In: O corpo das imagens. São Paulo: EDUSC, 2007, 25-54. THE Oxford Cantigas de Santa Maria Data Base. Disponível em: csm.mml.ox.ac.uk. Acesso em 15 fev 2013. TOMAN, Roman. O Românico: arquitetura, escultura e pintura. Colônia: Könemann, 2000. WALTHER, Ingo F.; WOLF, Norbert. Obras Maestras de la Iluminación. Madrid: Taschen, 2005. WILLIAMSON, P. Escultura gótica: 1140-1300. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1998, WOLF, Norbert. Arte Románico. Köln: Taschen, 2007.