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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - FFCH MEIRILUCE SANTOS PERPETUO MEMÓRIA, IDENTIDADE E FÉ NA CAPELA DE BRASÍLIA: ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE PODER NO RESTAURO DA IGREJINHA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA Salvador 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - FFCH

MEIRILUCE SANTOS PERPETUO

MEMÓRIA, IDENTIDADE E FÉ NA CAPELA DE BRASÍLIA:

ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE PODER NO RESTAURO DA

IGREJINHA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA

Salvador

2019

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MEIRILUCE SANTOS PERPETUO

MEMÓRIA, IDENTIDADE E FÉ NA CAPELA DE BRASÍLIA:

ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE PODER NO RESTAURO DA

IGREJINHA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Museologia da Faculdade de Filosofia e Ciências

Humanas, da Universidade Federal da Bahia, como

requisito para obtenção do grau de Mestre em Museologia.

Orientadora: Prof. Dra Heloisa Helena Fernandes

Gonçalves da Costa

Banca examinadora:

Prof. Dr José Dirson Argolo

Prof. Dra Suely Moraes Cerávolo

Março/2019

Salvador, Bahia

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SIBI/UFBA/Faculdade de Museologia

Perpetuo, Meiriluce Santos

Memória, identidade e fé na capela de Brasília: Análise das relações de poder no restauro da Igrejinha

Nossa Senhora de Fátima - 2019.

213 fls.

Orientadora: Prof. Dra Heloisa Helena Fernandes Gonçalves da Costa

Dissertação de mestrado - Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências

Humanas, Salvador, 2019.

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MEIRILUCE SANTOS PERPETUO

MEMÓRIA, IDENTIDADE E FÉ NA CAPELA DE BRASÍLIA:

ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE PODER NO RESTAURO DA

IGREJINHA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de Mestre em Museologia, do

Programa de Pós-Graduação em Museologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,

da Universidade Federal da Bahia.

Aprovada em 06 de novembro de 2018

Profa. Dra Heloisa Helena Fernandes Gonçalves da Costa - Orientadora

________________________________________

Doutora em Sociologia pela Université du Québec à Montréal

Universidade Federal da Bahia

Prof. Dr José Dirson Argolo_________________________________________

Doutor em Artes Visuais

Universidade Federal da Bahia

Profa. Dra Suely Moraes Cerávolo ___________________________________

Dra em Ciências da Comunicação ECA/USP e Pós-Doutora em Museologia

Universidade de São Paulo

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À minha mãe, Raulinda, tão linda e cuja memória já se esvai no tempo.

Aos meus filhos, Daniel e Hugo, que tanto me ensinaram a amar. Ao meu esposo, Eloy Carlos, por estar sempre ao meu lado.

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AGRADECIMENTOS

Sou imensamente grata a todas as pessoas que me acompanharam nessa última

jornada acadêmica (pelo menos por enquanto) e com as quais tanto aprendi. Meus professores

do Mestrado em Museologia, muito obrigada! Sintam-se todos abraçados.

À Anna Paula Silva, Museóloga e professora da Universidade Federal da Bahia,

querida amiga, daquelas sempre disponíveis, que tanto me acolheu e ajudou nas minhas idas e

vindas a Salvador e em orientações acadêmicas.

À Professora Heloisa Helena Costa, minha orientadora, pela paciência e

contribuições competentes.

Ao Pedro Mastrobuono, do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna, pelas preciosas

informações, pela disponibilidade e pelos livros que gentilmente me enviou para utilizar na

minha pesquisa.

A minha família e amigos, que abriram mão de mim para que eu pudesse estar por

tanto tempo longe. Senti muita falta de todos.

A Bahia e todos os seus Santos, pelos maravilhosos e abençoados dias em que aí

estive.

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"Tá doida, Raulinda!? Ir para Brasília!? Lá não tem nada, o transporte

é onça!". Foi o que minha mãe ouviu quando disse que iria para

Brasília com os filhos, na década de 60, encontrar com meu pai, que

viera trabalhar na construção da cidade.

(Meiriluce Santos, 2018)

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RESUMO

O trabalho tem como objetivo discutir as relações estabelecidas entre a comunidade de Brasília e o

patrimônio cultural, considerando a polêmica que se seguiu à restauração da Igrejinha Nossa Senhora

de Fátima, conduzida pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Distrito Federal -

Iphan/DF, quando foi inserida a pintura de um artista local - Francisco Galeno, onde antes havia uma

pintura do artista Alfredo Volpi, que teria sido irrecuperavelmente destruída na década de 60. A

metodologia para levantamento do problema se deu por meio de entrevistas com a comunidade que

habita, trabalha, frequenta e administra o templo, em matérias publicadas na imprensa local e nacional,

em levantamento bibliográfico sobre a cidade e no estudo de documentação referente à restauração

realizada no templo, buscando entender o processo que envolveu a restauração e como se deu a relação

entre o Iphan com a comunidade. A partir da contextualização histórica e artística da cidade, discorre

sobre seu valor como Patrimônio Cultural da Humanidade e problematiza algumas questões

relacionadas à sua preservação. A matéria do patrimônio tem como base a fundamentação dos

monumentos e suas representações sociais e simbólicas ativadas pela memória, pela afetividade e pela

identidade de grupos. Nesse contexto, busca entender como se processam as relações desenvolvidas

entre a comunidade e a Igrejinha, tendo esta como espaço simbólico, carregado de valores e

significados. Considera-se, dessa forma, a possibilidade de contribuir para o favorecimento e

formalização de propostas de ações afirmativas em favor da cidade e de seus habitantes.

Palavras-chave: Brasília. Igrejinha Nossa Senhora de Fátima. Alfredo Volpi. Patrimônio cultural.

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ABSTRACT

This work aims to discuss the relations established between the community of Brasilia and its cultural

heritage, considering the controversy that followed the restoration of the Igrejinha Nossa Senhora de

Fátima, conducted by the National Institute of Historical and Artistic Heritage of the Federal District -

Iphan / DF, when the painting of a local artist – Francisco Galeno was placed over what was before a

painting by the artist Alfredo Volpi, that allegedly was irretrievably destroyed in the 1960s. The

methodology for surveying the problem was through interviews with the community that works,

attends, administers, and lives around the temple, through articles published in the local and national

press, through a bibliographical survey about the city, and through the study of documentation related

to the restoration of the temple, seeking to understand the process that involved the restoration and

how the relationship between Iphan and the community was developed. From the historical and artistic

contextualization of the city, it discusses its value as a Cultural Heritage of Humanity and

problematizes some issues related to its preservation. The heritage material is based on the foundation

of monuments and their social and symbolic representations activated by memory, affectivity and the

identity of groups. In this context, this work seeks to understand how the relationships developed

between the community and the church are processed, being mindful that the monument is a symbolic

space, loaded with values and meanings. It is considered, therefore, the possibility of contributing to

the favoring and formalization of affirmative action proposals in favor of the city and its inhabitants.

Keywords: Brasilia. Igrejinha Our Lady of Fatima. Igrejinha Nossa Senhora de Fatima. Alfredo Volpi.

Cultural heritage.

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ILUSTRAÇÕES E FIGURAS

Figura 1 Projeto vencedor apresentado por Lucio Costa.................................... 29

Figura 2 Desenho básico de croquis.................................................................... 29

Figura 3 Vila Dimas, em Taguatinga - Primeira casa de madeira edificada,

1960. Associação dos moradores e sub prefeitura - Liderada por

Dimas Leopoldino.................................................................................

36

Figura 4 Congresso Nacional, na Praça dos Três poderes.............................. 45

Figura 5 Palácio da Alvorada. No espelho d'água, As Iaras, de Alfredo

Ceschiatti...............................................................................................

51

Figura 6 Museu da República, em primeiro plano. Ao fundo, a Catedral de

Brasília...................................................................................................

52

Figura 7 Catedral de Brasília - Vitrais de Marianne Peretti................................. 53

Figura 8 Catedral de Brasília - Anjos de Ceschiatti............................................. 53

Figura 9 O Meteoro, de Bruno Giorgi, em frente ao Palácio do Itamaraty

(Ministério das Relações Exteriores).................................................... 55

Figura 10 Volpi e O Sonho de Dom Bosco - Palácio do Itamaraty...................... 56

Figura 11 Vista noturna do Palácio do Itamaraty - Pintura de Volpi iluminada,

refletindo no espelho d'água ................................................................

56

Figura 12 Igrejinha Nossa Senhora de Fátima - primeiro templo de alvenaria em

Brasília...................................................................................................

75

Figura 13 Casamento da filha de Israel Pinheiro - Primeira cerimônia realizada

na Igrejinha, em 1958.............................................................................

76

Figura 14 Velório de Bernardo Sayão, Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, 1959 77

Figura 15 Planta - desenho da quadra, 1986.......................................................... 78

Figura 16 Primeira maquete da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima..................... 79

Figura 17 Primeira maquete: visão interior da Capela. Ao fundo, sobre o altar, o

Cristo esculpido por Ceschiatti..............................................................

79

Figura 18 Planta baixa da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima............................. 80

Figura 19 Igrejinha Nossa Senhora de Fátima em construção, 1957..................... 81

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Figura 20 Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, 1958............................................. 82

Figura 21 Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, 1959 ............................................ 83

Figura 22 Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, 2018............................................. 83

Figura 23 Chapéu de Freira da ordem Vicentina.................................................... 84

Figura 24 “Adoração da Santíssima Trindade” (1511), de Albrecht Dürer (1471-

1528).......................................................................................................

85

Figura 25 Igrejinha Nossa Senhora de Fátima - fachada de Athos Bulcão, 2018.. 86

Figura 26 - Igrejinha: Azulejos figurativos de Athos Bulcão................................. 87

Figura 27 Igrejinha com porta em madeira e vidro, de Athos Bulcão.................... 87

Figura 28 Igrejinha Nossa Senhora de Fátima - Porta em madeira treliçada......... 88

Figura 29 Pintura de Alfredo Volpi no interior da Igrejinha Nossa Senhora de

Fátima.....................................................................................................

89

Figura 30 Missa montada na parte externa da Igrejinha, em 1958......................... 90

Figura 31 Missa na Igrejinha, em 1958 - Frei Demétrio do Encantado e Frei

Moisés...................................................................................................

90

Figura 32 Detalhe central de um dos afrescos de Alfredo Volpi, da Capela

Nossa Senhora de Fátima.......................................................................

92

Figura 33 Detalhe da parede esquerda da Capela Nossa Senhora de Fátima......... 93

Figura 34 Detalhe da parede direita da Capela Nossa Senhora de Fátima............ 93

Figura 35 Afresco original de Alfredo Volpi na Capela Nossa Senhora de

Fátima (1958).........................................................................................

94

Figura 36 Interior da Igrejinha com quadros da via sacra na parede em 1978...... 95

Figura 37 Interior da Igrejinha com quadros da via sacra na parede em 1998....... 96

Figura 38 Coroação da imagem de Nossa Senhora de Fátima, 1959.................... 97

Figura 39 Azulejos danificados na fachada posterior da Igrejinha, 1983.............. 101

Figura 40 Azulejos danificados na fachada posterior da Igrejinha, 2018.............. 102

Figura 41 Infográfico "Genealogia de um descaso"- Correio Braziliense, 1998... 107

Figura 42 Capela de Ronchamp - Le Corbusier.................................................... 112

Figura 43 Volpi. Sem título Déc. 1940 (meados da década).................................. 119

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Figura 44 Volpi. Sem titulo - Déc. 1960 (inicio) - Têmpera sobre tela.................. 119

Figura 45 Volpi. Sem titulo - Déc. 1960 (inicio) - Têmpera sobre tela................. 119

Figura 46 Volpi. Sem titulo - Déc. 1960 (Inicio) - Têmpera sobre cartão............. 119

Figura 47 Volpi. Sem título - Déc. 1960(inicio) - Têmpera sobre tela................... 120

Figura 48 Afresco da Capela Nossa Senhora de Fátima - 1958........................... 120

Figura 49 Afresco original de Alfredo Volpi na Capela Nossa Senhora de

Fátima (1958 )........................................................................................

126

Figura 50 Detalhe da parede esquerda da Capela Nossa Senhora de Fátima -

Volpi.......................................................................................................

127

Figura 51 Detalhe da parede direita da Capela Nossa Senhora de Fátima - Volpi 127

Figura 52 Pintura de Francisco Galeno no interior da Igrejinha Nossa Senhora

de Fátima................................................................................................

130

Figura 53 Detalhe da pintura da Igrejinha representando os três pastorinhos

(parede à esquerda).................................................................................

131

Figura 54 Detalhe da pintura da Igrejinha representando os brinquedos das

crianças (parede à direita)......................................................................

131

Figura 55 Detalhe da Santa de Francisco Galeno, na Igrejinha Nossa Senhora de

Fátima.....................................................................................................

143

Figura 56 Primeira fotografia da escultura de Nossa Senhora de Fátima, anterior

a 1920....................................................................................................

143

Figura 57 Imagem da aparição da Senhora de Fátima para os três pastorinhos.... 144

Figura 58 Volpi. Santa Bárbara - 1958 - Têmpera sobre tela................................. 145

.

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SUMÁRIO

1 Apresentação.......................................................................................... 14

2 Retrospectiva histórica de Brasília.......................................................... 15

3 Contexto modernista - Da arquitetura às artes plásticas.......................... 60

4 Histórico da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima..................................... 74

5 Levantamento do problema..................................................................... 99

6 A restauração da Igrejinha....................................................................... 126

7 Patrimônio e cidades................................................................................ 151

8 Formulação do problema e metodologia.................................................. 178

9 Conclusão................................................................................................ 198

10 Bibliografia.............................................................................................. 204

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14

1 APRESENTAÇÃO

Pensada durante um século e meio e, finalmente, construída por Juscelino

Kubitscheck entre 1957 e 1960, Brasília é resultado de um projeto modernista ímpar no

cenário mundial. De autoria do arquiteto e urbanista Lucio Costa, com um conjunto de obras

consagradas do também arquiteto Oscar Niemeyer1 e de artistas que marcaram o movimento

modernista, a cidade reúne um singular conjunto arquitetônico e artístico, cuja originalidade e

beleza lhe rendeu o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, concedido em 1987 pela

Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Entretanto,

em 2008, a cidade se viu sob o risco de perder tal status, passando a figurar na lista dos bens

ameaçados, após denuncia do Comitê Nacional do Conselho Internacional de Monumentos e

Sítios (Icomos/Brasil) à UNESCO, por meio do documento Ameaças à Brasília, Patrimônio

Cultural da Humanidade. A preocupação é compreensível, uma vez que são evidentes perdas

e alterações, tanto no plano urbanístico, quanto em monumentos e obras de arte pontuais

espalhados pela cidade.

Diante disso, é apresentado o emblemático caso da restauração da Igrejinha Nossa

Senhora de Fátima, com a substituição de um afresco do italiano Alfredo Volpi (1869-1988),

perdido em circunstâncias controversas e não esclarecidas, por outro do artista local,

Francisco Galeno, fato que gerou conflitos entre o Instituto de Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional e a comunidade. Considerando os significados simbólicos que os

monumentos detêm e dialogando com os conceitos e perspectivas teóricas relacionados ao

patrimônio e aos monumentos, a proposta busca apresentar, sob a ótica estudada, a forma

como a Igrejinha Nossa Senhora de Fátima está presente e ativa na memória popular,

integrado-se à sociedade e promovendo processos de identidade, cidadania e proteção.

1 Oscar Niemeyer, arquiteto e urbanista brasileiro, foi eleito o 9º maior gênio vivo e um dos nomes mais

importantes da arquitetura moderna mundial, tendo recebido os principais prêmios da arquitetura. O Brasil se

destacou na história da arquitetura internacional graças a Niemeyer. Seus projetos, considerados prédios-

esculturas, estão distribuídos em mais de 600 em países, entre eles, Estados Unidos, França, Espanha, Alemanha,

Argélia, Itália Israel. Foi responsável pelas principais obras de Brasília, agora tombadas pelo IPHAN. Ver

NOTÍCIAS BRASIL. Oscar Niemeyer. Disponível em: < http://www.terra.com.br/noticias/infograficos/oscar-

niemeyer/>. Acesso em: 12 set. 2018.

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2. RETROSPECTIVA HISTÓRICA DE BRASÍLIA

Desde o tempo do Brasil Colônia, em torno de 1750, existem documentos que

comprovam a intenção de transferir a capital do país para algum local distante do litoral,

tendo a maior parte dos estudos desenvolvidos sugerido como melhor localização o interior de

Goiás. Os motivos foram muitos e amplamente discutidos ao longo dos anos, mas dois temas

eram presentes em todas as discussões: traçar uma estratégia de segurança para evitar

possíveis ataques por via marítima e manter o domínio e o controle de Portugal sobre o vasto

território brasileiro.

O fenômeno marcante das ideias de criação de cidades novas foi se transformando ao

longo do tempo com a tendência de desenvolvimento de projetos tendo como foco aspectos

sociais. Os ideais de sociedade também estavam presentes nas propostas de transferência da

capital e, segundo Vidal, tinham em seu cerne a necessidade de compreender as condições de

modernização da sociedade nacional, de sondar as potencialidades do "Brasil moderno"

(VIDAL, 2009, p. 18) e de viabilizar meios que possibilitassem coordenar as estruturas

sociais, políticas e econômicas em momentos de crise. É exatamente nessa conjuntura que,

finalmente, na década de 1950, surge a idealização do projeto de Brasília.

Quando as concepções de uma nova arquitetura se engajavam aliadas às

transformações sociais do movimento modernista, o arquiteto e urbanista Lucio Costa rompeu

com todos os conceitos de cidade existentes até então, concebendo um projeto que ia além das

visões urbanísticas, uma ideia de sociedade. A nível mundial, no início do século XX já

vinham sendo discutidas outras formas de concepção e conceitos de cidades, explica a

arquiteta e urbanista Juliane Sabbag (2016)2. À frente, o arquiteto Le Corbusier defendia que

elas deveriam se adaptar à sua época e ser eficientes, contando com planejamentos urbanos

que as salvassem do trânsito caótico, das moradias precárias, da insalubridade e de outras

mazelas comuns das já conhecidas cidades. O que mudou na crítica a respeito do

planejamento urbano, a partir da década de 60, foi o desejo de "salvar" as cidades com o

planejamento estratégico. Essa distinção ficou marcada por dois períodos, divididos pelo

2 SABBAG, Juliane Albuquerque Abe. Brasília, 1960-2010: do urbanismo moderno ao planejamento

estratégico. 1ª ed. - Brasília: Appris, 2016.

.

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16

urbanismo moderno, defendido por Le Corbusier e pela Carta de Atenas de 19333, e o pós-

moderno, ligado ao planejamento estratégico.

Comparando, Brasília se destaca num cenário à parte em relação às demais cidades

brasileiras em relação ao desenho urbano e à forma como foi concebida e ocupada.

Inaugurada em 1960, a cidade foi planejada nos moldes do urbanismo moderno da década de

50, sendo a maior área urbana inscrita na lista de patrimônio mundial da Organização das

Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, algo "aquém e além das fronteiras

nacionais" (SABBAG, 2006, p. 22). Na análise da autora, Brasília é o "exemplo maior de

urbanismo moderno no Brasil e no mundo" (SABBAG, 2006, p. 22). Assim, além de uma

obra de arte em pleno cerrado do Planalto Central, uma criação ímpar, icônica, Brasília se

destaca como um projeto social, uma cidade concebida para propiciar qualidade de vida aos

seus habitantes.

A partir de um plano traçado em dois grandes eixos, Lúcio Costa construiu uma

cidade comparada às cidades imperiais romanas, com um plano essencialmente clássico,

explica a arquiteta e urbanista Maria de Betania Brendle (2006)4, com a pureza, simetria e

regularidade geométrica das cidades ideais presentes nas cidades renascentistas, mas ao

mesmo tempo moderna e contemporânea ao atender às doutrinas urbanísticas previstas na

Carta de Atenas (1933)5 - habitar, trabalhar, cultivar o corpo e o espírito e circular.

Consolidando um processo iniciado em 2007 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional (Iphan), o Ministério da Cultura, por meio da Portaria de nº 55, publicada

no Diário Oficial da União, de 06 de junho de 2017, homologou o tombamento do Conjunto

de Obras do Arquiteto Oscar Niemeyer, reconhecendo o valor histórico de cerca de 27 de seus

projetos arquitetônicos. Embora o tombamento inclua obras de Niemeyer espalhadas por todo

o país, a maioria delas se encontra em Brasília.

Brasília teve o reconhecimento de suas qualidades urbanas e arquitetônicas

consagradas pela UNESCO em 1987 como Patrimônio Cultural da Humanidade, sendo o

3A Carta de Atenas (1933) é um Documento resultante do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna,

evento cuja temática era a "cidade funcional", discutindo problemas da arquitetura contemporânea e ideias de

cidades arquitetônicas modernas. O documento, cujo texto final foi redigido por Le Corbusier, pensa a cidade

como um organismo que deve ser concebido com funcionalidade, considerando as necessidades do homem que a

habita, preconizando a separação das áreas residenciais, de lazer e de trabalho. Em lugar do caráter e da

densidade das cidades tradicionais, propõe cidades nas quais os edifícios se desenvolvem em altura e propiciam a

criação de áreas verdes. A cidade é concebida como patrimônio público.

4 BRENDLE, Maria de Betânia Uchôa. Brasília Rediscutida. Continente Cavalcanti. Multicultural, v. 64, p. 12-

17, 2006. Disponível em: <https://issuu.com/revistacontinente/docs/064_-_abr_06_-_brasilia>. Acesso em: 18

jul. 2017.

5 CURY, Isabelle (Org.). Cartas Patrimoniais. 3ª edição, Rio de Janeiro, Iphan, 2004.

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17

primeiro bem cultural do século XX inscrito na Lista do Patrimônio Mundial. A cidade foi

aclamada mundialmente como uma das grandes realizações do urbanismo e da arquitetura do

século XX, sendo reconhecida pelo Governo do Distrito Federal e pela Secretaria de Estado

de Cultura do Distrito Federal (SUPHAC/SECULT/GDF), como um museu a céu aberto6.

TRÊS SÉCULOS DE PLANEJAMENTO

A ideia da mudança da capital envolveu vários projetos, contextos históricos e

sugestões de nomes como Brasília, Nova Lisboa, Cidade Pedrália, Petrópolis, Imperatória,

Tiradentes, Ibéria, Luisitânia e Vera Cruz. Como características comuns, tais projetos, de

acordo com o historiador Laurent Vidal (2009)7, tiveram maior relevância em momentos de

ruptura de elos sociais e culturais, quando se questionavam a unidade e a identidade

nacionais. A constatação é de que tais movimentos, caracterizados pelo rompimento de

modelos políticos, econômicos, sociais e culturais, são comumente notados em períodos

marcantes, quando a sociedade tende a se repensar, principalmente, no sentido de articulação

da sociedade civil e do Estado.

Os planos de Brasília deveriam, então, ser pensados sob três aspectos: o projeto de

capital; o projeto de cidade; e o projeto de sociedade, daí o historiador concluir que "o projeto

de Brasília forma-se, portanto, um pouco como um depósito geológico de ideias e projetos

sucessivos a respeito do Estado, da cidade e da sociedade" (VIDAL, 2009, p. 19).

Basicamente, Vidal afirma que todos os defensores da interiorização da capital consideravam

como principais motivos: a necessidade de utilização das potencialidades econômicas e

comerciais das regiões do interior; a valorização e integração do conjunto do território,

apelando para o povoamento das regiões interioranas; a criação de um sistema de

comunicações ligando os territórios; a melhor utilização das potencialidades econômicas e

comerciais das regiões do interior; e a valorização e integração do território por meio do

povoamento.

6 O conceito de Brasília como museu a céu aberto é oficialmente reconhecido pelo Governo do Distrito Federal.

A esse respeito, ver: BRASIL. Secretaria de Cultura. Patrimônio cultural: educar para preservar / Coordenação

geral José Delvinei Luiz dos Santos. Brasília: Subsecretaria do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural, 2013.

(Série Nina).

7 VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). Trad. Florence

Marie Dravet. Brasília: UnB, 2009.

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18

A primeira capital do Brasil foi a cidade de "São Salvador da Bahia de Todos os

Santos", fundada em 1549 por Tomé de Souza, então governador-geral do Brasil. Salvador se

destacava, então, segundo Laurent Vidal, como a sede do governo português na colônia. Em

1763, o Rio de Janeiro passa a ser a Capital. Os impasses sobre qual das duas cidades

continuaria respondendo como capital permaneceram, sendo retomados com a chegada de D.

João VI no Brasil, em 1808, quando a discussão foi então acrescida da conveniência de

mudança para o interior, considerando a fragilidade da localização próxima ao litoral.

Os historiadores Bertran e Faquini (2002)8, registram que, antes mesmo disso, em

1751, já se entendia a necessidade de um posicionamento estratégico para a capital do país no

interior, conforme consta na carta geográfica de Goiás, elaborada por Dom Marcos de

Noronha e Brito, o 8°, o Conde dos Arcos e último vice-rei do Brasil, encomendada por

Marquês de Pombal. São os primeiros registros de mapeamento dos limites da Capitania de

Goiás, elaborados pelo engenheiro e cartógrafo italiano Francisco Tosi Colombina, “o

medidor de terras e abridor de caminhos oficiais” (BERTRAN E FAQUINI, 2002, p. 135). O

manuscrito, além de informações de viajantes e sertanistas, relata sua própria experiência de

viagem com descrições de trajetos e vias de comunicação, rotas terrestres e fluviais, cidades,

vilas, fortalezas, arraiais, sítios, rios, córregos, entre outros marcos naturais da região, já

assinalando, na capital de Goiás, a área onde se encontra o atual DF.

Em 1789 o Brasil ainda era colônia de Portugal e vivia em pleno ciclo do ouro, com

grande exploração do minério, principalmente na região de Minas Gerais. A coroa portuguesa

exigia a remessa de vinte por cento de todo o ouro encontrado no Brasil, o que ficou

conhecido como "quintos". Mesmo com o rareamento das jazidas, a opressão do governo

português mantinha a cobrança dos impostos, tomava os pertences das famílias e ainda

trabalhava para impedir o desenvolvimento da indústria e do comércio no país. A insatisfação

levou à formação de um movimento que ficou conhecido como Inconfidência Mineira,

formado por um grupo de resistência política e economicamente organizado, compostos por

intelectuais, fazendeiros, militares e donos de minas, movidos contra da exploração da coroa

portuguesa e por ideais de liberdade e de independência, tendo à frente Tiradentes, o Mártir da

Inconfidência. Por todos esses fatores, já nesse período existem registros de que esse grupo

teria como propósito a mudança da capital do país, porém, para São João Del Rei, em Minas

Gerais.

8 BERTRAN, Paulo; FAQUINI, Rui. Cidade de Goiás: Patrimônio da Humanidade - origens. Brasília: Ed.

Verano; São Paulo: Takano, 2002.

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19

Vidal situa a gênese de Brasília em um momento posterior, assinalando que o

primeiro projeto foi pensado com a chegada de Dom João VI ao Brasil, entre 1808 e 1821,

aportando na cidade de Salvador. Contrariando as expectativas da cidade de retomar o título

de capital, D. João VI foi se instalar no Rio de Janeiro, juntamente com o restante da corte,

reorganizando o império português e buscando construir uma nova capital que fosse digna do

nível da Monarquia portuguesa. O impasse de D. João, segundo Vidal, se dividia entre

construir uma cidade nova ou reformar o Rio de Janeiro, fazendo prevalecer, nos dois casos,

os atributos simbólicos de uma capital de Estado de nível europeu, com grandes obras

urbanísticas e de arquitetura, representando a ideologia do poder.

Entretanto, Vidal assinala a preocupação da corte acerca da capacidade do Rio de

Janeiro cumprir a função de capital, cogitando a necessidade de reorganização territorial e

deslocando-a para o interior do país. A apreensão levou o conselheiro Antonio Rodrigues

Veloso de Oliveira a entregar um documento ao Príncipe Regente sugerindo uma reorientação

do território e defendendo a implantação de cidades e vilas como instrumento de dominação e

organização do Estado. Sob esse aspecto, acreditava que o povoamento poderia favorecer o

desenvolvimento econômico do país.

Três personalidades, porém, são destacadas por Vidal por influenciarem

marcantemente na defesa da necessidade de construção de uma nova capital no período:

Guillerme Pitt, relator de um documento denominado O Discurso de Pitt, cuja autenticidade é

questionada por não ter sido localizado, em documento algum, outro texto do autor, deixando

sua autoria como uma incógnita; o conselheiro Antonio Rodrigues Veloso de Oliveira, que

redigiu uma proposta com a reorientação dos princípios da colonização para valorização mais

eficaz do território, defendendo a necessidade de implantação de cidades e vilas como

instrumento de dominação e organização do Estado e o povoamento territorial como base

sólida para o desenvolvimento econômico do país; e Hipólito José da Costa, jornalista

brasileiro com convicções liberais que, após fugir da inquisição portuguesa, refugiou-se em

Londres, fundando o primeiro jornal de oposição à coroa portuguesa, o Correio Braziliense,

em 1808. Hipólito era um dos maiores e mais influentes defensores da necessidade, não só de

interiorização, mas também de centralização da Capital no território do país, defendendo a

abertura de estradas e a ligação entre as cidades, favorecendo a comunicação entre o interior e

os portos marítimos e, consequentemente, o desenvolvimento do país.

Em 1823, ano da Constituinte do Império, durante o período da Independência,

pontua Vidal, José Bonifácio apresentou um projeto de mudança da capital para o interior,

sugerindo o nome de Brasília. O projeto considerava a importância da dimensão geopolítica, a

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capacidade de defesa de possíveis agressões, o povoamento e a comunicação, com abertura de

estradas. Algumas dessas ideias constam no artigo Lembranças e Apontamentos, de sua

autoria, no qual apresentava sugestões claras de interiorização da capital:

Parece-nos, também, muito útil que se levante uma cidade central no interior

do Brasil para assento da corte ou da regência, que poderá ser na latitude,

pouco mais ou menos, de 15 graus, em sítio sadio, ameno, fértil e regado por

algum rio navegável. Dêste modo fica a côrte ou assento da regência livre de

qualquer assalto ou surpresa externa, e se chama para as providências

centrais o excesso de população vadia das cidades marítimas e mercantis.

Desta côrte central, dever-se-ão logo abrir estradas para as diversas

provinciais e portos de mar, para que se comuniquem e circulem com toda a

prontidão as ordens do Governo, e se favoreça por elas o comércio interno

do vasto Império do Brasil. (BONIFÁCIO, 1823, apud VIDAL, 2009, p. 53)

Uma tentativa de instalar a capital em Petrópolis, uma região montanhosa, de clima

ameno e mais distante dos portos do Rio de Janeiro também é destacada por Vidal. Em 1830,

D. Pedro I havia mandado construir um palácio imperial na cidade, a fim de receber os

visitantes europeus não acostumados ao calor tropical. D. Pedro II, então, traçou um plano

para ocupação dessa região para colonização europeia, providenciando a construção de uma

igreja e a instalação de um núcleo de povoamento, com arquitetura predominantemente

neoclássica, logrando a atração de colonos alemães, franceses, italianos e portugueses. A

experiência, explica Vidal, não vai adiante porque a cidade não passou de um local destinado

ao veraneio e descanso do imperador, mantendo o Rio de Janeiro como capital administrativa

do Império. Petrópolis, dessa forma, não passou de uma experiência, conclui o historiador.

Em 1840 surge uma geração romântica, com ideias de constituir uma "terra mãe",

orgulhosa do seu passado e confiante no futuro. A questão do regionalismo e do sertanismo,

focada na valorização do sertão como representante genuíno da cultura nacional, surge em

contraponto ao litoral, este, na comparação de Vidal, símbolo da exploração colonial, o braço

do domínio português sobre o país. Sob esse ângulo, a forte influência portuguesa construía

um "falso Brasil". O "verdadeiro Brasil, o Brasil original, o Brasil puro, é aquele do interior, o

do sertão impermeável às influências externas, conservando em seu estado natural os traços

nacionais" (VIDAL, 2009, p. 85). No interior, então, estava o lugar de redenção do Brasil-

nação, explica o historiador, e o sertanejo seria o instrumento dessa redenção, aquele que

deveria promover a "regeneração social".

Destaca-se, nessa ideia, o historiador e diplomata Francisco Adolfo Varnhargen, o

visconde de Porto Seguro, grande interessado em desenvolver um pensamento nacionalista

sob influência portuguesa. Varnhargen, de acordo com Vidal, teve um importante papel

quando, em 1877, empenhado em estudos sobre a geografia do Brasil, recebeu a incumbência

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de procurar e indicar regiões favoráveis à implantação da nova capital, para a qual sugeriu o

nome de Imperatória, uma colônia europeia no Brasil.

Varnhagen recomendou a localização da nova capital próxima à Vila Formosa, em

Goiás, no triângulo formado pelas três lagoas Formosa, Feia e Mestre, segundo ele, uma bela

região, com solo fecundo e conveniente para construção de uma cidade com características

ímpares, destaque como vitrine e modelo de urbanização e organização urbana racionais,

adaptada às exigências da vida moderna. Sua construção deveria se pautar em técnicas de

urbanismo modernas, segundo padrões europeus, com ruas largas e arborizadas com árvores

que caíssem folhas no tempo do frio, propiciando uma paisagem típica das cidades europeias.

Previu a instalação de redes de esgoto, abastecimento de água encanada e chafarizes nas

casas, a exemplo de Londres. A descrição do plano da cidade de Imperatória consta na obra o

Memorial orgânico, de Varnhagen9 (VARNHAGEN, apud VIDAL, 2009, p. 99).

Com a República, em 1889, sob regime de Deodoro da Fonseca, surge um novo

debate no cenário da construção da capital. Com perspectivas puramente políticas, é formada

uma comissão, composta por grupos científicos e tecnicistas, com projetos de mudança

focados em "planejar uma cidade especialmente destinada às elites, uma cidade sem povo"

(VIDAL, 2009, p. 104).

A redação de uma nova constituição foi oportuna para impor sua soberania

econômica e política do país, evidenciando o que Vidal destacou como pontos de vista

antagônicos das duas forças políticas:

Para os positivistas, a criação de uma nova capital permitiria submeter a

organização da capital republicana a critérios racionais e científicos. Para os

liberais, tratar-se-ia de medidas preventivas contra a estabilidade da

República. (VIDAL, 2009, p. 107)

Durante cem dias a Assembleia Constituinte discutiu a mudança da capital. Vidal

enumerou quase trinta discursos e intervenções e vinte emendas, mas o projeto só foi

apreciado em novembro de 1890, um ano após de D. Pedro II ser deposto após um golpe de

estado10

, que aconteceu com a Proclamação da República, tendo assumido o marechal

Deodoro da Fonseca, cuja ascensão ao poder jogou o novo governo na ilegalidade, conforme

relata a professora Regina Zilbeman (2015).

9 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Memorial orgânico que a consideraçam das assembleas geral e

provinciaes do império apresenta um brasileiro. Madrid: [s.n.]. v. 1, 1849; v. 2, 1851.

10 Embora Vidal (2009, p. 107) afirme que D. Pedro II tenha abdicado ao trono em 1899, a história refere que o

mesmo teria sofrido um golpe de estado. Ver: ZILBERMAN, R. Os fastos da ditadura militar, de Eduardo

Prado - o Brasil de um exilado. Revista Conexão Letras, v. 10, Nº 13, p. 52-64, 2015. Disponível em:

<https://seer.ufrgs.br/conexaoletras/article/view/55695/33849>. Acesso em: 4 fev. 2019.

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Em fevereiro de 1891 a Constituição foi promulgada considerando imperativa a

interiorização da Capital Federal, que deveria ser transferida para o Planalto Central. Por

sugestão do senador pela Bahia, Virgilio Damásio, foi acatado o nome de Tiradentes, por ter

sido um "protomártir da República", um apóstolo da liberdade que deu a vida pela pátria11

.

O projeto não foi adiante, entre outros motivos, por falta de estudos técnicos prévios

e científicos relacionados à escolha do lugar. Por outro lado, Vidal aponta o entrave à

interferência de interesses políticos divergentes entre as elites, principalmente relacionados à

manutenção da capital no Rio de Janeiro.

Em 1892, o general Floriano Peixoto retoma a discussão como necessidade inadiável,

enviando para o Planalto Central a "Comissão de exploração do Planalto Central do Brasil",

sob responsabilidade do engenheiro belga Luis Cruls (1848-1908), diretor do Observatório

Astronômico do Rio de Janeiro, para fazer a demarcação e estudos da região.

Durante dois anos - 1892 a 1895 - a Missão Cruls12

, dividida em cinco grupos,

percorreu 4 mil quilômetros a cavalo. Foi demarcada uma área de 14 mil km² do que seria o

novo Distrito Federal e, posteriormente, a zona que melhor comportaria a instalação da nova

capital. O "retângulo Cruls ou futuro Distrito Federal" (VIDAL, 2009, p. 114), considerado a

parte mais central do planalto brasileiro em relação ao centro do território, passou a integrar

os mapas políticos do Brasil em 1895. Incluindo parte dos estados do Rio de Janeiro, Minas

Gerais e Goiás, o local escolhido como central era a zona mais próxima dos Pirineus, no

Estado de Goiás, sob as cabeceiras dos rios Araguaia, Tocantins, São Francisco e Paraná.

A prioridade da capital foi novamente protelada em 1897, quando uma grave crise

econômica e política atingiu o governo de Prudente de Moraes e a Missão Cruls foi

oficialmente suprimida, sendo retomada em somente 1922, por meio do decreto 4.494/22, já

no governo do presidente Epitácio Pessoa. A efetivação desse projeto, entretanto, também

ficou comprometida até 1930 diante da incapacidade do Brasil de conciliar os regimes e os

interesses das elites regionais, explica Vidal.

É nesse período que o historiador Laurent Vidal avalia que o discurso de

modernidade retoma a importância das cidades como centro das discussões. Problemas

11

DAMÁSIO, Virgílio. [3a sessão] Anais do Congresso Constituinte da República. 15 dez. 1890. In Ant.

Hist., tomo 1, p. 179. Disponível em: <http://imagem. camara.gov.br/dc_20a.asp?selCodColecaoCsv=C &

Datain=15/12/1890>. Acesso em: 10 dez. 2013.

12 CRULS, Luis. Comissão de exploração do Planalto Central do Brasil: relatório apresentado a Sua

Excelência do ministro da Indústria, das Vidas e das Obras Públicas. Rio de Janeiro: Lombaerts & Co. 1894,

55p.

.

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relacionados à sujeira, ao desordenamento urbano, ao confinamento e à aglomeração

populacional, evidenciam a imagem do Rio de Janeiro como uma cidade incoerente,

deficiente economicamente e em desordem social, "onde se avulta a lia social constituída por

massas nas quais, infelizmente, a instrução não penetrou ainda, nem a mínima educação

cívica"13

, e onde os cidadãos "inteiramente fora da comunhão do povo laborioso e honesto,

vivem na ociosidade"14

, segundo o discurso demófobo e um tanto preconceituoso em relação

ao povo, mas aplaudidíssimo do senador Virgilio Damásio, na Assembleia Nacional

Constituinte, em 1890. Deputados da linha positivista acreditavam ser essa a saída para

corrigir os problemas da cidade grande e colocar o Brasil na linha do progresso.

Por outro lado, Vidal afirma que a força do discurso da identidade e da brasilidade

também retoma ao centro das discussões, considerando que a relação entre a cidade e o campo

é que representaria matriz da nação brasileira. O desejo nacional, segundo o discurso do

deputado Nogueira Paranaguá na Assembleia Nacional, em 190415

, seria de construção de um

modelo de capital tranquila, com perfeições desejáveis para uma cidade civilizada,

verdadeiramente nacional, com o brasileirismo predominante, que representasse os

sentimentos de liberdade.

Nesse pensamento, surge uma grande expectativa com a construção da nova capital

de Minas Gerais. Belo Horizonte, um "protótipo do modelo urbano do futuro" (VIDAL, 2009,

p. 131), em substituição à antes capital Ouro Preto, propunha uma inovação em termos de

concepção de cidade, delimitando uma nova possibilidade de urbanismo - chegando a ser

cogitada, na época de Getulio Vargas, a funcionar como sede provisória da Capital.

No início do século XX, no governo do presidente Rodrigues Alves, o Rio de Janeiro

vivia um período de grandes transformações, por insistência da elite política desejosa de

manter a cidade como capital da República. A nova imagem e embelezamento do Rio buscava

dar ao Brasil características mais modernas, fugindo da visão de atraso e de país escravocrata.

Inspiradas na Paris do século XIX, as reformas urbanísticas construíram praças, ampliaram ruas,

criaram estruturas de saneamento básico e promoveram a higienização com demolição de casas,

13

DAMÁSIO, Virgílio. [3a sessão] Anais do Congresso Constituinte da República. 15 dez. 1890. In Ant.

Hist., tomo 1, p. 179. Disponível em: <http://imagem. camara.gov.br/dc_20a.asp?selCodColecaoCsv=C &

Datain=15/12/1890>. Acesso em: 10 dez. 2013.

14 Idem.

15 PARANAGUÁ, Nogueira. Discurso à Assembleia Nacional, sessão de 19 de dezembro de 1904. Ant. Hist.,

tomo 2, p. 66-67.

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vacinação compulsória e truculência policial. O povo foi banido do centro, empurrado para os

morros ou periferias mais distantes e repelido à força pelo Estado, causando revolta popular.

Ao longo dos anos de 1920, um novo movimento modernista repensava o Brasil,

pregando a necessidade de buscar uma pátria genuína, que representasse o caráter essencial do

povo brasileiro. No pensamento de Oswald de Andrade, o Brasil deveria se integrar a uma

cultura nacional, enquanto Antonio José Azevedo Amaral defendia a articulação entre a

modernização, a identidade nacional e a urbanização. Esse pensamento renova as expectativas

em relação à política na era de Getulio Vargas, em 1930, explica Vidal, sendo retomadas as

discussões voltadas para o interesse nacional, rompendo com as estruturas oligárquicas

tradicionalmente perpetuadas no poder. A questão da mudança da Capital também volta a ser

discutida, agora, como uma tentativa de aliança nacional, onde a construção de um Brasil

moderno busca reconciliar o urbano e o rural, com efetiva retomada do território nacional.

Vargas protagonizou um governo populista com uma proposta audaciosa, de acordo

com Vidal, de investir na industrialização, apoiar a classe trabalhadora e fazer o

recenseamento dos bens do interior, projeto que ganhou a adesão da classe média, da maioria

dos intelectuais e de jovens oficiais militares. Entre 1930 e 1945, Vidal explica que o governo

formulou e implementou várias reformas com o objetivo de favorecer a sociedade de forma

mais democrática. Assumindo o papel de transformador, o Estado sai das mãos dos interesses

privados e passa a ser pensado sob os aspectos técnicos, buscando estabelecer um status

verdadeiramente nacional.

Getulio Vargas, explica Vidal, entendia que os problemas nacionais residiam na

existência de "dois Brasis", sendo o primeiro representado pelo dinamismo econômico das

metrópoles localizadas no litoral e o segundo pelas dificuldades econômicas existentes no

interior rural. A saída, para Vargas, seria a integração desses dois Brasis num território

econômico e culturalmente homogêneo. A "Marcha para Oeste" surge, então, como uma

alternativa de conciliação entre a cidade e o campo, compondo as oportunidades oferecidas

por cada uma delas, ou seja, o homem do campo como representante da brasilidade e a cidade

como propulsora da modernidade. Assim, seria possível desenvolver um país ao mesmo

tempo industrial, moderno, nacional e nacionalista.

As teorias de Le Corbusier, as discussões dos Congressos Internacionais de

Arquitetura Moderna (Ciam) e a Carta de Atenas são a inspiração também dos arquitetos

brasileiros que, preocupados com a construção de um Brasil moderno, propõem mudanças

também na arquitetura, dando destaque aos princípios arquitetônicos inovadores na

construção de um Brasil alinhado com as expectativas de modernização do Estado. Nesse

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aspecto, Vidal destaca a importância dos jovens arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer,

segundo o historiador, de habilidade, brilhantismo e genialidade impressionantes.

Lúcio Costa estudou na Europa e se formou em arquitetura na Escola Nacional de

Belas Artes do Rio de Janeiro, em 1917. Rompendo com o tradicionalismo europeu, retomou

o estilo nacionalista, o que chamou de "nosso estilo interior de arquitetura" (VIDAL, 2009, p.

159), conforme assumiu em uma entrevista concedida ao autor, em 1993, relatando também

que, ao ser convidado por Gustavo Capanema, então Ministro da Educação, para fazer o

projeto de construção do Ministério da Educação Nacional, viu a oportunidade de construir a

primeira obra rigorosamente pura e fiel com os princípios da renovação arquitetônica,

colocando em prática os princípios modernos do funcionalismo urbano, o dogmatismo da

arquitetura moderna e as novas tecnologias do aço e do concreto.

Apesar da nova Constituição Federal de 1946 dispor sobre a transferência da capital

da União para o Planalto Central do País, Vidal explica que, somente em 1955, no governo do

presidente Café Filho, foi formada a Comissão de Localização da Nova Capital Federal, sob a

presidência do Marechal Pessoa, encarregada de examinar as condições gerais de instalação

da cidade a ser construída. Em seguida, Café Filho homologou a escolha do sítio da nova

capital e delimitou a área do futuro Distrito Federal. Entre outras coisas, a equipe deveria

definir os princípios urbanísticos da nova capital e propor um esboço de plano para sua

construção, com base em teorias do urbanismo moderno, daí a ideia de convidar o arquiteto

Le Corbusier16

para participar da elaboração do projeto da futura capital.

Entretanto, Vidal relata que embora Marechal Pessoa tenha concordado inicialmente

com a proposta de convidar Le Corbusier, voltou atrás, convencido da capacidade

amplamente comprovada de urbanistas e arquitetos brasileiros assumirem a realização de uma

obra de tamanha envergadura. Vidal relata o acontecimento de uma controvérsia, no mínimo,

curiosa: uma equipe de urbanistas já tinha avisado a Le Corbusier sobre a possível proposta, o

que muito o agradou, principalmente porque como "mestre incontestado do movimento da

arquitetura moderna, ele nunca obteve grandes encomendas em que seu gênio pudesse

livremente se expressar" (VIDAL, 2009, p. 179). O arquiteto, feliz com o convite, descreve

Vidal, se animou o suficiente para escrever para Pessoa e apresentar suas ideias:

Ser-lhe-ia infinitamente grato se o senhor quisesse perceber que meu

desenho não é de estabelecer planos da capital brasileira, mas de ser

encarregado da realização do que se chama "Plano Piloto". O "Plano Piloto

16

Le Corbusier é considerado um dos mais importantes arquitetos do século XX, merecendo destaque, segundo

Laurent Vidal, por ter influenciado ou revelado toda uma geração de arquitetos no mundo inteiro, inclusive

brasileiros como Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.

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26

significa a expressão pelos desenhos e pelos textos da ideia de ordem geral e

particular que minha experiência me permite submeter por ocasião do

problema. (LE CORBUSIER, 1955, apud VIDAL, 2009, p. 181)

A proposta não engatou, pelo menos foi a conclusão que Vidal chegou por não

identificar nenhum rastro de cartas sobre o assunto na época. Le Corbusier teria tentado

novamente uma intercessão por parte do Presidente da República Francesa, Vincent Auriol,

quando Juscelino Kubitschek, então Presidente do Brasil, decidiu oficialmente construir

Brasília, mas também não obteve sucesso.

As ideias do arquiteto e urbanista Le Corbusier foram tão determinantes quanto

polêmicas para a concepção das cidades modernas, principalmente porque algumas propostas

apresentadas por ele como solução dos problemas das metrópoles contemporâneas tinham

distinções estritamente classistas e em benefício da classe média, critica Peter Hall (1995, p.

247)17

. A primeira ideia de cidade, chamada por Le Corbusier de cidade radiosa, era composta

por moradias de unidades uniformes e padronizadas, produzidas em massa e voltadas para a

elite burguesa. Entretanto, para os operários e comerciários, Le Corbusier, pensou em

apartamentos mais modestos, em unidades satélites, distantes da cidade. Haveria espaço

verde, facilidade para a prática de esportes e diversões, mas de forma diferente e adequada

para a classe trabalhadora. Corbusier repensou seus planos de cidade em diferentes

momentos, idealizando espaços que Hall chamou de planejamento centralizado, abrangendo

não apenas a edificação urbana, mas também os aspectos da vida de seus habitantes, baseada

na ciência do urbanismo.

Embora Hall afirme que Le Corbusier foi, na prática, um "retumbante fracasso"

(HALL, 1995, p. 250), muitos arquitetos seguiram e se inspiraram em suas ideias. Brasília,

por exemplo, surge como uma interpretação inteiramente nova do pensamento corbusiano.

O projeto para um Brasil moderno e desenvolvimentista ganhou força novamente no

governo de Kubitscheck, que prometia "cinquenta anos de progresso em cinco anos". É como

símbolo dessa nova política e desse período de progresso democrático que ele decide pela

construção da nova capital no interior do país. Essa escolha, segundo Vidal, foi um gesto

original e altamente representativo da política de Kubitschek, a decisão política que faltava

depois da definição da delimitação da localização da cidade e dos princípios simbólicos de

urbanismo. Nada, segundo o historiador, que se distanciasse dos projetos de mudança

discutidos desde a independência do país. Cada um se voltava para justificar certa

organização das elites dentro do Estado e para simbolizar um novo projeto de sociedade.

17

HALL, Peter. Cidades do Amanhã. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995.

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27

A perspectiva concebida para a capital, segundo Vidal, era a construção de uma

cidade imaginada, de arquitetura moderna com dimensões sociais e de organização urbana,

completamente distinta de tudo o que se construíra até então. Explica:

Brasília apresenta exatamente a vantagem de ser uma cidade inteiramente

nova, criada fora de todo e qualquer contexto urbano preexistente. Ela nasce

logo capital: sua estrutura depende de sua função. O novo estado brasileiro,

livre de sua dimensão oligárquica, pode assim afirmar sua potência criadora

e unificadora na construção de uma nova capital. (VIDAL, 2009, P. 197)

Juscelino Kubitschek propôs, então, ao arquiteto Oscar Niemeyer que fizesse o

desenho do Plano Piloto e projetasse os edifícios públicos de Brasília, mas Niemeyer prefere

sugerir a realização de um concurso para escolha do projeto, esclarece Vidal, aceitando

somente a proposta de projeção dos edifícios. Com isso, Niemeyer propunha legitimar

Brasília para os arquitetos brasileiros. Para dar visibilidade internacional, sugeriu a

composição de um júri formado por especialistas internacionais.

O prazo para apresentação dos projetos foi curto, tendo sido apresentados apenas 26

trabalhos. O projeto selecionado foi o do jovem arquiteto e urbanista Lucio Costa, por

apresentar uma proposta viável para solução de todas as dificuldades relacionadas à

concepção da cidade: "um perfeito estudo do conjunto dos fatores em jogo, uma solução

impecável em clareza, potência, inteligência e, sobretudo, atendendo perfeitamente às

expectativas do seu mestre de obras" (VIDAL, 2009, p. 210).

A proposta apresentada por Lucio Costa, conforme descrição de Hall, continha

desenhos feitos à mão livre, em cinco cartolinas de tamanho médio, sem maquete, sem

projeção populacional, análise econômica ou programação do uso do solo. O júri gostou da

"grandiosidade" do projeto, descrito de várias formas, ora como avião, ora como pássaro ou

libélula. O corpo (ou fuselagem) compunha o eixo monumental, destinado aos principais

edifícios públicos e administrativos, com blocos uniformes de escritórios e hotéis margeando

um passeio público largo, findando com a esplanada dos ministérios e o Congresso Nacional;

as asas comportariam as áreas residenciais uniformes, aspirando que todos os moradores, do

secretário permanente ao porteiro, deveriam morar nas mesmas quadras e ocupar o mesmo

tipo de apartamento. Brasília é, assim, uma cidade inspiradamente corbusiana, conclui Hall.

A versão de Hall para Brasília conclui que embora o projeto não fosse de Le

Corbusier, Brasília foi uma apoteose, duramente criticada pela imprensa carioca à época de

sua construção como sendo o cúmulo da loucura ou uma ditadura no deserto. Polêmicas à

parte, o Plano Piloto de Brasília acabou se destacando como pioneiro do movimento

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arquitetural moderno no Brasil, "um dos mais vastos exercícios urbanísticos do século XX, de

autoria de Lúcio Costa" (HALL, 1995, p. 254).

Esse ponto finaliza a discussão secular acerca da nova capital do Brasil. A

abordagem histórica permite entender que a construção de Brasília não se limita à construção

de uma cidade, mas pontua momentos marcantes, não só históricos, mas também políticos,

econômicos, estratégicos e sociais. A cidade, ao ser construída, já trazia todo um contexto que

a tornaria excepcionalmente particular em relação a outras cidades no Brasil e no Mundo, não

só por sua arquitetura moderna, mas por ser um projeto de sociedade, uma sociedade que,

com o tempo, adquiriu noções de pertencimento, proteção e afeto pela cidade.

A INVENÇÃO DA CIDADE

O projeto apresentado por Lúcio Costa se resumia a um traçado à mão livre, sem

limitações técnicas arquitetônicas, acompanhado de uma justificativa, também à mão, na qual

se desculpava por apresentar um projeto sumário, justificando-se, junto à banca examinadora,

que não desejava competir, mas apresentar uma solução possível

que não foi procurada, mas surgiu, por assim dizer, já pronta. Compareço,

não como técnico devidamente aparelhado, pois nem sequer disponho de

escritório, mas como simples maquis do urbanismo, que não pretende

prosseguir no desenvolvimento da ideia apresentada senão eventualmente, na

qualidade de mero consultor. [...] se a sugestão é válida, este dados,

conquanto sumários na sua aparência, já serão suficientes, pois revelarão

que, apesar da espontaneidade original, ela foi depois, intensamente pensada

e resolvida; se o não é, a exclusão se fará mais facilmente, e não terei

perdido meu tempo nem tomado o tempo de ninguém. (COSTA, 2014, p.

29)18

.

Lúcio Costa explica que o projeto nasceu e se definiu em dois eixos cruzando-se em

ângulo reto, como "o próprio sinal da cruz" (figuras 1 e 2), e segue descrevendo uma cidade

pensada para ser uma capital, sem assumir, entretanto, a responsabilidade de tocar o projeto,

sugerindo a escolha de um urbanista imbuído de "dignidade e nobreza de intenção", que

pensasse em questões como ordenação, senso de conveniência e medida que conferissem ao

conjunto projetado um caráter monumental, não no sentido de ostentação, mas de expressão

palpável, consciente do seu valor e significado, que fosse, ao mesmo tempo,"viva e aprazível,

própria ao devaneio e à especulação intelectual, capaz de tornar-se, com o tempo, além de

centro de governo e administração, num foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do país"

(COSTA, 2014, p. 29).

18

COSTA, Lucio (1957 / 2014). Brasília, cidade que inventei: Relatório do Plano Piloto de Brasília. Brasília:

Iphan, 2014.

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Figura 1- Projeto vencedor, apresentado por Lucio Costa

Autor: Lucio Costa

Fonte: Acervo Arquivo Público do Distrito Federal

Figura 2 - Desenho básico de croquis

Autor: Lucio Costa

Fonte: Acervo Arquivo Público do Distrito Federal

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Os princípios técnicos rodoviários eliminam cruzamentos, com vias naturais de

acesso, pistas centrais de velocidade e laterais para o tráfego local. A instalação de trevos (que

posteriormente passaram a se chamar "tesourinhas", hoje, uma marca da cidade) foi

apresentada como solução para escoamento do trânsito de veículos, evitando cruzamentos e o

tráfego de caminhões em sistema secundário. Para as áreas residenciais, estacionamentos de

veículos, espaço para circulação de ônibus, e garantia do uso livre do chão para os pedestres.

Ao longo do eixo monumental são preservados espaços para a instalação de centros

culturais, de entretenimentos e esportivos, além do setor administrativo municipal, zonas

militares, de armazenagem, abastecimento e para instalação de pequenas indústrias locais,

tendo, ao fim, a estação ferroviária. No cruzamento dos dois eixos, estrategicamente

posicionados na zona central, os setores bancário, comercial, de escritórios e comercial.

Compondo a Praça dos Três Poderes, onde se concentra o centro de decisões do

governo, são justapostos triangularmente o Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional

e o Palácio do Planalto. Os edifícios estão localizados ao final de um extenso gramado que se

estende desde a plataforma da estação rodoviária até o Congresso Nacional, proporcionando

uma visão ampla de toda a esplanada, vislumbrando, ao fundo, o Congresso Nacional, onde

pedestres podem se reunir para acompanhar paradas e desfiles - e onde hoje ocorrem grandes

manifestações, servindo como palco para o exercício da democracia. Talvez Lucio Costa

tenha pensado nessa possibilidade, entretanto, na proposta, argumentou que a perspectiva

desimpedida desde a rodoviária até o Congresso Nacional obedecia a uma questão de ordem

arquitetônica.

Os ministérios são posicionados nas laterais da esplanada, ordenados em sequência,

em posições estratégicas de acordo com cada competência. O Ministério da Educação, por

exemplo, ocupa lugar vizinho ao setor cultural, dando sequência, de acordo com o projeto

original, a espaços reservados para construção de museu, biblioteca, planetário, academias dos

institutos etc. A Catedral, também na esplanada, mas disposta lateralmente numa praça

isolada, de acordo com Costa, busca sua valorização como monumento.

Há previsão, também, de uma área ampla destinada à Cidade Universitária - hoje a

Universidade de Brasília - com Hospital de Clínicas (universitário) e Observatório. No eixo

monumental, uma torre radioemissora com mirante oferece uma vista panorâmica da cidade.

Como solução para o problema residencial, o arquiteto propõe a localização de parte

dos edifícios ao longo e às margens dos eixos sul e norte, numa sequencia contínua de

“superquadras”, conforme explica Lúcio Costa, emolduradas por uma larga faixa arborizada e

amplos gramados, oferecendo sombra aos moradores para passeio e lazer. Internamente,

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blocos residenciais em disposições variadas, com gabaritos máximos uniformes, sugerindo

seis pavimentos e pilotis. Cada superquadra deve ter escola primária, espaço para floricultura,

horta e pomar, intercalando, entre elas, espaços destinados a igrejas, escolas secundárias,

cinema, clube e comércio (mercados, açougues, quitandas, vendas, casas de ferragens,

barbearias, cabeleireiros, modistas, confeitarias etc.), além de postos de gasolina.

O arquiteto prevê a valorização maior de umas quadras em relação a outras,

agrupadas de quatro em quatro a fim de favorecer a coexistência social. As diferenças de

padrão entre as quadras são neutralizadas pelo agenciamento urbanístico proposto, sem afetar

o conforto social, mas diferenciando o tamanho dos apartamentos, a escolha dos materiais e o

grau de requinte do acabamento. A fim de impedir a enquistação de favelas no entorno da

cidade, Costa sugere que a Companhia Urbanizadora se responsabilize por prover

acomodações decentes e econômicas para a população.

Para os cemitérios, campos arborizados e gramados, com sepulturas rasas e lápides

singelas, desprovidas de ostentação, localizados nos extremos do eixo rodoviário-residencial.

Essa proposta não foi totalmente aplicada, tendo sido construído somente o cemitério do final

da Asa Sul e, no outro extremo, na Asa Norte, não existem, hoje, indícios que apontem a

intenção de instalação de outro cemitério.

A orla da lagoa - hoje o Lago Paranoá - deveria ser preservada livre de residências,

rodeada de bosques e campos que serviriam de passeios para a população. Próximos ao lago,

apenas clubes esportivos, restaurantes, lugares de recreio, balneários e núcleos de pesca

poderiam ser instalados. A localização do aeroporto é sugerida na área interna do lago, a fim

de evitar sua travessia ou o contorno.

Quanto ao endereçamento, Lucio Costa toma como referência o eixo monumental,

distribuindo a cidade em partes norte e sul, marcadas por números, blocos com letras e

apartamentos na forma usual. Tal disposição pode, inicialmente, causar um pouco de confusão

para quem acaba de chegar a Brasília, mas se torna prática quando se compreende a lógica da

organização.

Lucio Costa define o projeto da cidade como se descrevesse uma paisagem:

E assim que, sendo monumental é também cômoda, eficiente, acolhedora e

íntima. E ao mesmo tempo derramada e concisa, bucólica e urbana, lírica e

funcional. O tráfego de automóveis se processa sem cruzamentos, e se

restitui o chão, na justa medida, ao pedestre. E por ter o arcabouço tão

claramente definido, é de fácil execução: dois eixos, dois terraplenos, uma

plataforma, duas pistas largas num sentido, uma rodovia no outro, rodovia

que poderá ser construída por partes — primeiro as faixas centrais como um

trevo de cada lado, depois as pistas laterais, que avançariam com o

desenvolvimento normal da cidade. As instalações teriam sempre campo

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livre nas faixas verdes contíguas às pistas de rolamento. As quadras seriam

apenas niveladas e paisagisticamente definidas, com as respectivas cintas

plantadas de grama e desde logo arborizadas, mas sem calçamento de

qualquer espécie, nem meios-fios. De uma parte, técnica rodoviária; de

outra, técnica paisagística de parques e jardins. (COSTA, 2014, p. 40)

A descrição sucinta do projeto apresentado de Lucio Costa demonstra a dimensão

arquitetônica, urbanística e social da sua proposta. Obviamente, explica Vidal, o modelo

apresentado recebeu críticas, a exemplo das superquadras, uma proposta afinada com a

arquitetura moderna e com os princípios da cidade-verde de Le Corbusier. A ideia de

rompimento com as ruas, proposta por Costa, tem como objetivo promover uma boa relação

entre os moradores. As "unidades de vizinhança", agrupadas em quatro unidades, protegida de

trânsito de veículos, representam um lugar privilegiado de sociabilidade. Segundo Vidal,

Lucio Costa teria partido da hipótese de que as formas urbanas são capazes de moldar as

relações sociais, melhorar a vida dos cidadãos e interferir no comportamento da sociedade.

Vidal chama a atenção para a convergência do pensamento de Costa com o espírito do

funcionalismo da Carta de Atenas: trabalhar, habitar e circular19

, inserindo Brasília na utopia

das cidades modernas. O documento foi redigido por Le Corbusier.

O projeto de Lucio Costa, vencedor do concurso, foi colocado em prática em

novembro de 1956, quando começaram a montar os canteiros de obra, atraindo milhares de

pessoas de todas as partes do país. A cidade foi inaugurada em 1960, aproximadamente 3 anos

após o início dos trabalhos de construção. Grande parte dos operários que se dirigiram para

trabalhar no cerrado descampado - aqueles para os quais Brasília não foi planejada -, ao final,

não tinham a intenção de voltar para seus lugares de origem. Já haviam criado vínculos,

trazido suas famílias e depositado a expectativa de mudar suas histórias. Já se sentiam parte

integrante, possuidores e dependentes dela. E chegavam também aquelas pessoas para as

quais a cidade foi construída que, igualmente, desenvolveram relações de pertencimento e

afetividade com o tempo, principalmente, por ser o lugar onde criaram seus filhos. É acerca

da relação estabelecida entre essas pessoas e a cidade que a discussão passa a se concentrar.

OS CANDANGOS - ALGUMA COISA ESTÁ FORA DA ORDEM

19

Ver Carta de Atenas (1933) - O documento propõe a funcionalidade das cidades modernas em detrimento das

cidades tradicionais, preconizando a organização da cidade a partir de quatro funções básicas: trabalhar, habitar,

circular e cultivar o corpo e o espírito.

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A construção de Brasília foi alvo de muitas críticas, entre elas, a insatisfação pela

retirada da Capital do Rio de Janeiro, a criação de uma cidade voltada para uma classe

privilegiada e, consequentemente, a exclusão: a cidade não se destinava aos milhares de

trabalhadores que saíram de seus estados para trabalhar na sua construção. Dada a situação

delicada, Niemeyer (2006)20

, incomodado e decepcionado com os rumos tomados pela capital

federal, principalmente em relação aos problemas sociais – e, em especial, à desigualdade

entre o Plano Piloto e as cidades satélites, lamentou a situação:

Constrangia-nos apenas verificar que para os operários seria impraticável

manter as condições de vida que o Plano Piloto fixara, situando-os, como

seria justo, dentro das áreas de habitação coletiva, e permitindo que ali seus

filhos crescessem fraternalmente com as demais crianças de Brasília, sem

complexos, aptos às reivindicações que o tempo lhes irá proporcionar.

Víamos, com pesar, que as condições sociais vigentes colidiam nesse ponto

com o espírito do Plano Piloto, criando problemas impossíveis de resolver na

prancheta, mesmo apelando-se - como alguns mais ingênuos sugerem - para

uma arquitetura social que a nada conduz sem uma base socialista.

Compreendíamos, assim, que a única solução que nos restava era continuar

apoiando os movimentos progressistas que visam a criar um mundo melhor e

mais feliz. (NIEMEYER, 2006, p. 32)

A permanência dos candangos - como ficaram conhecidos os trabalhadores da

construção de Brasília - evidenciou a urgência de se construir locais para que eles se

estabelecessem, já que viviam em invasões e habitações de improviso nos acampamentos das

obras. Quase 70 mil pessoas decidiram fixar residência na cidade, uma população

"indesejável" (VIDAL 2009, p. 283), excluída do Plano Piloto, o que obrigou as autoridades a

criarem as chamadas cidades-satélites.

Os migrantes oficiais, aqueles para os quais a cidade foi construída, entretanto,

chegaram para viver uma situação mais confortável e privilegiada em relação aos operários.

De acordo com a arquiteta e urbanista Vera Bosi de Almeida21

eles já iam para Brasília com

moradia garantida no centro da cidade, com todo o conforto que era negado aos operários.

20

NIEMEYER, Oscar. Minha experiência em Brasília. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006.

21 Ver Roteiro dos acampamentos pioneiros no Distrito Federal, publicado pelo Instituto do Patrimônio Histórico

e Artístico Nacional, Superintendência do IPHAN no Distrito Federal, em 2016, com o objetivo de divulgar

conhecimentos sobre a história da construção da capital federal e da ocupação do seu território. Apresenta

construções ainda remanescentes dos acampamentos dos operários, elementos de um acervo remanescente rico e

desconhecido que foram reconhecidos como patrimônio cultural de Brasília, edificações representativas das

técnicas utilizadas nas primeiras construções destinadas à moradia, amparo e suporte da população que veio de

regiões distantes do Brasil para trabalhar na construção da a cidade (operários candangos, arquitetos,

engenheiros, ou trabalhadores da burocracia do Estado brasileiro). In Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional. Roteiro dos acampamentos pioneiros no Distrito Federal. Superintendência do Iphan no

Distrito Federal - organização Carlos Madson Reis; Sandra Bernardes Ribeiro; elaboração do texto, José Mauro

de Barros Gabriel. Brasília-DF, 2016.

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A movimentação das pessoas que viviam nos acampamentos montados para a

construção de Brasília, na avaliação de Paulo Pires, citado por Buchmann22

, proporcionou um

verdadeiro processo de experiência sociológica. Tal observação se deu diante da constatação

de um gosto musical comum nos bares da cidade:

No "King's Bar, o bar dos "candangos", em Brasília, só se toca música

clássica, nada de samba, boleros ou foxes. De brasileira, só folclórica como

"Casinha pequenina" de Haeckel Tavares, ou "Luar do Sertão", de Catulo da

Paixão Cearense. Dá gosto ver dezenas de "candangos" aproveitando

momento de folga para, em meio a uma cerveja ou uma água mineral, ouvir

com devoção religiosa Liszt, Chopin, Beetoven, Schobert, Debussy ou

Tchaikowski. (BUCHMANN, 2004, p. 54)

Na verdade, é possível admitir que ouviam-se músicas clássicas porque era o que se

tocava nos bares, mas difícil acreditar que os candangos, vindos principalmente do nordeste,

deixando para trás suas vivências, suas histórias, suas famílias, suas cidades, suas culturas,

preferissem música clássica a um xote, baião ou samba. Mas talvez fosse essa uma forma

estratégica, não só de construir, mas de se afirmar uma nova identidade para a cidade, um

desejo de transformar o povo pobre em instruído, num povo feliz, que brinca, descansa e sabe

aproveitar bem a vida nas horas vagas. Observam-se, nesses discursos, um perfil positivo,

culto e valorizador, uma identidade alegórica para as pessoas que seriam, doravante,

moradoras do entorno de Brasília.

Embora muitos pioneiros levassem suas famílias, a presença de mulheres na

construção de Brasília era pouca, possivelmente porque os homens deveriam se ocupar mais

do trabalho que da família e porque chegavam sem saber o que iam encontrar, por isso, muitas

de suas companheiras vieram depois, quando eles decidiram fixar residência. Outros se

instalaram na cidade sem olhar para trás, dando início a uma nova vida, com uma nova

família. Muitos também ali encerraram suas vidas e nunca mais retornaram, já que era alto o

índice de violência dominante e as condições de segurança de trabalho precárias, tombando

do alto de edifícios como a torre de TV e o Congresso Nacional ou concretados nas estruturas

palaciais, na esplanada, em prédios residenciais e em outras obras. Embora não exista

documentação oficial acerca dos acidentes, violência e vítimas, não faltam relatos das pessoas

que viveram aquela época dando conta da morte de inúmeros trabalhadores durante a

construção de uma cidade praticamente sem leis, cuja ordem era não parar23

.

22

BUCHMANN, Armando. A construção de Brasília: "Uma mensagem a Garcia" - Documentário -.

Brasília: Thesaurus, 2004.

23 Sobre o tema, o pesquisador Helio Queiroz lançou, em 2014, o livro "1001 coisas que aconteceram em Brasília

e você não sabia" publicado pela Editora Senac-DF. A obra aborda assuntos e curiosidades relacionados à cidade

antes, durante e após sua construção.

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De fato, a cidade adotou um ritmo acelerado, apressada em concluir a obra antes do

encerramento do mandato de JK (1956-1961). Em 1957, o jornalista Barbosa Lima Sobrinho24

publicava uma matéria na Revista Brasília25

na qual atribuía à cidade o início de uma nova

geração que se desenvolvia a olhos vistos, numa "marcha fabulosa de crescimento"

(SOBRINHO, 1957, p. 1), uma cidade que "parecia brotar do chão, como um milagre da

natureza" (SOBRINHO, 1957, p. 1). Pouco mais de seis meses depois, o jornalista relata o

surgimento da chamada Cidade Livre como

um arruado de casas de comércio e de residências levantadas num pedaço de

terra, mediante concessões de quatro anos, sem qualquer compromisso para

o futuro. Nessas condições é que se multiplicaram casas de comércio de tôda

a natureza, desde os armazéns de gêneros de primeira necessidade e os

açougues, até os hotéis indispensáveis à hospedagem da população em

trânsito. (SOBRINHO, 1957, p. 1)

O processo de ocupação do entorno ocorreu de forma tão rápida e desordenada que

os administradores e gestores da cidade, à época, tiveram que adotar medidas para

assentamento populacional para evitar a proliferação de invasões como a do IAPI, próximas

ao Hospital Juscelino Kubitscheck, primeiro e único da cidade, localizado na Vila

Metropolitana, próxima a Brasília26

.

A tentativa de solução do problema, explica Vera Bosi27

(IPHAN, 2016), foi a

implantação da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), com o assentamento de famílias

em áreas distantes da capital. Foi assim, esclarece Bosi, que ao lado da cidade planejada, se

desenvolveram as não planejadas como Taguatinga e Ceilândia, esta última logo contando

com mais de 600 mil habitantes, ainda hoje contando com moradores de baixa renda (figura

3).

24

SOBRINHO, Barbosa. Brasília: florescimento de uma nova geração. Revista Brasília. Rio de Janeiro, ano 01,

nº 08, p. 1, ago. 1957.

25 Primeira revista editada em Brasília, publicada pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil

(NOVACAP) por força da Lei nº 2874 de 19 de setembro de 1956, art. 19, com obrigatoriedade de divulgar

mensalmente os atos administrativos da diretoria e os contratos por ela celebrados. Tem como foco editorial a

construção da nova capital, com ilustrações fotográficas das obras em andamento e dos planos urbanísticos e

arquitetônicos em estudo. Fonte: REVISTA DA COMPANHIA URBANIZADORA DA NOVA CAPITAL DO

BRASIL: Ano 1, n. 2 (fev. 1957). Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/506962>. Acesso

em: 02 jul. 2018. 26

BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Superintendência do IPHAN no Distrito

Federal. Roteiro dos acampamentos pioneiros no Distrito Federal. Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional. Superintendência do Iphan no Distrito Federal; organização Carlos Madson Reis, Sandra

Bernardes Ribeiro; elaboração do texto, José Mauro de Barros Gabriel. – Brasília-DF, 2016.

27 Idem.

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Figura 3 - Vila Dimas, em Taguatinga - Primeira casa de madeira edificada, 1960.

Associação dos moradores e sub prefeitura - Liderada por Dimas Leopoldino

Foto: Arquivo Família Dias

28

Esse contexto possibilita entender como se deu o desenvolvimento da cidade de

Brasília no período da sua construção, resultando no que ela representa agora para seus

habitantes, principalmente do seu entorno. As construções remanescentes são reflexos do

histórico de heroísmo e sacrifício dos candangos e dignas de serem lembradas pelas futuras

gerações como testemunhos de um tempo, valorizadas e preservadas como patrimônio

cultural (IPHAN, 2016).

A FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE

O levantamento detalhado da época da construção de Brasília, intitulado Roteiro dos

Acampamentos Pioneiros no Distrito Federal29

apresenta algumas poucas construções que

28

SILVA, Manoel Messias Dias da. Vila Dimas: refúgio de candangos e pioneiros na construção de Brasília.

Primeira casa de madeira edificada na Vila Dimas - Taguatinga Sul, DF. Foto de arquivo Família Dias. Brasília,

16 dez. 2015. Disponível em: <https://manoel-geograficamentenaluzdomundo.blogspot.com.br/2015/12/vila-

dimas-refugio-de-candangos-e.html>. Acesso em: 03 ago. 2017.

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restaram dos acampamentos e que se mantiveram a duras penas, mas representam um legado

digno de ser preservado, segundo o órgão, por sua importância como memória de um tempo:

Os acampamentos tornados vilas, cidades regiões administrativas, talvez não

mais conservem intactos vestígios de 1960, mas carregam consigo, nas

histórias dos moradores, a memória dessa grande aventura nacional.

(IPHAN, 2016, p. 5)

Os acampamentos não tinham previsão de se tornarem moradias definitivas. A

intenção inicial era desativá-los tão logo as obras fossem concluídas e os operários, que ali

moravam, deveriam retornar aos seus locais de origem, mas houve resistência diante da

expectativa que essas pessoas tinham de mudar de vida. Segundo o levantamento do Iphan,

mesmo os acampamentos mais simples ainda possuíam mais conforto e recursos do que

aquelas pessoas encontrariam em suas terras.

O Roteiro mostra que algumas construções foram mantidas, em sua maioria, em

atendimento à reivindicação das comunidades locais que se identificavam com as construções

e se sentiam representadas por elas, de modo que o documento já considera a importância

dessas obras como patrimônio cultural consolidado no processo de construção de Brasília.

Das construções que representam valores culturais e históricos das diferentes formas

de ocupação existentes no período em que a cidade era erguida, permaneceram poucas ao

final, a maioria localizada no entorno de Brasília, consideradas regiões administrativas do

Distrito Federal, como a vila Paranoá, Candangolândia, Metropolitana, Núcleo Bandeirante,

além das vilas Planalto e Telebrasília, estas inseridas dentro da poligonal tombada do Plano

piloto. Embora alguns exemplares remanescentes já tenham perdido muito de suas

características originais, muitos ainda mantêm valores construtivos e ambientais dos

acampamentos iniciais, motivo pelo qual foram reconhecidos pelo Iphan como simbólicos e

dignos de preservação.

Segundo Vera Bosi, esses espaços devem ser reconhecidos e valorizados pela

população que ocupa hoje essas regiões:

Certamente esses moradores, em sua maioria, precisam conhecer as razões

que motivam ou justificam sua permanência e respectiva apropriação da

área: sua localização geográfica, sua relação com Brasília, o traçado e os

aspectos históricos e arquitetônicos cuja preservação deve ser garantida por

serem elementos significativos da memória da fase de construção da Capital

da República e, também, de seus próprios lares. (ALMEIDA, in IPHAN,

2016, p. 10)

29

BRASILIA. Superintendência do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito Federal. Roteiro dos

acampamentos pioneiros no Distrito Federal. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Superintendência do Iphan no Distrito Federal; organização Carlos Madson Reis, Sandra Bernardes Ribeiro;

texto José Mauro de Barros Gabriel. – Brasília-DF, 2016.

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A memória social, representada pelos remanescentes dos acampamentos, levou Lucio

Costa, em 1984, a reconhecer a permanência dos candangos como processo natural e positivo,

afirmando:

Quem tomou conta dele (centro urbano) foram esses brasileiros verdadeiros

que construíram a cidade e estão ali legitimamente. É o Brasil... E eu fiquei

orgulhoso disso, fiquei satisfeito. É isto. Eles estão com a razão, eu é que

estava errado. Eles tomaram conta daquilo que não foi concebido para eles.

Então vi que Brasília tem raízes brasileiras, reais, não é uma flor de estufa

como poderia ser, Brasília está funcionando e vi funcionar cada vez mais. Na

verdade, o sonho foi menor que a realidade. A realidade foi maior, mais bela,

eu fiquei satisfeito, me senti orgulhoso de ter contribuído. (IPHAN, 2016, p.

12)30

Em 1981 foi criado o Grupo de Trabalho para Preservação do Patrimônio Histórico e

Cultural de Brasília31

, no âmbito do complexo institucional Sphan/Pró-Memória, primeira

ação governamental específica para tratar da preservação do patrimônio cultural da cidade de

forma institucional e tecnicamente sistematizada, com o objetivo de dar uma abordagem mais

ampla nos campos conceitual, técnico e institucional à preservação do patrimônio cultural de

Brasília, sobretudo no que tange ao seu patrimônio edificado, atividade, segundo o próprio

Iphan, fundada em ações pontuais e descontínuas. O projeto foi instituído como um processo

integrado e compartilhado, envolvendo diferentes níveis governamentais. Os estudos do

grupo, de acordo com Carlos Madson, Superintendente do Iphan-DF à época, tiveram como

resultado inúmeras iniciativas do poder público e alicerçaram a base do ideário

preservacionista do patrimônio cultural da cidade.

Em 1987 foi instituído outro grupo de trabalho, o GT-Brasília, com o objetivo buscar

outras perspectivas sobre a construção da história e da memória da cidade e compreender sua

importância como patrimônio. Como resultado, foi apresentado o documento “Anteprojeto de

Legislação para Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural, Natural e Urbano do Distrito

Federal”32

, concluindo que a preservação da identidade da nova capital extravasava o plano de

seu conjunto urbanístico e que sua conceituação não estaria completa se não se estendesse aos

elementos que representavam os acampamentos e seus moradores, até então marginalizados e

30

COSTA, Lucio (1957/2014). Brasília, cidade que inventei: Relatório do Plano Piloto de Brasília. Brasília:

Iphan, 2014, p. 12.

31 BRASIL, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Superintendência do Iphan no Distrito

Federal. GT Brasília: memórias da preservação do patrimônio cultural do Distrito Federal. Organização

Carlos Madson Reis, Sandra Bernardes Ribeiro e Thiago Pereira Perpétuo; texto Briane Panitz Bicca et al. –

Brasília-DF, 2016. 32

BRASILIA. Superintendência do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito Federal. Roteiro dos

acampamentos pioneiros no Distrito Federal. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Superintendência do Iphan no Distrito Federal; organização Carlos Madson Reis, Sandra Bernardes Ribeiro;

texto José Mauro de Barros Gabriel. – Brasília-DF, 2016.

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39

ofuscados. O documento, além de relacionar os primeiros acampamentos que surgiram na

cidade e hoje são considerados de interesse histórico e cultural, estabelece suas poligonais e

os parâmetros gerais de preservação.

Em 1989, mais um grupo de trabalho foi nomeado pelo Governo do Distrito Federal

(GDF), dessa vez denominado Comissão Técnica, com a finalidade de propor uma nova

legislação acerca da “Política de Preservação do Patrimônio Arquitetônico, Urbanístico e

Paisagístico do Distrito Federal”33

. A Comissão realizou a identificação e classificação do

patrimônio considerando como valor simbólico para a memória histórica da construção de

Brasília, apontando como relevantes os "Acampamentos Pioneiros” e algumas edificações que

tinham sido construídas para dar apoio à construção da cidade, entre elas, o Catetinho, a Vila

Planalto, o Conjunto do antigo Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira, a Vila

Metropolitana, os Acampamentos Saturnino Brito, do Torto e da Velhacap, além de outras

edificações e conjuntos considerados modelos arquitetônicos simbólicos da fase de construção

de Brasília.

Mas as propostas, tanto do GT-Brasília de 1987, quanto da Comissão Técnica de

1989, não prosperaram, e a responsabilidade de elaboração de uma Lei específica para

apresentar uma política de preservação para Brasília foi passada para a Câmara Legislativa,

que elaborou a Lei Orgânica do Distrito Federal, alterando os paradigmas acerca da

preservação da memória da cidade e do seu patrimônio. As reivindicações pelo direito à

moradia e à memória histórica e afetiva da cidade e de seu entorno contou com a mobilização

da população, o que foi fundamental para a apreciação do projeto e tombamento de alguns

exemplares considerados testemunhos da construção da Capital.

Ficou a critério do Iphan-DF34

o levantamento dos remanescentes históricos

considerados os mais significativos exemplares conservados de edificações e núcleos de

moradias originados dos acampamentos, fornecendo informações sobre os elementos

urbanísticos ou edilícios, histórico, tipologia e localização das construções, bem como dados

relativos à legislação de preservação. Embora esses núcleos encontrem-se, em sua maioria,

descaracterizados em diferentes graus, por degradações causadas pelo tempo e outras

intempéries, o órgão ressalta os traçados urbanos orgânicos que ainda fazem referência à

forma original, considerando a feição original rústica de madeira. Entre eles, merecem

destaque:

33

Idem.

34 Idem.

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40

Palácio do Catetinho ou Palácio de Tábuas;

Conjunto urbano da Vila Planalto;

Paróquia Nossa Senhora do Rosário de Pompeia (também conhecida como

Igrejinha da Vila Planalto);

Fazendinha, também na Vila Planalto (1957);

Acampamento da Candangolândia;

Igreja São José Operário, pequena capela localizada na Candangolândia;

Núcleo Bandeirante (1956), conhecido como Cidade Livre por ter isenção de

impostos;

Vila Metropolitana, atualmente um bairro do Núcleo Bandeirante;

Centro de Ensino Fundamental - CEF Metropolitana (1958), uma das primeiras

instituições de ensino erguidas pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital -

NOVACAP e ainda com a estrutura da época da construção preservada;

Capela Nossa Senhora de Aparecida (Capelinha Metropolitana);

Vila Paranoá (1957);

Igreja S. Geraldo (1957), construída na Vila Paranoá;

Vila Telebrasília (1956), acampamento de funcionários da construtora Camargo

Correa, localizada à beira do Lago Paranoá, no final da Asa Sul, fazendo parte do

Conjunto Urbanístico de Brasília.

A CONSTRUÇÃO DE MITOS

Brasília foi concebida permeada de mitos, muitos deles alimentados antes mesmo de

se pensar na sua construção, destacando-se, entre eles: a localização em uma região com

suposta existência de ouro; associações a personagens ou tempos históricos; sonhos

proféticos; ou mesmo versões anedóticas propositadamente criadas e que JK nunca se

preocupou em desfazer. Algumas estórias continuam sendo contadas e alimentadas. Seguem

algumas delas.

Goiás se insere nos "mitos fundadores do Brasil" por estar relacionado a crenças de

existência de jazidas auríferas. Os mitos da Ilha Brasil e do Lago Dourado, por exemplo,

atribuíam a existência de ouro em abundância no Lago Xarães, localizado entre os rios Paraná

e Tocantins. O mito do lago dourado, de acordo com Vidal, seria uma versão lusitana do mito

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41

hispânico do Eldorado, alimentado desde o início do desbravamento e da colonização das

Américas, quando exploradores das terras além-mar ouviram relatos do El Dorado. A questão

também é afirmada por outros historiadores, mas a existência de minas em abundância na

região nunca foi comprovada. As lendas acabaram inspirando expedições desbravadoras em

locais inexplorados no Brasil, estendendo-se à região de Goiás e onde hoje se localiza o

Distrito Federal.

Outra comparação é a de que JK seria a reencarnação do faraó egípcio Akhenaton

(1352-1336 a.C.), que viveu há 3.600 anos, casado com Nefertiti e supostamente pai de

Tutancâmon. Segundo o livro “Brasília Secreta, Enigma do Antigo Egito” dos professores

Iara Kern e Ernani Figueiras Pimentel35

, o faraó Akhenaton também teria construído, em

menos de quatro anos de trabalhos ininterruptos, uma cidade monumental e de grande

importância para a história politico-administrativa do Egito. Assim como Brasília, a cidade

representou uma inovação em termos de engenharia e arquitetura no mundo, com a

substituição das técnicas tradicionais de construção de edifícios. O traçado e a região aonde a

cidade foi erguida também era semelhante à geografia e à arquitetura de Brasília, estando

localizada no centro geográfico do país. A planta também tinha semelhanças: em forma de

pássaro com as asas abertas, distribuídas em asas norte e sul, localizada às margens de um

lago artificial (provavelmente por causa do intenso calor e da baixa umidade do ar) e voltada

para o leste. Como Brasília, a cidade era setorizada, concentrando templos e prédios

administrativos longe da área residencial. É notória em Brasília, assim como no Egito Antigo,

a quantidade de construções em formas piramidais ou traçados em forma de triângulo, como a

Ermida Dom Bosco, o Teatro Nacional, o Templo da Legião da Boa Vontade, o edifício da

CEB (hoje demolido), a Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, o posicionamento da praça dos

três poderes e o próprio Memorial JK, onde estão seus restos mortais. Juscelino e Akhenaton

morreram 16 anos após a inauguração das cidades que criaram, ambos sob suspeita de

assassinato. Segundo interpretações espirituais e esotéricas, o destino da cidade de Brasília

seria o de resgatar para o futuro da humanidade o mesmo que Akhetaton projetou para sua

cidade no passado.

O sonho profético do santo italiano D. Bosco36

fala de uma viagem que o sacerdote

católico teria feito, arrebatado por anjos, à América do Sul – continente que jamais visitou,

35

KERN, Iara e. PIMENTEL, Ernani Figueiras. Brasília Secreta – Enigma do Antigo Egito. Editora Pórtico –

Brasília, 2000.

36 LEMOYNE. Memórias Biográficas de São João Bosco, 1833 - Um sonho profético de Dom Bosco.

Universidade Católica de Brasília. Brasília, 16 ago. 2013. Disponível em:

<http://www.ucb.br/Noticias/2/5102/UmSonhoProfeticoDeDomBosco/>. Acesso em: 14 jul. 2017.

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42

conforme relatado e registrado por seu colega, padre Lemoyne (1833). A descrição foi

interpretada como uma visão de Brasília:

Por muitas milhas, percorremos uma enorme floresta virgem e inexplorada.

Não só descortinava, ao longo das Cordilheiras, mas via até as cadeias de

montanhas isoladas existentes naquelas planícies imensuráveis e as

contemplava em todos os seus menores acidentes [...] do Brasil, da Bolívia,

até os últimos confins. Eu via as entranhas da montanha e o fundo das

planícies. Tinha sob os olhos as riquezas incomparáveis desses países, as

quais um dia serão descobertas. Via numerosas minas de metais preciosos e

de carvão fóssil, depósitos de petróleo abundantes que jamais já se viram em

outros lugares. Mas isso não era tudo. Entre os paralelos 15 e 20 graus, havia

um leito muito largo e muito extenso, que partia de um ponto onde se

formava um lago. Então uma voz disse repetidamente: "Quando escavarem

as minas escondidas no meio destes montes, aparecerá aqui a Grande

Civilização, a Terra Prometida, onde correrá leite e mel. Será uma riqueza

inconcebível. E essas coisas acontecerão na terceira geração." (LEMOYNE,

1833).37

Coincidência ou não, a cidade foi construída dentro do intervalo de coordenadas

geográficas mencionadas no sonho de Dom Bosco. Considerando, mesmo que forçosamente,

a data em que o profeta faleceu (1888) e um período de vinte anos para cada geração, a

década de 50 corresponderia à da terceira geração. Esse foi o prazo calculado e considerado

válido para que as premonições coincidissem com a data de inauguração da cidade,

reforçando o mito.

O dia 21 de abril remete à data do descobrimento do Brasil, sendo também lembrada

em homenagem ao inconfidente Tiradentes, símbolo do primeiro movimento de

independência política do país, morto no mesmo dia. Os inconfidentes teriam sido os

primeiros a cogitar a transferência da capital, só que para a cidade mineira de São João Del

Rey, em Minas Gerais, tendo, inclusive, sugerido o nome de "Brasília". A relação da cidade

com a Inconfidência Mineira foi lembrada no discurso de JK na sessão solene de instalação do

governo no Palácio do Planalto, na data da inauguração da capital, sem mesmo estar

concluída, no dia 21 de abril.

Tiradentes também foi enforcado no dia 21 de abril, acusado de traição à Coroa, dia

em que soou o sino da Capela do Padre Faria, na cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais.

Conta-se uma lenda que, quando se tratava de uma condenação por traição à Coroa, os sinos

das igrejas não poderiam tocar na hora da execução, mas no momento do enforcamento o sino

da igreja soou cinco badaladas.

Este sino só teria ecoado em duas outras ocasiões ao longo de três séculos, sempre

no dia 21 de abril: na morte de Tiradentes, em 1792, em 1985, na morte do presidente

37

Idem.

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43

Tancredo Neves, primeiro presidente civil eleito após o regime militar e filho de São João Del

Rey. A data, então, é simbólica, planejada a partir da relação de vínculos históricos:

descobrimento do Brasil, inconfidência mineira e aniversário de Brasília.

Outra versão, dessa vez considerada anedótica por Vidal, por parecer mais uma lenda

do que realidade, teria sido um mito supostamente criado pelo próprio JK, uma decisão que

não estava, inicialmente, entre os trinta pontos do seu programa eleitoral. Refere-se ao

cumprimento de uma promessa feita antes mesmo de se pensar em construir a Brasília, um

compromisso firmado em campanha, ao responder ao questionamento de um eleitor. E consta

das memórias de JK:

Tudo teve início na cidade de Jataí, em Goiás, a 4 de abril de 1955, durante

minha campanha como candidato à Presidência da República [...]. No

discurso que ali pronunciei, referindo-me à agitação política que inquietava o

Brasil e contra a qual só via um remédio eficaz - o respeito integral às leis -,

declarei que, se eleito, cumpriria rigorosamente a Constituição [...]. Foi

nesse momento que uma voz forte se impôs, para me interpelar: ‘O senhor

disse que, se eleito, irá cumprir rigorosamente a constituição. Desejo saber,

então, se pretende pôr em prática o dispositivo da Carta-Magna que

determina, nas suas Disposições Transitórias, a mudança da capital federal

para o Planalto Central’. Procurei identificar o interpelante. Era um dos

ouvintes, Antônio Carvalho Soares - vulgo Toniquinho - que se encontrava

bem perto do palanque. A pergunta era embaraçosa. Já possuía meu

Programa de Metas e, em nenhuma parte dele, existia qualquer referência

àquele problema. Respondi, contudo, como me cabia fazê-lo na ocasião:

‘Acabo de prometer que cumprirei, na íntegra, a Constituição e não vejo

razão por que esse dispositivo seja ignorado. Se for eleito, construirei a nova

capital e farei a mudança da sede do governo’. Essa afirmação provocou um

delírio de aplausos. Desde muito, os goianos acalentavam aquele sonho e,

pela primeira vez, ouviram um candidato à Presidência da República

assumir, em público, tão solene compromisso. (KUBITSCHEK, 1975, p. 7-

8)38

O historiador arrisca duas hipóteses: JK queria "legitimar a construção de Brasília na

história do Brasil e no programa do nacionalismo desenvolvimentista" (VIDAL, 2009, p.

243); ou desejava o apoio da população, por isso ter "envolvido a construção da nova capital

em um casulo mitológico que a torna impermeável a qualquer ataque e que faz dela o ponto

de convergência de todas as esperanças brasileiras e de todas as aspirações nacionais"

(VIDAL, 2009, p. 243). Assim, não se contentando com a racionalidade técnica da

construção, os mitos teriam sido alimentados por Juscelino Kubitscheck como uma forma de

reafirmar uma predestinação, a esperança de uma vida melhor, convergindo com as

esperanças e ambições dos brasileiros, conforme afirma o historiador Laurent Vidal.

38

KUBITSCHEK, Juscelino. Por que construí Brasília. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1975, p. 7-8.

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44

Mas a cidade também foi alvo de severas críticas. O sociólogo Gilberto Freyre, em

196039

, embora reconhecesse que a cidade se configurava como uma obra prima, "uma joia

sob o sol tropical" (FREYRE, 2003, p. 244), de formas únicas que, de tão leves, davam a

impressão de estar flutuando, questionou a falta de especialistas em ciências sociais na

construção do projeto. Sua falta de funcionalidade, principalmente pelo clima quente durante

o dia em algumas épocas do ano, proporcionava uma consequente invasão de luz, tornando-a

extremamente desconfortável. Os edifícios de apartamentos não proporcionariam intimidade

nem isolamento, comparando as acomodações para empregados da casa com celas de prisão.

Preocupados com a estética pura, segundo Freyre, os arquitetos de Brasília teriam se

descuidado de objetivos funcionais, esquecendo-se de deixar, por exemplo, espaço para

escolas. Questionou, também, a falta de lazer e de diversões criativas, que vinham sendo

estudadas por sociólogos, higienistas e urbanistas. Segundo ele, a versão de uma cidade

ultramoderna, uma das missões de Brasília, com espaços suficientes para expressões criativas

na arte, religião, esporte e gastronomia, mas a aparente abundância de espaços, foi utilizada

de forma "convencional, limitada e antiquada" (FREYRE, 2003, p. 35). Além disso, censurou

a construção de uma cidade nova para atender ao que ele chamou de uma "ordem burguesa

antiquada"40. Da mesma forma, a historiadora francesa Françoise Choay41, especialista em

estudos e teorias sobre arquitetura e urbanismo, em 1959, afirmava ser Brasília um projeto de

cidade herdada da Antiguidade com satisfatória simplicidade, mas interrogava se estaria,

realmente, adaptada à vida moderna. Questionava as distâncias quilométricas desintegradoras

em relação à dimensão humana e o rigor do espaço urbano ao separar completamente os

locais de moradia e de trabalho, mesmo com o conforto dos automóveis à disposição. Mas

registrava sua admiração com a concentração da Praça dos Três Poderes (Legislativo,

Executivo e Judiciário) que, a seu ver, deixava o visitante impressionado pela maestria na

organização volumétrica concebida por Lúcio Costa no triângulo onde se reúnem o Palácio do

Planalto, a Câmara, o Senado e o Supremo Tribunal Federal. As construções baixas, de três

pavimentos, deixavam o horizonte desimpedido e especialmente amplo - apesar da altura do

edifício do Congresso Nacional ser construído em duas colunas de edifícios altos, mas

relativamente estreitos se vistos do ângulo do eixo monumental, o que a autora chamou de

39

THE REPORTER. Gilberto Freyre fala de Brasília. N. 7, V. 22. Nova York, 31/03/1960, pp. 31-32 /. Visão,

São Paulo, 8 abr. 1960, p. 32-35.

40 Idem.

41 CHOAY, Françoise. Inauguração de Brasília. 1959. In L'OEIL. N. 59, nov. 1959. P. 76-83. Trad.

Dorothée de Bruchrard. Compilação CRONOLOGIA DO PENSAMENTO URBANÍSTICO. Disponível em:

<http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1257>. Acesso em: 2 jul. 2018.

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45

"contraponto da horizontalidade" (CHOAY, 1959)42 (figura 4). A leveza do conjunto dos

edifícios tem sua plenitude no contraste, lembrando uma "estela primitiva". Embora, pondera

a autora, tais composições tenham sido violentamente atacadas, seja pela falta de

funcionalidade ou por certa gratuidade, a história da arquitetura não foi, ao longo dos séculos,

sempre funcional. Os cálculos feitos para construção de Brasília, para os quais Niemeyer

contou com a colaboração do engenheiro Joaquim Cardozo43, deram liberdade para a criação

de elementos que constituem a expressão da vontade do arquiteto. Esquecem os críticos

facilmente, afirma Choay, que a arquitetura é um meio de expressão como as demais artes

plásticas. Brasília, então, se resumia numa visão de mundo de Niemeyer mais melhorada e

resolvida.

Figura 4 - Congresso Nacional, na Praça dos Três poderes.

Fotografia: Meiriluce Santos

42

Idem.

43 Joaquim Cardozo foi o engenheiro calculista responsável por realizar projetos complexos e desafiadores como

os arcos, colunas, curvas e cúpulas arquitetônicas projetados por Niemeyer. Sua habilidade em engenharia de

estruturas ao concretizar formas arquitetônicas inusitadas é considerada notável, algumas delas representam até

hoje desafios para a compreensão e raciocínio lógico. Em Brasília, seu trabalho se destaca no Palácio do

Planalto, Palácio da Alvorada, Catedral Metropolitana e Igrejinha Nossa Senhora de Fátima. In: REBELLO,

Yopanan; LEITE, Maria Amélia D’Azevedo. O engenheiro das curvas de Brasília. Arquitetura e Urbanismo,

n, 165, dez. 2007. Disponível em: <http://www.revistaau.com.br/arquitetura-urbanismo/165/ artigo67588-4.asp

.>. Acesso em: 06 dez. 2018.

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46

A ARTE COMO PREMISSA

A idealização de Brasília segundo os projetos de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, sem

dúvida, reuniu dois ícones da arquitetura moderna. Amigos, desenvolveram diversos trabalhos

em parceria e se destacaram no contexto artístico e cultural brasileiro nas décadas de 1930 e

1940. A encomenda de uma nova sede para o Ministério da Educação e Saúde, tendo como

convidado para elaboração do projeto o arquiteto francês Le Corbusier, deu início à

construção da primeira obra modernista do país, relata Marcus de Lontra Costa (2017)44

. Sob

o comando de Lúcio Costa, diversos jovens arquitetos foram convidados a participar do

projeto, destacando-se, entre eles, Oscar Niemeyer. Essa geração de intelectuais, à qual Costa

se refere como "uma sofisticada nata" (COSTA, 2017, p. 9), foi responsável por alterações

fundamentais no projeto do edifício do Ministério da Saúde, influenciando alguns aspectos

formais e conceituais que caracterizaram a interferência brasileira na arquitetura mundial.

Posteriormente, viriam a influenciar, também, o movimento modernista internacional. Coube

a essa primeira geração de arquitetos brasileiros, em especial a Oscar Niemeyer, a superação e

o enfrentamento dicotomia nacional versus a internacional, destaca Costa.

Com diversas obras arquitetônicas espalhadas no mundo inteiro - Estados Unidos,

França, Espanha, África, Argélia, Itália, Alemanha, Inglaterra, entre outros, Niemeyer

conseguiu destaque e respeito internacional. Segundo Costa, sua genialidade, ousadia e

criatividade impressionam:

Ao incorporar soluções plásticas determinadas pela plasticidade do concreto

armado, a ele incorporando uma sinuosidade repleta de dobras e curvas, de

surpresas e encantamentos, Niemeyer dialoga com o barroco colonial

brasileiro, mas também com o universo onírico e surpreendente do

surrealismo e de várias vanguardas negativas que confrontam o formalismo

positivista do modernismo internacional. (COSTA, 2017, p. 9)

A construção de Brasília lhe confere destaque num cenário singular por reunir várias

obras do arquiteto que ousou desafiar a essencialidade da Capital: "vocês podem gostar ou

não da arquitetura de Brasília, mas vocês nunca viram coisa igual" (NIEMEYER apud

COSTA, 2017, p. 10). E destaca, ainda, o autor:

Com a construção da nova capital o Brasil constrói ícones definidores da

identidade nacional, e estas formas passam a ser incorporadas, intelectual e

afetivamente, por todos os extratos da sociedade brasileira. Nesse instante,

Niemeyer supera os limites de sua categoria profissional. Ele passa a ser um

44

COSTA, Marcus de Lontra. Oscar Niemeyer (1907 - 2012): territórios da criação. Rio de Janeiro:

Pinakotheke, 2017. 124 p.

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47

construtor de formas e imagens com as quais o povo brasileiro se vê e se

identifica, e a presença de artistas plásticos em todas as suas obras esforça o

espírito barroco de integração das artes, fazendo de cada projeto

arquitetônico um vibrante laboratório de experiências visuais. (COSTA,

2017, P. 10)

A arte, portanto, foi uma premissa essencial para a futura Capital. Ao receber a

incumbência de construir os monumentos da cidade como um desafio, Niemeyer viu a

oportunidade de usar seu conhecimento e criar edifícios e espaços de uma forma que

conferisse, ao mesmo tempo, grandeza e leveza - um novo conceito entre o concreto e o

espaço, a distinção entre a estética e a estática - segundo ele mesmo afirmou:

Foi em Brasília, nos palácios da nossa Capital, que a forma plástica mais me

preocupou, desejo de encontrar nova solução estrutural que os caracterizasse.

São as colunas recurvadas, acabando em ponta, que os fazem leves e

vazados como que apenas tocando o solo. Na concepção desses palácios,

preocupou-me também a atmosfera que dariam à Praça dos Três Poderes.

Não a pretendia fria e técnica, com a pureza clássica, dura, já esperada das

linhas retas. Desejava vê-la, ao contrário, plena de formas, sonho e poesia.

(NIEMEYER, 2006, p. 10)

As colunas representam tanto a marca registrada de Niemeyer que Brenda Oliveira45

,

na revista ELEMENTARQ46

, ao abordar, em uma de suas edições, o elemento do pilar como

item básico e essencial na arquitetura, deu destaque à forma como os projetos modernistas de

Niemeyer fizeram uso dessa estrutura como elemento estético e gerador da própria forma e

conceito, demonstrando como pode ter seu uso como elemento imprescindível e, ao mesmo

tempo, ser explorado como componente estético inovador. As obras de Niemeyer distribuídas

em Brasília revelam, sem dúvida, sua paixão pelos efeitos visuais possíveis proporcionados

pelos pilares e a capacidade do arquiteto de utilizá-lo como componente plástico.

A cidade obteve, também, reconhecimento de valor em virtude do planejamento de

espaços e dos edifícios de beleza monumental e incomparável. A esse respeito, Vidal afirma

que Lúcio Costa "desenhou Brasília como uma obra de arte" (VIDAL, 2009, p. 226). Na

definição do arquiteto Oscar Niemeyer, Brasília representaria uma "síntese das artes"

(VIDAL, 2009, p. 226), concluindo: "E arquitetura é isso – invenção” (NIEMEYER, 2001)47

.

45 OLIVEIRA, Brenda. Os pilares de Brasília na visão de Oscar Niemeyer. Revista Elementarq. 2016.

Disponível em: <https://issuu.com/brendaoliveira2/docs/revista_bc_final>. Acesso em: 6 ago. 2017.

46 A publicação busca apresentar elementos arquitetônicos de relevância nos diferentes aspectos presentes como

elemento central - ou de destaque - em obras icônicas de Niemeyer.. A edição apresentada tem como tema central

o pilar, parte estrutural imprescindível em qualquer obra e utilizado por Niemeyer como elemento estético e

gerador de formas e conceitos.

47BBC BRASIL (Brasil) (Ed.). Niemeyer fala sobre Brasília 41 anos depois de sua criação: Oscar Niemeyer

aos 93 anos: 'Sou um radical'. 20 abr. 2001. Disponível em:

<http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2001/010420_niemeyer.shtml>. Acesso em: 05 jul. 2017.

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48

Durante O Congresso Internacional Extraordinário de Críticos de Arte que ocorreu

em 1959, em Brasília, JK defendeu a Capital como uma "cidade nova e a síntese ou a

integração das artes" (KUBITSCHEK, 1959, p. 2) 48

e, respondendo a críticas que circulavam

acerca de construção da Capital, incitou: "Se Brasília foi uma imprudência, viva a

imprudência" (KUBITSCHEK, 1959, p. 2) 49

. Sua interpretação, considerando o papel da arte

na civilização, era de que Brasília entrava no cenário das artes majestosa, uma capital diante

de uma nova civilização, como uma grande perspectiva da arquitetura moderna ainda

desconhecida, a mais audaciosa concebida pelo Ocidente, onde o lirismo renasceu e floresceu

diante do mundo heleno. Brasília, finaliza JK, "erguer-se-á sob o signo da arte - signo sob que

Brasília nasceu"(KUBITSCHEK, 1959, p. 2)50

. Mais especificamente, JK se refere aos

espaços ocupados por obras de artistas que marcaram o movimento modernista brasileiro.

Destacam-se, entre eles:

Roberto Burle Marx

Especialista em paisagismo e jardins, o artista teve destaque no movimento

modernista ao desenvolver projetos combinando expressão plástica com o uso de plantas de

espécies nativas brasileiras ao criar jardins, praças, parques e espaços verdes contornando

edifícios e em seus interiores. Na arquitetura de Brasília, seus trabalhos são reconhecidos

como de valor patrimonial, estando presentes em locais como: Superquadra 308 Sul e

Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, Palácio do Itamaraty, Palácio do Jaburu, Ministério da

Justiça, Praça dos Cristais - no Setor Militar Urbano, em frente ao Quartel General do

Exército -, Tribunal de Contas da União, Teatro Nacional e Parque da Cidade.

Athos Bulcão

Conhecido como “artista de Brasília”, foi responsável por mais de 50 trabalhos

espalhados pela cidade, tendo como produção marcante a azulejaria, além de painéis diversos.

Suas obras, todas tombadas pelo Iphan, são encontradas em fachadas de edifícios, órgãos

públicos, escolas, parques, hospitais, aeroporto e em residências particulares. É considerado

um dos únicos artistas brasileiros que conseguiu conciliar profundamente arte e arquitetura,

48 KUBITSCHECK, Juscelino. Discurso Presidencial - Congresso Internacional de Críticos de Arte. Revista

Brasília, nº 33, ano 3, p. 2-3, set. 1959. Disponível em:<http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/506990>.

Acesso em: 5 jul. 2017.

49 Idem.

50 Idem.

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49

preenchendo espaços com a leveza e dinamismo dos seus azulejos coloridos. São registrados,

também, trabalhos em telas representando a vida de Maria, paramentos, castiçais, cálices e os

objetos litúrgicos, na Catedral de Brasília. A fachada externa em azulejaria da Igrejinha Nossa

Senhora de Fátima, além de ser o primeiro trabalho do artista, é o único figurativo, com

pombas e estrelas.

Alfredo Ceschiatti

Professor de escultura e desenho na Universidade de Brasília, o artista mineiro

destacou-se, sobretudo, por retratar figuras femininas com formas curvilíneas e sensuais. Com

obras trabalhadas principalmente em bronze, foi responsável por várias esculturas espalhadas

pelo país, como no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no Memorial da América

Latina e na Praça da Sé, em São Paulo. Internacionalmente, tem reabalhos no conjunto

residencial projetado por Oscar Niemeyer, em Berlim e na Embaixada do Brasil em Moscou.

Em Brasília, suas obras adornam jardins, espelhos d'água e interiores de igrejas e palácios,

como: As banhistas, no espelho d'água do Palácio da Alvorada, na Praça dos Três Poderes;

As gêmeas, na cobertura do Palácio do Itamaraty (ou Palácio dos Arcos); os quatro

evangelistas na entrada da Catedral e os anjos suspensos no seu interior; A Contorcionista, no

foyer da Sala Villa-Lobos do Teatro Nacional; A Justiça, em frente ao prédio do Supremo

Tribunal Federal (granito); e Anjo, na Câmara dos Deputados (bronze dourado).

Di Cavalcanti

Di Cavalcanti, apelido de Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo,

nasceu no Rio de Janeiro. Pintor destacado no meio artístico, principalmente por suas

representações de figuras mulatas, teve influente participação no cenário do movimento

modernista quando, em 1922, ajudou na idealização e organização da Semana de Arte

Moderna, em São Paulo. Na década de 30, participou de exposições coletivas e salões

nacionais e internacionais, mas por sucessivas prisões de caráter político, se exilou na Europa,

onde ficou por cinco anos até retornar ao Brasil. Em Brasília, é autor de três obras concebidas

especialmente em consonância com a arquitetura da cidade: a tapeçaria Músicos, no Palácio

da Alvorada; o painel Candangos, no Salão Verde da Câmara dos Deputados; e Os passos da

Paixão de Cristo, na Catedral Metropolitana.

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50

Alfredo Volpi

Artista ítalo-brasileiro, considerado um dos mais destacados pintores da Segunda

Geração da Arte Moderna Brasileira, tendo recebido vários prêmios nacional e

internacionalmente. Seus trabalhos receberam influência de artistas do movimento

impressionista clássico, como Cézanne, Giotto, Ucello, mas acabou desenvolvendo sua

linguagem própria, com grande predominância de figuras geométricas e figurativas,

destacando as bandeirolas coloridas e os casarios.

Em Brasília, Volpi foi responsável pelos afrescos da Igrejinha Nossa Senhora de

Fátima, localizada nas entrequadras 307/308 Sul (1958), e pelo painel A profecia de Dom

Bosco (1966), no Palácio do Itamaraty. Suas obras têm grande valor no mercado de arte e

vêm sendo bastante disputadas no mercado europeu.

Na década de 60, logo após a inauguração de Brasília, a pintura de Volpi, que

adornava as paredes internas da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, foi destruída em

circunstâncias ainda não esclarecidas, restando poucas imagens de referência da obra.

A biografia do artista e outros dados referentes à obra perdida são tratadas

especialmente num capítulo à parte deste trabalho.

Bruno Giorgi

Escultor com posicionamento marcante no movimento modernista brasileiro,

destacou-se, na década de 50, com obras que valorizavam linhas curvas e formas delgadas e

geométricas, utilizando o bronze e o mármore. Em Brasília, foi responsável pelas obras Os

Guerreiros, popularmente conhecida como Os Candangos, na praça dos três poderes, e o

Meteoro, no espelho d'água do Ministério das Relações Exteriores.

Oscar Niemeyer

Ao receber a incumbência de construir os monumentos da cidade como um desafio,

Niemeyer viu a oportunidade de usar seu conhecimento e criar edifícios e espaços de uma

forma que conferisse, ao mesmo tempo, grandeza e leveza - um novo conceito entre o

concreto e o espaço, a distinção entre a estética e a estática, evidenciando que a arte foi uma

premissa essencial na construção de Brasília.

Construindo uma série de edifícios básicos e, ao mesmo tempo, de cunho

monumental, político, religioso ou residencial, Niemeyer conseguiu dialogar, ao mesmo

tempo, leveza e monumentalidade. É nesse aspecto que a ELEMENTARQ (2016, p. 12)

refere a maestria do arquiteto.

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51

O Palácio da Alvorada (figura 5), exemplifica, é um conjunto que apresenta uma

volumetria que levita sobre o gramado e se projeta no espelho d'água - outro elemento

bastante utilizado pelo arquiteto - parecendo se desculpar com a vegetação ressequida do

cerrado no seu entorno.

Figura 5 - Palácio da Alvorada. No espelho d'água, As Iaras, de Alfredo Ceschiatti

Fonte: https://ultimaparada.wordpress.com/2013/01/19/palacio-do-alvorada-abre-a-

visitacao-todos-os-dias-em-janeiro/ 51

Reconhecido como uma das obras primas da arquitetura contemporânea no mundo, o

monumento exibe colunas decorativas que igualmente dão a impressão que o edifício toca no

chão, fornecendo um jogo de sombra e luz impressionantes. André Malraux (1901-1976)52, ao

visitar o palácio, afirmou que "As colunas do Palácio da Alvorada são as colunas mais belas

produzidas pela humanidade desde a Grécia antiga. Vejo-as e imagino que belas ruínas elas

nos darão no futuro" (MALRAUX, apud COSTA, 2017, p. 13)53

. Vários outros projetos

construídos por Niemeyer apresentam tais características, principalmente a questão da leveza

51

ÚLTIMA PARADA - UM BLOG PARA VIAJAR. Palácio da Alvorada abre à visitação todos os dias, em

janeiro. Disponível em: <https://ultimaparada.wordpress.com/2013/01/19/palacio-do-alvorada-abre-a-visitacao-

todos-os-dias-em-janeiro/.>. Acesso em: 5 ago. 2017.

52 André Malraux foi criador do conceito de “Museu Imaginário".

53 COSTA, Marcus Lontra. Oscar Niemeyer (1907-2012): Territórios da criação. Rio de Janeiro: Pinakotheke,

2017.

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52

dos arcos, da impressão de que o monumento simplesmente repousa, tocando levemente o

chão.

O reconhecimento do conjunto da obra do arquiteto se deu pelo tombamento de

várias das suas criações, tanto no Brasil quanto em Brasília. Algumas delas, construídas em

Brasília, são descritas abaixo:

A Catedral de Brasília nasceu de um esboço simples traçado a lápis. Contrastando

com as linhas retas do Museu da República, a Catedral (figura 6) é formada por um plano de

pilastras em formato circular, com a base mais larga pousada de forma aparentemente

insinuada no solo. Sua visão é de leveza, como se todo o concreto se sustentasse, em

levitação, como mãos postas que se dirigem aos céus.

Figura 6 - Museu da República, em primeiro plano. Ao fundo, a Catedral de Brasília

Autor: Meiriluce Santos

Os vitrais da artista franco-brasileira Marianne Peretti (figura 7) contrastam com o

branco da estrutura em cimento, dando transparência colorida aos espaços entre as pilastras.

Não tem portas aparentes. A parte interna, assim como o acesso, são subterrâneos, evitando a

quebra da harmonia da estrutura com entradas e portas. Dentro, espaços quase vazios são

ocupados pelos anjos de Alfredo Ceschiatti suspensos no ar, sustentados por fios de aço

(figura 8).

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53

Figura 7 - Catedral de Brasília - Vitrais de Marianne Peretti

Autor: Meiriluce Santos

Figura 8 - Catedral de Brasília - Anjos de Ceschiatti

Autor: Meiriluce Santos

Escrevendo como editor da Revista Módulo54

, Niemeyer faz uma síntese do projeto e

das suas intenções ao conceber a Catedral de Brasília55

:

54 Revista Módulo - Fundada por Oscar Niemeyer e dirigida por Joaquim Cardozo, Rodrigo Melo Franco de

Andrade, Rubem Braga, Carlos Leão, Hélio Uchôa, dentre outros, circulou entre as décadas de 1950 e 1960 e

tinha como linha editorial a proposta de apresentar ao mundo obras arquitetônicas de destaque no urbanismo

moderno, assumindo uma postura de defesa às duras críticas que as mesmas vinham recebendo.

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54

Nela estão presentes os exemplos mais preciosos da arquitetura religiosa,

desde as primeiras construções em pedra, e as geniais conquistas da arte

romana e gótica, até a época presente. (....) Procuramos encontrar uma

solução compacta, que se apresentasse externamente - de qualquer ângulo -

com a mesma pureza. Daí a forma circular adotada, que, além de garantir

essa característica, oferece à estrutura uma disposição geométrica, racional e

construtiva. (NIEMEYER, 1958, p. 8)56

.

O Palácio do Itamaraty

Também conhecido como Palácio dos Arcos, o Palácio Itamaraty foi projetado por

Niemeyer e inaugurado em 1970, já com o propósito de apresentar o Brasil aos visitantes

estrangeiros, consolidando-se, desde o início de Brasília, como a sede do Ministério das

Relações Exteriores. De acordo com o site oficial da Instituição57

, o projeto foi fruto de uma

parceria de Niemeyer com o então Embaixador Wladimir Murtinho, que orientou o arquiteto

quanto às necessidades que precisariam ser atendidas para o fim a que se destinava o edifício.

O projeto foi tão bem sucedido que até hoje mantém a mesma concepção original, sem jamais

ter sido necessário fazer qualquer modificação em sua estrutura. Utilizando essencialmente

materiais de origem nacional, seus salões exibem, também excepcionalmente, apenas obras de

artistas nascidos ou naturalizados brasileiros, a exemplo de Athos Bulcão, Alfredo Volpi,

Bruno Giorgi, Frans Krajcberg, Franz Weissmann, Maria Martins, Mary Vieira, Iberê

Camargo, Ione Saldanha, Rubem Valentim, Sérgio de Camargo e Tomie Ohtake.

Chama a atenção o imenso vão livre, localizado no andar térreo do edifício, cujo

cálculo estrutural foi realizado pelo engenheiro Joaquim Cardozo, onde são dispensadas

colunas. O paisagismo, de autoria de Roberto Burle Marx, ganha espaço nas partes internas e

externas do edifício, bem como as obras de Athos Bulcão, que compõem paredes e divisórias.

O Meteoro, de Bruno Giorgi, que fica em frente ao Palácio, tornou-se um símbolo do

Ministério das Relações Exteriores. Apesar das 50 toneladas, a obra parece levemente flutuar

sobre o espelho d'água que circunda o edifício (figura 9).

55

NIEMEYER, Oscar. A catedral de Brasília. Revista Módulo, v.2, n.11, p.8-9, dez.1958

56 Idem.

57 BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Visite o Itamaraty. Disponível em:

<http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/visite-o-itamaraty>. Acesso em: 20 jul. 2017.

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55

Figura 9 - O Meteoro, de Bruno Giorgi, em frente ao Palácio do Itamaraty

(Ministério das Relações Exteriores)

Fotógrafa: Meiriluce Santos

Isolada ao fundo do corredor branco, a figura de Dom Bosco, no interior do Palácio

do Itamaraty, foi pintada por Alfredo Volpi em 1966 e teve uma sala reservada especialmente

para ela por Niemeyer. A pintura confere destaque à imagem de Dom Bosco (figura 10) e

pode ser vista de fora, através das janelas do palácio. Da Esplanada dos Ministérios,

principalmente à noite, a obra oferece ao passante a visão de dois azuis, um iluminado por

dentro das janelas do Palácio, e outro refletindo no espelho d'água que circunda o edifício

(figura 11). A imagem de Dom Bosco retratada por Volpi tem o rosto inspirado em Oscar

Niemeyer, o que muito lisonjeou o arquiteto e, flutuando, abre os braços para o Palácio da

Justiça, que fica do lado oposto, em frente ao Itamaraty, ao mesmo tempo em que parece

abençoar a cidade ou saudar quem passa por ali.

Figura 10 - Volpi e O Sonho de Dom Bosco - Palácio do Itamaraty

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56

Fotógrafa: Meiriluce Santos

Figura 11 - Vista noturna do Palácio do Itamaraty

Pintura de Alfredo Volpi iluminada, refletindo no espelho d'água

Fotógrafa: Meiriluce Santos

Brasília deu certo. 20 anos depois, ao revisitá-la, Lucio Costa concluiu que "O sonho

foi menor que a realidade. A realidade foi maior, mais bela" (COSTA, 1957 in IPHAN, p.

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57

12)58

. Mas preocupado com a preservação do seu projeto urbanístico, Costa sentiu a

necessidade de formular um documento orientando algumas ponderações, que constam no

documento Brasília revisitada59

. Brasília ainda representa o maior conjunto arquitetônico de

caráter excepcional no mundo, ainda mantém o caráter único que lhe conferiu o título de

Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, mas como qualquer metrópole, os

problemas foram se avizinhando com o desenvolvimento, o crescimento populacional e as

inovações. A cidade ainda se depara com desafios inerentes às grandes cidades e sua

preservação, apesar dos esforços dos órgãos responsáveis, ainda conta com políticas frágeis,

que a deixam vulnerável. São várias as dificuldades, como também se exigem adaptações

alinhadas com pensamento mundial acerca dos sítios históricos e cidades-museus. A esse

respeito, o presente trabalho se concentrará em traçar um panorama das condições atuais da

cidade, discorrendo acerca dos problemas aos quais Brasília está sujeita.

BRASÍLIA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL DA HUMANIDADE

A cidade adquiriu significado ímpar no cenário mundial ao ser eleita, pela UNESCO,

como Patrimônio Cultural da Humanidade, considerando seu “Valor Universal Excepcional”.

O título, de acordo com o Grupo Urbanistas por Brasília60

, representou uma inédita e grande

façanha por ter alterado os parâmetros de avaliação da UNESCO, distinguindo-se como

monumento contemporâneo. Até então, o reconhecimento alcançava somente monumentos do

passado como as Pirâmides do Egito, a Grande Muralha da China, a Acrópole de Atenas

(Grécia), o Centro Histórico de Roma (Itália) e o Palácio de Versalhes (França).

58

COSTA, Lucio (1957 / 2014). Brasília, cidade que inventei: Relatório do Plano Piloto de Brasília. Brasília:

Iphan, 2014, p. 12.

59 Lucio Costa apresenta ao Governo de Brasília algumas ponderações acerca de Brasília, considerando que a

cidade já passava por alterações em sua concepção original e que, com pouco mais de 25 anos, a vitalidade

urbana é manifesta e crescente. Com o restabelecimento do poder civil , ou seja, com a queda da ditadura,

Brasília precisa preencher suas áreas ainda desocupadas e se expandir como capital definitiva do país. Iin

COSTA, Lucio. Brasília revisitada 1985/87: Anexo I do Decreto nº 10.829 de 14 de outubro de 1987. In: Diário

Oficial do Distrito Federal, suplemento, ano XII, nº 194,14 de outubro de 1987.

60 Grupo formado por arquitetos e urbanistas que se uniram em defesa do Conjunto Urbanístico, Arquitetônico e

Paisagístico da cidade e se organiza por meio das redes sociais. Ver: GRUPO URBANISTAS POR BRASÍLIA.

Quem somos. Brasília. Disponível em: <https://urbanistasporbrasilia.wordpress.com/about/>. Acesso em: 13

jan. 2015.

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58

Além de discutir as políticas de preservação o Grupo Urbanistas por Brasília,

defende a gestão democrática por meio de processos decisórios fundamentados, transparentes,

isentos e com participação da sociedade. Dessa forma, “Busca promover uma gestão de

Brasília mais responsável, respeitosa e condizente com a sua importância como Patrimônio

Cultural da Humanidade”61. E justifica:

A capital do Brasil foi aceita na lista de Patrimônios Mundiais da UNESCO

devido ao reconhecimento de sua história de construção singular – erguida

em apenas mil dias a partir do esforço de toda a nação para ser a capital de

um país – por seu urbanismo inovador e arquitetura arrojada, marcos do

movimento moderno e de um momento histórico único e marcante. (…).

Provavelmente é algo que jamais se repetirá. (GRUPO URBANISTAS POR

BRASÍLIA, 2015)62

Em 2008, foram relatados problemas preocupantes para preservação do título,

levando os presidentes e membros dos comitês nacionais do Icomos a apresentarem à Unesco

o documento Ameaças à Brasília, Patrimônio Cultural da Humanidade63

, recomendando ao

ICOMOS Internacional a solicitação, ao Governo do Distrito Federal de Relatório detalhado

sobre: a) A adoção das recomendações constantes no documento elaborado pelos consultores

do ICOMOS e da UNESCO; b) Estudo dos impactos diretos e indiretos sobre a área tombada

de Brasília resultantes da adoção da proposta de Plano Diretor de Ordenamento Territorial –

PDOT; e c) Medidas legais e administrativas adotadas para a fiel e integral proteção de

Brasília, Distrito Federal, da área inscrita na Lista de Patrimônio Mundial.

Os problemas mais evidentes da cidade ainda representam um desafio e estão

relacionados à fragilidade de políticas de preservação, crescimento demográfico acelerado,

especulação imobiliária, interferência de interesses políticos e privados e falta de pessoal

especializado.

Pensando nisso, Lucio Costa decidiu, 21 anos após sua inauguração, reorientar a

caracterização do espaço urbano do Plano Piloto de Brasília (COSTA, Brasília Revisitada

61

Conceito definido pelo Grupo Urbanistas por Brasília. Ver GRUPO URBANISTAS POR BRASÍLIA. Quem

somos. Brasília. Disponível em: <https://urbanistasporbrasilia.wordpress.com/about/>. Acesso em: 13 jan. 2015.

62 Idem.

63 ICOMOS BRASIL. Moção apresentada à Unesco pelos presidentes e membros dos comitês nacionais do

Icomos, em 2008, no fórum internacional Icomos Américas, por meio do documento “Ameaças à Brasília,

patrimônio cultural da humanidade. Conselho Internacional de Monumentos e Sítios Icomos/Brasil.

Disponível em:

<http://www.icomos.org.br/outras_noticias/Ameacas_a_Brasilia_Patrimonio_Cultural_da_Humanidade.pdf>.

Acesso em: 30 jan. 2017.

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59

1985-87)64

. Sua preocupação se voltava para o preenchimento inadequado dos espaços que

ainda se encontravam vazios e, mesmo considerando a vitalidade natural do crescimento das

grandes cidades, sugeriu que sua ocupação fosse planejada em consonância com a idealização

original. Lucio Costa apresentou a proposta ao Governo de Brasília com algumas

ponderações, considerando que a cidade já passava por alterações em sua concepção original

e que, com pouco mais de 25 anos, a vitalidade urbana já era manifesta e crescente. Com o

restabelecimento do poder civil, ou seja, com a queda da ditadura, Brasília precisava

preencher suas áreas ainda desocupadas e se expandir como capital definitiva do país.

É evidente que, em algumas circunstâncias, nem o governo local, nem o próprio

Iphan têm como prever e evitar algumas destruições e descaracterizações por serem difíceis

de ser identificadas ou só descobertas depois de feitas, como a retirada de obras de arte

presentes no interior dos edifícios residenciais, comerciais, escolas e templos e, antes do

tombamento da cidade e de alguns edifícios específicos, muita coisa se perdeu ou foi

danificada. Como exemplo, podemos citar a ocorrência de reformas e obras de restauração

executadas em alguns locais fechados, que chegaram a destruir paredes recobertas com obras

de arte, e fachadas totalmente adornadas com azulejos de Athos Bulcão, que foram destruídos

e perfurados para colocação de extintores, telefones públicos, quadros de aviso etc., ou

retirados durante reformas por questões estéticas pessoais ou por desconhecimento da

importância do artista, inclusive do interior de residências particulares. Em alguma medida,

ações emergenciais foram adotadas no sentido de prevenir danos, tombando edifícios

isoladamente, como os projetados por Oscar Niemeyer, cujo tombamento ele mesmo sugeriu,

mas o estatuto do tombamento ainda não conseguiu alcançar todos os monumentos da cidade.

64

COSTA, Lucio. Brasília revisitada 1985-87. In: DISTRITO FEDERAL. Decreto nº 10.829, de 14 de outubro

de 1987. Regulamenta o art. 38 da Lei nº 3.751, de 13 de abril de 1960, no que se refere à preservação da

concepção urbanística de Brasília. Diário Oficial do Distrito Federal, Brasília, ano 12, n. 194, 14 out. 1987.

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60

3 CONTEXTO MODERNISTA - DA ARQUITETURA ÀS ARTES

PLÁSTICAS

Não há como falar na construção de Brasília e da sua importância como Patrimônio

Cultural da Humanidade sem entendê-la no contexto político-cultural do período. A cidade se

concretizou tendo à frente intelectuais e artistas que se destacaram no movimento modernista

e carregavam consigo propostas de trabalho e de criação compatíveis com o pensamento

artístico e cultural que predominavam na época.

De acordo com o antropólogo Giorge Bessoni65, que redigiu o contexto histórico para

justificativa de tombamento das obras de Niemeyer em Brasília, para compreensão da

importância do arquiteto, é necessário percorrer a trilha da história do Brasil no tempo em que

Juscelino Kubitschek foi presidente, implantando uma política caracterizada como

desenvolvimentista e modernizante.

Tendo como marco temporal o período do Estado Novo, Bressoni relata que os

integrantes do movimento brasileiro e o Estado estabeleceram relações de cooperação,

buscando implantar um projeto cultural que afirmasse uma identidade nacional. A arquitetura

moderna que se inseriu no Brasil no século XX foi o vínculo que estabeleceu o projeto

cultural e a política de Estado, resultado da confluência do movimento modernista e da

revolução de 1930, que culminou no Estado Novo de Vargas.

O movimento modernista tinha a preocupação de buscar uma identidade nacional

através da linguagem e do pensamento para expressar uma cultura que fosse "genuinamente

brasileira" (BRESSONI, 2008, p. 06). Essa postura se expressou nas artes plásticas, na

literatura, na música e na arquitetura, rompendo com a influência europeia na produção

cultural nacional para construir um projeto de Nação que resgatasse as origens do povo

brasileiro, o "jeito brasileiro" de ser e de viver. A política de desenvolvimento de JK

preconizava esse nacionalismo e as metas de desenvolvimento econômico e social tinham

como objetivo tirar o Brasil da incômoda condição de país subdesenvolvido. A construção da

nova capital do Brasil - Brasília - seria o ponto de partida para a integração nacional e para o

desenvolvimento regional.

65

BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Processo n° 1.550-T-07: Tombamento do

conjunto de obras do arquiteto Oscar Niemeyer. Brasília: Arquivo da Superintendência do Iphan no Distrito

Federal, 2008.

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61

Entre as décadas de 30 e 60, explica Bressoni, o modernismo brasileiro tornou-se o

principal movimento cultural. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

(SPHAN) foi instituído dentro da estrutura do Ministério da Educação e Saúde Publica, a

partir do anteprojeto que criou a política cultural do Brasil, elaborado por Mário de Andrade e

vários intelectuais modernistas, como Rodrigo Melo Franco de Andrade, Carlos Drummond

de Andrade e o arquiteto-urbanista Lucio Costa, inserindo o pensamento modernista na

estrutura do Estado. A arquitetura desse movimento estava em processo de desenvolvimento e

aceitação por parte das elites políticas, intelectuais e, também, na esfera governamental,

logrando influenciar o aparelho cultural do estado, transformando o estilo arquitetônico

nacional em uma linguagem "indiscutivelmente brasileira e universal" (CAVALCANTI, 2001

apud BRESSONI, 2008, p. 9).

Niemeyer, Lucio Costa e os demais intelectuais modernistas brasileiros

revolucionavam as formas e inovavam, enquanto em todo o mundo as correntes favoráveis a

uma nova arquitetura e a um novo urbanismo se opunham àquelas que propugnavam a

preservação de cidades e monumentos.

No urbanismo, na arquitetura e nas artes, houve um perfeito entrosamento entre os

desenhos de Costa, os prédios de Niemeyer e os artistas convocados para realizar as esculturas

públicas. Em muitos casos, o esboço do urbanista parece antecipar a configuração

arquitetônica dos palácios, concretizando-se, assim, o ideal modernista de fusão entre

arquitetura, urbanismo e artes plásticas. Formou-se um grupo com o que de melhor havia na

área da visualidade brasileira, buscando realizar uma arte total que alterasse, através da

emoção estética, a percepção e a sensibilidade dos habitantes daquela que seria a única cidade

no mundo construída integralmente nos moldes do urbanismo moderno.

Nos palácios de Brasília o arquiteto atingiu uma composição espetacular através da

simplificação e da ousadia nas formas exteriores. Conseguiu, desse modo, criar, a um só

tempo, monumentos e símbolos nacionais. As colunas dos palácios da Alvorada e do

Planalto, assim como as duplas torres e as abóbadas do Congresso, tornaram-se signos do

Estado, do País e do próprio desejo de modernidade brasileira.

A arte moderna teve seu aparecimento oficial no Brasil em 1922, marcada

simbolicamente com a realização da Semana de Arte Moderna, em São Paulo. A importância

do movimento se universalizou, sendo considerado um divisor de águas também na história

da cultura brasileira, reformulando conceitos estéticos até então vigentes que se

transformaram e cresceram, influenciando o público, críticos e artistas tanto na literatura

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62

quanto nas artes plásticas, explica o arquiteto e crítico de arte Flávio de Aquino (1959)66

. O

modernismo marcou um período de nacionalismo eufórico, da liberdade de criação e do

rompimento com o passado, segundo ele, se configurando numa reação contra a arte oficial,

acadêmica e parnasiana, representada pelo alheiamento dos problemas brasileiros por parte da

sociedade e pela necessidade de retomada e mudança do regime cultural, adaptando aos

moldes europeus ainda não consagrados. O número de pintores modernos, com novas

tendências artísticas, crescia, enquanto o academicismo perdia, dia a dia, seu posto de arte

oficial. Tentando se adaptar,

o público sente-se em presença de um cáos [sic] procura julgar de acôrdo

com a sua própria sensibilidade usando vagos conceitos que tem sôbre arte -

antes de tudo sôbre arte moderna - para achar uma norma.[sic] (AQUINO,

1959, p. 18).

Nesse cenário surgem grandes artistas brasileiros, como Anita Malfati, Tarsila do

Amaral e Di Cavalcanti. O contexto modernista é dividido por Aquino (1959, p.19) em duas

gerações. Na primeira, de 30 a 50, o autor destaca figuras como Portinari, Alfredo Volpi,

Guignard, Pancetti e Djanira. Na segunda, dos anos 50 em diante, que alguns autores

caracterizam como pós-modernismo, surgem figuras como Milton Dacosta, Ivan Serpa, Lygia

Clarck, Firmino Saldanha, Iberê Camargo, Athos Bulcão e outros. O ponto comum é constatar

que a maioria dos artistas se mostra convertida ao abstracionismo, seguindo o figurino

europeu difundido pelas bienais paulistas, alguns deles, como Volpi, com arraigadas

tendências figurativas.

Nesse contexto e buscando situar o leitor no problema apresentado nessa pesquisa,

destacamos, abaixo, os três artistas que foram convidados por Juscelino Kubitschek e Oscar

Niemeyer para compor as obras da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, além do próprio

arquiteto Niemeyer.

Roberto Burle Marx (1909-1994)

Nascido em Teresópolis, no Rio de Janeiro, Burle Marx teve seu lugar no movimento

modernista como pintor e pelo gosto com que dominava o paisagismo arquitetônico. Seu

trabalho buscava combinar a arte com a natureza, utilizando plantas nativas brasileiras no

66

AQUINO, Flávio de. Pintura moderna no Brasil. Revista Módulo. Volume 3. Nº 13. Rio de janeiro, abril de

1959.

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63

lugar de pincéis e tintas, transformando jardins, praças e parques em obras de arte. Na

interpretação da museóloga e crítica de arte Lelia Coelho Frota, Burle Marx "entendeu o

paisagismo como forma de manifestação artística e, ainda mais profundamente, como uma

maneira de estar no mundo com os outros" (FROTA, 2009, p. 4)67

. Os trabalhos do artista,

segundo ela, não se limitam à transposição para o terreno/suporte de pinturas utilizando

massas vegetais de cor, nem suas pinturas e desenhos representam uma "usina" secundária.

Associadas, ambas mantém uma parceria onde se surpreende o novo, a curiosidade e a

invenção de um homem questionador das diferentes formas de interpretação acerca do que é

estar num mundo em constante transformação.

Estudioso da flora brasileira, Burle Marx percorreu o país coletando amostras,

cultivando e replantando, transformando em arte organismos vivos da natureza. Suas obras,

muitas premiadas, estão em várias cidades do mundo, como Los Angeles, Chile, Paris, Viena,

Argélia, Veneza, Equador, Paraguai, Washington e Malásia.

Burle Marx era habilidoso também nos pincéis, com tendências aos estilos

expressionista, cubista e abstracionista, dominando com destreza o desenho, a composição e

as cores. Foi assim que ilustrou em naturezas mortas espécimes da flora brasileira, pintou

figurinos de pessoas simples, como empregada doméstica, fuzileiro, prostituta e costureira e

produziu trabalhos utilizando linhas retas e curvas coloridas.

No paisagismo, Brasília se destaca por suas várias obras em edifícios e parques. No

Ministério das Relações exteriores, por exemplo, Burle Marx possui trabalhos no interior e no

exterior do edifício. Fora, sua arte de jardinagem brinca com o reflexo da água, replicando o

céu, o edifício e as plantas no espelho d'água, dando, na interpretação de Lelia Frota, a

"sensação de transitar entre o real e o ilusório" (FROTA, 2009, p. 28). Na Igrejinha Nossa

Senhora de Fátima, Burle Marx foi responsável pela composição dos jardins do entorno da

igreja.

Athos Bulcão (1918 - 2008)

Athos nasceu no Rio de Janeiro, no bairro do Catete, mas cresceu em Teresópolis, na

casa de seus avós. Adulto, abandonou o curso de medicina para se dedicar às artes. Também

aliado ao movimento modernista, se especializou na integração de suas obras ao universo

67

FROTA, Lelia Coelho. Roberto Burle Marx: um brasileiro planetário. Revista Folha, nº 19. Ano XV. São

Paulo, 2009.

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64

arquitetônico, compactuando uma produção artística harmoniosamente íntima com os

arquitetos "os mesmos desejos, as mesmas propostas estéticas, os mesmos princípios

norteadores da criação, ambos baseados nas conquistas da visualidade pós-cubista,

entendendo as suas razões, a sua estruturação" (COSTA, 1987, p. 32)68

. Tal integração, de

acordo com o crítico de arte Marcos Lontra Costa, está, estética e filosoficamente,

comprometida com as propostas dos projetos arquitetônicos, o que acontece

quando o artista, convidado a resolver determinados espaços propostos pelo

arquiteto responsável pela visão de conjunto, de totalidade, o faz de tal

maneira harmônica que a sua obra, mais do que compor, se confunde com o

espaço criado pela arquitetura. O artista poderia ser comparado a um

membro de uma orquestra, operando com competência o seu instrumento

musical, de tal maneira que permita ao maestro reger toda a diversidade

sonora, fazendo chegar ao público algo inteiro, coeso. (COSTA, 1987, p. 2)69

Analisando este aspecto da produção artística, Costa afirma que Athos Bulcão, ao

conceber a obra, não encara o espaço onde está inserida

como um suporte passivo, ou como uma excepcional oportunidade para

investir no gigantismo e destacar individualmente seu produto, Athos

trabalha “em função” desse espaço, a partir da arquitetura, destacando-a,

valorizando-a, criando jogos de ver e pensar que aumentem a sua riqueza e o

seu valor. (COSTA, 1987, p. 2)

Na opinião da arquiteta e professora Neusa Cavalcante:

Como poucos Athos extrai das cores a expressão de que precisa para

enfatizar o conteúdo semântico e estético da arquitetura. Essa habilidade é

explorada, sobretudo, em seus painéis de azulejos – sem dúvida, os eventos

mais numerosos e populares de sua produção. Palácios, tribunais, escolas,

hospitais, teatros, estabelecimentos comerciais, residências, localizados pela

cidade afora, exibem as marcas dessa inconfundível azulejaria.

(CAVALCANTE, 2009, p. 10)70

A arquiteta explica que, na azulejaria, embora a técnica e os materiais sejam

praticamente os mesmos, Athos Bulcão combina de diferentes formas uma variedade de

desenhos geométricos. Sobre a forma de montagem de seus painéis em azulejos com

desenhos, o próprio Athos Bulcão conta que a disposição era aleatória e que deixava que os

68

COSTA, Marcus de Lontra. Athos Bulcão sinfonias da modernidade. Módulo, Rio de Janeiro, n. 95, 1987.

Disponível em: <http://www.fundathos.org.br/artigos.php>. Acesso em: 22 jul. 2018.

69Idem.

70 CAVALCANTE, Neusa. Da arte à arquitetura: um poeta de formas e cores. Fundação Athos Bulcão, 2009.

Disponível em: < https://www.fundathos.org.br/pdf/Da%20arte%20a%20arquitetura%20-

%20Neusa%20Cavalcante%20port.pdf>. Acesso em: 22 jul. 2018.

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65

operários fizessem a composição71

"Mas era um relacionamento distante. Eu não considero,

nem acho, que tenha a ver com a vida dos operários" (BULCÃO, 1988, p. 09). O "artista

produz um sem número de padrões geométricos que, combinados de várias maneiras, geram

uma enorme riqueza composicional, cuja identidade é, no entanto, indiscutível"

(CAVALCANTE, 2009, p. 11). A função do artista plástico, na visão da arquiteta, seria criar

uma composição ritmada e formal, pontuando o espaço com ritmos e destacando o arrojo das

estruturas.

Convidado por Niemeyer para trabalhar em parceria com ele na projeção das obras

de Brasília, Athos Bulcão aceita com animação, apesar do baixo salário como simples

funcionário da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap). Seus

primeiros trabalhos em Brasília são os azulejos artesanais da Igrejinha Nossa Senhora de

Fátima e os painéis do Brasília Palace Hotel, que são feitos acompanhando o ritmo frenético

das obras de construção da nova capital, conta Cavalcante (2011, p. 1). Talvez pela influência

do mestre Portinari, com quem trabalhou como assistente no Mural de São Francisco de

Assis, na igreja da Pampulha, em Belo Horizonte, arrisca a arquiteta, a obra da Igrejinha foi

singular: "o primeiro trabalho, em que se destacam a pomba do Divino Espírito Santo e a

estrela da Natividade, assume feições figurativas, que Athos não mais repetiria em sua

azulejaria posterior" (CAVALCANTE, 2011, p. 2). Era também de Athos Bulcão a primeira

porta do templo.

Athos também se dedicou a adornar residências particulares na cidade com painéis e

azulejos, contando cerca de 60 delas com produções do artista em Brasília. Todas as obras

identificadas do artista hoje, na Capital, são tombadas, incluindo as que se encontram em

unidades residenciais privadas.

Alfredo Foguebecca Volpi (1896-1988)

Volpi nasceu em Lucca, Itália, e veio para o Brasil com seus pais em 1897, com

apenas um ano de idade, fixando residência em São Paulo. Filho de comerciante, começou a

trabalhar como decorador e pintor de paredes e frisos, passando para painéis e murais que

pintava em paredes de mansões de famílias da alta sociedade paulistana. Morou com os pais

até os 47 anos e só passou a viver da pintura bem tarde, perto dos 50 anos, quando vendeu

71

BULCÃO, Athos. Depoimento - Programa de História Oral. Brasília, Arquivo Público do Distrito Federal,

1988.

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todos os quadros em uma exposição. Casou-se com uma empregada doméstica, de nome

Benedita da Conceição, apelidada de Judite. Tiveram uma filha biológica e adotaram vários

outros filhos, chegando a ter 19 crianças em casa, conta Pedro Mastrobuono, atual presidente

do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna (IAVAM)72

, destacando o caráter caridoso e

humano de Volpi que, "apesar de ateu e anticlerical, era possuidor de elevada espiritualidade"

(MASTROBUONO, 2018)73

. Pessoa de atributos simples, Pedro Mastrobuono lembra que o

mestre andava de tamanco ou chinelo, fumava cigarro de palha, não gostava de formalidades,

tinha ranço de autoridades, era anarquista convicto, não assinava recibos e só pagava impostos

quando era intimado. Tinha uma linguagem profana, não por desrespeito, mas resultado da

influência da cultura italiana da cidade de seus pais, cultura que fez questão de não esquecer,

tanto que só falava a língua paterna, mesmo morando no Brasil, recusando-se a aprender o

português.

Volpi fabricava suas próprias telas e preparava as tintas - guardava a têmpera a ovo

em frascos de vidro na geladeira. Após dominar a técnica da têmpera fabricada com verniz,

clara de ovo e pigmentos naturais purificados (terra, ferro, óxidos, argila colorida por óxido de

ferro), o artista nunca mais usou tintas industriais porque achava que elas criavam mofo e

perdiam vida com o tempo. Nenhum de seus quadros trazia data.

Mas a pintura estava longe de servir de sustento para sua vida e de dar real satisfação

ao artista por sua produção, relata Marco Antonio Mastrobuono (2013)74

- volpista

apaixonado, colecionador e amigo pessoal de Alfredo Volpi -, tanto que nas primeiras três

décadas de sua vida vendeu pouco, não havia muito interesse comercial na sua obra, só

apresentando alguma melhora nas vendas nos anos de 1930.

A primeira mostra coletiva que participou foi em 1925 e, em 1944, realizou sua

primeira exposição individual. Em 1950, quando passou uma temporada de 6 meses pela

Europa, demonstrou sua predileção pelo abstracionismo geométrico, tendência que passou a

ser uma das características mais marcantes da sua obra, facilmente identificáveis pelas

bandeirolas coloridas e casarios, traços inconfundíveis do artista. No auge de sua carreira,

destacou-se como um dos maiores pintores da Segunda Geração da Arte Moderna Brasileira.

72

MASTROBUONO, Pedro. Entrevista sobre Alfredo Volpi e a Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, em

Brasília. Concedida a Meiriluce Santos Perpetuo. Brasília, 8 jul. 2018.

73 Idem.

74 MASTROBUONO, Marco Antônio. Alfredo: pinturas e bordados. São Paulo: Instituto Alfredo Volpi de

Arte Moderna. 2013

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67

De acordo com o artigo de Carlos Maranhão, publicado na Revista Veja75, calcula-se

que, em setenta anos de pintura, Volpi tenha produzido cerca de 3.000 telas, mas somente

2.239 estão catalogadas no Instituto Alfredo Volpi. Parte desses trabalhos pertencem a antigos

colecionadores que frequentavam a casa do artista e ficaram conhecidos no meio artístico

como volpistas.

Marco Antonio Mastrobuono76 revela que as obras de Volpi foram vitimadas por um

golpe que levantaram dúvidas quanto à autenticidade. Dezenas de quadros e centenas de

gravuras, assinadas e com declaração de autenticidade no verso, saíram do atelier de Volpi

nos seus últimos três anos de vida, quando ele, acometido de Alzheimer, já não conseguiria

mais ter firmeza nas mãos nem lucidez para compreender o que se passava à sua volta. Ele já

estava senil, sem coordenação motora, enxergando mal e quase sem reconhecer as pessoas.

Quem autenticou foi sua única filha biológica, Eugênia Maria Volpi Pinto (Volpi teria

adotado vários outros filhos). A consequência foi que essas obras perderam seu valor de

mercado, estendendo o prejuízo também às obras autênticas, numa média de 40% de

desvalorização. O problema foi esclarecido posteriormente e as obras originais retomaram seu

valor. Segundo o marchand Jones Bergamin, da Bolsa de Arte do Rio de Janeiro, destaca o

jornalista Carlos Maranhão, um quadro pequeno de Volpi, em 2013, sairia por, pelo menos,

R$250.000,00 reais, e os maiores poderiam chegar a 5 milhões de reais, segundo Maranhão.

Volpi e Judite teriam criado numerosa prole, mas não se preocuparam com a

formalização das adoções ou os processos formais são desconhecidos, afirma Marco

Mastrobuono, o que abriu uma briga judicial que se arrasta até hoje. O alto valor de suas obras

levou a uma disputa injusta entre os herdeiros, mas a favor de Eugênia Maria Volpi e seu

esposo, que teriam se apossado antecipadamente das obras da família após a morte dos pais,

tendo aparecido "milagrosamente" diversas pinturas assinadas pelo artista.

Autodidata, Volpi é considerado um dos mais destacados pintores da Segunda

Geração da Arte Moderna Brasileira. Recebeu influência de artistas do movimento

impressionista clássico, como Cézanne, Giotto, Ucello, mas acabou criando sua linguagem

própria, figurativa, que evoluiu de representações de cenas da natureza para produções mais

elaboradas, com o uso trabalhado de cores e optando pelos estilos abstratos e geométricos.

75 MARANHÃO, Carlos. Alfredo Volpi muito além das bandeirinhas - Livro revela intimidade do artista que

vivia modestamente no Cambuci rodeado de crianças adotadas e teve obras falsas lançadas no mercado pela

própria filha. Revista Veja. São Paulo, 5 dez. 2016. Caderno Cultura e Lazer. Disponível em:

<https://vejasp.abril.com.br/cultura-lazer/alfredo-volpi/>. Acesso em: 15 jun. 2018.

76 MASTROBUONO, Marco Antônio. Alfredo: pinturas e bordados. São Paulo: Instituto Alfredo Volpi de

Arte Moderna. 2013.

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Tem como marca inquestionável o uso de bandeirinhas multicoloridas e dos casarios, sua

maior contribuição para a arte brasileira moderna.

Volpi começou sua vida artística com temáticas e pinceladas bem diferentes das

bandeirinhas e casarios que o consagrou. "Aceitava encomendas para pintar sobre telas

retratos fotográficos, santinhos, Santas Ceias de Leonardo da Vinci modificadas, cenas de

pescaria e outras coisas, cuja autoria rejeitava: "Fui io que fiz, ma non è mio"."

(MASTROBUONO, 2013, p. 32). Teve várias fases de produção. Na década de 30,

"aparecem em seus quadros céus carregados, dramáticos. As cores se intensificam. Exercita

marinhas tempestuosas" (MASTROBUONO, 2013, p. 96). É quando sua obra começa a

alcançar destaque:

É a arte que serve de ligação entre duas vidas: a material e a espiritual.

Muitas vezes sobrepuja a última. É a que domina a personalidade do sr.

Volpi. Sua pintura é ricamente construída, estranhamente indisciplinada, sem

nenhuma concessão ao brilho, ao malabarismo, ao virtuosismo e nem mesmo

à fantasia. Arte pura, sem artifício. Casebre é uma tela tão impressionante na

sua dramaticidade que aterra. O sentimento de imensidade é flagrante. Como

pintura, tecnicamente, é uma obra-prima. Grandiosa na sua simplicidade.

Trecho de casas, outra visão de arte, possui a mesma orquestração cromática

e idêntica força na execução. [...] Volpi resolve todas as dificuldades com

uma ciência, uma compreensão do real verdadeiramente fora do comum.

(MAURÍCIO, in MASTROBUONO, 2013, p. 133-134)77

Volpi se dividiu entre o naturalismo até 1940, quando pintava naturezas mortas,

paisagens, marinhas e retratos, e o concretismo criativo, que lhe conferiu importância mundial

a partir de 1950, explica Marco Mastrobuono. A partir de 1960, esclarece, o artista entra numa

nova fase:

A composição formal cede a cena à investigação cromática. As cores, em

número crescente, ocupam a tela e capturam os olhos do espectador. As

diversas propostas de harmonias coloridas merecem a energia e o melhor do

saber adquirido pelo Mestre, que chega a trabalhá-las em dezenas de quadros

com um mesmo desenho. (MASTROBUONO, 2013, p. 176)

Mastrobuono preocupa-se em desmistificar a ideia de que Volpi era um autodidata

solitário, quase ingênuo. Explica: "O desenvolvimento de Volpi foi assistido e compartilhado.

Alçou voo como pássaro de bando. Depois, sim, ganhou altura e paragens onde chegou só.

Solidão desacompanhado dos gênios consumados" (MASTROBUONO, 2013, p. 99).

Na década de 70 Volpi já era requisitado como pintor das bandeirinhas. Explodiam

cores esplendorosas nos quadros do mestre e suas obras não conseguiam atender a quantidade

77 Matéria de Virgilio Maurício, intitulada Volpi, o Wagner da pintura, publicada no jornal O

Imparcial, de 20 de maio de 1935. In MASTROBUONO, Marco Antonio. Alfredo: Pinturas e Bordados.

Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna: São Paulo, 2013, 352 p.

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69

de compradores ávidos. Segundo Marco Mastrobuono (2013), encomendas demoravam meses

para ser entregues e suas obras adquiriram valores até três vezes maiores que a tabela do

pintor.

Em 1940, encantado com os monumentos em arte colonial das cidades de São

Miguel Arcanjo e Embu (SP), Volpi voltou-se para temas populares e religiosos, o que lhe

garantiu o prêmio do concurso promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional (Iphan). Também recebeu o Prêmio de Melhor Pintor Nacional, em 1953, na Bienal

de São Paulo e, em 1958, o Prêmio Guggenheim.

No mesmo período, Volpi recebeu a incumbência de criação de duas importantes

obras em Brasília: os afrescos da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, localizada nas

entrequadras 307/308 Sul (1958), e um painel do Palácio do Itamaraty, no qual retratou a

profecia de Dom Bosco (1966), santo que teria previsto o surgimento da Capital. A primeira

pintura foi drástica e irreversivelmente destruída, dela restando poucas imagens fotográficas e

informações imprecisas acerca do ocorrido. A segunda permanece numa sala reservada

especialmente para ela, por Niemeyer, dentro do Palácio do Itamaraty.

Oscar Niemeyer (1907-2012)

Oscar Niemeyer78

nasceu em 1907, no berço de uma família católica em Laranjeiras,

no Rio de Janeiro, onde morou com seus avós até a juventude. Aos 20 anos, já atuava com um

grupo de comunistas recolhendo roupas e donativos para distribuição entre pessoas pobres da

redondeza. A lembrança daqueles velhos tempos e dos amigos, em sua maioria católicos,

demonstrou, segundo o arquiteto, a bondade e a generosidade daquela gente diante da

pobreza, sem a revolta que nele passou a dominar.

Mais tarde, já formado e ainda com convicções comunistas, participava das lutas e

passeatas organizadas pelo partido de Luis Carlos Prestes. A ideia de um Deus todo-poderoso,

criador de todas as coisas, explica, havia desaparecido, mas ele ainda se reconhecia como ser

humano frágil e desprotegido diante do universo, daí o interesse por questões da ciência, do

cosmo e da própria existência. Isso explica sua postura compreensiva e quase indulgente em

78

NIEMEYER, Oscar. Em artigo, Niemeyer explica a contradição entre sua posição comunista e o

desenho de obras de caráter religioso. Correio Braziliense. Brasília, 05 jul. 2009. Disponível em:

<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/07/05/interna_cidadesdf,123889/em-artigo-

niemeyer-explica-a-contradicao-entre-sua-posicao-comunista-e-o-desenho-de-obras-de-carater-religioso.shtml>.

Acesso em: 20 jul. 2018.

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70

relação aos que creem em Deus e sua aceitação em projetar igrejas, catedrais ou simples

capelas. Ao desenhar uma igreja, o arquiteto admite sentir, surpreso, como sua arquitetura é

generosa. Exemplificando, explica o prazer com que planejou as colunas da Catedral de

Brasília, subindo em círculo e criando a forma desejada, com os contrastes de luz tão

importantes em seu interior:

Quando projeto uma catedral, reconheço que o prazer que sinto em ver uma

obra bem realizada é muito menor do que a importância que lhe dão aqueles

que vão frequentá-la, pois é ali que acreditam estarem perto de Deus. Para

eles, o ser supremo que, onipotente, tudo criou. Eis como eu posso justificar

essa contradição que alguns levantam entre a minha posição de comunista e

o meu interesse em desenhar obras de caráter religioso. (NIEMEYER, 2009)

A arquiteta e urbanista Luciane Scottá (2010)79

afirma a relevância da produção e a

qualidade arquitetônica alcançada por Niemeyer, mais particularmente, na construção de

templos religiosos, tema ao qual o arquiteto se dedicou de maneira especial, construindo um

número significativo de capelas e igrejas, com "grandes resultados nas obras destinadas à

interface entre o humano e o divino" (SCOTTÁ, 2010, p. 11). Embora se declarasse ateu e

comunista, Niemeyer realizou em torno de 20 projetos entre igrejas e capelas, a grande

maioria em Brasília.

Parece evidente que haja uma incoerência entre ideologia político-religiosa e o

trabalho de Niemeyer ao projetar tantas igrejas, tanto que a contradição entre a posição

comunista e o desenho de obras de caráter religioso é explicada pelo próprio arquiteto em um

artigo publicado no jornal Correio Braziliense, em 200980

.

De acordo com o jornalista Barbosa Sobrinho, o gênio arquitetônico de Niemeyer e o

poder organizador de Lucio Costa foram capazes de realizar "milagres arquitetônicos"

(SOBRINHO, 1957, p. 12). Sobrinho cita como exemplo da capacidade inventiva de

Niemeyer em Brasília os projetos de duas pequenas igrejas construídas no início da Capital

que, desvinculando-se dos movimentos artísticos anteriores conhecidos a nível mundial, se

sobressaíram no cenário artístico do modernismo: uma capela construída no Palácio da

Alvorada, residência oficial da família do presidente, e a Igrejinha Nossa Senhora de Fátima,

destinada a um conjunto residencial do que seria a primeira superquadra de Brasília,

localizada nas entrequadras 307/308 Sul.

79

SCOTTÁ, Luciane. Arquitetura religiosa de Oscar Niemeyer em Brasília. 2010. 319f. Dissertação

(Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade de Brasília, Brasília, 2010.

80 NIEMEYER, Oscar. Em artigo, Niemeyer explica a contradição entre sua posição comunista e o

desenho de obras de caráter religioso. Disponível em:

<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/07/05/interna_cidadesdf,123889/em-artigo-

niemeyer-explica-a-contradicao-entre-sua-posicao-comunista-e-o-desenho-de-obras-de-carater-religioso.shtml>.

Acesso em: 20 jul. 2018.

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71

Foi essa efervescência de pensamentos e de criações artísticas modernas que

influenciaram fortemente os arquitetos e artistas que ajudaram na construção de Brasília,

criando edifícios modernos e expondo suas obras em paredes, praças, jardins e espelhos

d'água de palácios, edifícios públicos e residenciais, parques e igrejas de Brasília.

Em 2007, Niemeyer solicitou ao Iphan o tombamento de alguns edifícios projetados

por ele, encaminhando ao órgão a relação dos bens que ele considerava importantes contarem

com tal instrumento de proteção. A intervenção federal, nessa matéria, segundo o arquiteto,

lhe daria uma nova esperança por já ter visto, várias vezes, seus trabalhos, como arquiteto,

desmerecidos. Niemeyer citou as obras que reclamavam medidas mais urgentes, como as

obras que integram o Caminho Niemeyer em Niterói, como o Teatro Popular, cujas obras já

tinham sido, muitas vezes, paralisadas, protelando sua conclusão81

.

Assim, as sugestões de Niemeyer para tombamento foram:

Rio de Janeiro:

• Casa das Canoas (Rio de Janeiro)

• Passarela do Samba (Marques de Sapucaí)

• Monumento IX de Novembro, em Volta Redonda

• Museu de Arte Contemporânea, em Niterói (RJ)

• Caminho de Niemeyer, em Niterói - Teatro popular e todos os prédios vazios entre os

prédios e o mar (num conjunto arquitetônico eles fazem parte da arquitetura)

• Centro Cultural Duque de Caxias

São Paulo

• Edifício COPAM

• Conjuntos do Parque do Ibirapuera: Auditório e Palácio das Artes (OCA)

• Memorial da América Latina e Parlamento

Minas Gerais

• Conjunto da Pampulha: Igreja São Francisco de Assis, Cassino e Casa do Baile

81

BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Processo n° 1.550-T-07: Tombamento do

conjunto de obras do arquiteto Oscar Niemeyer. Brasília: Arquivo da Superintendência do Iphan no Distrito

Federal, 2008.

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72

Brasília

• Praça dos Três Poderes

• Congresso Nacional

• Palácio da Alvorada (Conjunto arquitetônico, incluindo a capela e demais edificações)

• Capela Nossa Senhora de Fátima (Igrejinha)

• Catedral de Brasília

• Praça dos três poderes e seus edifícios (Congresso Nacional e anexos, Museu da

Fundação de Brasília, Palácio do Planalto, Supremo Tribunal Federal. Casa de Chá,

Pombal.

• Esplanada dos Ministérios: Padrão e anexos, Ministério da Justiça (Palácio),

Ministério das Relações Exteriores (Palácio do Itamaraty) e anexos

• Panteão da Liberdade e da Democracia Tancredo Neves

• Teatro Nacional

• Quartel General do Exército

• Residência do Vice Presidente da República (Palácio do Jaburu)

• Memorial JK

• Museu do Índio (Memorial dos Povos Indígenas)

• Casa do Teatro Amador

• Edifícios dos Ministérios e anexos e do Touring Club do Brasil

• Espaço Oscar Niemeyer

• Memorial Israel Pinheiro

• Conjunto Cultural - museu e biblioteca, incluindo a praça entre os prédios

Paraná

• Museu do Paraná

Goiás

• Centro Cultural Niemeyer

Rio Grande do Norte

• Torre Parque de Natal

O Conjunto Urbanístico de Brasília foi inscrito coletivamente no Livro do Tombo

Histórico (Inscrição n 532/1990), segundo os critérios e parâmetros urbanos que permitem o

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73

desenvolvimento da cidade, resguardando as características fundamentais do Plano Piloto de

Lucio Costa. Do conjunto, seis edifícios foram projetados por Oscar Niemeyer. Os edifícios

que compõem a Praça dos Três Poderes tiveram sua arquitetura individualmente protegida,

nos termos da Portaria 314/9282

.

Os edifícios de Brasília, cujo tombamento foi solicitado por Niemeyer, foram

inscritos no Livro de Tombo de Belas Artes.

82

Idem.

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74

4. HISTÓRICO DA IGREJINHA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA

A Igrejinha de Niemeyer foi inserida na proposta idealizada por Lúcio Costa para as

Unidades de Vizinhança como um espaço/monumento/equipamento pensado para promover a

socialização dos moradores das quadras residenciais próximas, sendo o primeiro templo de

alvenaria do Plano Piloto.

Inicialmente chamada de Capela Nossa Senhora de Fátima, hoje conhecida como

Igrejinha Nossa Senhora de Fátima ou simplesmente Igrejinha, o templo é considerado uma

obra clássica da Arquitetura moderna83 (figura 12). A Capela foi construída em 100 dias, meio

às pressas, entre 1957-1958. O projeto foi encomendado a Oscar Niemeyer por Juscelino

Kubitschek, em pagamento de uma promessa feita por D. Sarah Kubitschek em retribuição à

cura da filha Márcia, acometida de uma grave enfermidade. A sugestão de recorrer a Nossa

Senhora de Fátima, relata a devota Edite Leal (2008), veio da primeira-dama Berta Craveiro

Lopes, que visitava Brasília acompanhada do marido, Francisco Higino Craveiro Lopes,

Presidente de Portugal entre 1951 e 195884.

Já na criação, o projeto contou com a participação de três artistas que se destacaram

no cenário do movimento modernista, sendo Burle Marx responsável pelo projeto

paisagístico, Athos Bulcão pela decoração da fachada externa em azulejaria e Alfredo Volpi

pelos afrescos pintados nas paredes internas do templo.

A pedra fundamental da Capela foi lançada em 1957 e deveria ser inaugurada em 3

de maio de 1958, coincidindo com primeira missa da cidade, celebrada um ano antes, num

altar improvisado por Oscar Niemeyer, no eixo monumental: "uma estrutura tosca de madeira,

tencionando uma cobertura feita de lonas costuradas"85. Diante da impossibilidade de ficar

83

FRACALOSSI, Igor. Clássicos da Arquitetura: Igrejinha Nossa Senhora de Fátima / Oscar Niemeyer. 07

Mai 2014. ArchDaily Brasil. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/601545/classicos-da-arquitetura-

igrejinha-nossa-senhora-de-fatima-slash-oscar-niemeyer>. Acesso em: 18 jul. 2018.

84 LEAL, Edite. Igrejinha 50 anos. Brasília, 2008. Disponível em:

<http://www.pnsfatimabsb.com.br/artigos/item/download/13_f64560b2ecaaab9f3535b50b2de1cbb1>. Acesso

em: 20 jul. 2018.

85 A descrição consta no Guia de obras de Oscar Niemeyer, uma iniciativa do Instituto de Arquitetos do Brasil –

Departamento do Distrito Federal (IAB/DF) em parceria com a Câmara dos Deputados, produzido como parte

das homenagens aos 50 anos de Brasília. In: GUIA DE OBRAS DE OSCAR NIEMEYER: Brasília 50 anos –

Brasília: Instituto dos Arquitetos do Brasil: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2010.

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75

pronta a tempo, a data foi transferida para o dia 13 de maio, consagrado à Padroeira Nossa

Senhora de Fátima. O plano não vingou, sendo novamente adiado para 28 de junho.

Figura 12 - Igrejinha Nossa Senhora de Fátima

primeiro templo de alvenaria em Brasília

Fonte: Arquivo Público do Distrito Federal

A primeira cerimônia realizada na Capela, em 1958, foi o casamento da Srta. Maria

Regina Uchoa Pinheiro, filha do engenheiro Israel Pinheiro (figura 13), então presidente da

Novacap - Companhia Urbanizadora da Nova Capital, com o sr. Hindenburgo Chateaubriand

Pereira Diniz. A cerimônia foi oficiada pelo Cardeal de São Paulo, Dom Carlos de

Vasconcelos Motta. Também encontra-se registrado, em 1959, o batizado do filho de um

operário, cujo padrinho foi o presidente Juscelino Kubitschek86.

86

Idem.

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76

Figura 13 - Casamento da filha de Israel Pinheiro

Primeira cerimônia realizada na Igrejinha, em 1958

Fonte: Arquivo Público do Distrito Federal

Outro evento que marcou os primeiros anos da Igrejinha, embora bem menos

comentado, foi o velório do engenheiro Bernardo Sayão, em 1959 (figura 14), também um

dos diretores da Novacap. Responsável pela infraestrutura da capital, como redes de água,

esgoto, luz e telefone e pela construção da rodovia Belém-Brasília, Sayão foi vitimado em

plena floresta amazônica, por uma árvore que caiu sobre a barraca em que estava. Figura

bastante popular, próximo a JK e lidando diretamente com os operários, sua morte causou

grande consternação e comoção geral. Centenas de pessoas caminharam da Igrejinha Nossa

Senhora de Fátima para acompanhar o velório. O corpo de Bernardo Sayão inaugurou

cemitério Campo da Esperança, primeiro de Brasília87.

87

JUSBRASIL. Há 50 anos morria Bernardo Sayão, engenheiro que ajudou a construir Brasília. 2008.

Disponível em: <https://justilex.jusbrasil.com.br/noticias/597516/ha-50-anos-morria-bernardo-sayao-

engenheiro-que-ajudou-a-construir-brasilia>. Acesso em: 27 jun. 2017.

.

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77

Figura 14 - Velório de Bernardo Sayão, Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, 1959

Fonte: Arquivo Público do Distrito Federal

PROJETO DO EDIFÍCIO E OBRAS DE ARTE

Em uma publicação comemorativa aos 50 anos do templo, Edite Leal (2008, p. 12) 88,

fiel frequentadora da Igrejinha, explica que a ideia inicial era levantar um santuário em

grandes proporções, com capacidade para 800 pessoas, mas o projeto foi modificado. O fator

decisivo para a mudança foi o casamento da filha de Israel Pinheiro, já que não havia

nenhuma igreja católica na cidade para realização da cerimônia. O megatemplo inicial foi

reduzido a um espaço que não comportava mais que trinta pessoas. A localização escolhida

foi uma área elevada entre as duas quadras (307/308), ao final da rua comercial (figura 15).

88

LEAL, Edite. Igrejinha 50 anos. Brasília, 2008. Disponível em:

<http://www.pnsfatimabsb.com.br/artigos/item/download/13_f64560b2ecaaab9f3535b50b2de1cbb1>. Acesso

em: 20 jul. 2018.

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78

Figura 15 - Planta - desenho da quadra, 1986

Fonte: Departamento Histórico e Artístico do Distrito Federal - Depha

O projeto de Niemeyer para a Capela Nossa Senhora de Fátima foi publicado na

Revista Brasília (1957)89, e chama a atenção pela sua simplicidade. Consistia em uma

estrutura em concreto armado, com duas paredes laterais revestidas de azulejos que seriam

desenhados por Athos Bulcão, com figuras de pombas e estrelas, "simbolizando a descida do

espírito Santo e a Estrela da Natividade" (LEAL, 2008, p. 10). Três vigas similares, em forma

de leque, como três vértices do triângulo, davam sustentação à cobertura, apoiando as

extremidades em pontos menores na parte superior e alargando na base (figura 16).

89

BRASÍLIA: Arquitetura e urbanismo. Revista Brasília. Rio de Janeiro, nº 08, ano 01, p. 12, ago. 1957.

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79

Figura 16 - Primeira maquete da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima

Autor: Oscar Niemeyer - Fotógrafo: Não identificado

Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal

Internamente, no plano de fundo, sobre o altar, figurava uma proposição do Cristo

crucificado, a ser esculpido por Ceschiatti (figura 17).

Figura 17 - Primeira maquete: visão interior da Capela. Ao fundo, sobre o altar,

simulacro do Cristo esculpido por Ceschiatti.

Fonte: Arquivo Público do Distrito Federal

Autor:Oscar Niemeyer

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80

Do projeto inicial de Niemeyer, foram mantidas a estrutura do edifício e a fachada de

azulejos de Athos Bulcão. O espaço interior foi modificado, tornando-se único, sem a parede

que levemente encobria a porta de entrada (figura 18). O plano ao fundo de Ceschiatti foi

abandonado, sendo substituído por uma pintura em afresco do artista Alfredo Volpi,

convidado especialmente pelo arquiteto para adornar a igreja.

A Igrejinha, que também teve como responsável calculista o engenheiro Joaquim

Cardozo90, cuja habilidade possibilitou a concretização, não só da Igrejinha, mas também de

vários outros projetos de Niemeyer, conferindo leveza às estruturas em concreto armado.

Figura 18 - Planta baixa da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima

Autor: Oscar Niemeyer

Fonte: Arquivo Público do Distrito Federal

Dados técnicos91:

Construção em concreto armado.

90

REBELLO, Yopanan; LEITE, Maria Amélia D’Azevedo. O engenheiro das curvas de Brasília. Arquitetura e

Urbanismo, nº 165, dez. 2007. Disponível em: <http://www.revistaau.com.br/arquitetura-urbanismo/165/

artigo67588-4.asp.>. Acesso em: 6 dez. 2018.

.

91 DEPARTAMENTO DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DO DISTRITO FEDERAL. Igrejinha

Nossa Senhora de Fátima - Histórico. 2009

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81

Paredes divisórias internas de alvenaria revestidas com reboco.

Paredes externas em concreto revestida com azulejos.

Pisos de pedra, cobertura em laje impermeabilizada.

Projeto: Oscar Niemeyer.

Características ambientais92:

A igreja está situada sobre um platô elevado em relação à rua de acesso, formando

uma praça entre as Superquadras 307-308 .

A cobertura tem o formato de triângulo isósceles, com os vértices apoiados por três

pilares. As bases mais largas, pousadas no chão, e as partes superiores, sustentando a

cobertura, conferem sutileza na conexão dos elementos (figuras 19 e 20). A parede que

delimita o interior do templo tem o formato curvo, dividido internamente por uma parede

interna reta, ao fundo do altar, separando os recintos da pequena nave, sacristia e secretaria.

Figura 19 - Igrejinha Nossa Senhora de Fátima em construção, 1957

Fonte: Arquivo Público do Distrito Federal

92

Idem.

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82

Figura 20 - Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, 1958

Fonte: Acervo Iphan DF

De acordo com a revista ELEMENTARQ93. o conjunto demonstra uma riqueza

formal e estrutural marcante das obras de Niemeyer em Brasília (figuras 21 e 22). Nas

palavras de Lucio Costa94:

A habilidade e a clareza com que organiza as linhas gerais da composição,

seja na planta, no corte ou na fachada, e a segurança com que seleciona,

purifica e leva à sua forma final cada parte do edifício, são os segredos da

arte de Niemeyer. Apesar de ser um artista, no sentido mais estrito da

palavra, Niemeyer, tanto por formação como por atitude mental, não é nem

pintor nem escultor, mas cem por cento arquiteto. (COSTA, 1950, p. 164)

93

OLIVEIRA, Brenda. Os pilares de Brasília na visão de Oscar Niemeyer. Revista Elementarq. 2016.

Disponível em: <https://issuu.com/brendaoliveira2/docs/revista_bc_final>. Acesso em: 6 ago. 2017.

94 COSTA, Lucio (1950). A obra de Oscar Niemeyer. In XAVIER, Alberto (org.). Lúcio Costa: sobre

arquitetura. 2ª edição. Porto Alegre, Uniritter, 2007, p. 164.

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83

Figura 21 - Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, 1959

Fonte: Arquivo Público do Distrito Federal

Figura 22 - Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, 2018

Fotógrafo: Meiriluce Santos

O templo tem um formato que lembra o chapéu das freiras Vicentinas, uma ordem

fundada por São Vicente de Paulo (figura 23). Embora haja semelhança entre as formas e a

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84

ideia seja difundida popularmente como uma suposta inspiração de Niemeyer, não existe

comprovação de que seria essa, de fato, a intenção do arquiteto.

Figura 23 - Chapéu de Freira da ordem Vicentina

Fonte: fotógrafo desconhecido

A versão é contestada, por exemplo, pelo arquiteto Lauande (2011)95, que considera

uma interpretação presente no imaginário popular, comparando a referência mais aproximada

ao tema do Mistério da Santíssima Trindade, representado de forma recorrente nas pinturas da

antiguidade. Como exemplo, cita uma das obras do pintor renascentista alemão Albrecht

Dürer (1471-1528) (figura 24).

95

LAUANDE, Francisco. A igrejinha de Oscar Niemeyer. Projetos, São Paulo, ano 11, n. 125.06, Vitruvius,

maio 2011. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/11.125/3888>. Acesso em: 2 jul.

2017.

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85

Figura 24 - “Adoração da Santíssima Trindade” (1511), de Albrecht Dürer (1471-1528)

Fonte: Teologia Luterana 96

No mesmo sentido, um documento encontrado no Departamento de Patrimônio

Histórico e Artístico do Distrito Federal (Depha-DF), que relata a chegada e instalação dos

freis capuchinos no Planalto Central, compara a forma triangular da Igrejinha como um

simbolismo da Santíssima Trindade97.

Considerando a genialidade de Niemeyer e sua tendência em criar formas com traços

livres, é possível afirmar que não teria havido intenção alguma do arquiteto em relacionar o

desenho da igreja com qualquer outra referência. Pode ter acontecido, por exemplo, que

alguém tenha feito a inevitável comparação com um chapéu de freira e Niemeyer

simplesmente concordado que parecia. A segunda hipótese, afirmada por Lauande (2011) da

mesma forma, se daria numa circunstância hipotética, não tendo sido encontrados registros

que a comprove.

96

TEOLOGIA LUTERANA. Introito para a festa da Santíssima. 24 mai. 2013. Disponível em:

<http://teologiaeliturgialuterana.blogspot.com/2013/05/introito-para-festa-da-santissima.html>. Acesso em: 24

jul. 2018.

97 BRASÍLIA. Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito Federal. Segunda etapa de

instalação dos freis capuchinos no Planalto Central: Brasília - Capital. Processo de tombamento da Igrejinha

Nossa Senhora de Fátima, [s.d.], p. 83-86.

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86

Figura 25 - Igrejinha Nossa Senhora de Fátima - fachada de Athos Bulcão, 2018

Fotógrafo: Meiriluce Santos

A fachada externa do templo, revestida por azulejos de Athos Bulcão, é adornada

com desenhos figurativos da pomba do Espírito Santo e da Estrela da Natividade (figura 25).

Os azulejos têm as cores predominantes de azul (em tons variantes), branco e preto (figura

26). Na confecção das peças, o artista conta que ele mesmo desenvolveu "um processo

bastante simples e muito ligado ao que a gente chama de indústria" (BULCÃO, 1988, p. 16)98.

Os azulejos da igrejinha do Palácio da Alvorada e da capelinha de Fátima foram os únicos

feitos artesanalmente, por uma firma pequena, que tinha um pequeno forno e ainda produzia o

azulejo em biscoito, já com o esmalte em cima "que, nessa época, a gente conseguia comprar"

(BULCÃO, 1988, p. 16).

98

BULCÃO, Athos. Depoimento - Programa de História Oral. Brasília, Arquivo Público do Distrito Federal,

1988.

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87

Figura 26 - Igrejinha: Azulejos figurativos de Athos Bulcão (detalhe)

Fotógrafa: Meiriluce Santos

Embora não haja muitos registros documentais a respeito, a porta de entrada da

Capela, também criada por Athos Bulcão (figura 27), era composta por cinco partes móveis

em madeira, com janelas de vidros coloridos embutidos em diferentes tamanhos.

Posteriormente, a mesma foi substituída por outra, também de madeira, mas em treliças

(figura 28).

Figura 27 - Igrejinha com porta em madeira e vidro, de Athos Bulcão

Fonte: Arquivo Púbico do Distrito Federal

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88

Segundo Athos Bulcão, "a primeira porta de vitral, depois foi substituída quando

foram colocados painéis na pintura interna" (BULCÃO, 1988, p. 15)99.

Figura 28 - Igrejinha Nossa Senhora de Fátima - Porta em madeira treliçada

Fonte: Arquivo Público do Distrito Federal

O interior da Capela recebeu nas paredes a pintura do artista Alfredo Volpi. Ao

fundo, uma imagem de Nossa Senhora de Fátima flutuando, em ascensão, com o Menino

Jesus no colo, cercada nas extremidades por uma sequência vertical de bandeirinhas coloridas.

Na parede lateral, outro grande afresco do artista continha elementos de fachadas, arcos e

bandeiras (figura 29). As típicas bandeirinhas pintadas na Igrejinha ainda em 1958, a partir da

década de 60 se firmaram como uma linguagem plástica característica de Volpi.

99

Idem.

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89

Figura 29 - Pintura de Alfredo Volpi no interior da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima

Fonte: REVISTA BRASÍLIA. N. S. de Fátima. nº 40, Ano 4, 1960, p. 77

O Arcebispo de Goiânia, Dom Fernando Gomes dos Santos, em 1958, propôs que os

freis Capuchinhos iniciassem seu ministério sacerdotal no Santuário de Fátima que, embora

terminado, não tinha ministério regular. O frade indicado como primeiro vigário foi o Frei

capuchinho Demétrio do Encantado, que chegou à nova Capital em 1958, vindo de Goiânia.

Vários outros frades vieram para Brasília nos anos seguintes, assumindo a Capela e as obras

de construção da Paróquia Nossa Senhora de Fátima, que hoje é a responsável pela Igrejinha.

Um documento encontrado no Depha faz uma descrição do interior da igreja:

Acima de pequena cruz de marfin [sic], projeto-pintura de imagem N. Sra e

Menino Jesús, segurando como que uma bola. As paredes eram pintadas

rusticamente de bandeirinhas. O altar, uma mesa simples com seis castiçies

[sic] pequeninos. Cinco bancos ocupavam o espaço da nave central. Sua

mobi1ia principal era o harmonio. A imagem primitiva de Fátima fora

colocada na parede, ao lado direito de quem entra.

O texto do documento relata como eram as primeiras missas, realizadas aos

domingos, sempre com muitos operários e funcionários assistindo. Como a igreja era

pequena, surgiu a necessidade de acomodar as pessoas, por isso, as missas eram rezadas na

porta da igreja (figuras 30 e 31). Transportavam para fora o altar, as imagens e os bancos. Um

alto-falante era instalado para garantir que o som chegasse a todos. Um pequeno sino, cedido

pela NOVACAP, alertava o povo para o horário das missas. Engenheiros e Candangos

assistiam a missa juntos. Frei Demétrio faleceu em 1968, quando a Igrejinha não tinha mais

os afrescos.

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90

Figura 30 - Missa montada na parte externa da Igrejinha, em 1958

Fonte: Depha

Fotógrafo: Desconhecido

Figura 31 - Missa na Igrejinha, em 1958

Frei Demétrio do Encantado e Frei Moisés

Fonte: DEPHA

Fotógrafo: Desconhecido

Em um artigo publicado na Revista Módulo, em 1958, intitulado "Volpi e a arte

religiosa", o crítico de arte Mário Pedrosa100, um dos mais respeitados do período e atento ao

100

PEDROSA, Mário. Volpi e a arte religiosa. Revista Módulo, Rio de Janeiro, nº 11, dez. 1958.

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91

contexto histórico-político-cultural, fornece informações e análises preciosas acerca da

Igrejinha e da obra do artista. A respeito do convite de Niemeyer a Volpi, Pedrosa afirma que

o arquiteto o retirou, merecidamente, do anonimato de sua vocação como muralista:

Eis porém, que Oscar Niemeyer resgata a omissão, e tem a honra de tirar da

espécie de anonimato em que vivia o modesto e grande artista, lhe confiando

a tarefa de decorar as paredes da Capela N. S. de Fátima das Pioneiras

Sociais, que êle construiu em Brasília. (PEDROSA, 1958, p. 20)

Tudo foi projetado e pensado em pequenos detalhes para dar ao lugar o acolhimento

peculiar de um templo. A pintura envolveria os fiéis na aura que o espaço pedia:

Volpi fez ali dois afrescos, desenhou os paramentos do padre e da via-crúcis.

A igreja está funcionando, oferecendo aos fiéis ambiente de autêntico

recolhimento. A experiência de integração parece, assim, ter logrado êxito,

pois coadunam-se ali invólucro e interior, espaços internos e externos,

formas, equipamentos, paramentos, objetos e a precípua finalidade a que se

destina a capela. A simplicidade de sua estrutura, numa planta em triângulo

que lembra uma tenda no deserto, se casa com a simplicidade de seus

afrescos, concebidos por Volpi e executados com maestria sem esforços,

espontânea. (PEDROSA, 1958, p. 20)101.

A experiência da Capela Nossa Senhora de Fátima é única, na opinião de Pedrosa,

resultado da perfeita integração entre Oscar Niemeyer e Alfredo Volpi:

uma experiência incomparavelmente maior dos dois artistas, cada qual no

seu setor: o de Niemeyer de hoje não é mais o jovem de talento e sem

experiência de então, mas o artista em plena maturidade e no apogeu de seu

poder criador. (PEDROSA, 1958, p. 20).

Pedrosa considera escandaloso que, no painel postado fora da capela, onde se dão

informações sobre as pessoas envolvidas no projeto, se omita o nome do pintor que a decorou.

Seu reconhecimento também refere à criação dos afrescos de Volpi como enriquecedora para

a pintura mural brasileira, "revivendo a gloriosa e arcaica técnica artesanal a que se devem os

maiores momentos de pintura de todos os tempos" (PEDROSA, 1958, p. 20).

O autor descreve a pintura envolvida numa poética criadora, envolvendo os traços, a

Madona e as cores utilizadas por Volpi:

O desenho, a linha de um ritmo em si livre e belo, contorna a Madona, que

planta no azul, como uma aparição, moderna e brasileira, do <trecento> ou

do <quatrocento> italiano das nossas selvas, e marca as estruturas

compositivas, enquanto as côres criam os espaços, hierarquizam os planos,

dão o tema. Do conjunto ressalta atmosfera espiritual intensa e interior, lírica

e popular, convidativa à devoção. As côres são, aqui, o grande protagonista,

e como são terras e minerais, se identificam ao próprio muro que cobrem.

(PEDROSA, 1958, p. 20).

101

Idem.

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92

A obra de Volpi, para o crítico de arte Mário Pedrosa, responde às exigências de uma

obra de caráter religioso, causando emoção a quem visita o templo:

Apesar da alta sabedoria de sua estrutura, de seu desenho, de seu sentido

arquitetônico e monumental, aquêles afrescos não pedem "uma pura

admiração intelectual" ao visitante, nem se complicam "numa simbologia

subjetiva" que visa a alcançar "certas zonas emotivas", por processos

indiretos de evocação ou de associação de idéias. Seu impacto emocional

sôbre o visitante é direto: primeiro o afaga ou o afoga na atmosfera luminosa

de seus azuis, para depois o conduzir pela linha melodiosa de seus arabescos,

até a Madona, sustentada, apoteòticamente [sic] entre duas colunas de

bandeiras. (PEDROSA, 1958, p. 21).

Não há subjetivismo na arte de Volpi, ao contrário, analisa o Pedrosa, ela é

essencialmente "comunal e inalterável" (PEDROSA, 1958, p. 21), e aí está sua

autenticidade, seu objetivismo plástico e seu poder de comunicação direta

com a alma popular, pois, com efeito, lá em Brasília, populares vivem a

rodear a capela, e a meter a cabeça, atraídos e curiosos pelos buracos da

porta, onde faltam vidros, a fim de apreciar, lá dentro, na semi-obscuridade,

a doçura daqueles azuis, o ritmo ondulante da madona, as bandeirinhas, as

casas entre verdes e terras. Ali se diz missa, e o povo, contrito, ali vai rezar,

"rezar simplesmente com a ingênua inibição e humildade com que até agora

as multidões rezaram nas igrejas". (PEDROSA, 1958, p. 21)

Salientando três aspectos dos afrescos de Volpi na Igrejinha Nossa Senhora de

Fátima (figuras 32, 33 e 34), Pedrosa considera que o trabalho de Volpi é "uma legítima obra

de um afresquista que vem... reviver a gloriosa e arcaica técnica artesanal" (PEDROSA, 1958,

p. 21).

Figura 32 - Detalhe central de um dos afrescos de Alfredo Volpi, da Capela Nossa Senhora de Fátima

Fonte: Revista Módulo n° 11, 1958

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93

Figura 33 - Detalhe da parede esquerda da Capela Nossa Senhora de Fátima

Fonte: Revista Módulo n° 11, 1958

Figura 34 - Detalhe da parede direita da Capela Nossa Senhora de Fátima

Fonte: Revista Módulo n° 11, 1958

A integração entre a arquitetura e a obra de arte, na opinião de Mário Pedrosa, revela

o êxito da experiência proposta por Niemeyer, tendo alcançado, perfeitamente, "a unidade

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estilística da pintura e da arquitetura de que resultou, logicamente, o primeiro exemplo

acabado de integração artística... e funcional em Brasília" (PEDROSA, 1958, p. 20).

A pintura de Alfredo Volpi na Igrejinha retratava, ao fundo, a imagem de Nossa

Senhora de Fátima, sem as feições do rosto, flutuando, em ascensão, segurando o Menino

Jesus no braço direito e uma pequena flor na mão esquerda. O menino, também sem feições,

segura um globo na mão direita. A imagem é cercada nas extremidades por uma sequência

vertical de bandeirinhas coloridas. Desse modelo original, foi encontrado um único registro

autêntico colorido, num livro lançado pela Editora Pinakotheke, em comemoração aos 110

anos do arquiteto Oscar Niemeyer102. Na parede lateral, outro grande afresco do artista

continha elementos de fachadas, arcos e bandeiras, características próprias da linguagem

plástica do artista (figura 35). As obras não duraram muito tempo e, provavelmente entre os

anos 1960 e 1964, foram drasticamente destruídas, retirado o reboco das paredes e recoberto

por tinta, em circunstâncias até hoje não totalmente esclarecidas.

Figura 35 - Afresco original de Alfredo Volpi na Capela Nossa Senhora de Fátima (1958)

Fonte: COSTA, Marcus Lontra. Oscar Niemeyer (1907-2012): Territórios da criação.

Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2017, p.99.

Existem alguns registros de que o interior da Igrejinha teria recebido uma sequência

de pequenos quadros, em uma das laterais, retratando a Via Crucis. Um desses registros foi

102

COSTA, Marcus Lontra. Oscar Niemeyer (1907-2012): Territórios da criação. Rio de Janeiro: Pinakotheke,

2017.

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95

publicado no artigo de Mário Pedrosa: "Volpi ali fêz dois afrescos, desenhou os parâmetros

dos padres e da Via crucis. A capela foi inaugurada e está funcionando, oferecendo aos fiéis

ambiente de autêntico recolhimento" (PEDROSA, 1958, p. 20)103. Não se têm mais notícias

dos quadros retratando a via sacra. Das fotos encontradas, observam-se, em dois momentos, a

existência de pequenos quadros com molduras diferentes. Eles só aparecem após a retirada

dos afrescos, de forma que não é possível afirmar que tenham sido obras do artista (figuras 36

e 37). Atualmente, nenhum deles está mais no interior da igreja.

As fotografias abaixo (figuras 36 e 37), constantes na documentação do Depha

(1978)104, além dos quadros da via sacra, também oferecem a vista interna do templo, na qual

se destaca o estado da parede após a raspagem da pintura, quando se constatou a

impossibilidade de restauração do painel de Volpi ali desenhado, além de evidenciar outros

elementos que compõem a parede (caixa de som e sistema de iluminação).

Figura 36 - Interior da Igrejinha com quadros da via sacra na parede em 1978.

Fonte: Acervo Depha, 1978

Fotógrafo: Joaquim Firmino

103

PEDROSA, Mário. Volpi e a arte religiosa. Revista Módulo, Rio de Janeiro, nº 11, dez. 1958.

104BRASÍLIA. Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito Federal. Igrejinha Nossa Senhora

de Fátima – Histórico, 1978.

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96

Figura 37 - Interior da Igrejinha com quadros da via sacra na parede em 1998.

Fonte: Correio Braziliense

105

Fotógrafo: Zuleika de Souza

Em 1959, chega à Igrejinha a imagem de N. Sra de Fátima, adornada com pedras

semi-preciosas buriladas na Alemanha. Era considerada a maior imagem da Santa do mundo.

Foi oferecida ao presidente JK, doada pela Revista Literária-Comercial Brasil-Portugal e

transportada para Brasília pela Força Aérea Brasileira - FAB. A chegada da Santa (figura 38)

foi uma festa acompanhada por cortejo, sons de foguetes e comentada pela imprensa:

Esta é Nossa Senhora de Fátima que vai para Brasília. A mesma graça e a

mesma alegria que proporcionou aos pastorzinhos da Cova da Iria em

Portugal, vai ela dar aos habitantes da nova capital brasileira. A imagem foi

esculpida em cedro do Brasil, pelo jovem artista Antônio da Silva Antunes.

Mede 2,40 metros e pesa 200 quilos, ornada de ouro de libra e incrustações

de diversas pedras preciosas. Possui um têrço em filigrana de ouro, oferecido

pelas senhoras da Ação Católica de Famalicão. A confecção da imagem

durou um ano, sendo a maior do mundo. Foi doada ao Santuário de Brasília

pela Revista Portugal- Brasil, de Lisboa, representada pelos Srs. Veloso de

Carvalho e Aníbal Contreiras, objetivando estreitar os laços de amizade entre

Portugal e o Brasil. (REVISTA BRASÍLIA, nº 28, p. 19)106

Como a Igrejinha não comportava a escultura, ela passou a pertencer à Paróquia

Nossa Senhora de Fátima, a matriz. Curiosa é a afirmativa do documento elaborado pelos

frades Capuchinos, que trata da chegada da Santa em Brasília, ao afirmar que, enquanto o

105

MACIEL, Nahima. Um tesouro perdido. Correio Braziliense. Brasília, 28 jun. 1998, Caderno Dois, p. 5.

106 REVISTA BRASÍLIA. N. S. de Fátima. nº 28, Ano 3, 1959.

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97

povo e a igreja comemoravam a chegada da imagem, "Dr.Oscar Niemeyer protestava pela

presença dessa "imagem feia", como dizia ele, pedindo ao frade que fosse quebrada"107.

Figura 38 - Coroação da imagem de Nossa Senhora de Fátima, 1959

Fonte: Acervo Depha

TOMBAMENTO DA IGREJINHA

A Igrejinha, juntamente com seu entorno e a Entrequadra Sul 307/308, teve o

tombamento na esfera distrital conferida pelo Governo do Distrito Federal (GDF) por meio do

Decreto nº 6.617, de 28/4/82108. O registro consta no Processo de tombamento nº 005469/82,

sendo inscrita no Livro de Tombo II – Edifícios e Monumentos Isolados (Depha) em

18/11/91.

Em âmbito federal, o templo foi tombado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e

Artístico (Iphan) e inscrito no Livro das Belas Artes, também incluindo seu entorno. O

107

BRASÍLIA. Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito Federal. Segunda etapa de

instalação dos freis capuchinos no Planalto Central: Brasília - Capital. Processo de tombamento da Igrejinha

Nossa Senhora de Fátima, [s.d.], p. 83-86.

108 BRASÍLIA. Governo do Distrito Federal. Secretaria de Cultura. Departamento de Patrimônio Histórico e

Artístico - Bens Tombados e Bens Registrados. Disponível em: <http://archive.is/3gWgQ>. Acesso em: 25 jul.

2018.

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98

processo de tombamento teve início em 2007, sendo anunciado na 55º reunião do Conselho

Consultivo do Patrimônio Cultural, realizada no Rio de Janeiro. A reunião teve, entre os

objetivos, a "intenção de ampliar e tomar mais abrangente o sistema de proteção do

patrimônio cultural brasileiro"109 (IPHAN, 2007, p. 1), evidenciando uma nova disposição

política de dar início a um processo de proteção do patrimônio mais amplo, enfatizando a

ideia de compartilhamento das responsabilidades. O conselho era formado por intelectuais

alinhados com a base dos princípios do Movimento Moderno, amigos pessoais e antigos

colaboradores do arquiteto Oscar Niemeyer na construção de Brasília. A justificativa para

tombamento da Igrejinha consistia na preservação da sua característica singular, resguardando

também seu entorno:

para continuar pequena, comovente e bela, coerente com a sua história e com

a admiração mundial, exigirá o resguardo non aedificandi de todo terreno a

sua frente, desde o 'valão' do rond-point e do terreno livre dos dois lados à

SQ 308 e à SQ 408 , bem como todo o terreno posterior, até as edificações

educacionais existentes. (IPHAN, 2007, p. 54) 110

São objetos de tombamento o edifício, os jardins externos, mobiliário urbano original

e painel em azulejo de Athos Bulcão. O critério de resguardo à área non aedificandi proíbe

instalações provisórias ou precárias para feiras, circos, quiosques de informação ou serviços

de alimentação, etc.

A Igrejinha pertence à Cúria Metropolitana do Distrito Federal e se mantém sob

responsabilidade da Ordem dos Frades capuchinhos, que se comprometem a zelar pela

manutenção do templo.

109

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTORICO E CULTURAL. Ata da 55º reunião do Conselho

Consultivo do Patrimônio Cultural. 2007.

110 Idem.

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99

5. LEVANTAMENTO DO PROBLEMA

A Igrejinha não escapou imune a problemas, embora tenha caído profundamente no

gosto popular, sendo reconhecida como um patrimônio de valor, amada, cuidada, frequentada

e acolhida por toda a comunidade local (moradores, fiéis, membros da igreja, comerciantes,

visitantes e moradores de rua que insistem em permanecer no entorno da igreja), servindo de

oportunidade de encontro e relações de sociabilidade, principalmente daquelas pessoas que

moram, frequentam as missas e eventos religiosos e trabalham próximas ao templo.

Ao longo dos anos, a pequena Capela sofreu uma série de danos causados por

vandalismo, pelo mau uso, pela falta da atenção necessária por parte da esfera pública e pela

incompreensão de algumas pessoas do contexto artístico em que estava inserida. Sendo

administrada por frades que são trocados periodicamente, é difícil reunir informações e

documentação com registros de tudo o que aconteceu com a Igrejinha ao longo do tempo,

principalmente entre os anos 60 e 70, mas alguns danos, ocorridos antes e mesmo depois do

tombamento, são possíveis de ser apresentados. Entre eles, sem dúvida, a maior perda foi a

destruição irreparável do afresco do artista Alfredo Volpi, que trataremos mais à frente.

A porta de Athos Bulcão tem uma referência descritiva no documento já

mencionado, encontrado no Departamento de Patrimônio Artístico (Depha), acerca da

chegada dos freis capuchinos no Planalto Central, o que aconteceu logo após a inauguração da

Capela, em 1958, afirmando que "sua grande porta se dividia em cinco partes movidiças [sic],

sendo encaixes de vidro raiban" (DEPHA) 111. Antes de 1960, a porta já tinha sido substituída

por outra de treliça. Não foi possível identificar quando nem o motivo da mudança, mas um

registro documental da Igrejinha, no Depha, sugere que, ao colocar os azulejos, a troca tenha

sido necessária por questão da harmonia do conjunto112.

Vários roubos também ocorreram na igreja. Ainda em 1959, foi levado o tabernáculo

e tiraram quinze pedras semipreciosas da imagem de Nossa Senhora de Fátima. Em 1964, a

Coroa, confeccionada em ouro, e o terço, em filigrana de ouro, também foram roubados. Os

111

BRASÍLIA. Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito Federal. Segunda etapa de

instalação dos freis capuchinos no Planalto Central: Brasília - Capital. Processo de tombamento da Igrejinha

Nossa Senhora de Fátima, [s.d.], p. 83-86.

112 BRASÍLIA. Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito Federal. Igrejinha Nossa Senhora

de Fátima - Histórico. 2009

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100

objetos foram recuperados dias depois. Um terceiro roubo da coroa teria ocorrido, porém não

foi possível ao Depha precisar sobre sua recuperação113.

Atos de vandalismo também causaram a destruição de peças dos azulejos, já que a

parte posterior da igreja, pelo isolamento, é utilizada para uso de drogas e como banheiro

público. A fachada do templo já foi pichada e muitas pessoas acendem velas que, apoiadas

nas peças, acabam queimando as paredes.

Depoimentos constantes em documentos fornecidos pelo Depha dão uma noção de

como o mau uso da Igrejinha, seja por visitantes, por fiéis, ou por moradores de rua que

vivem nas imediações, deteriorou o prédio religioso. A paroquiana Ilda D'Ângelo, em 1983,

afirmou que, desde 1960, na época do Frei Demétrio, as pessoas acendiam velas regularmente

na capela. No início, as velas eram vendidas pela própria lgreja e acesas lá dentro, em

pequenas vasilhas. Um dia a imagem de Santo Antônio foi queimada e os frades suspenderam

a venda, então passaram a acender do lado de fora, próximas às paredes. Foi construída uma

estrela como suporte, fora do templo, mas não adiantou. Construíram um tanque retangular,

mas o problema continuou porque as pessoas preferiam acender as velas junto às paredes

externas da Igreja por ser um local protegido da chuva e dos ventos. Os azulejos foram

queimados, ficaram sujos de fuligem, não adiantava lavar que não saía. Trocaram algumas

peças, mas ficaram diferentes, não eram iguais.

A paroquiana Mirian Ervilha também reclamou do problema, afirmando que já

encontraram velas acesas na fachada diante da igreja, junto ao portão principal, que é em

treliça de madeira, e também sobre as caixas de instalações telefônicas e elétricas.

No mesmo sentido, o frei Domingos B. Buza, em depoimento prestado no mesmo

ano, reclama das velas e sugere a construção de um crematório, justificando:

Se executada esta obra, não teríamos os azulejos de Athos Bulcão,

exclusivos da lgrejinha, danificados; não teríamos a fuligem das velas a

enegrecer o teto da lgrejinha; não teríamos mais as colunas da lgrejinha

como suportes de velas deixando manchas escuras de tão feio aspecto; não

teríamos mais, a grave possibilidade de um incêndio da lgrejinha de Fátima;

teríamos, nós os que vivemos todos os dias na lgrejinha e nela trabalhamos, a

possibilidade de mantê-la como o Estado deseja, o povo merece e os turistas

gostam de vê-la em suas visitas; teríamos respeitada a mentalidade do povo e

guardaríamos a beleza deste Templo 'que é monumento Nacional. (BUZA,

1983)114

113

Idem.

114 BUZA, Domingos. Depoimento - Processo de restauração igreja N. Sra de Fátima 1ª etapa - Construção

do santuário de velas – DEPHA. Brasília: Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito

Federal, 1983.

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101

Em relação aos moradores de rua, o problema já era motivo de preocupação há 40

anos, quando a Secretaria de Cultura do Distrito Federal encaminhou documento ao Secretário

de Segurança Pública da cidade115 pedindo solução para o caso. A preocupação voltava-se

para a segurança dos moradores e turistas. O documento afirma que, com frequência,

aconteciam cenas de violência nas imediações da Igrejinha, a maioria provocada por

mendigos e bêbados que escolhiam a proximidade da Igrejinha como residência. Os frades

chegaram a ameaçar fechar a igreja caso perdurasse a situação de insegurança. Por outro lado,

em entrevista para esta pesquisa, o Frei Júnior Roza, frade que recentemente foi transferido

para outra cidade, ele afirmou que a igreja não pode tirar aquelas pessoas dali, que há uma

preocupação com a acolhida, porque esse é o papel da igreja. É um problema que não

conseguem resolver, mas ele afirma se preocupar e não concordar que utilizem qualquer tipo

de violência para afastar essas pessoas116.

Passados os anos, o problema relativo aos azulejos não foi superado. A limpeza e a

substituição ds peças foram feitas nas duas reformas, em 1982 e em 2009, já que os danos

eram bem comprometedores. As imagens feitas no mesmo local, nos dois períodos, atestam

que as mesmas práticas continuam danificando os azulejos (figuras 30 e 40). Em uma das

visitas ao templo, em 2018, para coletar dados para a pesquisa, também foram flagradas

pessoas acendendo velas próximas aos azulejos.

Figura 39 - Azulejos danificados na fachada posterior da Igrejinha, 1983

Fonte: Depha

115

BRASIL, Ministério da Educação e Cultura; Secretaria de Cultura. Processo de restauração da Igrejinha.

Brasília, S/N. 1982.

116 ROZA, Junio. Entrevista sobre a relação da comunidade com a Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, em

Brasília. Concedida a Meiriluce Santos Perpetuo. Brasília, nov. 2017.

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102

Figura 40 - Azulejos danificados na fachada posterior da Igrejinha, 2018

Fotógrafo: Meiriluce Santos

Em 1982, o Departamento de Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura do

Governo do Distrito Federal se empenhou em realizar uma restauração da Igrejinha dentro do

projeto original de Oscar Niemeyer. O projeto procurava manter a originalidade do templo em

vários aspectos, tendo buscado orientações com Niemeyer e Athos Bulcão para os trabalhos a

serem realizados. A necessidade de restauração se dava, segundo o documento, em virtude

das alterações ocorridas em outras reformas, desfigurando o detalhamento do projeto original.

O projeto de restauração, feito pelo Ministério da Educação e Cultura, em parceria

com a Secretaria de Cultura do Governo do Distrito Federal117, foi desenvolvido a partir do

levantamento de dados colhidos por meio de entrevistas, material histórico (incluindo o

projeto de tombamento da própria Igrejinha) e também aproveitando as experiências e

tentativas fracassadas para solucionar um dos problemas, considerado como maior agente

predatório do monumento a queima de velas junto aos pilares e paredes azulejadas.

Com a proteção por meio do tombamento federal, que aconteceu em abril de 1982,

logo em seguida foram executadas algumas obras de recuperação consideradas mais urgentes,

no sentido de impedir os efeitos de uma descaracterização gradual e para oferecer condições

mais favoráveis ao desempenho dos ofícios religiosos e ao turismo.

Surge, então, novamente, a polêmica destruição dos afrescos de Alfredo Volpi. A

tentativa de um levantamento histórico e documental acerca do ocorrido foi incapaz de 117

BRASIL, Ministério da Educação e Cultura; Secretaria de Cultura. Processo de restauração da Igrejinha.

Brasília, S/N. 1982.

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103

determinar, com certeza, o que aconteceu na época em que as obras foram destruídas. Na

versão popular, que corre boca-a-boca e tornou-se praticamente uma lenda, os afrescos, de

fato, teriam sido destruídos por membros da própria igreja com o apoio de alguns fiéis

insatisfeitos com a pintura. Mesmo pessoas que conheceram o afresco e frequentavam a igreja

desde antes da década de 1960, hoje idosas, confirmam essa versão, já que era o que se

comentava na época. Outros trazem lembranças do que ouviram de seus pais, reafirmando que

a destruição foi intencional e motivada por pessoas que se diziam descontentes com a forma

como a Santa foi retratada. O que, de fato, justificou a destruição dos afrescos de Volpi na

Igrejinha até hoje é uma incógnita sobre a qual a própria igreja não quer se manifestar. A

certeza é que quase nada sobrou da pintura, tendo sido raspado o reboco e sobrepostas várias

camadas de tinta.

A autenticidade da obra de Volpi só pôde ser testemunhada pelos fiéis e curiosos que

frequentaram a paróquia nos quatro anos que se seguiram à inauguração, lembra a jornalista

Nahima Maciel (1988, p. 5)118. Em um artigo rico em pesquisas documentais e entrevistas que

buscavam entender o que aconteceu com o templo, Nahima conversou com o artista plástico e

então diretor do Museu de Arte de Brasília, Ralph Gehre, que afirmou existir uma tendência

de transformação natural nos espaços políticos de Brasília, na qual a Igrejinha foi perdendo a

ideia de originalidade, sendo adaptada de acordo com funcionalidade que a congregação, à

qual estava submetida, julgava necessário.

A jornalista afirma não saber como se deu a retirada dos painéis e que, na época, a

igreja ainda não integrava o patrimônio histórico e seu tombamento ainda estaria por vir. "O

controle sobre a manutenção da obra praticamente não existiu" (NAHIMA, 1988, p. 5).

Sobre as reformas ocorridas na igrejinha, Nahima afirma que

os painéis de Volpi desapareceram. As cores das paredes internas mudaram

várias vezes e a decoração com imagens de santos, não previstas por

Niemeyer, ficou a cargo dos párocos que conduzem as atividades litúrgicas.

(NAHIMA, 1988, p. 5)

O crítico de arte Mário Pedrosa, em artigo publicado na Revista Módulo, em 1958119,

já refere um possível problema na pintura, revelando que os afrescos foram feitos em

condições pouco adequadas, afirmando ter sido

concebidos por Volpi e executados com maestria sem esforços, espontânea,

embora nas piores condições técnicas, na azáfama de sua construção, com

118

MACIEL, Nahima. Um tesouro perdido. Correio Braziliense. Brasília, 28 jun. 1998, Caderno Dois, p. 5.

119 PEDROSA, Mário. Volpi e a arte religiosa. Revista Módulo, Rio de Janeiro, nº 11, dez. 1958.

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104

dia marcado para inaugurar, e materiais mal preparados (areia ainda impura

e cal muito recentemente queimada). (PEDROSA, 1958, p. 20)

Entretanto, a respeito de um suposto problema na pintura, é também Mário Pedrosa

(1958, p. 20) que atesta a competência e conhecimento de Volpi na confecção de afrescos ao

afirmar sua vocação como muralista, concluindo que a capelinha viria a enriquecer a pintura

mural brasileira com uma excelente realização.

Comparando o trabalho de Volpi com o de Cândido Portinari, o crítico comenta a

experiência de Volpi na técnica artesanal:

A não ser a primeira tentativa de afresco feita pelo pintor Cândido Portinari

para o Ministério da Educação, que ainda hoje permanece, apesar dos senões

técnicos, como uma das obras mais sólidas do ilustre pintor, não havia outro

exemplo no gênero no Brasil. Agora, Volpi nos dá uma legítima obra de

afresquista que vem, neste século de pura invenção e de mecanização das

técnicas, inclusive as artísticas, revivendo a gloriosa e arcaica técnica

artesanal, a que se devem os maiores momentos da pintura de todos os

tempos. (PEDROSA, 1958, p. 20)

E complementa, em seguida:

Quanto a Volpi, é o mestre-artesão, com uma tarimba de dezenas de anos,

senhor de sua técnica e sabendo, como ninguém, o que é uma pintura de

parede, pois foi exclusivamente dentro do artesanato da construção civil que

o artista criador nasceu, se formou e veio trabalhando até hoje, num

constante estado de graça. (PEDROSA, 1958, p. 20)

Um possível problema técnico também teria sido sugerido por Athos Bulcão,

segundo a matéria de Nahima Maciel, na qual o artista dos azulejos afirma que "a intenção de

cobrir os painéis simplesmente porque a imagem não agradava ao público nunca existiu"

(ATHOS, in NAHIMA MACIEL, 1998, p. 5). E complementa "Aqueles afrescos foram feitos

muito apressadamente. A cal usada na parede ficou pouco tempo no processo de tratamento e

isso atacou o fundo do desenho, deixando manchas enormes" (ATHOS, in NAHIMA

MACIEL, 1998, p. 5). Athos, segundo a jornalista, menciona recordar de algumas propostas

para recuperação dos desenhos, que precisariam ser refeitos, mas ele não acompanhou mais o

processo e acabou por perder de vista o problema e o que se decidiu acerca dos afrescos.

As versões orais também podem inferir em fatos testemunhados pela própria

comunidade, hoje já em idade avançada, que acompanhou todo o processo. A afirmação foi

uma unanimidade em todos os entrevistados da pesquisa e eles não parecem ter dúvidas disso.

De tantas vezes repetidas, as versões praticamente converteram-se em uma verdade com

semelhantes relatos:

O afresco de Nossa Senhora, na Igrejinha, desapareceu inteiramente em

razão da insensatez de um padre de poucas luzes que passou uma mão de

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105

tinta e simplesmente apagou uma das obras-primas da pintura mural

modernista brasileira. (FRANCISCO, 2007)120.

O jornalista André Soliani, da Folha de São Paulo, também comenta a insatisfação

de membros da igreja com os painéis de Volpi. E explica:

No final dos anos 60 ou início dos anos 70, os freis cappuccinos concluíram

que os painéis do pintor Alfredo Volpi (1896-1988), que ornavam a igreja de

Nossa Senhora de Fátima, em Brasília, eram profanos. Rasparam as

bandeiras de São João características do artista e pintaram por cima. "Os

cappuccinos achavam que não sintonizava bem com a oração e com a

espiritualidade", afirma o frei Venildo Trevizan, atual padre da igreja.

(SOLIANI, 2004)121

A suspeita é igualmente mencionada pelo jornalista Silas Martí, também da Folha de

São Paulo:

Fiéis e padres da época não gostaram da ousadia. Diziam que a Virgem

retratada por Volpi era a Nossa Senhora do Rosário, não a de Fátima.

Também consideraram profanas as bandeirinhas juninas.

Na década de 1960, rasparam então o reboco das paredes, apagando para

sempre o que seria a obra-prima da fase sacra de Volpi. Quase não sobraram

imagens do interior da capela – as que restam são em preto e branco e de

péssima qualidade. (MARTI, 2007) 122

Nas abordagens feitas pessoalmente para realização desta pesquisa, que envolveu

moradores das quadras próximas à Igrejinha (307, 308 sul), arquitetos, urbanistas, grupos

organizados pela preservação de Brasília, prefeitura da quadra 307/308 sul, comerciantes,

jornalistas e pessoas que trabalham como voluntárias nas missas, funcionários da Igrejinha,

entre outros, também foram ouvidas as mesmas versões: "um padre bravo, um dia, passou

tinta em cima da pintura", "pessoas que não entendiam o contexto de arte da época, não

gostavam da pintura e se empenharam, junto com os padres, para destruir", "foram algumas

frequentadoras do templo, que não sabiam nada de arte, que incitaram a destruição", "aquela

obra não tinha nada a ver com os ícones da igreja, não tem nada parecido no mundo inteiro

nem na história da arte" e até que "a obra não foi feita para ficar, só para o casamento da filha

do Israel Pinheiro".

120

FRANCISCO, Severino. Conheça as obras do pintor Alfredo Volpi em Brasília. Correio Braziliense,

2017. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-

arte/2017/02/12/interna_diversao_arte,572760/conheca-as-obras-do-pintor-alfredo-volpi-em-brasilia.shtml>.

Acesso em: 29 jun. 2017.

121 SOLIANI, ANDRÉ. "Profanos", painéis de Volpi são apagados: Freis achavam que obra em igreja não

sintonizava com oração. São Paulo. Folha de São Paulo - Cultura e Barbárie, 13 jun. 2004. Disponível em:

<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1306200409.htm>. Acesso em: 29 jul. 2018.

122 MARTÍ, Silas. Instituto Volpi quer ir à Justiça contra igreja que destruiu afresco do pintor. Folha de

São Paulo. São Paulo, 01 mar. 2017. Disponível em:

<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/03/1862594>. Acesso em: 28 jun. 2018.

Page 106: MEMÓRIA, IDENTIDADE E FÉ NA CAPELA DE …...IGREJINHA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA Salvador 2019 MEIRILUCE SANTOS PERPETUO MEMÓRIA, IDENTIDADE E FÉ NA CAPELA DE BRASÍLIA: ANÁLISE

106

De acordo com o advogado e historiador Pedro Mastrobuono123, presidente do

Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna (Iavam), há divergências de versões acerca do que

teria acontecido com a pintura original do artista, mas reafirma o possível incômodo causado

pela obra, justificando:

Seja por considerar as bandeirinhas “profanas”; pela falta de pés na figura de

Nossa Senhora; ou ainda por entender que, na devoção mariana de Nossa

Senhora de Fátima, a Virgem não carregaria o Menino Jesus no colo; certo

padre, anos depois, incomodado, mandou simplesmente raspar os afrescos e

pintou as paredes de branco. Há apenas alguns poucos registros fotográficos

de tais no catálogo raisonné do artista. (MASTROBUONO, 2017)124

Também do jornalista Paulo Lannes, no jornal local Metrópoles, publica a versão de

destruição irreversível:

Na década de 1960, ocorreu um dos maiores crimes contra a arte na capital

brasileira. O afresco de Alfredo Volpi, pintado no interior da igrejinha Nossa

Senhora de Fátima (308 Sul), foi raspado até o reboco por religiosos

descontentes com o desenho. Em seguida, uma mão de tinta foi o suficiente

para esconder o ato criminoso [...]. (LANNES, 2017)125

A jornalista Nahima Maciel também mantém essa versão ao afirmar que as cenas

desenhadas por Volpi "lembravam uma quermesse, com fundo azul e bandeirinhas vermelhas,

brancas e amarelas dependuradas como uma festa junina" (NAHIMA, 1988, p. 5) que

pareciam desagradar parte da comunidade local e os eclesiásticos responsáveis pelo templo.

De acordo com ela, o frei Amadeo Antonio Semin, pároco responsável pela Igrejinha em

1961, teria afirmado que a pintura era muito futurista e que não dava para distinguir direito as

imagens, recebendo muitas críticas. Quando chegou, já estavam pintando por cima dos

desenhos.

O diretor do Depha à época, Antonio Menezes, informou à jornalista que a

recuperação do afresco era impossível, "acusando as inúmeras mãos de tinta e uma suposta

raspagem da pintura original de inviabilizarem a recuperação" (NAHIMA, 1988, p. 5).

123

MASTROBUONO, Pedro. Descaso com o patrimônio cultural vitima obras de Volpi. O Estadão. São

Paulo, 18 fev. 2017. Disponível em: <http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,descaso-com-o-patrimonio-

cultural-vitima-obras-de-volpi,70001668722>. Acesso em: 10 jul. 2017.

124 Idem.

125 LANNES, Paulo. Instituto Volpi quer processar Igrejinha por destruir obra do pintor - O presidente da

instituição pede explicações à Arquidiocese de Brasília em nome “da memória do pintor”. Jornal Metrópoles,

Caderno Política Cultural, 02 mar. 2017. Disponível em: <https://www.metropoles.com/entretenimento/politica-

cultural/instituto-volpi-quer-processar-igrejinha-por-destruir-obra-do-pintor>. Acesso em: 4 ago. 2018.

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107

O caso é lembrado pela jornalista num infográfico publicado junto com sua matéria,

intitulado "Genealogia de um descaso" (figura 41)126

. Nele, é possível verificar como se dava

a distribuição dos afrescos dentro da igreja:

Figura 41 - Infográfico "Genealogia de um descaso" Correio Braziliense, 1998.

Fonte: Nahima Maciel, Correio Braziliense, 1998

Autor: Amaro Júnior

A também jornalista Ana Miranda, que conheceu a pintura ainda criança, refere-se à

perda da mesma forma:

Um dia apagaram os afrescos da parede, que eram de Volpi. Disseram que o

padre pintou por cima, os fiéis reclamavam, não sugeria oração, mas festa, e

achavam que a santa estava errada, pois Volpi pintara Nossa Senhora do

Rosário. Santa simplicitas... A Santa que apareceu em Fátima, sobre a

azinheira, mais brilhante que o sol, e pediu que todos rezassem o santo

rosário, disse chamar-se Nossa Senhora do Rosário de Fátima! Volpi estava

126

MACIEL, Nahima. Um tesouro perdido. Correio Braziliense. Brasília, 28 jun. 1998, Caderno Dois, p. 5.

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108

certo. No entanto, acabaram-se o boi, a pomba, a senhora com seu menino,

as bandeirolas e as cores puras. (MIRANDA, 2009, p. 8)127

A Paróquia Nossa Senhora de Fátima também dá uma versão ao ocorrido num artigo

publicado na sua página oficial, comentando as matérias aqui citadas anteriormente,

publicadas pelo crítico Mário Pedrosa (1958), na Revista Módulo, de que Volpi teria feito os

afrescos muito apressadamente e em condições desfavoráveis, e pela jornalista Nahima

Maciel (1988), no jornal Correio Braziliense, referindo-se ao comentário de Athos Bulcão de

que o problema nos afrescos foi exclusivamente técnico. E acrescenta:

Esses afrescos não duraram muito tempo - não mais que quatro anos. Foram

substituídos por tinta comum. Há em torno desse fato duas versões: a

primeira grassou fácil e rapidamente através dos tempos e chegou até nós: A

afirmação é de que os desenhos foram retirados por desagradar a alguns

paroquianos mais devotos, mais conservadores, que viam naquelas imagens

uma forma nada convencional de representar aquilo que deveriam ser

símbolos sacros e que se mostraram inadequados no interior de um templo

destinado à reflexão, à oração e ao encontro com Deus e, intransigentes,

solicitaram sua substituição. (PARÓQUIA NOSSA SENHORA DE

FÁTIMA)128

Ressalte-se que apesar de justificar um possível problema técnico na obra, a Paróquia

Nossa Senhora de Fátima não nega que a destruição tenha sido um ato perpetrado por

membros da própria igreja, mas se exime de culpa e sugere uma suposta responsabilidade aos

paroquianos devotos e conservadores que, por acharem que as obras não representavam os

símbolos sacros, sendo, portanto, inadequados para estarem no interior de um templo

destinado à reflexão e à oração, foram intransigentes e solicitaram a substituição.

A pesquisa documental em busca de mais informações sobre a obra de Volpi e da

Igrejinha realizadas no Arquivo Público do Distrito Federal, no Departamento do Patrimônio

Histórico e Artístico do Distrito Federal - Depha e no Instituto de Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional do Distrito Federal - Iphan-DF, não revelou muita coisa além do que

afirma a história oral, salvo o artigo de Mário Pedrosa, que relata uma suposta precariedade na

realização do afresco. As informações só se referem ao afresco como já perdido, sem

mencionar, com certeza, os motivos que teriam causado sua destruição. Os registros anteriores

praticamente não existem nas instituições, afora algumas fotos em preto e branco, já

apresentadas neste trabalho.

Pedro Mastrobuono afirmou, em entrevista para esta pesquisa, não ter sido

consultado pelo Iphan em busca de qualquer informação relacionada à obra, mas forneceu

127

MIRANDA, Ana. Igrejinha de Fátima. Correio Braziliense. Brasília, 24 mai. 2009, p. 8.

128 PARÓQUIA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA. Igrejinha: A Defesa da Fé. Disponível em:

<http://www.pnsfatimabsb.com.br/artigos/item/124-igrejinha-a-defesa-da-fe>. Acesso em: 5 mai. 2018.

Page 109: MEMÓRIA, IDENTIDADE E FÉ NA CAPELA DE …...IGREJINHA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA Salvador 2019 MEIRILUCE SANTOS PERPETUO MEMÓRIA, IDENTIDADE E FÉ NA CAPELA DE BRASÍLIA: ANÁLISE

109

uma imagem da obra original de Volpi colorida, uma fotografia constante em uma publicação

da Editora Pinakotheke, de 2017 (figura 43), lançada em comemoração aos 110 anos do

arquiteto Oscar Niemeyer129.

A DITADURA MILITAR E O CONTEXTO ARTÍSTICO

Justificando a hipótese de uma possível interferência política, Pedro Mastrobuono130

afirma que a Igrejinha era frequentada por homens influentes no período militar e suas

esposas que, censurando a obra, poderiam ter feito lobby pela destruição do afresco. O

contexto político, segundo ele, não teria permitido qualquer tipo de manifestação contrária ou

a divulgação dos fatos, daí a falta total de registros de informações sobre o ocorrido.

Em declaração ao jornalista Silas Marti131, o arquiteto Rogério Carvalho, do Iphan,

responsável pela restauração feita na Igrejinha em 2009, concorda com a hipótese, afirmando

que o apagamento da obra aconteceu perto do momento do golpe e que a mentalidade

retrógrada da época era propícia a isso. Marti afirma que não houve protesto algum, o que

reforçaria a tese de que os militares tenham mesmo feito vista grossa ao apagamento.

Volpi faleceu em 1988, aos 92 anos, quando a obra já tinha sido destruída. Ele nunca

se manifestou sobre o caso. De acordo com Pedro Mastrobuono132, após o golpe militar Volpi

teria sido novamente convidado a pintar a igreja, mas se recusou e não teria autorizado que se

fosse realizada qualquer execução lá relacionada ao que fora apagado (referindo-se à obra de

Francisco Galeno, autorizada pelo Iphan, que foi pintada no lugar da pintura de Volpi durante

a restauração da Igrejinha, em 2009).

Uma breve síntese do período é importante para entender como poderia ter o regime

militar interferido no desaparecimento do afresco e contribuído para a omissão do fato.

Em 1955 Juscelino foi eleito presidente da República, tomando posse no ano

seguinte. Como "meta-síntese", se empenhou na construção de Brasília, que foi inaugurada

129

COSTA, Marcus Lontra. Oscar Niemeyer (1907-2012): Territórios da criação. Rio de Janeiro: Pinakotheke,

2017.

130 MASTROBUONO, Pedro. Entrevista sobre Alfredo Volpi e a Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, em

Brasília. Concedida a Meiriluce Santos Perpetuo. Brasília, 8 jul. 2018.

131 MARTÍ, Silas. Instituto Volpi quer ir à Justiça contra igreja que destruiu afresco do pintor. Folha de

São Paulo. São Paulo, 01 mar. 2017. Disponível em:

<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/03/1862594>. Acesso em: 28 jun. 2018.

132 MASTROBUONO, Pedro. Entrevista sobre Alfredo Volpi e a Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, em

Brasília. Concedida a Meiriluce Santos Perpetuo. Brasília, 8 jul. 2018.

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110

em 1960. Em 1961, findo seu mandato de Presidente da República, JK assumiu o cargo de

senador em Goiás, o qual durou pouco, tendo sido cassado logo após os militares tomarem o

poder, suspendendo seus direitos políticos por dez anos. A construção de Brasília foi usada

contra Juscelino com acusações de corrupção e irregularidades. Logo após o golpe de 1964,

JK foi investigado, acusado de suposto envolvimento em fraudes, enriquecimento ilícito,

associação ao comunismo e de ser um dos principais líderes do Partido Social Democrático

(PSD)133. O sucessor de JK, Jânio Quadros, e seu vice João Goulart, assumiram os postos em

1961. Juscelino teria mergulhado em um tempo de trevas. Ameaçado de prisão, foi exilado em

1964, em Portugal e depois nos Estados Unidos, junto com sua esposa Sarah, retornando ao

Brasil em 1967. O tempo da amargura de JK, de acordo com o site Projeto Memória, durou

entre 1961 e 1966134.

A situação era crítica e JK pensou nos riscos que poderiam acontecer com Brasília se

não fossem adotadas medidas que garantissem sua proteção. Assim, antes que findasse seu

mandato e logo após a inauguração da cidade, enviou um bilhete para Rodrigo de Mello

Franco de Andrade, então diretor do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

(Sphan), demonstrando sua preocupação com a preservação da cidade:

Rodrigo,

A única defesa para Brasília está na preservação de seu plano piloto. Pensei

que o tombamento do mesmo podia constituir elemento seguro, superior à lei

que está no Congresso e sobre cuja aprovação tenho dúvidas. Peço-lhe a

fineza de estudar esta possibilidade ainda que forçando um pouco a

interpretação do Patrimônio. Considero indispensável uma barreira às

arremetidas demolidoras que já se anunciam vigorosas. Brasília, 15-6-1960.

(KUBITSCHEK, 1960)135

133

Partido Social Democrático (PSD) Partido político de âmbito nacional (1945), comandado lideranças ligadas

ao presidente Getúlio Vargas durante o Estado Novo que se opuseram ao regime militar à cassação de JK. O

programa do partido defendia a legislação trabalhista e a intervenção do Estado na economia. O governo Vargas

passou por sucessivas crises entre governo e oposição, que culminaram com seu suicídio, em 1954. Em 1955,

após uma aliança com o PTB, o partido apoiou a candidatura de Juscelino Kubitschek, tendo como vice João

Goulart. Apesar de algumas opiniões divergentes entre os dois partidos, no Congresso Nacional o apoio do PSD

a Juscelino foi praticamente total. Entre 1945 e 1965, o PSD elegeu dois presidentes da República e um grande

número de governadores, manteve maioria na Câmara dos Deputados e no Senado e foi o partido que mais

indicou ministros no período. Assim como os outros partidos políticos que existiam no país, o PSD foi extinto

pelo Ato Institucional nº 2 (AI-2), em 1965. In: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Partido Social

Democrático. Disponível em: <http://jk.cpdoc.fgv.br/fatos-eventos/partido-social-democratico-psd>. Acesso

em: 13 ago. 2018.

134 KUBITSCHECK, Juscelino. O tempo da amargura (1961-1976). Projeto Memória. Brasília Revisitada.

Disponível em: <http://www.projetomemoria.art.br/JK/biografia/5_caminho.html>. Acesso em: 5 jun. 2018.

135 KUBITSCHECK, Juscelino. Bilhete a Rodrigo Mello Franco de Andrade, 1960. In Cronologia do

pensamento urbanístico. Iphan tomba Brasília. Disponível em:

<http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1586>. Acesso em: 21 jul. 2017.

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111

Durante o período da ditadura, JK foi proibido de pisar em Brasília, tendo-a visitado

sorrateiramente, viajando na boleia de um velho caminhão Ford, em 1972. Ia rumo a

Planaltina quando um temporal interrompeu a viagem, pediu então ao motorista que dirigisse

até Brasília136.

Rodou pelo Plano Piloto, foi à praça dos Três Poderes, esteve bem perto do

Palácio da Alvorada, visitou a catedral, que ainda não conhecia depois de

pronta. "Senti-me um súdito romano das Gálias que pela primeira vez visita

Roma", contou mais tarde. "A Roma do primeiro século, com seus palácios

de mármore, sua suntuosidade e sua consciência de centro do mundo

civilizado". (PROJETO MEMÓRIA, 2018)

Foi nesse período, de acordo com a jornalista Nahima Maciel (1998)137, que D. Sarah

Kubitscheck, esposa de JK, em entrevista publicada no jornal Folha de São Paulo, em 16 de

março de 1993, afirma que os desenhos deixaram de existir, quando ela e o marido estiveram

no exílio. Um dos padres, segundo Sarah, entre 64 e 68, teria mandado apagar a pintura

porque achava "esquisito" aquele monte de bandeirinhas (MACIEL, 1998).

Juscelino foi vítima de um acidente de carro, em 1976, em circunstancias até hoje

não esclarecidas e sob suspeita de atentado.

Niemeyer, igualmente, não passou incólume ao período da ditadura, nunca se

preocupando em esconder suas posições políticas. De acordo com a jornalista Helena Mader

(2012)138

, Niemeyer tinha em sua vida duas grandes paixões: a arquitetura e o comunismo.

Costumava escrever manifestos, artigos e cartas a amigos em defesa da democracia, sem

hesitar em declarar que sua posição convicta comunista. Mader afirma que todas as suas

atividades eram monitoradas e suas declarações, projetos e entrevistas causavam enorme

desconforto à alta cúpula militar: "A sua ideologia sem disfarces era um incômodo e um

motivo de constrangimento para os militares durante a ditadura. Mas o enorme prestígio

internacional de Niemeyer livrou-o de prisões e de interrogatórios mais duros" (MADER,

2012, p. 2).

Após o Golpe de 1964, o arquiteto não encontraria mais ambiente para desenvolver

seu trabalho no Brasil, tendo sido sistematicamente atacado pelo regime, com vários projetos

suspensos, além de acusações de supostos plágios. Entre eles, Mader lembra o caso do coronel

Miguel Pereira Manso Neto, assessor do governo Médici, que disseminou a grave acusação,

com grande repercussão entre os militares da época, de que trabalhos de Niemeyer seriam

136

Idem.

137 MACIEL, Nahima. Um tesouro perdido. Correio Braziliense. Brasília, 28 jun. 1998, Caderno Dois, p. 5.

138 MADER, Helena. O arquiteto que driblou a ditadura. Correio Braziliense. Brasília, 22 jun. 2012, p. 2,

Caderno Política. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/55567>. Acesso em: 13 dez. 2018.

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112

cópias dos projetos de Le Corbusier. Niemeyer demonstrou revolta com a divulgação do

boato, tendo manifestado em seu livro de memórias139 que sua indignação teria atingido

limites inimagináveis quando soube que o tal coronel teria reunido desenhos e fotos na

tentativa de provar ele plagiava Le Corbusier. O boato teria se propagado publicamente, com

distribuição de cópias do croqui a ministros e pessoas importantes. Niemeyer afirma que

como só tomou conhecimento da injúria muito tempo depois e, não tendo cópia do documento

maldosamente distribuído, não pode fazer nada. O coronel Neto, entre outras coisas, sugeria

que a Igrejinha da Asa Sul seria "uma cópia" de um templo projetado por Le Cobusier para a

cidade indiana de Chandigarh (na verdade, deveria querer se referir à Capela Notre Dame du

Haut, ou Nossa Senhora das Alturas, localizada na França). O projeto, curiosamente,

apresenta semelhança com a Igrejinha Nossa Senhora de Fátima (figura 42), mas sem a leveza

característica das obras de Niemeyer.

Figura 42 - Capela de Ronchamp - Le Corbusier

Fonte: Igor Fracalossi, Clássicos da Arquitetura

140

Da acusação dos militares de que Niemeyer teria copiado trabalhos do colega suíço,

segundo pesquisado por Mader, não há muita documentação, provavelmente por ser uma

suposição insustentável, sendo mencionada apenas em um ofício localizado no Arquivo

Nacional.

139

NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo: memória. Rio de Janeiro: Revan, 1998. 140

FRACALOSSI, Igor. Clássicos da Arquitetura: Capela de Ronchamp / Le Corbusier. 04 jan 2012.

ArchDaily Brasil. Disponível em <https://www.archdaily.com.br/br/01-16931/classicos-da-arquitetura-capela-

de-ronchamp-le-corbusier/16931_18076s da Arquitetura>. Acesso em: 13 dez. 2018.

Page 113: MEMÓRIA, IDENTIDADE E FÉ NA CAPELA DE …...IGREJINHA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA Salvador 2019 MEIRILUCE SANTOS PERPETUO MEMÓRIA, IDENTIDADE E FÉ NA CAPELA DE BRASÍLIA: ANÁLISE

113

O arquiteto Carlos Magalhães, amigo, ex-genro e representante do escritório de

Niemeyer em Brasília, afirma Mader, foi em defesa do colega, lembrando que o que existia

entre Niemeyer e Le Corbusier era uma relação de mestre e aluno. Le Corbusier era sua

inspiração, o que estava muito longe da prática de plágio. A acusação difundida pelos

militares indispuseram ainda mais Niemeyer com a ditadura e o coronel Manso Neto, autor da

difamação, teria se tornado seu inimigo pessoal por ter atingido sua obra, a coisa que ele mais

prezava,

A posição esquerdista de Niemeyer lhe custou caro. A revista, a Módulo, fundada em

1955, da qual ele era diretor, teve a sede parcialmente destruída em 1965, seu escritório foi

saqueado, seus projetos recusados e seus clientes desaparecem. "Lugar de arquiteto comunista

é em Moscou', desabafou um dia à imprensa o então Ministro da Aeronáutica", relembra o

arquiteto.

A invasão da Universidade de Brasília pelos militares e a perseguição contra

professores e estudantes também atingiram Niemeyer, que foi docente da instituição. "Já tinha

comparecido à polícia política várias vezes. E a pressão continuou. A universidade foi

invadida, nossos colegas exonerados e, dela, um dia, nos demitimos, cerca de 200 professores,

em protesto contra tanta brutalidade", recorda-se o arquiteto no livro Curvas do tempo141

.

No ano do aniversário do centenário de Niemeyer, o Iphan dá a proteção legal das

suas principais obras, uma vez que o próprio arquiteto, preocupado com a possibilidade de

acontecer perdas e descaracterizações dos seus projetos arquitetônicos, solicitou ao Ministro

da Cultura, Gilberto Gil, o tombamento de alguns projetos arquitetônicos de sua autoria, a

maioria deles localizados em Brasília, tendo enviado ao Ministro uma relação dos edifícios

que gostaria de ver protegidos pela figura do tombamento:

Prezado Ministro,

De acordo com a conversa que tivemos dias atrás em meu escritório, quando

o senhor me ofereceu todo o apoio para o tombamento de alguns edifícios

por mim projetados, ficou acertado que lhe enviaria uma relação desses

prédios. [ ... ] A sua intervenção nessa matéria me deu uma nova esperança.

Afinal, por várias vezes vi os meus trabalhos de arquiteto desmerecidos. Daí

os agradecimentos sinceros que lhe dirijo. (IPHAN, 2008, p. 32)142

141

MADER, Helena. O arquiteto que driblou a ditadura. Correio Braziliense. Brasília, 22 jun 2012, p. 2,

Caderno Política. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/55567>. Acesso em: 13 dez. 2018.

142 BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Processo n° 1.550-T-07: Tombamento do

conjunto de obras do arquiteto Oscar Niemeyer. Brasília: Arquivo da Superintendência do Iphan no Distrito

Federal, 2008.

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114

As convicções comunistas do arquiteto, seu engajamento em manifestações

organizadas por partidos de esquerda e a posição de ateu abertamente declarada já era um

prato cheio para ser perseguido pelo regime militar. Mas Niemeyer143, segundo ele mesmo, ao

explicar uma possível contradição diante de tantos projetos que executou de catedrais, igrejas

e capelas, reconhecia a pequenez do homem em relação ao universo e nutria respeito pelas

pessoas que crêem em Deus.

Alfredo Volpi não seria também uma pérola aos olhos do regime militar. Sua

biografia revela o artista como uma figura ímpar, capacitada o suficiente para arrastar uma

gama de admiradores entusiasmados. Seus amigos? A maioria comunistas. Lêdo Ivo, na

introdução da obra "Alfredo, pinturas e bordados"144, de Marco Antonio Mastrobuono, define

assim o artista, sua obra e seus seguidores: "Volpi pinta volpis. E os seus volpis fizeram

florescer e prosperar uma fauna singular: a dos volpistas. São os seus contempladores,

admiradores, colecionadores, comentadores" (IVO in MASTROBUONO, 2013, p. 11)145.

Entender Volpi, sua produção artística e quem foram as pessoas que acompanharam sua

trajetória é imprescindível para dimensionar a vultuosidade do seu trabalho e tecer uma

análise possível que justifique o motivo pelo qual sua obra na Igrejinha poderia ter sido alvo

de perseguição política.

Marco Antonio Mastrobuono foi amigo íntimo de Alfredo Volpi em sua época mais

produtiva. Era um volpista apaixonado, tendo adquirido uma coleção apreciável de obras do

artista. O amor e admiração pela arte foram herdadas por seus filhos, que o acompanharam no

zelo pela gestão da “Coleção Mastrobuono" deixada pelo patriarca. Pedro Machado

Mastrobuono, um deles, é o atual Presidente do IAVAM. É Marco Antonio Mastrobuono

(2013) que, por sua proximidade com Alfredo Volpi, traça o perfil do Mestre do Cambuci -

apelido em referência ao local onde morava o artista - e, entendendo que as raízes nutrem o

comportamento das pessoas, discorre a análise de sua ideologia de esquerda. Ao longo das

décadas, o comunismo encontrou uma resistência imunológica insuperável na vida de Volpi.

Era visceralmente anarquista, afirma Marco Mastrobuono, além de ateu e anticlerical.

143

NIEMEYER, Oscar. Em artigo, Niemeyer explica a contradição entre sua posição comunista e o desenho

de obras de caráter religioso. Correio Braziliense. Brasília, 05 jul. 2009. Disponível em:

<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/07/05/interna_cidadesdf,123889/em-artigo-

niemeyer-explica-a-contradicao-entre-sua-posicao-comunista-e-o-desenho-de-obras-de-carater-religioso.shtml>.

Acesso em: 20 jul. 2018.

144 MASTROBUONO, Marco Antonio. Alfredo: Pinturas e Bordados. Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna:

São Paulo, 2013, 352 p.

145 Idem.

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115

A inundação migratória, principalmente de origem italiana, em São Paulo, teve

consequências entre o caótico e o anárquico. Os imigrantes sobreviviam como podiam. Em

São Paulo, quando Volpi tinha 19 anos "circulavam numerosos periódicos de inspiração

anarquista, instigando greves e manifestações" (MASTROBUONO, 2013, p. 136). Não

imagine o leitor, alerta o colecionador, um jovem Alfredo dirigindo piquetes ou lendo

revolucionários. O que interessa é o ambiente que o cercou, sua inserção na sociedade

imigrante e operária, o que lhe chegou à cabeça e ao coração. "Seu viés anarcosindicalista

deriva da práxis, e não da doutrina" (MASTROBUONO, 2013, p. 145).

Tendo uma natureza artística e outra operária, Volpi foi profundamente influenciado,

na sua consciência e no seu itinerário, por esta última. A organização sindical era um

instrumento de defesa, de luta. Entre 1920 e 30, o centro dinâmico do movimento proletário

em São Paulo se desloca do anarquismo, de liderança descentralizada, para o comunismo.

Funda-se o Partido Comunista Brasileiro. Em 1921, a natureza anarquista dos carcamanos146

foi asfixiada pela Lei de Repressão ao Anarquismo, apesar disso, o viés sindicalista manteve-

se intacto na vida de Alfredo. A busca dos companheiros, a articulação, é sempre manifesta e

presente. Artistas, escritores e intelectuais se envolviam numa teia de consciência e motivação

revolucionárias, reunindo comunistas e anarquistas, perfis afinados com Alfredo Volpi

explica Mastrobuono, desenvolvidos ao lado dos carcamanos de sua mocidade, nos anos de

1920.

Volpi, inicialmente, não conseguia viver da venda de suas obras. Eventuais

compradores apareciam pelo esforço de amigos e colegas que tinham afinidades de gosto e

pensamentos com Volpi, como Mário Schenberg, que conheceu em 1942, numa exposição em

Itanhaém e teria adquirido um quadro do artista. Mário, explica o autor, era também

comunista, e Volpi, "anticlerical de sabor anarquista..." (MASTROBUONO, 2013, p. 33).

Juntos, frequentavam um grupo com doutrinações ideológicas, que ficou conhecido como

Santelenistas, que se juntaram na "esteira da intentona comunista de 1935", reunindo-se a eles

companheiros como Zanini, Bonadei, Rebolo e Bruno Giorgi. Em 1936, a Assembleia Geral

da Sociedade Paulista de Belas Artes foi convocada para transformar a Sociedade em órgão

sindical dos artistas plásticos de São Paulo. Sua sede foi transferida para o edifício Santa

Helena, daí o termo Santelenistas. Entre os artistas que assinaram a ata, afirma Mastrobuono,

146

Adjetivo étnico relacionado à língua falada pelos italianos ou dialetos itálicos misturados com o português dos

paulistanos. Considerada a língua dos "carcamanos", seu sentido é pejorativo, com etimologia fortemente

depreciativa: "calca a mão" na balança para roubar o peso. É, portanto, o vocábulo vertido para o linguajar dos

recém-chegados. Segundo Mastrobuono, "Os paulistas históricos reagem à imigração com xenofobia mal

disfarçada e de longa digestão tanto sociológica quanto cultural." (MASTROBUONO, 2013, p. 62).

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116

além do Presidente Alexandre Albuquerque, estavam os integrantes do movimento Ottone

Zorlini, Roque de Mingo, José Cucé, Francisco Rebolo, Angelo Simeone, Fulvio Pennacchi,

Adolfo Fonzari e Alfredo Volpi.

O perfil descrito parece ser suficiente para que o artista não fosse bem quisto pelos

militares, sua obra poderia representar uma afronta ao que ele representava. Daí a suposição

de Pedro Mastrobuono ao afirmar uma suposta interferência política na destruição do afresco

de Volpi.

Um fato interessante também é descrito por Athos Bulcão, responsável pelos

azulejos da Igrejinha, em um depoimento oral constante no Arquivo Público do Distrito

Federal147. O artista relata que teve problemas com um prefeito de Brasília no período João

Goulart, presidente que ele admitiu apoiar. Athos morava na Capital, não tinha vínculo

partidário, apesar de ter uma posição de esquerda, mas nunca teria pertencido a partido

político nenhum. Então, conta que na época de João Goulart, tinha um prefeito cuja esposa,

engenheira, tinha um mau gênio terrível e era muito mandona. Ela resolveu se meter com o

comércio de Brasília e queria fazer uma decoração de Natal na Rua da Igrejinha. Os

comerciantes pagavam um valor e penduravam uma bota no poste em frente à loja para

arrecadar dinheiro. Athos explica que ficou por conta da decoração e desenhou as árvores de

Natal para a W3, que eram uns prismas superpostos tendo, em cima, umas estrelas de Natal

com umas hastezinhas onde se penduravam bolas e brinquedos. A intenção era que as

crianças, depois, arrancassem os brinquedos, jogassem pedras, derrubassem. Era para ser uma

festa pras crianças, mas disseram que os comunistas queriam destruir a família brasileira.

Somente um padre holandês, conta o artista, o defendeu, botando na porta da igreja uma

explicação de que a árvore de Natal era um costume profano, que não tinha nada que ver com

Papai Noel. A história parece de uma grande ingenuidade, mas evidencia um pensamento

preconceituoso e julgador em relação aos comunistas e à interpretação de que qualquer ato

por parte deles seria supostamente profano, o mesmo pensamento que poderia ter alimentado

o julgamento da obra de Volpi.

A suposição de ingerência do regime militar não seria uma novidade se

considerarmos, igualmente, a ocorrência de casos semelhantes no mesmo período. A doutora

em Arquitetura e Urbanismo e professora do Departamento de Museologia da Universidade

Federal de Goiás, Vera Regina Barbuy Wilhelm (2012, p. 697), lembra a obra do artista,

pintor e muralista Clovis Graciano, cujo painel em mosaico, localizado em frente à antiga

147

BULCÃO, Athos. Depoimento oral. ARQUIVO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL.

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117

Estação Ferroviária de Goiânia, foi destruído durante o período da ditadura, no final dos anos

60, porque a temática da obra estava relacionada à luta de classes dos trabalhadores, ponto

recorrente nos debates políticos da época148.

Graciano nasceu em 1907, na cidade de Araras, interior de São Paulo. Ganhou

destaque nas artes plásticas, ao lado de artistas aliados ao movimento modernista de seu

tempo, como Aldo Bonadei, Alfredo Volpi, Mário Zanini, Rebolo e Cândido Portinari.

De acordo com o site Mosaicos do Brasil149, o painel de Clóvis Graciano ganhou uma

perspectiva de ser refeito em função de um projeto de lei de autoria do vereador goiano

Rusembergue Barbosa, sob justificativa de que se tratava de “uma obra de magnífico valor

cultural e histórico que foi destruída em ato arbitrário, truculento e ilegal pela ditadura militar

em1968” (MOSAICO DO BRASIL)150

, mas o projeto não vingou.

Vera Wilhelm também cita a obra do Frei italiano Confaloni (1917), que veio para o

Brasil e fixou residência em Goiás, onde desenvolveu a maior parte de seu trabalho artístico.

Confaloni foi pintor, muralista, desenhista e professor, também afinado com o movimento

modernista, era envolvido com política, artes e causas sociais, temas que o artista retratava em

suas pinturas, transfigurando suas impressões nas expressões tristes, famintas e famigeradas

dos personagens retratados. Em 1953, relata Wilhelm, "ele produziu também os afrescos da

via sacra na Igreja de Santo Antônio em Hidrolândia que foram recobertos por tinta durante

uma reforma na Igreja" (WILHELM, 2012, p. 697). Embora o fato relatado não seja associado

pela autora a questões políticas, como associa a obra de Clóvis Graciano, ressalta-se que a

maior fase de produção do frei Confaloni foi no período da ditadura militar no Brasil.

A ICONOGRAFIA DE FÁTIMA

Nas declarações colhidas junto à comunidade e a alguns párocos da Igrejinha, é

notável que interpretação popular acerca da iconografia de Fátima poderia ter motivado a

insatisfação com a pintura. A hipótese é também admitida por Pedro Mastrobuono: "A

148

WILHELM, Vera Regina Barbuy. A Arte mural em Goiânia. VIII EHA - Encontro de História da Arte -

2012, p. 693-707.

149 MOSAICOS DO BRASIL. A polêmica reconstituição de um painel de Clóvis Graciano em Goiânia. A

presença e a ausência de Clóvis Graciano em Goiânia. Disponível em:

<http://mosaicosdobrasil.tripod.com/id96.html>. Acesso em: 8 ago. 2018.

150 Idem.

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118

destruição da obra ocorreu por vários motivos: os símbolos eram considerados “profanos”; a

divindade não possuía pés (fato considerado um ataque à religião); e a figura não carregava o

menino Jesus" (LANNES, 2017)151

. Diante disso e de outras manifestações a respeito, já

mencionadas anteriormente, a suposição de uma profanação da iconografia de Fátima,

representada pelo artista, também precisa ser melhor discutida.

Embora Volpi fosse ateu, as madonas e os santos eram temas recorrentes em suas

obras, estando tais representações presentes em mais de 80 pinturas. Observa-se, também, a

tendência do fundo chapado em azul e a falta dos pés. Os santos flutuam no ar, como se

estivessem em permanente ascensão, o que lhes confere leveza e simplicidade.

Pedro Mastrobuono152 explica que o motivo de figuras de santos e madonas serem tão

fortemente presentes nas obras de Volpi provavelmente teriam sido influência de artistas do

renascimento (séculos XV ao XVII), como Giotto di Bondone (1266-1337). Volpi teria se

impressionado com a representação dos santos como humanos, em proximidade com o

homem. Tal influência, provavelmente, teve início em uma viagem de seis meses que o artista

fez à Italia, no início da década de 50, acompanhado dos amigos Rossi Ozir e Mário Zanini.

Volpi visitou cerca de 16 vezes a Capela Degli Scrovegni, em Pádua (Pádova), considerada

uma obra prima de Giotto, explica Mastrobuono. Foi daí que, provavelmente, o artista tirou

toda sua inspiração para criação de imagens flutuantes dentro de fundos azuis. Passando pela

cidade de Arezzo, o artista também ficou encantado com Margaritone D’Arezzo e Cimabue,

dois pintores pré-renascentistas: “Os renascentistas representavam Nossa Senhora como

figura geométrica separada do corpo do menino Jesus”, comenta Pedro Mastruobuono, e isso

encantou Volpi, que rompeu com a representação clássica pintando várias madonas segurando

o Menino Jesus envolta num fundo de cor única, numa imagem que funde a criança com a

mãe. Esse tipo de concepção conferiu destaque e humanidade às representações, levando os

olhos do expectador a voltarem-se, unicamente, para a figura central. O menino agarrado à

mãe atribui emoção à obra, observa Mastrobuono.

Dando sequência à fase sacra do artista, considerada uma das melhores, Alfredo

Volpi pintou nas paredes da Capela Nossa Senhora de Fátima uma madona segurando uma

flor na mão direita e uma criança no braço esquerdo. Como nas outras obras, eles flutuam

151

LANNES, Paulo. Instituto Volpi quer processar Igrejinha por destruir obra do pintor - O presidente da

instituição pede explicações à Arquidiocese de Brasília em nome “da memória do pintor”. Jornal Metrópoles,

Caderno Política Cultural, 02 mar. 2017. Disponível em: <https://www.metropoles.com/entretenimento/politica-

cultural/instituto-volpi-quer-processar-igrejinha-por-destruir-obra-do-pintor>. Acesso em: 4 ago. 2018.

152 MASTROBUONO, Pedro. Entrevista sobre Alfredo Volpi e a Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, em

Brasília. Concedida a Meiriluce Santos Perpetuo. Brasília, 8 jul. 2018.

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119

num fundo azul. Ele produziu uma sequência de imagens semelhantes, sendo a década de

1950 a mais produtiva. As obras abaixo são algumas delas (figuras 43 a 48).

Figura 43 - Sem título Déc. 1940

(meados da década) Figura 44 - Sem titulo - Déc. 1960 (inicio) -

Têmpera sobre tela

Fonte: Catálogo de obras de Alfredo Volpi

(2015, p. 107) Fonte: Catálogo de obras de Alfredo Volpi

(2015, p. 236)

Figura 45 - Sem titulo - Déc. 1960 (inicio)

Têmpera sobre tela

Figura 46 - Sem titulo - Déc. 1960 (inicio)

Têmpera sobre cartão

Fonte: Catálogo de obras de Alfredo Volpi

(2015, p. 248)

Fonte: Catálogo de obras de Alfredo Volpi

(2015, p. 248)

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120

Figura 47 - Sem título - Déc. 1960 (inicio)

Têmpera sobre tela

Figura 48 - Afresco da Capela Nossa Senhora

de Fátima - 1958

Fonte: Catálogo de obras de Alfredo Volpi

(2015, p. 239)

Fonte: Catálogo de obras de Alfredo Volpi

(2015, p. 141)

Entretanto, a obra parece não ter sido bem assimilada por parte de algumas pessoas

que frequentavam a Igrejinha, sendo possível apontar, entre outros motivos já discutidos, a

falta de conhecimento do contexto artístico em que a pintura de Volpi foi criada e a

dificuldade de identificação dos símbolos iconográficos atribuídos à Senhora de Fátima. A

situação não é incomum se considerarmos a comparação com outras produções artísticas,

principalmente as esculturas, uma vez que a primeira imagem de Nossa Senhora de Fátima

que se firmou como icônica foi produzida a partir do escultor português José Ferreira Thedim,

conforme relata Emanuel Cipriano (2015)153.

As aparições de Nossa Senhora para três pastorinhos aconteceram em 1917, no

lugarejo de Fátima, em Portugal, quando os irmãos Francisco e Jacinta e a prima Lúcia, que

tinham entre 7 e 10 anos, tiveram a visão de Fátima, começando no dia 13 de maio e se

repetindo no mesmo dia dos meses subsequentes, até outubro. Segundo as crianças, a Santa

pediu para rezarem o terço e fazerem penitências, tendo contado três segredos que foram

revelados por Lúcia na década de 1940. As revelações mais tarde se converteram em profecias

153

CIPRIANO, Emanuel. Nossa Senhora de Fátima: o estudo de uma imagem e de uma devoção ao longo de

quase cem anos. Velho Critério, 27 jul. 2015. Disponível em:

<https://velhocriterio.wordpress.com/2015/07/27/nossa-senhora-de-fatima-o-estudo-de-uma-imagem-e-de-uma-

devocao-ao-longo-de-quase-cem-anos/>. Acesso em: 25 jun. 2018.

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121

apocalípticas, associando as imagens do inferno relatadas pela Santa ao fim da Primeira

Guerra Mundial, ao início da Segunda e à ascensão e queda do comunismo soviético154.

As autoridades religiosas portuguesas duvidaram da veracidade dos relatos e a Igreja

iniciou uma investigação. Em 1930, as visões foram declaradas autênticas. A terceira

profecia, revelada pelo Vaticano em 2000, descrevia uma tentativa de assassinato do Papa

João Paulo II, em 13 de maio de 1981, na Praça de São Pedro. O Pontífice acredita que a

Santa salvou sua vida antecipando o fato155.

As formulações estéticas dos artistas para desenhar a representação da Santa, que

ficou conhecida como Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora do Rosário de Fátima ou

Nossa Senhora de Fátima, foram diversas. A contemporaneidade artística levou a menor ou

maior aceitação de determinado modelo por parte da comunidade de cultuadores que pediam a

criação das imagens. Embora a representação se desenvolva a partir das aparições de 1917, o

rigor da cronologia faz recuar a primeira figura da Santa ao século XVIII.

A iconografia de Fátima começou a ser trabalhada em 1920, pelo santeiro português

José Ferreira Thedim156, que criou a imagem a partir de indicações do Padre Formigão, que

interrogou os pastorinhos sobre as Aparições. Nos anos 50, Thedim resolveu fazer uma

revisão artística após conversar com a Irmã Lúcia, que autorizou a mudança. A pretexto de

avaliar o estado da peça, o escultor fez algumas alterações, retirando as pequenas sandálias,

simplificando as vestes e afilando o rosto da Santa. Assim, foram suprimidos excessos e

enfeites, ficando apenas um manto caído da cabeça até aos pés e uma túnica branca. Tal

descrição é feita por Emanuel Cipriano, que também explica que a alteração do modelo

desejava adequar uma mudança formal seguindo os testemunhos escritos pela vidente Lúcia,

que considerou haver um relativo exagero de pregas e decorações na imagem de Nossa

Senhora de Fátima, por isso todos os detalhes e enfeites considerados demasiados foram

retirados. Essa imagem acabou se cristalizando como padrão.

154

O GLOBO. O que você precisa saber sobre as aparições de Fátima. Disponível em:

<https://oglobo.globo.com/sociedade/religiao/o-que-voce-precisa-saber-sobre-as-aparicoes-de-fatima-

21327035#ixzz5LmDjeWpZ>. Acesso em: 20 jul. 2018.

155 Idem.

156 CIPRIANO, Emanuel. Nossa Senhora de Fátima: o estudo de uma imagem e de uma devoção ao longo de

quase cem anos. Velho Critério, 27 jul. 2015. Disponível em:

<https://velhocriterio.wordpress.com/2015/07/27/nossa-senhora-de-fatima-o-estudo-de-uma-imagem-e-de-uma-

devocao-ao-longo-de-quase-cem-anos/>. Acesso em: 25 jun. 2018.

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122

De acordo com o historiador português Marco Daniel Duarte (2010)157, diversas

esculturas e pinturas originaram a representação de Nossa Senhora de Fátima, que variava

"conforme a sensibilidade estética e as correntes artísticas em que se integram os autores"

(DUARTE, 2010)158, sendo prática comum dos artistas a tentativa de fugir ao cânone

estabelecido e repetidamente talhado pelos santeiros, buscando uma aproximação das suas

obras mais relacionadas com o tempo da contemporaneidade artística. Essa atitude, segundo

Duarte (2010), influenciou para que determinados modelos possam ter tido menor aceitação

por parte da comunidade para a qual a obra fora criada.

Duarte cita como exemplo a imagem de Teixeira Lopes, rejeitada por membros do

convento dos dominicanos de Fátima, que retiraram a escultura do lugar que ela havia

ocupado desde quando foi doada à igreja, em 1965. Tal rejeição, segundo o autor, pode ter

ocorrido pelo desprezo quando comparada ao perfil tradicional criado e pelo suposto

desrespeito pelos sinais iconográficos que os crentes se habituaram a ver na Senhora de

Fátima. Teixeira Lopes criou uma escultura diferente da composição dos anos vinte. A estrela

da iconografia, em vez de figurar no vestido, foi colocada sobre a cabeça e o rosário também

não tinha as contas canonicamente contadas. Teixeira Lopes rompeu com o estereótipo que a

escultura de Thedim ostentava na esteira da estatuária religiosa. Por outro lado, sua ousadia

marcaria para sempre a dicotomia entre arte erudita e arte popular, conclui Marco Duarte.

Tentar encontrar as razões para o descontentamento com a imagem criada pelo

artista, segundo Duarte, é uma tarefa que interessa a muitos que analisam o assunto, sendo

pouco salutar a tentativa de comparar a imagem da Virgem de Fátima de 1920, de José

Ferreira Thedim, com as de artistas que trabalharam no mesmo tema. Também não é tarefa

fácil, analisa o autor, "avaliar com precisão o poder que as esculturas têm sobre a devoção dos

fiéis de uma determinada comunidade, sobretudo porque não se encontra documentação que o

demonstre" (DUARTE, 2010).

A década de 60 foi generosa na representação da Virgem de Fátima por diferentes

escultores que buscaram soluções plásticas diversas para a santa, esclarece Duarte. Assim, é

possível afirmar que enquanto algumas obras tenham tido somente um mínimo de aceitação

por parte da comunidade de culto, outras tiveram uma aceitação bem mais acolhedora.

157

DUARTE, Marco Daniel. A iconografia da Senhora de Fátima: da criação ex nihilo às composições

plásticas dos artistas. Documentação Crítica de Fátima III-2. Cultura [Online], Vol. 27 | 2010. Versão online, 29

mai. 2013. Disponível em: <https://journals.openedition.org/cultura/338>. Acesso em: 17 jul. 2018.

158 Idem.

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123

Duarte avalia que pode haver uma dificuldade de diálogo entre o artista e o usuário

de uma criação sacra destinada à devoção. Não sendo estabelecido este diálogo, a imagem

será colocada à parte, retirada do ambiente para a qual fora criada. "Tal apartamento não se

baseia, contudo, numa atitude iconoclasta, pois a devoção precisa de assentar na imagem; no

lugar daquela aparecerá outra imagem, bem menos artística, mas de cariz devocional

inegável" (DUARTE, 2010)159.

Não há como questionar culpas e culpados por tais situações, mesmo sob o aspecto

de um exercício acadêmico, como Daniel Duarte bem aborda, lembrando o divórcio entre "a

arte contemporânea e a Igreja e vice-versa e a pouca formação artística da maioria dos agentes

eclesiais" (DUARTE, 2010)160.

Exemplificando, Duarte cita uma escultura em metal da artista portuguesa Luísa

Marinho Leite, feita em 1965 para a igreja de Nossa Senhora do Rosário do Convento dos

Padres Dominicanos, que foi retirada do espaço cultual. Analisando a obra, o autor observa

que há nela características que a tornam distante dos fiéis, a exemplo da frieza do material. A

cor cinza metálica fosca afasta a obra das imagens coloridas já conhecidas e cria um

distanciamento no observador que nela queira encontrar verossimilhança com a vida humana,

sendo, aos olhos do rezador, pouco quente e emocional. Faltam, também, referenciais

iconográficos que permitam a imediata identificação da imagem, como a coroa que integra a

iconografia da Senhora de Fátima, as roupagens típicas de cor branca que,

incondicionalmente, se encontram aliadas à imagem da santa, além da falta da borla (ou bola)

e da estrela no vestido. "Em face destas características, dificilmente os cultuadores da Virgem

de Fátima considerarão esta imagem como ícone visível da realidade invisível" (DUARTE,

2010)161.

Por mais contraditória que essa análise possa parecer, na visão de Duarte, são

justamente os indicativos tomados como alicerces da recusa da escultura de Luisa Leite,

enquanto objeto de culto, que lhe darão um lugar justo na arte sacra, justamente porque a obra

foi feita num contexto de mutações profundas na forma de interpretar esse tipo de

manifestação artística em Portugal. Julgando que a imagem da Virgem de Fátima já era

suficientemente absorvida e divulgada, seria o momento de depurar os sinais plásticos

estilizados pela erudição, daí a artista se afastar dos cânones "delicodoces" das imagens dos

159

Idem.

160 Idem.

161 Idem.

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124

santeiros de arte religiosa. Relegando a indumentária iconográfica, a escultora percebeu a

importância das linhas corpóreas, retirou a coroa e não modelou na imagem qualquer

pormenor decorativo, apenas sugerido numa textura. Mas prezou pela delicadeza no rosto da

escultura, ou seja, apenas o rosto teve direito a fino tratamento. Tal opção leva a refletir sobre

a importância daquele rosto. Duarte analisa que é exatamente o semblante da Senhora de

Fátima modelado pela escultora que aproxima da mensagem da santa, mostrando-se ou

ocultando-se, ao mesmo tempo, um rosto misterioso, velado, emanando inegável serenidade,

"insondável e perturbadoramente inquietante" (DUARTE, 2010)162. E afirma:

O paradoxo continuará a existir no afirmar que a imagem retirada de um

espaço cultual, porque não compreendida, será, no futuro, admirada e

contemplada como uma tentativa de tornar erudita uma iconografia que já

não terá de ser descrita, mas apenas sugerida. (DUARTE, 2010)163.

A análise de Daniel Duarte localiza outros dois eventos de rejeição de obras de arte

também na década de 60, quando já se buscavam soluções plásticas dentro da arte

contemporânea para representação de Nossa Senhora de Fátima. Num retrocesso aos anos 20,

a tendência era prestar culto a uma imagem cuja iconografia já estava cristalizada na memória

dos cultuadores da Santa. O risco de qualquer artista, seja na pintura ou na escultura, nos

museus ou extramuros é a linha do tempo. A arte precisa ser digerida, absorvida, aceita, para

então impor-se, imponente. O maior problema é a falta de conhecimento de que as coisas

mudam, assim como as linguagens e manifestações artísticas.

Na opinião de Duarte, não há como questionar culpas e culpados por tais situações,

mesmo sob o aspecto de um exercício acadêmico, lembrando o divórcio entre "a arte

contemporânea e a Igreja e vice-versa e a pouca formação artística da maioria dos agentes

eclesiais" (DUARTE, 2010)164.

Entretanto, há que se ponderar que destruir ou incitar a destruição de uma obra por

causa de opiniões pontuais, interpretações pessoais ou pela cristalização de um pensamento

diante de uma representação que se firmou com o tempo, ainda não se justifica. No caso de

Volpi, a rejeição não se limitou à imagem da santa sem rosto e sem pés, estendeu-se às

bandeirinhas, às portas e à sua linguagem artística, que foram interpretadas como simbologia

profana, assim como aconteceu com a obra de Francisco Galeno, inserida na Igrejinha quase

162

Idem.

163 Idem.

164 Idem.

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125

50 anos depois. Os contextos evidenciam a ainda permanente dificuldade de leitura da arte

contemporânea e a dificuldade de leitura da obra de arte fora do contexto iconográfico.

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126

6. A RESTAURAÇÃO DA IGREJINHA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA

Em 1982, o Ofício 85/82, da Fundação Nacional Pró-Memória do Ministério da

Cultura165, foi encaminhado pela arquiteta Belmira Finageiv, Diretora Regional do Iphan, ao

Diretor da Secretaria de Cultura do Governo do Distrito Federal, com o diagnóstico técnico

dos restauradores Francisco Xavier Filho e María Luisa Brandão, acerca da pintura localizada

na parede lateral do lado direito da nave e na parede central do Santuário. Após a realização

de testes de verificação, os restauradores concluíram existir apenas sombras de alguns

pequenos trechos da pintura e, ao que tudo indicava, ela teria sido lixada, perdendo 90% de

sua originalidade. Teriam, ainda, sido sobrepostas cinco camadas de tintas à camada original.

A pintura, rica em valor histórico e artístico, segundo os restauradores, seria irreproduzível

(figuras 49, 50 a 51). Os técnicos também foram categóricos ao afirmar que, devido à

destruição da camada pictórica original dos murais, o seu caráter de policromia teria sido total

e irreversivelmente destruído. O documento oficial sugeria o envio de cópia do relatório ao

artista Alfredo Volpi para que tomasse conhecimento das providências tomadas pelos órgãos

responsáveis acerca da impossibilidade de recuperação dos afrescos.

Figura 49 - Afresco original de Alfredo Volpi na Capela Nossa Senhora de Fátima (1958)

Fonte: COSTA, Marcus Lontra. Oscar Niemeyer (1907-2012): Territórios da criação.

Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2017. p.99

165

BRASIL, Ministério da Educação e Cultura; Secretaria de Cultura. Brasília, 1982.

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127

Figura 50 - Detalhe da parede esquerda da Capela Nossa Senhora de Fátima - Volpi

Fonte: Revista Módulo n° 11, 1958

Figura 51 - Detalhe da parede direita da Capela Nossa Senhora de Fátima - Volpi

Fonte: Revista Módulo n° 11, 1958

A Igrejinha tinha sido recentemente tombada pelo GDF e, logo em seguida, tiveram

início as obras de recuperação do templo, no sentido de impedir os efeitos de

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128

descaracterização gradual166. Novamente, as orientações demonstravam preocupação com a

preservação das características essenciais da igreja.

A primeira etapa foi a construção do santuário de velas, em concreto armado

aparente. O projeto previa, também, a limpeza de todos os azulejos que se encontravam sujos

de fuligem, a substituição das peças quebradas ou irrecuperáveis por outras originais, que

estavam sob responsabilidade dos párocos da igreja e seriam fornecidas à construtora, a troca

dos vidros, à exceção do da janela lateral esquerda, que estava em bom estado e tinha a

coloração original (azul), com orientação para que os vidros substituídos tivessem a cor,

textura e espessura idênticos ao único vidro original existente, e o conserto do piso interno da

igreja e da calçada em volta, que apresentavam rachaduras e depressões.

No projeto, as orientações relativas ao revestimento das paredes internas eram que

"após remover a pintura atual, e efetuar correção da massa, as paredes deverão ser novamente

lixadas e emassadas ao ponto de receber a pintura a rolo ou pincel, em tinta esmalte, sintético,

branco, fosco, marca Coral" (SECRETARIA DE EDUCAÇÃO E CULTURA, p. 211/4,

1977)167. A iniciativa de lixar, emassar e deitar mais uma demão de tinta sobre a parede,

provavelmente, ocorreu por considerar que não havia mais possibilidade de recuperação da

pintura.

Anos depois o então diretor do Depha, Antonio Menezes, declarou à jornalista

Nahima Maciel que a única solução para os afrescos seria refazer os painéis, o que significaria

uma intervenção direta na obra de Volpi. "Não fazemos réplica. Se fizermos isso na Igrejinha

as pessoas vão pensar que quem fez foi o Volpi. Não podemos intervir em um bem cultural",

justificou Antonio (NAHIMA, 1998, p. 5).

Durante outra reforma realizada nos anos 2008/2009, quando a Igrejinha já era

tombada em esfera federal, a partir de um investimento de R$ 250 mil168, foi feita uma nova

intervenção no templo. Considerando o caráter emblemático da arquitetura modernista

brasileira, o projeto básico proposto pelo o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional do Distrito Federal (Iphan-DF), responsável pela preservação, fiscalização e

orientação técnica no processo de restauro do templo, previa a restauração da igreja com o

objetivo de devolvê-la à população de Brasília preservada em suas características originais,

166

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO E CULTURA. Igrejinha Nossa Senhora de Fátima. Processo nº

012713/77. Brasília, 1977.

167 Idem.

168 BRASIL. Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Superintendência do Iphan no Distrito

Federal - DF. Restauração da Capela Nossa Senhora de Fátima - Igrejinha - 308 Sul. PROCESSO Nº

01551.000.5532008-54, 22/09/2008. Volume I. p. 03.

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129

em conformidade com o Projeto de Oscar Niemeyer, Volpi, Athos Bulcão e Burle Marx.

Considerando a impossibilidade de recuperação da pintura anterior, a proposta inicial

compreendia, entre outros procedimentos, a "Confecção de painel em alumínio ou similar e

aplicação de pintura conforme original de Alfredo Volpi" (PROCESSO IPHAN, 2008, p. 02).

A empresa Biapo, com sede em Goiânia, cotada para fazer o trabalho, entretanto,

apresentou outra proposta de tratamento no caso dos afrescos, argumentando:

Tendo em vista a boa documentação fotográfica das pinturas parietais da Capela

Mor e Nave, consideramos viável a execução de um "FAX SÍMILE" que permita ao

espectador ter uma boa leitura daquilo que seria a "imagem original". Para que seja

respeitado o critério de reversibilidade e respeito ao original, sugerimos que esta

pintura seja feita em um painel destacado da parede. (PROCESSO IPHAN, 2009, p.

50)

Mas não foi a empresa Biapo que ganhou a licitação para realização do trabalho, tendo

vencido a Matias & Martins Restauração e Projetos Ltda, com sede em Belo Horizonte, que

também comprovou capacidade técnica e experiência na área.

A restauração realizada, entretanto, acabou tomando outros rumos e resultou numa

grande polêmica envolvendo o Iphan e a comunidade local. Parte dos azulejos de Athos

Bulcão novamente precisaram ser trocados porque não conseguiam impedir a continuidade de

queima de velas e suas consequências danosas, nem a utilização da parte posterior do templo

por moradores de rua que vivem nas imediações da igreja, como abrigo para uso de drogas e

para fazer necessidades fisiológicas. Desta vez, os azulejos foram trocados por réplicas, já que

não existiam mais exemplares originais reservados para substituição.

O superintendente do Iphan-DF, Alfredo Gastal, e o arquiteto da instituição,

responsável pela restauração do templo, Rogério Carvalho169, em entrevista publicada no

jornal Correio Braziliense, reafirmaram a impossibilidade de recuperação da pintura e a

inexistência de algum referencial mais preciso da obra original:

Com a tecnologia até agora disponível, a recuperação da obra do italiano

seria impossível. A destruição dos painéis coloridos e lúdicos de Alfredo

Volpi foi muito bem-feita, nas palavras de Alfredo Gastal. Antes de cobrir as

imagens com demãos de tinta, elas foram raspadas e lixadas. Não existe,

segundo Rogério Carvalho, um esboço colorido da obra. "Cheguei a pensar

em reproduzir as imagens do único registro fotográfico existente do esboço

do artista, o da revista Módulo, porém sabia que nunca conseguiria fazer

169

FREITAS, Conceição. Polêmica na Igrejinha tem mobilização em duas frentes: Galeno terminou os painéis

e fiéis tentam convencer Iphan a desautorizar o artista. Comunidade fará manifestação hoje à tarde. Correio

Braziliense, Brasília, 27 jun. 2009. Disponível em:

<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/06/27/interna_cidadesdf,121958/polemica-na-

igrejinha-tem-mobilizacao-em-duas-frentes.shtml>. Acesso em: 02 jan. 2018.

.

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130

com que alguém conseguisse o ritmo das pinceladas de Volpi e nunca teria

certeza das cores que ele utilizou. Seria fake", diz o arquiteto. (FREITAS,

2009)170

No interior do templo, onde antes ficavam os afrescos de Volpi, o Iphan decidiu

colocar um painel em madeira, sobreposto à parede, para inserção de uma nova pintura, agora

de um artista local, Francisco Galeno (figura 52, 53 e 54). A nova obra retrata Nossa Senhora

de Fátima sem rosto e com uma pipa nas mãos sobre um fundo azul, tendo em volta, em

formas geométricas de cores vivas e alegres, os três pastorinhos ladeados de flores. Galeno

explica que “Com as cores, pipas, carretéis, lamparinas e galhos de árvore quis representar os

três pastorinhos, a alegria, as brincadeiras, o lúdico da vida das crianças” (MENEZES,

2010)171. A pintura provocou insatisfação e revolta em parte da comunidade que frequentava a

Igrejinha, que alegou não gostar nem se sentir representada pela nova intervenção.

Figura 52- Pintura de Francisco Galeno no interior da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima

Fotógrafa: Meiriluce Santos

170

Idem.

171 MENEZES, Leilane. Enfim, a paz reina na Igrejinha. Correio Braziliense. Brasília, 07 mai. 2010.

Disponível em: <

https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2010/05/07/interna_cidadesdf,191062/enfim-a-paz-

reina-na-igrejinha.shtml>. Acesso em: 2 jan. 2018.

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131

Figura 53 - Detalhe da pintura da Igrejinha representando os três pastorinhos

(parede à esquerda)

Fotógrafa: Meiriluce Santos

Figura 54 - Detalhe da pintura da Igrejinha representando os brinquedos das crianças

(parede à direita)

Fotógrafa: Meiriluce Santos

A mídia local deu ampla cobertura ao caso, destacando o clamor geral, principalmente

entre os mais antigos. Enquanto alguns não viram problema e até gostaram da restauração,

outros reclamavam que a obra tombada estaria sofrendo alterações, que deveriam ter buscado

conservar o templo, não mudar. De acordo com o Frei Odolir Eugênio Dal Mago, pároco

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132

responsável pela igreja (MENEZES, 2010)172, a iniciativa de inserir uma nova pintura teria

sido uma imposição do Iphan, sem consulta à comunidade. A mesma afirmação foi feita por

outros frades responsáveis pela igreja e por várias pessoas que foram entrevistadas para esta

pesquisa. O que foi possível levantar acerca do problema e as consequências dessa relação são

valiosos para debater a importância que a Igrejinha, como patrimônio, representa para a

comunidade que a cerca e frequenta, como esse vínculo é forte o suficiente para abalar as

relações e como se estabelecem sentimentos de pertencimento, identidade e proteção.

Os painéis novos foram pintados sob pressão e protesto de muitos fiéis, tendo a mídia

nacional dado ampla cobertura sobre o caso. De acordo com Conceição Freitas (2009), do

jornal Correio Braziliense,

A insatisfação dos paroquianos da Igrejinha começou em novembro do ano

passado, quando o Correio publicou o primeiro esboço da santa feito em um

pedaço de papelão. De lá para cá, a cidade passou a ecoar uma sucessão de

protestos de muitos dos mais assíduos fiéis da igreja à representação de

Galeno para a devoção de Nossa Senhora de Fátima. (FREITAS, 2009)173

Os argumentos para rejeição da pintura foram vários, entre eles, a profanação do

templo, a questão estética e a falta de entendimento das características da arte moderna.

Alguns outros relatos deixam claros esses argumentos:

"Ele (Galeno) está zombando do sagrado. Essas bandeiras e formas não

merecem estar dentro de uma igreja. São pinturas profanas", dispara a

professora Ana Angélica Ramos, 58 anos. "Não sou contra o artista, mas

considero que essas experimentações são inoportunas aqui", pondera a dona

de casa Dalila Gonçalves. (CORREIO BRAZILIENSE, 2009) 174

Uma representação moderna de Nossa Senhora de Fátima e dos três

pequenos pastores que avistaram a santa na cidade portuguesa está tirando a

paz da Igrejinha de Brasília, construída em 1958 e tombada como patrimônio

histórico. Os fiéis se dividiram entre os que aprovam a arte abstrata da santa

sem rosto e de colunas enfeitadas com pipas que representam as crianças -

Lúcia, Francisco e Jacinta - e os que veem na obra um desrespeito à tradição

católica. (LEAL, 2009)175

“Aqui não tem mais concentração, não tem mais intimidade com Nossa

Senhora”, reclama a dona de casa Terezinha Valença.

172

Idem.

173 FREITAS, Conceição. Polêmica na Igrejinha tem mobilização em duas frentes. Correio Braziliense.

Brasília, 27 jun. 2009. Disponível em:

<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/06/27/interna_cidadesdf,121958/polemica-na-

igrejinha-tem-mobilizacao-em-duas-frentes.shtml>. Acesso em: 2 jan. 2018.

174Idem.

175 LEAL, Luciana Nunes. Três painéis e muita controvérsia. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 30 de jun. de

2009. Disponível em: <https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,tres-paineis-e-muita-controversia,395234>.

Acesso em: 06 mai. 2018.

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133

Nas laterais, azul. Pipas e flores foram criadas para representar a alegria das

crianças que viram a Virgem Maria, teriam testemunhado a aparição da

santa. “É um desrespeito à fé católica”, aponta uma fiel. Alguns fiéis

acharam o visual profano demais. “Como é que vai colocar uma pintura

cheia de bandeirinha? Não é carnaval aqui dentro. Aqui não existe carnaval”,

diz a dona de casa Maria de Sousa. Fizeram um abaixo-assinado e vários

protestos. “Houve de tudo. Até palavrão, sabe? Censurando o pintor. As

pessoas estão totalmente revoltadas. Cada qual reage de uma forma. Houve

choro, houve grito, houve tudo, atrapalhou a paz da igreja. Está um

absurdo”, afirma a professora Zelma Capelli. (G1-GLOBO.COM, 2009)176

Porém, nem tudo é calmaria e consenso. “Continuo achando horroroso.

Restauração é conservar o que tem e não mudar tudo. Nunca vi fazer pintura

de banderola dentro de igreja, parece mais uma festa junina. Era para ser

algo tradicional. A comunidade é meio revoltada e o clamor é geral entre os

mais antigos. Se dependesse de mim, já tinha retirado tudo”, afirmou a

moradora da 307 Sul Francelina Alvarenga Lopes, 67 anos. (MENEZES,

CORREIO BRAZILIENSE, 2009)177

A jornalista Conceição Freitas, do Correio Braziliense (2009), afirma que houve

intercessão de pessoas influentes da cidade na tentativa de buscar algum tipo de negociação

com o superintendente do Iphan/DF, Alfredo Gastal, no sentido de convencer a instituição a

desautorizar a arte já pintada de Galeno. Foi o caso de Marcelo Carvalho, superintendente do

grupo Paulo Octavio, uma das maiores empresas de construção civil do Distrito Federal. Fiel

praticante, Marcelo também não gostou da simbologia de Galeno para a fé em Fátima e

conversou com Gastal, sugerindo que o artista desse um rosto à imagem da santa, que não

tinha olhos, nem boca, nem nariz. Galeno não aceitou a sugestão, argumentando que a falta de

feições era "uma homenagem a todas as mulheres que participaram da construção de Brasília.

Cada mulher vai ver a própria expressão no rosto de Fátima" (FREITAS, 2009)178.

Gastal, acrescenta a jornalista, ficou irritado com o excesso de lobby contra o artista

e acabou fechando a questão: "Já negociei tudo o que pude e o que não pude. Cheguei a pedir

ao autor da obra que fosse mais light com a santa, mas daí a botar rosto é interferir demais"

(FREITAS, 2009)179. Sobre as possíveis influências de autoridades federais, Gastal afirmou

que elas estavam sendo tangidas a interferir, mas que essa não era uma questão de intervenção

governamental. Fechando a questão, Gastal decidiu que, para ele, a briga em torno dos painéis

176

GLOBO. Pintura de painel revolta fiéis de igreja do DF. G1-Globo.com. Rio de Janeiro, 19 jun. 2009.

Disponível em: <http://g1.globo.com/bomdiabrasil/0, MRP1200167-16020,00.html>. Acesso em: 6 jun. 2018.

177 MENEZES, Leilane. Enfim, a paz reina na Igrejinha. Correio Braziliense. Brasília, 07 mai. 2010.

Disponível em: <

https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2010/05/07/interna_cidadesdf,191062/enfim-a-paz-

reina-na-igrejinha.shtml>. Acesso em: 2 jan. 2018.

178 Idem.

179 Idem.

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de Francisco Galeno era assunto encerrado. "Não há chance de serem retirados" (LEAL,

2009)180.

A pressão contrária à obra, contudo, continuou. Os fiéis organizaram missas em

protesto, de costas para a pintura, colocaram faixas pretas na entrada e cobriram a imagem da

santa com pano branco. Galeno também reclamou que tinham borrado seu trabalho e que teve

que refazer.

A Paróquia Nossa Senhora de Fátima, responsável pela Igrejinha, segundo Freitas

(2009), não quis se manifestar. O arcebispo metropolitano de Brasília, Dom João Braz de

Aviz, disse não ter uma posição a respeito e o frei Odolir também evitou fazer declarações

públicas "Prefiro ficar tentando juntar as pontas de um lado e de outro. Tenho medo de se

falar, virar um rolo maior ainda" (FREITAS, 2009)181.

No meio dessa guerra santa, afirma Freitas (2009), Rogério Carvalho, arquiteto

designado pelo Iphan-DF para planejar e detalhar as obras de restauração da Igrejinha, deixou

o Iphan. Segundo ele e Alfredo Gastal, a saída foi um acaso funcional. Mesmo assim, o

arquiteto acompanhou a obra até o final.

Embora as pessoas reclamem que o Iphan teria feito uma reforma no lugar de uma

restauração, Rogério Carvalho, afirma que as características originais do templo foram

recuperadas, com exceção dos afrescos de Volpi, que já não existiam mais.

Rogério, ao que parece, precisou justificar a iniciativa de colocar uma nova obra no

lugar da anterior, tendo publicado uma nota explicando que sua intenção era recuperar a

"ambiência que a obra de Volpi produzia na igreja" (FREITAS, 2009)182, revalidando a

intenção do artista. Por isso teria escolhido Francisco Galeno por possuir a técnica, o

cromatismo e utilizar elementos de pintura e grafismo semelhantes aos de Alfredo Volpi.

Após a pressão popular e da mídia, Rogério Carvalho se manifestou, em nota, explicando sua

intenção e descrevendo ponto a ponto da reforma183.

Entendo que restaurar é devolver unidade. O objeto deve necessariamente

ser uno; deve promover ao expectador uma leitura coerente com aquilo que

foi pensado, projetado e construído em determinada época. Nesse sentido, o

trabalho de Niemeyer, Burle Marx, Athos Bulcão e Alfredo Volpi deveriam

180

LEAL, Luciana Nunes. Três painéis e muita controvérsia. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 30 de jun. de

2009. Disponível em: <https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,tres-paineis-e-muita-controversia,395234>.

Acesso em: 06 mai. 2018.

181 Idem.

182 CARVALHO, Rogério. PÚBLICA, Site Agenda. Projeto de restauração da Igrejinha de Fátima.

Brasília, 30 jun. 2009. Brasília 50 anos! Disponível em:

<http://www.gabinetec.com.br/lista/arquivos/backup/obs/OBS_2009_06_30.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2018.

183 Idem.

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135

ser minuciosamente estudados, e após levantamento histórico, deveriam,

dentro do possível, serem recuperados integralmente. (CARVALHO, 2009)

Rogério relata que foi feito um levantamento histórico no arquivo público do DF, no

arquivo da Superintendência do Iphan no DF e em periódicos, fotografias e textos avulsos,

além de entrevistas, a fim de definir quais seriam os pontos a serem tratados na restauração

que possibilitassem uma leitura coerente.

O arquiteto explica que o projeto inicial aprovado pelo Iphan previa:

1. recuperação do projeto paisagístico de Roberto Burle Marx;

2. restauro da escadaria que dá acesso à Igrejinha;

3. restauro do piso externo, buscando a paginação original definida pelo

Burle;

4. restauro dos bancos projetados por Burle;

5. restauro dos azulejos – substituição de algumas peças que haviam sido

inseridas na década de 90 e que possuíam uma coloração muito escura;

inserção de novos azulejos, na área atingida pelo incêndio, feitos pelo

mesmo ceramista azulejeiro que sempre trabalhou com o Athos, porém,

buscando variação de cor em três tipos para evitar blocos de azulejos

monocromáticos;

6. restauro do piso interno (polimento e retirada da cera esverdeada);

7. impermeabilização da laje;

8. pintura externa e interna;

9. restauro dos bancos genuflexórios (madeira, ferragens e substituição do

revestimento) e redesenho e confecção a partir de fotografia, do tocheiro

de 17 braços desenhado pelo Athos para compor a cena frontal direita ao

altar - redesenho e confecção do altar desenhado por Athos e que hoje não

mais é encontrado lá;

10. readequação dos objetos litúrgicos em espaço coerente com o desenho da

igreja e de acordo com as normas litúrgicas definidas pelo Vaticano;

11. novo sistema de som, iluminação externa e interna – estudos realizados

pela mesma equipe que definiu a iluminação do Coliseu em Roma –

Schréder;

12. prospecção e manutenção de imagens resgatadas nas paredes internas; e

13. restauro dos painéis de Alfredo Volpi. (CARVALHO, 2009)

Este último, justifica Carvalho, era, sem dúvida, o ponto mais delicado do projeto de

restauro, acrescentando que na década de 90 teriam sido realizadas prospecções nas três

paredes do interior da Igreja, apontando a impossibilidade de recuperação. Segundo ele, a

destruição teria ocorrido porque

Infelizmente, a movimentação de algumas senhoras e do pároco à época –

1962, não deixou sobrar muita coisa do painel de Volpi. O reboco foi

raspado e lixado. Existem fotografias com as paredes prospectadas e lá dá

para perceber, sem dúvida, que sobraram apenas, ínfimos resquícios de

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policromia disformes, que impedem, com a tecnologia atual, a recuperação

dos painéis (CARVALHO, 2009).

Rogério afirma que chegou a pensar em reproduzir as imagens do único registro

fotográfico existente do esboço de Volpi, constante na Revista Módulo (figura 49)184, mas

sabia que não seria possível que alguém conseguisse reproduzir o ritmo das pinceladas do

artista, nem teria, jamais, certeza das cores utilizadas por ele, já que todas as fotos existentes

eram em preto e branco. Decidiu, então, "que deveria parar onde começava a hipótese"

(CARVALHO, 2009).

Pensando que o artista deveria ser respeitado tanto quanto os outros criadores da

Igrejinha, ele resolveu inserir, no espaço onde antes ficavam os afrescos de Volpi, a

ambiência e a intenção que o artista produziu na igreja:

Ora, em local tão pequeno como a igreja, um mestre da cor como Volpi não

erraria! Três paredes revestidas intencionalmente de azul cobalto

produziriam introspecção; a nave ficaria ainda menor visualmente, seria

promovido o encontro do fiel com Deus, não existiria nada além desse

contato. (CARVALHO, 2009)

Nesse sentido, o arquiteto entrou em contato com o artista plástico Francisco Galeno,

perguntando se ele aceitava fazer o trabalho. A escolha, segundo Carvalho, considerou que,

comparado com Alfredo Volpi, Galeno "possuía a técnica, o cromatismo e elementos de

construção gráficopictórica semelhantes. Eu poderia ter um "quase" Volpi ou poderia ter

novamente agregado àquelas paredes, arte de primeira linha. A escolha foi óbvia!"

(CARVALHO, 2009).

Carvalho afirma que durante um ano foram realizadas várias reuniões com diversos

membros da comunidade e da igreja, esta representada pelo Frei Odolir Dal Mago, tendo sido

apresentados, criticados e construídos em conjunto os esboços propostos por Galeno.

Carvalho afirma, também, que conversou com artistas plásticos e críticos de arte, inclusive

ligados a Volpi, mas que teve realmente certeza da escolha do artista quando leu uma

manifestação de Olívio Tavares de Araújo, curador da obra de Alfredo Volpi, na qual ele

afirmava ver na obra de Galeno "nada mais nada menos, que o próprio Volpi" (CARVALHO,

2009).

Segundo Rogério, alguns pontos considerados necessários de serem preservados em

relação à obra anterior foram sugeridos para Galeno, que acatou as orientações, entre elas:

1. Necessariamente o fundo dos três painéis deveria ser azul cobalto, o

mesmo utilizado por Volpi na Igrejinha e no Painel do Itamaraty, painel

184

PEDROSA, Mário. Volpi e a arte religiosa. Revista Módulo, Rio de Janeiro, nº 11, dez. 1958.

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137

que também faz parte de sua fase sacra; Ladi Biezus me disse que Volpi

havia comprado grande quantidade de pigmento no tom azul cobalto.

Utilizou diversas vezes esse tom em sua fase sacra.

2. Que o painel frontal deveria conter, de maneira centralizada, uma Nossa

Senhora de Fátima ladeada por dois elementos que reforçassem essa

centralidade como em um oratório; Construção do Volpi para aquele

painel.

3. Que nos dois outros painéis houvessem elementos distribuídos de

maneira linear e/ou aleatória, relacionados à história da aparição de

Fátima e que ocupassem visualmente a extensão total de cada painel.

(CARVALHO, 2009)

Com tais justificativas, Rogério Carvalho185 afirmou esperar ter esclarecido a

motivação das escolhas para o restauro/intervenção na Igrejinha de Fátima.

A parcela da comunidade que se sentiu insatisfeita recorreu ao Ministério Público

Federal (MPF) pedindo a suspensão da obra. A procuradora da República Ana Paula

Montovani sugeriu a paralisação enquanto analisava o abaixo-assinado protocolado pelos

fiéis, constando 68 assinaturas, onde pediam que os procuradores intercedessem para que as

paredes voltassem a ser pintadas de azul e branco (CORREIO BRAZILIENSE, 2009)186.

Gastal precisou aguardar, mas considerava que a quantidade de assinaturas não era

representativa “Os frades responsáveis pelo templo me falaram que a Igrejinha tem cerca de

10 mil fiéis e o abaixo-assinado tem só 68 assinaturas, o que não significa muita coisa”

(CORREIO BRAZILIENSE, 2009)187, disse.

Na qualidade de Superintendente substituto do Iphan no Distrito Federal, Guilherme

Cabral Junior se manifestou, por meio de ofício dirigido à magistrada188, explicando que a

intenção inicial era recuperar o afresco original de Alfredo Volpi, mas uma avaliação das

condições de recuperar a pintura, feita por um técnico do Iphan especializado em

restaurações, opinou ser inviável a sua recuperação/restauração.

Em vista disso e orientados pela intenção de resgatar as características originais da

igreja, aquela Superintendência julgou ser mais adequada a realização de uma nova pintura

185 CARVALHO, Rogério. PÚBLICA, Site Agenda. Projeto de restauração da Igrejinha de Fátima.

Brasília, 30 de jun. 2009. Brasília 50 anos! Disponível em:

<http://www.gabinetec.com.br/lista/arquivos/backup/obs/OBS_2009_06_30.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2018.

186CORREIO BRAZILIENSE. Suspensa pintura na Igrejinha. Brasília, 10 jun. 2009. Disponível em:

<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/06/10/interna_cidadesdf,117465/suspensa-

pintura-na-igrejinha.shtml>. Acesso em: 2 jan. 2018.

187 Idem.

188 BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Processo Administrativo nº

01551.000553/2008-54: Conjunto Urbanístico (Plano Piloto), Brasília/Distrito Federal. Rio de Janeiro, 1990.

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138

cuja temática não entrasse em conflito com as características estéticas e temporais da

Igrejinha e que promovesse o retorno da ambientação interior perdida após a destruição da

obra de Volpi, daí a contratação do artista plástico Francisco Galeno para a pintura do novo

painel, principalmente considerando que, dadas as características modernistas da Igreja e da

obra de Volpi, não seria adequada qualquer intervenção relacionada ao que se vê em igrejas

brasileiras do período barroco dos Séculos XVIII e XIX.

Nesse contexto, a contratação do artista Francisco Galeno afigurou-se como

a mais adequada, visto tratar-se de profissional renomado, seguir escola

artística semelhante a de Volpi, tendo inclusive trabalhado diretamente com

o famoso pintor. (PROCESSO IPHAN, 2009, p. 218)

A Superintendência do Iphan destaca a preocupação de que todo o processo de

restauração da Capela, inclusive a introdução do painel de madeira com as pinturas de

Francisco Galeno, fosse amplamente discutido na paróquia, que as obras estavam acontecendo

mesmo com a Igreja aberta para visitação e culto e que a equipe de profissionais que

trabalhavam na restauração estava "pronta para atender à comunidade, explicar os

procedimentos envolvidos e discutir a importância da restauração das características

essenciais do bem" (PROCESSO IPHAN, 2009, p. 219). Foram, ainda, encaminhadas cópias

de reportagens veiculadas na mídia local desde o inicio das obras, demonstrando a

publicização da restauração, inclusive o amplo apoio ao painel de Galeno. Mesmo com a

justificativa, Cabral informou ter acatado a recomendação do Ministério Público, com a

suspensão da pintura, enquanto aguardava a resposta de uma opinião pública mais ampla.

A procuradora Montovani questionou Alfredo Gastal sobre os fatos relatados no

abaixo-assinado, recomendando a suspensão dos trabalhos de pintura até a análise das

informações, o que foi inicialmente acatado pelo Iphan. Este, entretanto, respondeu

posteriormente que, tendo a Superintendência se posicionado, inicialmente, no sentido de

atender à referida recomendação, mudou de ideia:

Contudo, após submeter o assunto à Procuradoria Federal junto ao IPHAN,

bem como avaliar de forma mais detida os impactos dessa medida na

execução do contrato de restauração da lgrejinha, tendo em conta

precipuamente o fato de a pintura do painel ser uma obra de autor cuja

qualidade do trabalho é reconhecida nacionalmente e, por conseguinte, uma

obra de arte, decidimos por dar continuidade aos trabalhos para os quais V.

Sa. recomenda a suspensão.

Pesou ainda nessa decisão a natureza não impositiva da recomendação, bem

assim como a certeza dessa Superintendência quanto à vinculação da pintura

em comento à realização do interesse público consubstanciado na

restauração da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, - na consequente

possibilidade de feição das qualidades arquitetônicas e artísticas dessa

edificação pela comunidade em geral. (SUPERINTENDENCIA DO IPHAN

NO DISTRITO FEDERAL, OFÍCIO n 297/2009, p. 241)

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A iniciativa, argumenta o documento, foi tomada após a constatação da total

impossibilidade da restauração do painel original de Volpi, "destruído a golpes de marreta

sobre ponteiros e talhadeiras. A razão para essa barbárie jamais foi esclarecida ou assumida

por ninguém ou por qualquer instituição" (SUPERINTENDENCIA DO IPHAN NO

DISTRITO FEDERAL, OFÍCIO n 297/2009, p. 241).

O embargo foi suspenso e Alfredo Gastal, que a princípio havia afirmado que “Todo

mundo em Brasília fala na modernidade. Mas, de repente, percebo que está se formando uma

mentalidade medieval em certos grupos da cidade” (CORREIO BRAZILIENSE, 2009)189,

comemorou: “A arte vai vencer o obscurantismo” (CORREIO BRAZILIENSE, 2009)190,

tendo a obra sido retomada. Francisco Galeno afirmou que não pretendia mudar em nada o

seu projeto original.

Gastal lembra que tiveram o cuidado para que a pintura não fosse feita diretamente

sobre a parede, para isso, foi feita a sobreposição de três painéis em madeira para o caso de,

no futuro, alguma tecnologia a laser possibilitar recuperar o desenho e a cor original de Volpi

novamente. Até lá, afirmou, a Igrejinha continuará com a obra de Galeno (FREITAS,

2009)191.

Mas nem tudo foi tão polêmico. Muitas pessoas gostaram da obra de Galeno, como a

servidora Maria Elisa Neves, que declarou, em entrevista ao jornal Correio Braziliense, ter

adorado a obra do pintor “É um grande artista, reconhecido no Brasil e no exterior, que está

fazendo um lindo trabalho. Temos que ter orgulho. É uma pintura que não agride ninguém.

Pelo contrário. Eu me apaixonei por essa Nossa Senhora” (CORREIO BRAZILIENSE,

2009)192.

O gosto pela pintura também é compartilhado pelo professor Elfrance Gomes dos

Santos, assíduo frequentador da capela: “Eu achei linda a pintura, maravilhosa [...]. As

pessoas têm de entender que esta é uma igreja moderna, que não combina com imagens

clássicas” (CORREIO BRAZILIENSE, 2009)193.

189

CORREIO BRAZILIENSE. Pintura polêmica da Igrejinha da 307/308 sul será retomada. Brasília, 13 jun.

2009. Caderno Cidades. Disponível em:

<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/06/13/interna_cidadesdf,118251/pintura-

polemica-da-igrejinha-da-307-308-sul-sera-retomada.shtml>. Acesso em: 2 jan. 2018.

190 Idem.

191 Idem.

192 Idem.

193 Idem.

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Quanto às reuniões realizadas entre o Iphan, a igreja e a comunidade, há divergências

entre as informações apuradas. Em matéria publicada no Correio Braziliense, a servidora

Maria Elisa Neves afirmou que a imagem da santa foi aprovada pelos fiéis: “antes de tudo

começar, foi discutido em várias quartas-feiras depois da missa” (CORREIO BRAZILIENSE,

2009)194, acrescentando que "Foi apresentado um projeto da pintura e, nas reuniões, parte da

comunidade pediu mudanças na primeira versão da santa, que teria a forma triangular e uma

pipa no lugar da cabeça e o pedido foi atendido" (CORREIO BRAZILIENSE, 2009)195.

Entretanto, os párocos responsáveis pela Igrejinha reclamam da falta de diálogo,

queixando-se da postura de Alfredo Gastal ao repreender a resistência dos fiéis à obra de

Galeno (PARÓQUIA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA)196, quando este afirmou, em uma

reportagem, que teria conversado com o artista para minimizar a polêmica relacionada à

pintura "Até cheguei a falar com ele se não era possível fazer alguma coisa um pouco mais

palatável ao gosto dos fiéis. Estou sentindo que essa atitude dos moradores pode ser um

encaminhamento para a destruição dos painéis, mais uma vez" (CORREIO BRAZILIENSE,

2009)197. Diante dessa declaração, os párocos da Paróquia Nossa Senhora de Fátima criticam

Gastal por entender que ele acusa os fiéis católicos de destruírem obras de arte,

principalmente a de Volpi, e por se firmar como defensor do diálogo, "mas não se sabe a

razão de não ter promovido uma discussão entre especialistas da arte e as autoridades

eclesiásticas a fim de se ter evitado tal afronto a fé católica" (PARÓQUIA NOSSA

SENHORA DE FÁTIMA)198.

Finalizada a obra, em protesto ao abaixo-assinado contra a pintura, os defensores de

Galeno se reuniram e organizaram o Movimento Cultural da Igrejinha. De acordo com a

jornalista Luciana Leal (2009)199, do jornal Estadão, o abaixo-assinado, à época do

194

Idem.

195 Idem.

196 PARÓQUIA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA. Igrejinha: A Defesa da Fé. Brasília. Disponível em:

<http://www.pnsfatimabsb.com.br/artigos/item/124-igrejinha-a-defesa-da-fe>. Acesso em: 5 mai. 2018.

197CORREIO BRAZILIENSE. Suspensa pintura na Igrejinha. Brasília, 10 jun. 2009. Disponível em:

<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/06/10/interna_cidadesdf,117465/suspensa-

pintura-na-igrejinha.shtml>. Acesso em: 2 jun. 2018.

198 PARÓQUIA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA. Igrejinha: A Defesa da Fé. Brasília. Disponível em:

<http://www.pnsfatimabsb.com.br/artigos/item/124-igrejinha-a-defesa-da-fe>. Acesso em: 5 mai. 2018.

199 LEAL, Luciana Nunes. Três painéis e muita controvérsia. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 30 de jun. de

2009. Disponível em: <https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,tres-paineis-e-muita-controversia,395234>.

Acesso em: 06 mai. 2018.

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movimento, teve mais de 500 assinaturas pela obra, contra cerca de duas mil anunciadas pelo

grupo adversário.

Quem não gostou da nova pintura não teve mais como contestar, entretanto, é

possível identificar o nível de insatisfação que gerou a polêmica, a ponto de vários fiéis terem

deixado de frequentar a igreja, procurando outros templos, conforme informou uma das

senhoras que ajuda na organização nas missas realizadas aos domingos na igreja. Sem querer

se identificar, ela afirmou que as discussões foram acaloradas, que também não concordava,

mas não ia deixar de frequentar a igreja, como os outros, por causa disso, mesmo não

gostando da nova intervenção.

De acordo com Frei Júnio Cesar Roza200, um dos frades responsáveis pela igreja no

período de 2012 a 2017, agora já trabalhando em outro estado, numa das poucas

manifestações conseguidas dos membros da igreja para esta pesquisa, teve fiel que ficou tão

desgostoso que acabou morrendo.

Ao final de uma missa de domingo, na tentativa de conseguir informações sobre a

restauração e todo o processo, algumas pessoas foram abordadas. Uma senhora, que

conversou apressadamente e também não quis se identificar, se mostrou bastante contrariada.

Disse que estava viajando e, quando voltou, "Tava isso aí! Não gostei, não gosto do Iphan, fiz

a maior confusão e não adiantou. Eu venho à missa, fecho os olhos para a pintura, não gosto

nem de olhar e nem de falar sobre o assunto". Um grupo de fiéis também se manifestou,

afirmando que não teve qualquer negociação com o Iphan, que não chamaram ninguém para

discutir, que a pintura foi uma imposição. O mesmo relato foi feito pelo Frei Júnio Roza,

Quanto à manifestação de grupos, com música e outras apresentações artísticas em

frente à Igrejinha, organizada em apoio à nova obra, os entrevistados afirmaram que

consideraram uma afronta contra os fiéis que protestavam. O evento foi divulgado nas redes

sociais e publicado no jornal Correio Braziliense:

Depois de missa de protesto do lado de fora, emoldurada por cortinas negras,

da interferência do Ministério Público, da santa ser coberta com pano branco

e fita crepe, de alguém borrar um dos anjos, a Igrejinha será ocupada hoje, a

partir das 16h, por cavaletes, pincéis, tintas, artistas plásticos, crianças e

demais brasilienses que estão no time dos que jogam a favor da obra de arte

de Francisco Galeno nos três painéis que foram grudados às paredes da

igreja em formato de chapéu de freira que Oscar Niemeyer projetou em

1958. (FREITAS, 2009)201

200

ROZA, Junio. Entrevista sobre a relação da comunidade com a Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, em

Brasília. Concedida a Meiriluce Santos Perpetuo. Brasília, nov. 2017.

201FREITAS, Conceição. Polêmica na Igrejinha tem mobilização em duas frentes: Galeno terminou os

painéis e fiéis tentam convencer Iphan a desautorizar o artista. Comunidade fará manifestação hoje à tarde.

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A restauração da Igrejinha foi concluída em 2010, prevalecendo a posição do Iphan-

DF, que afirmou tratar apenas de uma revitalização, comprometendo-se a retornar a pintura do

Volpi caso alguma tecnologia posteriormente permitisse (MENEZES, 2010)202.

O processo de criação de Galeno para o novo mural da Igrejinha, segundo o próprio

artista203, foi inspirado nas imagens que ele tinha de sua infância, no interior de Parnaíba, no

Piauí. Galeno é de origem humilde, filho de rendeira e carpinteiro. Quando menino construía

seus próprios brinquedos, coisas que faziam parte do universo das crianças da época e da

região - peões, lamparinas, pipas, carretéis e carrinhos de lata improvisados, elementos

sempre presentes em suas pinturas.

Seguindo as orientações do próprio Iphan de resguardar a ambientação criada por

Alfredo Volpi, observa-se que Galeno procurou manter alguma similaridade com a obra

anterior ao repetir elementos como a geometria e a cor do fundo no mesmo azul cobalto

utilizado por Volpi na Igrejinha e no Itamaraty. O painel frontal estampa, centralizada, Nossa

Senhora de Fátima suspensa, sem pés, ladeada por dois elementos que reforçam a

centralidade, como em um oratório. Nos dois painéis laterais, figuras geométricas

representando as crianças que viram N. Sra de Fátima são distribuídas de maneira aleatória.

Galeno procurou conciliar uma imagem da Senhora de Fátima mais próxima da

iconografia histórica, desenhando a santa numa figura mais delgada e alongada, a cabeça

levemente reclinada, com um manto simples, branco, e uma coroa de flores sobre a cabeça. A

pipa nas mãos da santa parece, ao mesmo tempo, mãos postas, e a cauda (rabiola), um rosário

colorido que sugere as contas do terço. Segundo o artista, a pipa é uma referência às

brincadeiras de crianças, sendo a cauda finalizada com uma cruz na ponta (figura 55). A santa

de Galeno está repousada sobre flores e galhos em referência à aparição de Fátima sobre uma

azinheira.

Comparada com a imagem mais consagrada do escultor José Ferreira Thedim (figura

56), a iconografia da santa mais aceita pelos fiéis, e com uma pintura da aparição da santa

para os três pastorinhos (figura 57), observa-se que o trabalho de Galeno apresenta uma linha

Correio Braziliense, Brasília, 27 jun. 2009. Disponível em:

<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/06/27/interna_cidadesdf,121958/polemica-na-

igrejinha-tem-mobilizacao-em-duas-frentes.shtml>. Acesso em: 02 jan. 2018.

202 Idem.

203 GALENO, Francisco. Entrevista sobre a obra realizada na Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, em

Brasília. Concedida a Meiriluce Santos Perpetuo. Brasília, 17 jul. 2018.

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estrutural de similaridade. Brincando com elementos lúdicos, o artista procura reproduzir uma

imagem que remete à representação já consolidada da iconografia de Fátima.

Figura 55 - Detalhe da Santa de Francisco

Galeno na Igrejinha Nossa Senhora de Fátima

Figura 56 - Primeira escultura de Nossa

Senhora de Fátima, anterior a 1920

Autor: Francisco Galeno

Fotógrafa: Meiriluce Santos

Autor: José Ferreira Thedim204

.

204

Escultura de Nossa Senhora do Rosário de Fátima (Capelinha das Aparições, Fátima), José Ferreira Thedim,

1920 (primeira fotografia da escultura de Nossa Senhora de Fátima, anterior a 1920.04.26, publicada. In:

DUARTE, Marco Daniel. A iconografia da Senhora de Fátima: da criação ex nihilo às composições plásticas

dos artistas. Documentação Crítica de Fátima III-2. Cultura [Online], Vol. 27 | 2010. Versão online, 29 mai.

2013. Disponível em: <https://journals.openedition.org/cultura/338>. Acesso em: 17 jul. 2018.

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Figura 57 - imagem da aparição da Senhora de Fátima para os três pastorinhos

Autor não identificado

Fonte: Nossa Sagrada Família. Imagem de Nossa Senhora de Fátima.205

Tal representação, dessa forma, não foi suficiente para produzir uma aceitação mais

favorável em relação à obra de Volpi, o que leva a hipóteses de que os elementos geométricos

utilizados pelos artistas poderiam ter contribuído para a rejeição das duas obras.

Com a restauração do templo, outras polêmicas vieram à tona, dessa vez,

reivindicadas pelo Iavam: a destruição da obra de Alfredo Volpi e a cobrança pela

responsabilidade do ato, além de uma notória insatisfação com a inserção de outra obra no

mesmo local. O problema foi trazido em diversas ocasiões pela mídia nacional,

principalmente de Brasília e São Paulo, cidade aonde Alfredo Volpi viveu desde sua infância.

Ao catalogar o acervo do pintor, o Instituto Volpi encontrou pinturas relacionadas à

fase sacra de Alfredo Volpi que apresentavam semelhanças com o afresco da Igrejinha e

resolveu cobrar uma resposta '“Percebi que não podia deixar essa história morrer sem uma

explicação. Faço isso pela memória de Volpi”, argumenta Pedro Mastrobuono. Ele pedirá

explicações à Arquidiocese e pode acioná-la judicialmente caso não tenha respostas"'

(LANNES, 2017)206. Uma das pinturas que representa essa época é tomada como referência

por Pedro Mastrobuono como comparação à obra perdida. Trata-se da imagem de “Santa

Bárbara”, de 1958 (figura 58), produzida no mesmo ano do afresco da Igrejinha. Para se ter

205

NOSSA SAGRADA FAMÍLIA. Imagem de Nossa Senhora de Fátima - Significados e Símbolos.

Disponível em: <https://www.nossasagradafamilia.com.br/conteudo/imagem-de-nossa-senhora-de-fatima-

significados-e-simbolos.html>. Acesso em: 20 dez. 2018.

206 LANNES, Paulo. Instituto Volpi quer processar Igrejinha por destruir obra do pintor - O presidente da

instituição pede explicações à Arquidiocese de Brasília em nome “da memória do pintor”. Jornal Metrópoles.

Brasília, Caderno Política Cultural, 02 mar. 2017. Disponível em:

<https://www.metropoles.com/entretenimento/politica-cultural/instituto-volpi-quer-processar-igrejinha-por-

destruir-obra-do-pintor>. Acesso em: 4 ago. 2018.

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uma idéia do valor monetário e artístico dessa pintura, em 2017, ela seria levada a leilão por

cerca de R$ 6 milhões, conforme o jornalista Paulo Lannes (2017)207.

Figura 58 - Volpi. Santa Bárbara-1958 Têmpera sobre tela

Fonte: Catálogo de obras de Alfredo Volpi (2015, p. 143)

208

As pinturas da Igrejinha também manifestavam elementos que assinalaram as fases

mais marcantes e valorizadas do artista e se firmaram como linguagem inconfundível de

Alfredo Volpi: as “profanas” bandeirinhas (assim consideradas como argumento para

destruição do afresco) e os arcos. As obras do artista compostas por essas figuras, trabalhadas

com infinitas combinações de cores, tamanhos e composições, chegam a custar R$ 12 milhões

no mercado de arte brasileiro, sem contar no mercado internacional. Segundo o Lannes

(2017), essas avaliações dão noção da vultuosidade do valor representado pela perda do

afresco, que hoje seria considerado um de seus principais trabalhos, mais um motivo para que

o Iavam, segundo Pedro Mastrobuono, reivindique os danos causados pela destruição da

pintura:

207

Idem.

208 INSTITUTO ALFREDO VOLPI DE ARTE MODERNA. Alfredo Volpi: Catálogo de Obras. Edição

Comemorativa do Centenário da 1ª Pintura, São Paulo: Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna, 2015.

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146

Mais de 50 anos depois, o presidente do Instituto Volpi, Pedro Mastrobuono,

conseguiu recolher dados suficientes sobre o material para processar a

Arquidiocese de Brasília. “Mesmo sabendo que os padres poderiam ter

participado do ato, a Igreja não investigou e pediu apuração policial”, disse.

(LANNES, 2017)209

Reforçando a lastimável perda da obra, o jornalista Silas Marti (2007)210 faz a

comparação do afresco da Igrejinha com a mesma obra de "Santa Bárbara", observando que

traços estilizados, como o mesmo tom de azul e os traços simples, não sobreviveram a um

ataque violento. E complementa, mencionando que Pedro Mastrobuono tencionava pedir

esclarecimentos à Arquidiocese de Brasília, argumentando não ser justo o que fizeram com o

artista e que, para haver um possível resgate da memória de Volpi, essa história precisava

transparecer.

É fato que o crime de destruição de uma obra pública já prescreveu. E

também ocorreu antes do tombamento da igreja por órgãos de defesa do

patrimônio histórico – ela passou a ser protegida no Distrito Federal em

1982 e, em nível nacional, só há dez anos, quando Niemeyer mandou um

bilhetinho ao então ministro da Cultura, Gilberto Gil. (MARTI, 2007)211

Buscando a máxima jornalística de ouvir todos os lados, Silas Marti (2007) afirmou

que tentou falar com Arquidiocese de Brasília, que não quis se manifestar.

Ao analisar as poucas imagens fotográficas existentes do antigo afresco da Capela

Nossa Senhora de Fátima, Mastrobuono212 identifica a linguagem altamente volpiana presente

em vários elementos plásticos do artista. Esses traços estão presentes nos elementos de

fachada, nas bandeirinhas e na imagem do era o painel central, representando a Madona

voando sobre o céu com o menino Jesus no colo e uma rosa, em consonância com as linhas e

as cores que ele pintou no final dos anos 50 e por todo o ano 60.

Comparando a obra de Volpi com a de Francisco Galeno e diante das suposições de

que este último teria sido discípulo e aluno de Volpi, mantendo semelhante linguagem

plástica, Pedro Mastrobuono menciona que não consegue estabelecer relação entre os dois

artistas. Critica o discurso criado pelo Iphan e divulgado pela mídia, afirmando que não

consta que eles tenham se conhecido e que o projeto atual não tem nada a ver com o original.

209

Idem.

210 MARTÍ, Silas. Instituto Volpi quer ir à Justiça contra igreja que destruiu afresco do pintor. Folha de

São Paulo. São Paulo, 01 mar. 2017. Disponível em:

<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/03/1862594>. Acesso em: 28 jun. 2018. 211

Idem.

212 MASTROBUONO, Pedro. Entrevista sobre Alfredo Volpi e a Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, em

Brasília. Concedida a Meiriluce Santos Perpetuo. Brasília, 8 jul. 2018.

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E completa, argumentando que Volpi, findo o período militar pós golpe, teria sido convidado

para pintar novamente a igreja, mas recusou veementemente, provavelmente aborrecido por

sua pintura ter sido destruída, desautorizando qualquer outra intervenção no local que fosse

relacionada ao que fora apagado. Esse é um dos argumentos utilizados por Mastrobuono para

não reconhecer a nova pintura da igreja como uma produção baseada na mesma linguagem de

Volpi.

O que foi pintado no lugar das mãos de Nossa Senhora é completamente

diferente daquilo que Volpi havia pintado. Comparando o que havia

inicialmente e o que existe agora, dá para ver exatamente que a

representação devoção mariana é divorciado daquilo que era a concepção

inicial do Volpi. (MASTROBUONO, 2018)

Marco Mastrobuono (2013)213, pai de Pedro Mastrobuono e amigo pessoal de Volpi,

ao escrever a biografia do artista, também afirma que o Mestre do Cambuci, apesar de

colecionar inúmeros admiradores, não deixou discípulos, não repassou suas técnicas: "Sem

discípulos, não há volpismo. Não houve escola. Sem esta, não há volpianos"

(MASTROBUONO, 2013, p. 29). E reafirma:

Já se disse que o pintor das bandeirinhas não integrou movimentos artísticos.

Sua obra não se subordinou a manifestos. Diga-se agora que também não fez

escola, nem deixou seguidores. [...] Poder-se-ia perguntar: "E as influências

tão visíveis?" Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Sofrer

influência não quer dizer ser seguidor. Influir não é sinônimo de ter

discípulos. (MASTROBUONO, 2013, p. 27)

Lembrando que Volpi e Niemeyer eram amigos e muito bons desenhistas, Pedro

Mastrobuono (2018)214

aponta a relação das composições que conceberam juntos. Utilizando

formas idênticas, eles criavam utilizando como base elementos de fachada comuns, como é o

caso do palácio dos arcos ou Palácio do Itamaraty, em Brasília, em que os arcos aparecem

várias vezes tanto nas obras de Volpi quanto nas obras Bruno Giorgio e de Niemeyer,

expostas no mesmo local,

Pedro Mastrobuono, manifestando-se contra a inserção de uma nova pintura dentro

do templo em substituição ao afresco de Alfredo Volpi, afirmou não ter sido consultado, em

nenhum momento, seja pelo Iphan ou por qualquer pessoa física, sobre o processo de

restauração da Igrejinha, nem acerca da possibilidade de fornecimento de informações sobre

Volpi e a obra perdida.

213

MASTROBUONO, Marco Antonio. Alfredo: Pinturas e Bordados. Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna:

São Paulo, 2013, 352 p.

214 Idem.

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148

Francisco Galeno215 afirma que não conheceu a obra de Volpi na Igrejinha, mas que o

jornalista Severino Francisco, do jornal Correio Braziliense, lhe mostrou uma foto colorida do

afresco antigo. Sobre o que houve com a pintura, disse que apenas ouviu falar que os padres

pintaram por cima.

Galeno216

afirma que quando fez a pintura - com tinta óleo sobre madeira -, sentiu na

pele a reprovação, que não sabe se Volpi passou por isso, mas ele vivenciou muito a

contestação. Conta que se incomodaram com a obra por ser moderna e avalia que desejavam,

provavelmente, obras clássicas, barrocas. "As pessoas reclamavam dizendo que não ia ser

mais Nossa Senhora de Fátima, mas Nossa Senhora das Pipas" (GALENO, 2018).

Sobre o processo de criação, o artista afirma que se sentiu honrado com o convite do

Iphan. Ele declara que admira muito o trabalho de Volpi, mas acha que o convidaram porque

encontraram similaridade entre seus temas populares e a geometria. Quando fez a obra,

perguntou se queriam uma reprodução do que o Volpi pintou ou uma pintura nova, criada por

ele. Como disseram que queriam que fizesse uma criação própria, fez como quis. Dessa

forma, defende que sua obra é inédita e não tem nenhuma relação com a anterior. Sobre as

afirmativas de que ele teria sido discípulo ou aluno de Volpi, Galeno refuta, afirmando ser um

erro tal afirmação, até porque ele não conviveu com o artista. O que os une, afirma, é a

questão do olhar voltado para a cultura popular, se relacionam por esse conceito. Sua

admiração pelo Mestre do Cambuci vai além das bandeirinhas, o que lhe encanta é a forma

como Volpi trabalhava a cor. Se há alguém que o influenciou, afirma, foi o mestre Quinca,

artesão da cidade de Brazlândia, vizinha de Brasília. Dele, Galeno conta que se considera

discípulo, porque acompanhou sua obra e aprendeu muito.

Hoje, Francisco Galeno tem 62 anos. É piauiense, nascido numa das ilhas do Delta

do rio Parnaíba, de onde saiu aos oito anos de idade com a família, quando o pai, que estava

trabalhando na construção de Brasília, mandou buscá-los. Foi uma viagem de uma semana,

conta. O artista não gosta do termo candango217, como chamam os construtores de Brasília,

porque acha que tem origem pejorativa, relacionado ao preconceito com os escravos. Daí

afirmar que seu pai é pioneiro. Avalia que o seu trabalho está muito relacionado ao que viu e

215

GALENO, Francisco. Entrevista sobre a obra realizada na Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, em

Brasília. Concedida a Meiriluce Santos Perpetuo. Brasília, 17 jul. 2018.

216 Idem.

217 De acordo com o Dicionário Michaelis, o termo Candango refere-se a: 1. Nome com que os africanos

designavam os portugueses; 2. gír Tipo desprezível; vicioso; mequetrefe; 3. Trabalhador braçal vindo de fora da

região; 4. Nome com que se designam os trabalhadores comuns que colaboraram na construção de Brasília.

(DICIONÁRIO MICHAELIS, 1998, p. 412).

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viveu na sua infância no Delta, nas brincadeiras, nas festas populares - a luminosidade, a cor,

a forma - tudo isso ajudou a construir sua obra. Também acha que sua participação na pintura

da Igrejinha não é obra do acaso, mas quase uma predestinação, já que seu nome é Francisco

de Fátima, nascido em 13 maio de 1956, dia de Nossa Senhora de Fátima e um ano antes da

Igrejinha ser construída. Não pode ser uma mera coincidência, avalia.

A similaridade apontada de sua linguagem plástica com o trabalho de Alfredo Volpi,

na identificação de Galeno, está na representação figurativa, na paisagem, na cor, na

geometria, na composição e na presença da cultura popular, elementos que, segundo ele,

fazem parte de uma cumplicidade, de uma irmandade com Volpi e também com o artista

Rubem Valentim, que teve seu trabalho, também figurativo, influenciado pela luz de Brasília.

Mas seu contato com Alfredo Volpi foi superficial, tendo visto o artista somente uma vez,

numa exposição pessoal, na Sala Funarte, em Brasília.

Falando sobre sua obra na Igrejinha, Galeno afirma que tentou representar o universo

das crianças que presenciaram a visão de Fátima. No painel estão os brinquedos das crianças,

uma alusão à imaginação, ao sonho. A mensagem tem cunho religioso e ele procurou mostrar

isso na pintura central, com a imagem de nossa senhora.

Galeno avalia a reação da comunidade como natural "Acho que eles ainda vivem

naquela história de uma arte mais acadêmica, mais realista, não conhecem a arte

contemporânea. Eles se sentem donos da igreja" (GALENO, 2018). Entende que existe uma

relação de afetividade, mas argumenta que a igreja não é somente daqueles que reclamaram.

Como não podia esperar que decidissem, não ligou para a opinião desses. O problema,

segundo Galeno, foi tão grande que chegou uma hora em que o diretor do Iphan, Alfredo

Gastal, começou a titubear e pediu que ele fizesse uma coisa mais palatável, mas o artista se

recusou, disse que não ia mudar nada. "Num projeto moderno, de uma cidade moderna, não

tem sentido colocar uma obra sacra, tanto é que ele, Volpi, colocou lá elementos da festa

popular" (GALENO, 2018).

Argumentando a dificuldade que a comunidade teve de entender a pintura, Galeno

arrisca afirmar que os que protestaram hoje seriam as mesmas pessoas que na juventude não

gostavam da obra do Volpi:

Eram todas pessoas de idade, acima de 60, 70 anos. Era só um grupo de

pessoas que se manifestavam, puseram pano preto em cima da imagem,

rezaram missa de costas, vestiram de preto, rabiscaram a pintura... o padre

era conivente. Eles diziam que não queriam aquela pintura, que não tinha

cabimento aquilo dentro da igreja. (GALENO, 2018).

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Uma senhora, conta Galeno, chegou a falar "que a pintura era horrorosa, que ele era

horroroso e que ele não era de lá" (GALENO, 2018). Mas ele não retrucou, afirmando que

estava tentando fazer um bom trabalho e sabia que estava ficando bom. Ele não fez com o

intuito de provocar ou criar polêmica. Sua obra representa sua visão do mundo, suas ideias,

sua arte, suas emoções, colocou ali sua vivência.

Por outro lado, afirma o artista, outras pessoas gostaram e aprovaram o trabalho, que

também foi muito elogiado. Eram pessoas mais jovens, conheciam arte e entendiam que ele

estava fazendo. Agora, conclui Galeno, a obra pertence à cidade, à população, ao mundo, é

um dos monumentos mais visitados em Brasília. A igrejinha tem uma missão e está

cumprindo o papel dela. Deseja que ela dure bastante.

A pintura demorou seis meses para ficar pronta e a única certeza que ele tinha era de

que precisava terminar, não deixar pela metade.

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151

7. PATRIMÔNIO E CIDADES

A intenção de registrar a passagem do homem no tempo e no espaço por meio de

desenhos, escrita, história oral e demais manifestações artísticas e históricas, relatando fatos,

ações, acontecimentos e pessoas considerados dignos de referência é tão antiga quanto as

sociedades humanas. A importância desse esforço em manter vivas as diferentes formas de

referência do homem na Terra decorre da necessidade deste de se reconhecer como partícipe

de fatos históricos, políticos e sociais, evidentes nos processos de criação artística, que

asseguram, não só o conhecimento de sua origem e história, mas também reafirmam seu lugar

no mundo.

A necessidade de preservação de memórias e ações é pontuada por Márcia Sant'Anna

(2015)218

ao discorrer acerca dos inúmeros monumentos que surgiram no mundo, cujo

objetivo maior era o de rememoração de fatos considerados merecedores de serem

materialmente assinalados, garantindo seu lugar na memória e na representação de grupos

sociais.

Françoise Choay (2006)219

reconhece que existe uma quantidade incomensurável e

heterogênea de patrimônio, mas se reserva à escolha do patrimônio histórico representado

pelas edificações como categoria exemplar de estudo, uma vez que estas se relacionam

diretamente com a vida de todas as pessoas. '12

O termo monumento é explicado pela autora tendo sentido original no latim

monumentum, que por sua vez, deriva de monere ("advertir", "lembrar"), ou aquilo de traz

alguma coisa à lembrança. Seu propósito tem natureza afetiva essencial:

Não se trata de apresentar, de dar uma informação neutra, mas de tocar, pela

emoção, uma memória viva. Nesse sentido primeiro, chamar-se-á

monumento tudo o que for edificado por uma comunidade de indivíduos

para rememorar ou fazer que outras gerações de pessoas rememorem

acontecimentos, sacrifícios ritos ou crenças. A especificidade do monumento

deve-se precisamente ao seu modo de atuação sobre a memória. Não apenas

ele a trabalha e a mobiliza pela media ção da afetividade, de forma que

lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse presente. Mas esse passado

invocado, convocado, de certa forma encantado, não é um passado qualquer:

ele é localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que pode, de

218

SANT’ANNA, Márcia. Da cidade-monumento à cidade-documento: a norma de preservação de áreas

urbanas no Brasil 1937-1990. Salvador: Oiti Editora, 2014.

219 CHOAY, Françoise: Alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação da Liberdade, 2006. 5º edição.

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forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma

comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar. [...] O

monumento assegura, acalma, tranquiliza, conjurando o ser do tempo. Ele

constitui uma garantia das origens e dissipa a inquietação gerada pela

incerteza dos começos. Desafio à entropia, à ação dissolvente que o tempo

exerce sobre todas as coisas naturais e artificiais, ele tenta combater a

angústia da morte e do aniquilamento. (CHOAY, 2006, p. 18)

A essência do monumento tem uma função antropológica, mas seu sentido caminhou

a passos lentos. Sua noção "não pode ser dissociada de um contexto mental e de uma visão de

mundo" (CHOAY, 2006, p. 25), por isso, avalia a autora, adotar práticas de conservação de

monumentos sem dispor de um referencial histórico ou sem atribuir valor particular ao tempo

e à sua duração, sem o inserir na história da arte, é desprovido de sentido.

As diferentes relações que mantêm os monumentos com o tempo, a memória e o

saber, segundo Choay, determinam a diferença quando à sua conservação ou não. Os

monumentos são permanentemente expostos a afrontas do tempo.

O esquecimento, o desapego, a falta de uso faz que sejam deixados de lado e

abandonados. A destruição deliberada e combinada também os ameaça,

inspirada seja pela vontade de destruir, seja, ao contrário, pelo desejo de

escapar à ação do tempo ou pelo anseio de aperfeiçoamento. A primeira

forma, negativa, é lembrada com mais frequência: política, religiosa,

ideológica, ela prova a contrario o papel essencial desempenhado pelo

monumento na preservação da identidade dos povos e dos grupos sociais.

(CHOAY, 2006, p. 26)

Choay relembra as perdas dos monumentos da antiguidade clássica, causadas pelas

grandes invasões e o fim da idade média na Europa. Grandes monumentos e edifícios públicos

representativos da colonização romana passaram por uma terrível destruição, relata a autora,

motivada por dois fatores principais: o prosetilismo cristão, provocado pelas invasões

bárbaras dos séculos VI e VII, e pelos monges teólogos do século III, que destruíram o

anfiteatro de Treves, de Mans e o templo de Tours. Os clérigos também orientavam a

permanência ou destruição de monumentos de acordo como interesse ou respeito por obras

consideradas ou não coerentes com as posições da Igreja, "ora promovidos em nome das

"humanidades", ora condenados por paganismo" (CHOAY, 2006, p. 37).

Na época da Revolução Francesa, em 1789, também imperou uma forma de

destruição classificada como vandalismo por Françoise Choay (2006, p. 108-109), citando a

Sociedade dos Amigos da Liberdade e da Igualdade da Comuna de Paris, quando decretou

que todos os sinos das igrejas fossem transferidos para a Casa da Moeda e transformados em

moedas republicanas, ordenando, ainda, que a medida fosse estendida a todos os

departamentos, de forma que não restasse um único refugo da antiga igreja. Dessa forma,

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153

procurava promover o esquecimento, o apagamento, a destruição ideológica promovida por

uma revolução iconoclasta.

O monumento histórico só entra em fase de consagração após meados do século

XIX, conforme pontua Choay, tendo como marco simbólico a Carta de Veneza, de 1964,

redigida durante a assembleia do Icomos220

, também denominada Carta Internacional sobre a

conservação e a restauração dos monumentos e dos sítios.

Embora a ideia de preservar fragmentos urbanos tenha surgido em uma fase

considerada tardia, quando muita coisa já havia se perdido ou destruída, Márcia Sant'Anna

lembra que a consolidação e a formalização de propostas relacionadas à preservação desses

patrimônios como assunto de Estado precisou percorrer um longo caminho, que envolveu a

busca de arcabouços teóricos que interpretassem as ações mais coerentes quanto à restauração

dos monumentos e a formalização de algumas definições em relação ao patrimônio.

Nesse aspecto, Choay explica que a expressão "patrimônio histórico", que num

sentido básico designa um bem destinado ao usufruto de uma comunidade, foi ampliada, ao

longo do tempo, a uma concepção de dimensões planetárias, constituída por uma diversidade

de objetos acumulados continuamente, que se agregaram por um passado comum: obras e

obras primas artísticas e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de saberes dos seres

humanos. Patrimônio histórico, portanto, tornou-se uma palavra-chave que remete a uma

instituição e a uma mentalidade. Como regra, a autora afirma que "indivíduos e sociedades

não podem preservar e desenvolver sua identidade senão pela duração e pela memória"

(CHOAY, 2006, p. 112). Essas verdades, assegura Choay, precisaram ser compreendidas

pelos homens para que providenciassem legislações que garantissem a proteção dos

monumentos das nações.

Uma dessas definições consta das formulações da UNESCO, que reconheceu a

importância do patrimônio como referência de identidade, defendendo sua aplicação

universal, seu pertencimento a todos os povos e a obrigação do Estado de conservá-lo:

O patrimônio é o legado que recebemos do passado, vivemos no presente e

transmitimos às futuras gerações. Nosso patrimônio cultural e natural é fonte

insubstituível de vida e inspiração, nossa pedra de toque, nosso ponto de

referência, nossa identidade.

O que faz com que o conceito de Patrimônio Mundial seja excepcional é sua

aplicação universal. Os sítios do Patrimônio Mundial pertencem a todos os

povos do mundo, independentemente do território em que estejam

localizados.

220

Sigla inglesa para o Conselho Internacional dos Monumentos e dos sítios, criado em 1964, por recomendação

da UNESCO.

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154

Os países reconhecem que os sítios localizados em seu território nacional e

inscritos na Lista do Patrimônio Mundial, sem prejuízo da soberania ou da

propriedade nacionais, constituem um patrimônio universal "com cuja

proteção a comunidade internacional inteira tem o dever de cooperar".

Todos os países possuem sítios de interesse local ou nacional que constituem

verdadeiros motivos de orgulho nacional e a Convenção os estimula a

identificar e proteger seu patrimônio, esteja ou não incluído na Lista do

Patrimônio Mundial. (UNESCO)221

Segundo Haroldo Leitão (2002)222

, o Patrimônio Cultural representa a herança e a

identidade cultural que não se deseja perder ou, enquanto identidade nacional, aquilo que se

quer afirmar ou reafirmar. O arcabouço para a concepção do patrimônio da humanidade que

se definiu a partir da revolução francesa, lembra o autor, começou a se delinear na construção

de monumentos pelos quais se desejava afirmar a nova identidade da França, configurada nos

princípios de igualdade, fraternidade e liberdade, destinados a servir à memória das gerações

futuras. Leitão também explica a ideia que fomentou, naquele momento, o surgimento do

termo patrimônio. Relacionado à herança, àquilo que vem do pai, a lógica que se estabeleceu

foi de que, se os descendentes são herdeiros do pai e, diante dos princípios de igualdade e

fraternidade, todos são irmãos e livres, então, todos são herdeiros do mesmo pai. A nação é

representada por todos aqueles que ali nascem. Se todos são filhos da nação, então, tudo

pertence aos herdeiros, logo, os monumentos que representam a identidade do povo, deixam

de ser privilégio de elites e passam a ser patrimônio cultural coletivo. Nesse pensamento se

inserem as cidades, seus monumentos e a comunidade que as habita.

As cidades são espaços urbanos reais, mas, sobretudo, "espaços imaginados por cada

um de nós na revolução criadora da nossa memória" (DODEBEI; STORINO, 2007, p. 276)223,

por isso, construímos a imagem da cidade a partir da tensão entre o que vemos e imaginamos,

entre o visível e o invisível. Considerando os monumentos valorizados das cidades como itens

de uma coleção, Vera Dobedei e Claudia Storino (2007) afirmam ser possível discutir os

critérios escolhidos para patrimonialização de edificações, quem os determina e quais as

implicações que essas escolhas trazem para os moradores.

Patrimonializar toda uma cidade significa ter identificado nela as qualidades

necessárias para transformá-la em índice cultural. Nesse ponto de vista, "a cidade patrimonial 221

UNESCO. Patrimônio: Legado do passado ao futuro. Disponível em:

<http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/heritage-legacy-from-past-to-the-future/>.

Acesso em: 19 mar. 2017.

222 CAMARGO, Haroldo Leitão: Patrimônio Histórico e cultural. São Paulo, Aleph, 2002. Coleção ABC do

Turismo. 3º edição 2005.

223 DODEBEI, Vera; STORINO, Claudia. As cidades e o patrimônio cultural. In: ABREU, Regina; CHAGAS,

Mario de Souza; SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. (Orgs.). Museus, coleções e patrimônios: narrativas

polifônicas. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2007. p. 275-282.

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pode ser vista como um objeto metonímico: um artefato, uma coleção, um fato museal ou

mesmo um fato social" (DODEBEI; STORINO, 2007, p. 278). Mas o processo de

patrimonialização e tudo o que advém dessa ação não é simples. Muitas vezes, provoca

discussões complexas e sentimentos de insatisfação atingem os moradores.

Citando o artigo Demarcando fronteiras urbanas: a transformação de moradias em

patrimônio cultural, de Roberta Sampaio Guimarães (2007)224

, no qual a autora discute as

Áreas de Proteção Ambiental (APAs) na cidade do Rio de Janeiro, apontando as relações da

sociedade com as políticas públicas patrimoniais, Dodebei e Storino apontam as tensões entre

tombamento e preservação identificadas por Guimarães, quando ambiente e cultura passam a

contrapor valores entre patrimônio histórico e arquitetônico e valores afetivos e comunitários.

As discussões revelam a complexidade política, social, econômica e sentimental que se

desencadeiam com o processo de patrimonialização.

Concluindo, Guimarães afirma que:

O não direcionamento de uma política pública que abrangesse os diversos

aspectos da preservação aumentou o conflito e a fragmentação social da

cidade, ao invés de alcançar o objetivo enunciado pelos ideólogos do

patrimônio de produzir um sentimento de pertença a uma coletividade ou

"comunidade". A questão da representação das identidades culturais se

tornou, aqui, uma questão eminentemente política e territorial, que envolveu

não apenas a disputa pela classificação dos objetos-símbolos dessa

"identidade", mas também a classificação dos espaços e de seus habitantes.

(GUIMARÃES, 2007, p. 378)

Inseridos e integrados na sociedade, promovendo processos de identidade e

cidadania, os monumentos exercem papel fundamental nas decisões políticas para salvaguarda

do patrimônio cultural. Ao pensar nas cidades como espaços imaginados pelo homem,

portanto, de memória, as autoras Dodebei e Storino observam que a representação simbólica

desses espaços pode ser um problema na implementação de políticas de preservação, podendo

haver truncamentos, embates e conflitos entre os órgãos responsáveis pela preservação e a

comunidade, conforme também constatou Guimarães, "interferindo diretamente na

configuração dos espaços físicos e simbólicos, catalisando uma guerra urbana de

representações e lugares" (GUIMARÃES, 2007, p. 370).

No Brasil, a instituição da proteção do patrimônio aconteceu com a criação do

Decreto-Lei nº 25/1937, que estabeleceu o tombamento, instrumento jurídico utilizado, até

hoje, como norteador das políticas de preservação de bens móveis e imóveis declarados como

224

GUIMARÃES, Roberta Sampaio. Demarcando fronteiras urbanas: a transformação de moradias em

patrimônio cultural. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mario de Souza; SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. (Orgs.).

Museus, coleções e patrimônios: narrativas polifônicas. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2007. p. 362-

379.

Page 156: MEMÓRIA, IDENTIDADE E FÉ NA CAPELA DE …...IGREJINHA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA Salvador 2019 MEIRILUCE SANTOS PERPETUO MEMÓRIA, IDENTIDADE E FÉ NA CAPELA DE BRASÍLIA: ANÁLISE

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patrimônio cultural da nação. De acordo com Márcia Sant'Anna (2005), o dispositivo do

patrimônio tem servido, desde sua instauração no século XIX, às mais diferentes situações

estratégicas:

O objeto tornado patrimônio, monumentos histórico, bem cultural ou bem de

cultura, não importa o nome que se dê, está sempre funcionando como

estratégias de poder e de resistência que, conforme o momento histórico,

visam a construir nacionalidades ou identidades nacionais; conferir status a

determinada produção artística, arquitetônica ou genericamente cultural;

incentivar ou incitar a utilização de determinado repertório formal na

produção arquitetônica ou urbanística; reforçar a afirmação e resistência

cultural de grupos étnicos minoritários ou dominados; regular a utilização e a

ocupação do solo urbano pela limitação à propriedade privada etc. O

patrimônio é, então, o resultado de uma produção que envolve elementos

muito heterogêneos e mobiliza os mais diversos saberes para, em última

análise, produzir sentidos. (SANT'ANNA, 2005, p. 33).

É nesse aspecto que Sant'Anna defende o papel do patrimônio como um instrumento

potencial de reafirmação de identidade e poder:

O dispositivo de patrimônio foi, cada vez mais, efetuando as relações de

poder existentes no corpo social, na medida em que, no desenvolvimento das

sociedades contemporâneas, a vinculação dos indivíduos a uma determinada

identidade, não somente nacional mas étnica ou grupal, tornou-se também

cada vez mais estratégica e essencial para as mais variadas relações pessoais

ou coletivas, ligadas tanto a questões afetivas e emocionais quanto a

econômicas e de consumo. (SANT'ANNA, 2005, p. 35)

No mundo ocidental a preservação é feita mediante a aplicação de um "dispositivo de

patrimônio" (SANT'ANNA, 2005, p. 36), que entroniza os objetos e permite a interpretação

de que o patrimônio histórico

É permanentemente produzido por um conjunto de discursos (saberes) e

visibilidades (organizações concretas) alinhados ou chamados a funcionar

em consonância com um objetivo estratégico. Significa também assumi-lo

como foco de saber-poder. (SANT'ANNA, 2005, p. 36)

Nesse sentido, a Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu Artigo 216, trata do

que deve ser considerado patrimônio nacional:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e

imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência

à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da

sociedade brasileira (BRASIL, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988)225

O artigo afirma, ainda, que o Estado entende por patrimônio cultural: I - as formas de

expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e

tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às

manifestações artístico-culturais; e V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,

225

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.

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paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Define, também, a

responsabilidade pública e comunitária de promover a proteção do patrimônio nacional:

§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e

protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros,

vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de

acautelamento e preservação.

§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da

documentação governamental e as providências para franquear sua consulta

a quantos dela necessitem.

§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da

lei. (BRASIL, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988)

A pesquisadora Heloisa Helena Costa (2012)226

, ao analisar a contribuição

multidisciplinar e teórica de vários campos de conhecimento relacionados à Museologia, ao

Patrimônio e à Memória, lembra que as cidades são como laboratórios onde se processam

relações que promovem a intimidade entre esses campos, principalmente no contexto de

mudanças das cidades contemporâneas. São elas espaços de vida associativa e de

efervescência cultural, vivendo constantes mudanças influenciadas pela população em geral.

Há muitos tipos de cidades, segundo a autora, que podem ser estudadas a partir de

sua historicidade, de seu estilo arquitetônico e de suas finalidades. Cada época se incumbiu de

externar sua forma de pensar a cidade, tendo todas, em comum, a preocupação "com a morada

do ser humano, com o local de guarda e de proteção dos sujeitos que passam a habitar esse

espaço" (COSTA, 2012, p. 90). Essa interação é que permite que a cidade permaneça viva.

Saindo o homem, ela morre, se esvai, vira ruína, desaparece, permanecendo somente a alma

do que ela já foi.

Segundo Costa, o patrimônio cultural urbano assume uma importância cada vez

maior como um dos vetores da mudança urbana e conceitual das cidades. Analisando esse

patrimônio e as questões da memória e da história, a autora observa a existência de um tenso e

complexo diálogo com a inovação das cidades na tentativa de responder às necessidades de

planejar o novo e respeitar o antigo. Daí a necessidade de se compreender a sociedade sob o

aspecto da formação das identidades e da apropriação de valores, de forma que o cidadão se

sinta parte da esfera social.

226

COSTA, Heloisa Helena F. G. da. Museologia e Patrimônio nas cidades contemporâneas. Boletim do

Museu Paraense Emilio Goeldi , v. 7, p. 559-574, 2012.

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158

Nesse pensamento, concordamos que os aspectos de inovação, singularidade artística

e arquitetônica e conceito inovador de sociedade ideal elevaram Brasília e seus monumentos a

um patamar de reconhecimento mundial.

O conceito de identidade cultural é complexo. Para alguns estudiosos, está

relacionado ao pertencimento do indivíduo a um grupo ou cultura e à influência que esse meio

tem sobre a formação de determinada sociedade. Segundo Manuel Castells (1999, p.23)227

, a

identidade é um processo que ocorre de forma gradativa pela convivência individual e

coletiva, um aprendizado processual de inter-relações e autoconstrução, na qual o homem é

um ator coletivo e individualizado, construindo a sociedade, organizações e estruturas

históricas, manifestando o contexto político e social desse meio. Já Sandra Pesavento

(2005)228

entende que a identidade se manifesta quando o indivíduo se reconhece como parte

do meio em que vive, herdando esta cultura para si, reconhecendo-se como parte dela e

diferenciando-a perante outras culturas. A noção de identidade remete a um sentimento de

pertencimento a um local, a uma tradição, criando laços sociais, mesmo que não

compartilhem os mesmos pensamentos. Especificamente:

Enquanto representação social, a identidade é uma construção simbólica de

sentido, que organiza um sistema compreensivo a partir da idéia de

pertencimento. A identidade é uma construção imaginária que produz a

coesão social, permitindo a identificação da parte com o todo, do indivíduo

frente a uma coletividade, e estabelece a diferença. A identidade é relacional,

pois ela se constitui a partir da identificação de uma alteridade. Frente ao eu

ou ao nós do pertencimento se coloca a estrangeiridade do outro.

(PESAVENTO, 2005, p. 89-90)

A identidade é formada a partir das lembranças, daquilo que vemos, ouvimos,

vivenciamos e trazemos ao longo da vida. É a busca de sentido nas coisas, nos objetos, nos

acontecimentos, que fazem com que o homem se sinta representado por determinados signos

e seguro no local onde vive, porque é aquilo que ele conhece, é aquilo que o representa.

Discutindo a questão sob o ponto de vista de diferentes autores, Costa relembra o

papel fundamental da memória nas decisões políticas para salvaguarda do patrimônio cultural

em benefício de cidades mais saudáveis. Assim, sua análise se estende a Ecléa Bosi (BOSI,

1994 apud COSTA, 2012, p. 89), ao traçar o papel fundamental desenvolvido pela memória

coletiva e afetiva na preservação do patrimônio. Bosi, segundo Costa,

acredita ser a memória contida nos objetos dos museus e/ou no patrimônio

expostos nas ruas uma síntese das memórias de toda gente, que quando

227

CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. Tradução de Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e

Terra, 1999.

228 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. 2ª Edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

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trabalhada pela linha da história, com o ponto equilibrado entre a razão e a

emoção, se transforma em húmus, capaz de nutrir o solo cimentado das

cidades com a essência humana há tempos fragmentada, esfacelada e quase

totalmente perdida. (COSTA, 2012, p. 89)

Assim, a identidade Cultural está na memória e na noção de pertencimento que um

indivíduo desenvolve em relação a um grupo que preserva comportamentos ligados à

sociedade a qual ele pertence. A importância da memória, tanto individual como coletiva,

afirma-se como elemento constituinte do sentimento de identidade, uma vez que ela permite,

por reconhecimento e assimilação, o sentimento de continuidade e de conexão de fatos e

comportamentos de uma pessoa ou de um grupo, fazendo com que o indivíduo se sinta

participante e se identifique com determinada cultura.

A identidade, esclarece Heloisa Costa, assume, ao mesmo tempo, caráter de

permanência, de resistência e de continuidade, utilizando-se da memória e da história como

base de registro de transmissão. Assim, conclui que "a identidade cultural é uma consciência

coletiva que se apoia na memória social" (COSTA, 2012, p. 91). Ela pode ser memorada e

repassada através de monumentos, pois estes têm a capacidade de transmitir, de forma

simbólica, o sentimento de “herança cultural” entre gerações. Historicamente, os monumentos

podem remeter a um sentido de identificação imediata a fatos e lembranças que se quiseram

fortalecer através deles, estimulando o conhecimento e provocando o não esquecimento.

Entendendo a Museologia como estudo científico das relações entre o homem e o

mundo que o cerca, por meio dos bens culturais que formam a herança coletiva, e observando

que o patrimônio cultural é representado por bens significantes que fixam códigos culturais

em uma dada comunidade, Costa analisa que as transformações pelas quais passam as cidades

contemporâneas podem e devem ser realizadas na interligação entre Museologia e Patrimônio.

Tais relações, segundo a autora, são importantes para buscar percepções acerca da qualidade

de vida e dos critérios possíveis para que uma cidade se torne saudável, já que é um

organismo vivo e em desenvolvimento, necessitando guardar a memória de sua existência

anterior para encontrar caminhos mais adequados para sua preservação.

Inferindo que as cidades falam e expressam desejos e sentidos de diferentes

maneiras, a autora afirma que existe comunicação entre a cidade e seus habitantes por meio de

linguagens e códigos que precisam ser decifrados, uma vez que nem sempre o que se vê é

exatamente o que ela quer mostrar. A história e a memória das cidades (e das pessoas) são

marcadas por objetos (monumentos) testemunhos do patrimônio material e imaterial, nem

sempre visíveis, mas submetidos a códigos culturais que necessitam ser estudados, analisados

e divulgados para educação dos sujeitos/habitantes.

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São os códigos culturais, explica Costa, que podem estar escondidos e dar sentido

aos lugares, que acumulam os testemunhos que formam a cidade, a exemplo de ruas,

construções históricas, ditos populares, ritos e festas tradicionais, paisagens, odores, sons e

manifestações populares que compõem o patrimônio vivo, chamado intangível.

É necessário, avalia a autora, que a noção de patrimônio seja ampliada, que se renove

o olhar e a compreensão sobre o fenômeno patrimonial e que esse novo conceito seja

apropriado

pelos órgãos responsáveis por inventários registros e tombamentos, sob pena

de, não o fazendo, permitir a perda de traços e vestígios que poderiam

desvelar o conteúdo e o significado de objetos que, em si mesmos, não

conseguem mostrar. Trata-se aqui, da apropriação das memórias afetivas,

das narrativas de vida em superposições com os fatos históricos e artísticos

para dar a conhecer o real patrimônio das comunidades, imaginadas ou

territorializadas em espaços físicos e políticos bem definidos, mas em

qualquer dos modelos compostas de sujeitos com emoção e razão. (COSTA,

2012, p. 89-90)

Tomando como base as cidades que se concretizam como ícones, a exemplo de

Salvador, como ela menciona, e de Brasília, um de nossos objetos de estudo, por possuírem

grande quantidade de exemplares de significativo valor patrimonial urbano, sobre os quais

recaem estudos acerca das noções de monumento ligados à memória oficial, coletiva e ao

patrimônio, Costa defende existir, sempre, a possibilidade de um diálogo entre a tradição e a

inovação, à luz da lista de tipos de patrimônio reconhecidos pela UNESCO desde 2004, que

considera como patrimônio cultural, entre objetos e expressões, cidades históricas, paisagens

culturais, territórios sagrados, entre outros. Dessa forma, assinala, "As cidades podem ser

analisadas pela quantidade e qualidade dos patrimônios que possuem, que preservam e que

promovem diálogo com as comunidades urbanas" (COSTA, 2012, p. 90).

Sob esses aspectos, retomamos o problema da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, no

qual é possível constatar a manifesta e profunda relação de proteção e afetividade estabelecida

entre a comunidade e o templo, cuja referência, para a maioria de seus frequentadores mais

assíduos, é de um espaço sacralizado, onde se processa a fé católica e a devoção mariana. Na

visão da Paróquia Nossa Senhora de Fátima, embora a Igrejinha seja um patrimônio tombado,

sua edificação teve por objetivo o culto da fé católica em cumprimento de

uma promessa. O culto divino que vem sendo celebrado desde sua fundação

deve ser também preservado como um patrimônio histórico e cultural, não

sendo válido afirmar que a igrejinha depois do tombamento passa a ser

espaço sagrado destinado a todos os credos. (PARÓQUIA NOSSA

SENHORA DE FÁTIMA, 2018)229

.

229

Paróquia Nossa Senhora de Fátima. Igrejinha: A Defesa da Fé. Brasília. Disponível em:

<http://www.pnsfatimabsb.com.br/artigos/item/124-igrejinha-a-defesa-da-fe>. Acesso em: 5 mai. 2018.

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Mesmo acolhendo crentes e não crentes, a Paróquia afirma que "não se pode negar

sua finalidade de prática do culto devocional católico. Negar este fato histórico é querer

transformá-la em um museu para todos os credos" (PARÓQUIA NOSSA SENHORA DE

FÁTIMA, 2018)230

. Na interpretação da igreja, não parece ser suficiente atribuir seu valor

como patrimônio, mas, em primeiro lugar, reafirmar seu espaço como sacralizado e sua

finalidade de profissão de fé católica, por isso, sugere que os cultos celebrados ali também

sejam preservados como um patrimônio histórico e cultural.

Questionando sua condição, na esfera estatal, aparentemente isenta do conceito

religioso e secamente tomada como patrimônio tombado, os responsáveis pela igreja

reclamam questões que, segundo eles, devem dar espaço para discussões profícuas, num pais

que se diz republicano e laico, na tentativa de atribuir a preservação de um patrimônio

histórico cultural:

Até onde vai o poder do Iphan ao determinar o que é bom ou mal para

edificação dos fiéis não só os católicos, mas de outras denominações

religiosas também, no que se refere à arte como instrumento pedagógico de

instrução religiosa? (PARÓQUIA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA,

2018)231

.

Questionam, também, uma suposta inversão de sentidos, uma vez que insinuam ser

vítimas de intolerância por parte do poder público:

Ao defender a execução de uma Arte Sacra no espaço sagrado da Igrejinha,

conforme a liturgia católica, os devotos da Virgem de Fátima, estariam, de

alguma forma, sendo vítimas de intolerância religiosa em nome do Instituto

do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional? (PARÓQUIA NOSSA

SENHORA DE FÁTIMA, 2009)232

.

A questão, nesse caso, deve-se, provavelmente, à interpretação de não reconhecerem

a iconografia de Fátima representada nas pinturas feitas no templo. O que parece evidente é

que, de fato, como afirmado anteriormente por algumas fontes, o mesmo pensamento que

teria motivado a destruição do afresco de Volpi, por não corresponder à leitura da arte sacra

até então reconhecida e apreciada pelos católicos, teria voltado à tona com a representação de

Francisco Galeno. Nenhuma das duas, pelo mesmo motivo, teria caído no gosto dos fiéis e

dos párocos da igreja.

Ao argumentar que existe uma clara intenção de que o culto eucarístico seja

erradicado da Igrejinha para que a mesma se torne um museu, ideia que não contemplaria sua

230

Idem.

231 Idem.

232 Idem.

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finalidade histórica, a Paróquia cita a matéria publicada no Caderno C do jornal Correio

Braziliense, em 13/06/2009:

Como legado a ser preservado para gerações futuras por políticas públicas e

com recursos públicos, sua forma de conservação – e também de uso -

necessita ser pensada em termos mais amplos, visando resguardar o

testemunho de uma época e do seu imaginário. Inúmeras igrejas ao redor do

mundo funcionam com esse caráter de monumento a ser usufruído pela

coletividade. (PARÓQUIA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA, 2009) 233

A interferência do Iphan na Igrejinha, na tentativa de resguardar os aspectos

referentes ao tombamento em cumprimento do Decreto Lei n° 25/37 que, em seu Artigo 18,

prevê a impossibilidade de fazer qualquer construção que impeça ou reduza a visibilidade na

vizinhança da coisa tombada sem autorização do órgão, não raro causaram atritos às tentativas

dos párocos de resolver situações que se mostravam, na visão da igreja, necessárias e

convenientes para atender às necessidades das celebrações e dos fiéis. Um dos casos foi a

notificação emitida pelo órgão à igreja, em 2014, referente a uma tenda provisória instalada

no local, sem prévia consulta e autorização do Iphan. A esse respeito, o Frei Junio Cesar

Roza234

, Pároco responsável pela Igrejinha, apresentou justificativa sobre o equipamento

instalado, informando que tratava-se de uma tenda tipo piramidal retangular, móvel,

transparente, que fora colocada provisoriamente por causa das chuvas que aconteciam entre os

meses de novembro a janeiro, comprometendo o funcionamento da igreja e se transformando

num transtorno para as pessoas que a procuravam no momento de recolhimento pessoal, de

oração e, principalmente, na participação da santa missa, estendendo-se, inclusive à

dificuldade de visitação de turistas. Ele argumentou que participavam da missa, aos

domingos, entre 150 a 250 pessoas e que, no período das chuvas, eram realizados casamentos,

batizados, bodas, cerimônias de formaturas, missas especiais, além das festividades próprias

de final de ano. Frei Junio afirmou que, como pároco, tinha uma visão holística da igrejinha,

que não desconsiderava seu valor artístico-cultural, mas que tinha o dever, acima de tudo, "de

prezar e zelar pelo espaço religioso e o seu fim ultimo que é a ação litúrgica e a vida espiritual

da comunidade local", acrescentando que a comunidade que frequenta o templo era, em

grande maioria, formada por pessoas idosas, em alguns casos, cadeirantes, que amavam a

igrejinha e não gostariam de se ausentar das missas e orações, mas que o período de intensas

chuvas inviabilizava tais presenças. Com a instalação da tenda, ele não pensou na

descaracterização do monumento, mas na funcionalidade da Igrejinha e no cumprimento da

233

Idem.

234 BRASIL. Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Processo nº 01551.000013/2014-19

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sua finalidade como local de ação litúrgica. Finalmente, Frei Junio reforçou que eles tinham

plena consciência de que a igrejinha se tratava de um monumento tombado, da sua

importância artística, urbanística, turística e histórica e que, em nenhum momento, a presença

da tenda teve a intenção de "enfeia-la" ou "torná-la ridícula", mas, acatando a notificação do

lphan, a mesma já teria sido removida do local.

Sobre o assunto, o parecer do Iphan235

reconhece a necessidade de endossar estudos

para a instalação de estruturas provisórias no período das chuvas e os impactos negativos

gerados, propondo fazer uma simulação virtual de alternativas ou mesmo a utilização de

protótipos, buscando soluções no mercado que evitem impactos que impeçam a visibilidade

ou perturbem a fruição do templo. Entretanto, afirma que o modelo de tenda apresentado

interfere significativamente na apreensão e na visibilidade do bem tombado, reprovando sua

instalação, mesmo que provisoriamente. Apesar de se comprometer a buscar uma solução, a

Igrejinha ainda vive o mesmo problema e muitas pessoas assistem a missa ao relento, porque

a capacidade do templo é muito pequena para a comunidade que o frequenta.

O caráter patrimonial da Igrejinha é reconhecido pela Paróquia, bem como a

competência do Iphan em promover as reformas necessárias, por isso, quando necessário, é

comum a igreja solicitar ao órgão providências para correção de problemas. Em documento

encaminhado ao Iphan236

, ao listar algumas necessidades urgentes para a conservação do

patrimônio, pedindo providências, Frei Junio argumenta o pedido de reformas justificando as

necessidades no viés da representação que o templo tem para a comunidade, na sua trajetória,

na sua apropriação pela comunidade e nos vínculos de afetividade existentes entre ela e os

frequentadores. Sua historia, descreve Frei Junio, "reflete os anseios daqueles que habitam as

entre quadras e que foram pioneiros, além das muitas pessoas que adotaram a Igrejinha como

sua comunidade afetiva, tomando-a uma comunidade além do seu território"237

.

235

Idem.

236 Idem.

237 Idem.

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A QUESTÃO DO RESTAURO

Beatriz Mugayar Kühl (2007), ao discorrer sobre as teorias de restauro de Cesare

Brandi238

, lembra que variados autores, por volta do século 20, apresentaram proposições que,

buscando preservar o respeito ao caráter histórico-crítico dos monumentos e das obras

artísticas, acabaram por limitar e orientar as ações de restauro. As ações propostas deveriam:

considerar as várias fases por que passou a obra, preservando suas marcas de translação no

tempo; reconhecer que qualquer ação intervém implacavelmente na realidade figurativa da

obra, devendo ser pensada criticamente; e assumir que a restauração deve ter a preocupação

de controlar, justificar e fundamentar as alterações, respeitando os aspectos documentais,

materiais e formais da obra. A motivação de preservar, por sua vez, deveria considerar razões

culturais, científicas e éticas. Antes disso, porém, alguns percussores do restauro defenderam

diferentes ideias em relação aos tratamentos.

Camillo Boito formulou os primeiros princípios de restauração que até hoje orientam

as intervenções. Defendia o respeito ao original, a reversibilidade e a distinguibilidade,

recomendando a manutenção de acréscimos de épocas passadas como parte da história da

edificação. Todo o processo deveria ser fotografado, justificado e documentado, respeitando a

materialidade do objeto. Foi o primeiro a conceber a importância da conservação em relação à

restauração, que só deveria ser feita em caso de necessidade.

John Ruskin defendia o absoluto respeito ao original, levando em conta as

transformações feitas em uma obra no decorrer do tempo. Assim como Viollet-Le-Duc,

descreve Cesare Brandi (2004)239

, entendia a importância de conservar para evitar

degradações. Mas Viollet-Le-Duc, ao contrário de respeitar a originalidade de Ruskin, atuou

de forma mais incisiva e invasiva sobre o monumento, pregando sua restituição ao estado

anterior, fato duramente criticado por nem sempre ser possível, podendo criar um falso

elemento.

Cesare Brandi abordou o processo crítico do restauro afastando a ação do

personalismo e evitando o empirismo:

Por isso, definindo a restauração como o momento metodológico do

reconhecimento da obra de arte como tal, a reconhecemos naquele momento

do processo crítico em que, tão-só, poderá fundamentar a sua legitimidade;

fora disso, qualquer intervenção sobre a obra de arte é arbitrária e

238

KÜHL, Beatriz mugayar. Cesare Brandi e a teoria da restauração. Pós. Revista do Programa de Pós-

Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, n. 21, p. 197-211, 1 jun. 2007.

239 BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. São Paulo: Ateliê, 2004.

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injustificável. Além do mais, retiramos para sempre a restauração do

empirismo dos procedimentos e a integramos na história, como consciência

crítica e científica do momento em que a intervenção de restauro se produz.

[...] Com isso não degradamos a prática, antes, a elevamos ao mesmo nível

da teoria, dado que é claro que a teoria não teria sentido se não devesse,

necessariamente, ser verificada na atuação [...]. (BRANDI, 2004, p. 206)

As formulações apontadas por tais pensadores nortearam as políticas

preservacionistas, tendo sido adotadas pela Organização das Unesco e pela Legislação

Patrimonial brasileira. Da mesma forma, constam em documentos como as Cartas

Patrimoniais, como a Carta de Atenas (1933); a Carta de Veneza (1964); a Recomendação

Paris (1972), a Carta de Restauro (1972) e a Carta de Burra (1980).

No Brasil, segundo Márcia Chuva (2009)240

, ainda na década de 40, o Sphan, então

sob administração de Rodrigo Melo Franco de Andrade, começou a discutir e delinear as

regras para intervenção de restauro em monumentos. O critério básico que ficou definido era a

restituição ao aspecto original e a intervenção mínima, evitando a introdução de elementos

novos, não característicos da época de construção e mantendo a aparência antiga, ainda que

restaurado. Por outro lado, era possível acrescentar elementos que o Sphan supunha ter

anteriormente existido, para melhor compor a ideia do original.

Kühl afirma que, na prática e inclusive para a arquitetura moderna, a teoria brandiana

continua sendo aplicada, principalmente em relação aos conceitos e prática da restauração,

que o autor buscou afastar do empirismo e da arbitrariedade, vinculando-a ao pensamento

histórico-crítico e científico, independente da “opinião” pessoal do restaurador sobre uma

dada obra, pregando o restauro como uma ação de caráter cultural, oposta ao pragmatismo.

Ancorado na história e na filosofia, o restauro, segundo Brandi, deve seguir

princípios gerais, considerando a existência de várias formas de manifestação cultural, as

diversas possibilidades de se enfrentar os problemas apresentados, as peculiaridades de cada

obra (material, danos, perdas, limitações), ou conjunto de obras, e seu individual percurso ao

longo do tempo e da história. Por isso, lembra Kühl, a restauração é um processo

multidisciplinar e exige estudos e reflexões aprofundadas. Não há fórmulas, não há

simplificações, devendo ser tratados caso a caso.

Como as tecnologias mudam, afirma Kühl, a restauração possui pertinência relativa.

Não é possível prever quais serão os critérios empregados no futuro que, com toda certeza,

serão diversos dos atuais.

240

CHUVA, Márcia. Os Arquitetos da Memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio

cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

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A preservação de monumentos históricos deve, por isso, ser discutida e

enfrentada com os instrumentos e vinculada à realidade de cada época, e o

fato de, no futuro, as posturas serem diversas, não exime um grupo social da

responsabilidade pela preservação dos bens culturais e da escolha dos bens a

serem preservados. Por ser um ato crítico, a restauração jamais deveria se

colocar em qualquer uma das fases por que passou a obra (muito menos no

momento de sua criação) e nunca deveria propor a imitação. (KÜHL, 2007,

p. 209)

A restauração, portanto, afirma a autora, de acordo com os princípios consagrados,

deve ser um procedimento realizado com respeito, ética e responsabilidade,

de modo a continuar servindo de baliza para as intervenções em

monumentos históricos, oferecendo meios adequados para atuar de maneira

fundamentada e responsável, sem deformar e deturpar o documento, a

memória, os bens legados pelo passado, partes integrantes de nosso presente,

para que continuem a ser documentos fidedignos e, como tal, sirvam como

efetivos elementos de rememoração e suportes da memória coletiva. (KÜHL,

2007, p. 210)

Ao discutir A ética das intervenções, o professor-doutor Flávio de Lemos Carsalade,

da Escola de Arquitetura da UFMG241

, afirma que a maior dificuldade operacional no campo

do patrimônio histórico-cultural está relacionada às intervenções feitas no objeto de

preservação. Suas observações são de grande importância para discutir a questão da

restauração e das consequências que qualquer mudança ou alteração nesse processo pode

causar como impacto social.

Carsalade busca entender a motivação de intervir ou modificar o bem histórico como

objeto anterior, pré-existente. A resposta é que esse bem é portador de uma mensagem do

passado, mas só tem sentido se for usufruído no presente. Assim, a fruição do bem cultural

não é apenas a uma observação casual, uma curiosidade de outros tempos:

Esse bem cultural tem uma função social que é a de orientar as populações e

o cidadão no tempo e no espaço, colocando a cada um de nós como

participes de um grupo comunitário que compartilha de uma história comum

e de um lugar próprio no mundo, conferindo-nos a sensação de

pertencimento. São os bens históricos que também, nos orientam quando

percorremos as nossas cidades, através dos marcos arquitetônicos, por

exemplo, ou que nos referenciam quando fruímos a nossa cultura ou quando

compartilhamos nossa memória comum. Faz parte ainda dessa função social

a consolidação de uma identidade coletiva, a qual faz reconhecer-nos como

elos de uma comunidade e que estimula nossos laços afetivos e de cidadania.

(CARSALADE, 2009, p. 76)

Diante disso, o autor completa que, para que um bem patrimonial possa exercer sua

função mais ampla, ele tem que ser acessível e deve estar recuperado em sua potência. Para

isso, é necessário intervir no bem. E é neste momento que surgem perguntas sobre como deve

241

CARSALADE, Flávio de Lemos. A ética das intervenções. In: MIRANDA, Marcos Paulo de Souza;

ARAÚJO, Guilherme Maciel e ASKAR, Jorge Abdo. (Org.). Mestres e Conselheiros, Manual de Atuação dos

Agentes do Patrimônio Cultural. 1 ed. Belo Horizonte: IEDS, 2009, v. 1, p. 76-90.

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ser feita essa intervenção e "quais os limites para que o bem não perca seu potencial de

ligação com o passado e com a cultura" (CARSALADE, 2009, p. 76). A questão é, segundo

Carsalade, sobretudo ética, já que a preservação do patrimônio deve respeitar a pré-existência

e também o futuro, ou seja, origina da capacidade de ser hoje e existir amanhã. Examinando

tais aspectos éticos, o autor identifica as dualidades que lhe são afetas e procura entender

como elas refletem no campo da preservação.

Carsalade pressupõe, primeiramente, a necessidade de reconhecimento do “outro”,

ou seja, vivemos em mundo relacional e social, no qual devemos reconhecer que não estamos

sozinhos e nossos valores e modos de pensar podem não ser necessariamente os do outro. É

nesse aspecto que avalia a questão da diversidade: sendo muitos e diferentes, não há como

afirmar que um jeito de ser é melhor do que outro, por isso, devemos abrir espaço para que

essas diferentes formas de ser se manifestem, reconhecendo esse gesto não só como uma

atitude de respeito, mas de compreensão, encarando a diversidade como uma riqueza,

possibilitando que diferentes formas de solução de problemas surjam e se tornem válidas. Se

essa pluralidade for respeitada e incentivada, novas opções podem surgir para um mesmo

problema. "Isso significa que um modo de pensar não pode prevalecer sobre os outros e que

não há uma única resposta que prepondere sobre as outras" (CARSALADE, 2009, p. 77). Para

fundamentar tal pensamento, Carsalade retoma Piaget:

Em oposição ao egocentrismo inicial, o qual consiste em tomar o ponto de

vista próprio como absoluto, por falta de poder perceber seu caráter

particular, a personalidade consiste em tomar consciência desta relatividade

da perspectiva individual e a colocá-la como em relação ao conjunto das

outras perspectivas possíveis. A personalidade é, pois, uma coordenação da

individualidade com o universal (...) A personalidade não é o “eu” enquanto

diferente dos outros “eus” e refratário à socialização, mas é o indivíduo se

submetendo voluntariamente às normas da reciprocidade e da

universalidade. Como tal, longe de estar à margem da sociedade, a

personalidade constitui o produto mais refinado da socialização. Com efeito,

é na medida em que o “eu” renuncia a si mesmo para inserir seu ponto de

vista próprio entre os outros e se curvar assim às regras da reciprocidade que

o indivíduo torna-se personalidade (PIAGET, 1977, p. 245 in

CARSALADE, 2009, p. 78)

É importante, avalia o autor, compreender que, no campo patrimonial, certos bens,

ainda que para alguns tenham uma menor importância, para outros podem ter um maior

significado. Consequentemente, se de alguma forma são significativos, devem ser respeitados.

Esse pensamento se assenta no senso histórico, que permite ao homem se localizar na

perspectiva do tempo e relativizar a sua opinião, exercendo uma abertura necessária à

interpretação atual do bem histórico, o que o levaria à constatação de que as relações entre os

seres e com o mundo deve se dar sob a égide do respeito. Sob o aspecto da questão da

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preservação, na avaliação do autor, é exatamente o respeito à pré-existência que deve ser

objeto de análise.

Em relação à valorização de monumento histórico no cenário contemporâneo,

Carsalade avalia que devemos entender que este está sujeito a mudanças e que precisamos ter

a capacidade de absorver esta transformação. Entretanto, a consciência da impermanência, do

dinamismo do mundo, nos revela que determinado meio físico tem uma capacidade limitada

para absorver os impactos dessas transformações, resistindo sem esgarçar a sua tessitura

social, sem deteriorar seu corpo físico, sem matar sua história ou seu legado da natureza.

Quanto ao sujeito e objeto de preservação, Carsalade lembra que, quando elegemos

um bem como patrimônio cultural, nossa atenção passa a se concentrar exclusivamente nos

atributos desse bem. Afirma que, por trás do bem material, há um sistema de valores e pessoas

que o legitimaram como tal. "Ou seja, a “patrimonialidade” de um bem não é algo

“automático” ou “natural”, mas depende de quem o elege" (CARSALADE, 2009, p. 79). A

atribuição do valor coletivo é explicada pelo autor:

A régua usada tem sido a força do Estado, o gosto das elites e,

modernamente, a imposição da mídia ou do capital. A partir daí podemos

depreender que os valores não estão apenas no objeto, mas na compreensão

que as sociedades fazem sobre ele. Essa compreensão se sobrepõe, portanto

àquela de que o objeto-patrimônio teria uma “verdade” imanente, a qual

deveria ser preservada. Na realidade, não é o objeto que gera as identidades,

apenas as simboliza, representa valores anteriormente gerados que se

agregam em torno dele. Dessa discussão fica claro que o “ser” patrimônio

não está no caráter imanente do objeto, mas sim em uma outra forma de

relação que passa também pela pessoa, comunidade ou sociedade, portanto

pelo sujeito, que lhe confere tal grau. E quem é esse sujeito? Também esse

sujeito tem caráter mutante, dependendo do grupo social, do tempo histórico

e dos valores que lhes são inerentes. É ético, portanto, dar voz a outras

formas de manifestação que não sejam apenas os grupos dominantes,

políticos, econômicos ou midiáticos. (CARSALADE, 2013, p. 77)

A importância dessas constatações não se limita, apenas, à seleção do patrimônio,

mas também às intervenções, pois a preservação dos monumentos depende do valor atribuído

a eles, em função dos contextos e momentos históricos em que se inserem.

Assim como não há indissociabilidade entre matéria e sujeito, também não há

dimensão material desapegada da dimensão imaterial, explica, ou seja, não há possibilidade

de atuar no material sem atuar no imaterial "ao fazermos qualquer intervenção, estamos não

só sujeitos ao espírito da nossa época, como também alteramos a leitura e o significado desse

bem quando o devolvemos à população" (CARSALADE, 2013, p. 81). Quando se processa

uma transformação no mundo físico e na realidade sócio-cultural, a essência do bem

patrimonial deixa de existir da mesma maneira. Na interpretação de Carsalade, é dessa forma

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que, muitas vezes, a coleta de amostras para conservação museológica e sua exposição não

funcionam, pois equivale a conviver com a morte de algo que já foi vivo. Da mesma forma,

avalia, o fenômeno acontece em casos de intervenção em centros históricos, quando a

população residente é expulsa e se constrói um espaço cenográfico, com o único objetivo de

atender a demandas econômicas e ao capital, o que não raro acontece nos centros históricos.

Sob esse aspecto, é possível articular as relações que se estabelecem entre território e

sociedade, contexto estudado pela Sociomuseologia. Existem diferenças entre as abordagens,

conceitos e finalidades relacionadas aos monumentos e às intervenções de restauro realizadas

nos tecidos urbanos sob o ponto de vista da arquitetura e da Museologia Social. A primeira,

com foco na restauração arquitetônica e preocupada com o espaço e o restabelecimento de sua

função, como afirma Carsalade, cede às exigências impostas pela construção de um "um

espaço cenográfico", recriado para atender a demandas econômicas e ao capital, devolvendo a

função de uso, mas num padrão monetário que inviabiliza a permanência da antiga

comunidade. Sob esse ponto de vista, a restauração de centros históricos considera natural que

a população residente seja remanejada para a periferia, já que não consegue mais sobreviver

no que antes considerava o seu lugar. Na Museologia Social, a preocupação se volta para a

relação entre o espaço, o monumento e a comunidade no qual se insere, considerando a

valorização do espaço associado ao indivíduo que o habita. Nesse sentido, as ações são

orientadas e trabalhadas em benefício não só dos monumentos, mas também da comunidade

que lhe confere sentido. A discussão volta-se para questões básicas, por exemplo, se o valor

do patrimônio permanece o mesmo, se adquire o mesmo sentido quando distanciado da

comunidade que o cerca ou se continua sendo reconhecido como tal. Nesse caso, qual a

relevância da comunidade ser ouvida no sentido de decidir as políticas de conservação e

restauro desse patrimônio? Como poderiam ser resolvidos os impasses que se colocam em

relação aos diversos pontos de vista, individuais, coletivos, públicos, envolvendo o

monumento? É certo que esses contextos envolvem questões complexas, mas que precisam

ser esgotadas no sentido de conseguir chegar ao melhor consenso possível.

A resposta de Calasarde pode apontar uma alternativa. Atualizar, afirma, não é fazer

algo antigo “palatável” ao gosto contemporâneo, mas dar ao monumento uma continuidade

significativa. Se a iniciativa é “adaptar o antigo ao gosto atual” ou “manter o ar antigo”, o

bem corre o risco de ser inserido na vida de forma artificializada. O esforço de torná-lo

palatável e de aproximar de algo diferente ou mesmo semelhante tem como consequência o

estranhamento, mantém a distinção e a separação. Se a iniciativa é mantê-lo no contínuo do

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cotidiano, ele sofre um processo natural de inclusão, o que integra, aproxima, minimiza o

contraste e proporciona mais naturalidade à inserção.

Carsalade propõe algumas estratégias de abordagem para a questão ética das

intervenções, através de três eixos: da intersubjetividade, da sustentabilidade e da pesquisa da

natureza do objeto que vai sofrer a intervenção.

A intersubjetividade, considerando sua relatividade, segundo Carsalade, pode ser

uma saída possível para o problema ético das relações entre o sujeito, o objeto e a sociedade,

se considerarmos que o “ser” patrimônio não está só no caráter do objeto, mas sua relação

com a pessoa, comunidade ou sociedade que lhe confere tal condição. É necessário, afirma,

discutir, informar e favorecer um entendimento amplo da realidade em relação ao patrimônio,

formando uma sociedade consciente, compartilhando decisões, entendendo a

“patrimonialidade” como um ato social. É importante abordar uma ética de intervenções

baseada na negociação, equilíbrio, discussão, diálogo e consensos, o que proporcionará o

surgimento de várias opiniões e pontos de vista, todos eles em defesa da ética, defendendo

diferentes graus de intervenção no objeto, condicionados pelos valores que podem não ser

homogêneos. A discussão de valores incluídos no debate sobre a função do bem patrimonial,

os quais abordam funções psicológicas e sociais (proteção da identidade, herança, etc.),

também leva ao resgate da sua utilidade como fator ético relevante para servir à sociedade em

que se insere o bem. Esse fator pode produzir conflitos entre os sujeitos afetados pelo

processo de Restauração. O autor avalia que, eticamente, seria tanto correto e funcionalmente

melhor, tentar equilibrar as possibilidades oferecidas pelo objeto aos seus usuários, para cada

pessoa, para quem desenvolve alguma função de algum tipo.

Quanto ao problema da autenticidade do monumento, Carsalade refere que alguns

autores acreditam que a ética da preservação, para ser verdadeira, deve se estender a todos os

segmentos das sociedades envolvidas. Tal postura acaba por levar à noção de que um bem é

tanto melhor preservado quanto maior o número de pessoas satisfeitas com sua forma de

preservação. Para ele, portanto, a preservação não pode ser tecnocrática, mas tampouco

populista, devendo ser realizada, contemporaneamente, sob a égide da negociação e

sustentabilidade.

Sob este enfoque, Carsalade lembra que a preservação só alcança êxito se legitimada

pela sociedade e apoiada em instrumentos de inclusão social e econômica. A Carta de Burra,

do Conselho Nacional de Monumentos e Sítios, de 1980, orienta a conservação e a gestão dos

sítios com significado cultural, substituindo as tradicionais ideias de preservação centrada

exclusivamente no objeto e na imagem, e adota, lembra o autor, a obra única ou obra de arte

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numa concepção mais flexível do bem patrimonial, considerando a importância da

manutenção das características essenciais do bem, mesmo se forem necessárias promover

algumas mudanças de determinados traços conformativos. Dessa forma, nas intervenções

urbanas, é importante definir parâmetros referenciais e limites de intervenção nos

monumentos históricos, como caráter histórico, historicidade, necessidades sociais e

importância simbólica.

Carsalade ressalta a relevante discussão acerca da gestão da mudança e dos limites

aceitáveis para a manutenção do caráter das obras de arte e dos monumentos, o que, muitas

vezes, se traduz num paradoxo:

Se a nossa escolha sobre o que conservar for demasiado aberta que atrapalhe

a leitura histórica das futuras gerações corremos o risco de empobrecer sua

memória e qualidade de vida. Se, por outro lado, formos demasiado

conservadores, corremos o risco de “congelar” a vida do lugar, negando a

sua integração à vida presente. (CARSALADE, 2013, p. 82)

Entre os restauradores, algumas premissas estão consolidadas e, na medida do

possível, devem ser respeitadas em benefício do patrimônio, o que é também lembrado por

Beatriz Kühl (2005)242

:

Camilo Boito já alertava, há mais de um século, que para “bem restaurar é

necessário amar e entender o monumento”. A preservação deve ser

consequência de esforços multidisciplinares que envolvem acurada pesquisa

histórico-documental, iconográfica e bibliográfica, sensíveis estudos

antropológicos e sociológicos, pormenorizado levantamento métrico-

arquitetônico e fotográfico do(s) edifícios (ou empregar as modernas

técnicas de laser-scan em três dimensões), exame de suas técnicas

construtivas e dos materiais, de sua estrutura, de suas patologias, e análise

tipológica e formal. Fatores esse que levam ao entendimento das várias fases

por que passou a obra no decorrer do tempo e de sua configuração e

problemas atuais. A restauração e a conservação devem calcar-se em muitos

campos disciplinares distintos “cada um com a devida autonomia, que é algo

diverso de isolamento”, tais como engenharia química, física, biologia,

arquitetura, e depende sobremaneira da história, podendo, por sua vez,

através desses estudos conscienciosos dos bens, fornecer importantes dados

para esclarecimentos historiográficos. Envolvem, pois, vários campos

disciplinares, que devem trabalhar de forma integrada. O conhecimento

aprofundado deveria conduzir à compreensão e, por conseguinte, ao respeito

pela(s) obra(s), requisito essencial quando se trata de bens culturais, que leva

a posturas verdadeiramente conservativas. Pois intervir num bem de

interesse cultural, que é um documento histórico e possui papel memorial é

ato de extrema responsabilidade, pois se trata, sempre, de documentos únicos

e não reproduzíveis. Essa percepção deveria levar a conscientização, pelo

fato de qualquer intervenção, de modo forçoso, alterar o bem, de que uma

mudança não controlada leva a perdas irreparáveis, lembrando-se que os

organismos históricos são muito delicados. É preciso, portanto, projetar

242

KÜHL, Beatriz Mugayar. História e Ética na Conservação e na Restauração de Monumentos Históricos.

In: Revista CPC, v. 1. N.1. São Paulo: CPC, 2005.

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considerando ao mesmo tempo os condicionantes de partido históricos,

formais e materiais, pois a restauração deve preservar e facilitar a leitura dos

aspectos estéticos e históricos do monumento, sem prejudicar o seu valor

como documento e sem eliminar de forma indistinta as marcas da passagem

do tempo na obra. (KÜHL, 2005, p. 32-33)

A ética das intervenções, lembra Carsalade, ainda é um tema complexo porque nem

sempre é possível alcançar uma unanimidade e as variantes que surgem envolvem diferentes

culturas, pontos de vistas e pactos sociais. A ética deve considerar o conhecimento técnico, se

basear na reflexão e respeitar o saber geral. Não há, observa o autor, como separar o problema

de seus atores culturais, sociais, políticos, econômicos, etc. e nem criar uma cartilha de

procedimentos técnicos que abranja todos os pormenores que surgem. Mas existe uma saída

que deve contemplar todos os interesses:

Entendendo que quanto mais a preservação se mantiver no continuum da

vida, respeitando a pré-existência, mas sem magnificações artificiais,

reconhecendo valores urbanos e sociais do espaço e suas alterações tanto da

matéria quanto dos significados, estaremos preservando nosso patrimônio

naquilo que ele tem de peculiar, mas também na sua conexão com seus

cidadãos e com a personalidade própria de cada lugar. (CARSALADE,

2013, p. 90)

Para entender melhor as políticas de preservação adotadas por várias nações

mediante acordos de cooperação e, a partir do entendimento de que tais medidas foram

criadas pelo bem do patrimônio mundial, orientando também as ações adotadas no Brasil,

apresentamos, a seguir, algumas normativas que estabelecem a questão da preservação e

restauração do patrimônio:

A Carta de Atenas, produzida a partir da conferência que discutiu, em 1933, os

princípios gerais e as doutrinas relativas à proteção dos monumentos, afirma a diversidade de

casos específicos, entendendo que cada caso deve comportar uma solução própria, uma vez

que se constatou uma tendência geral em abandonar as reconstituições integrais, evitando os

riscos de adotar uma manutenção regular e permanente, preferindo assegurar a manutenção

dos edifícios. Entretanto, recomenda que, no caso em que uma restauração pareça

indispensável devido à deterioração ou destruição, "que se respeite a obra histórica e artística

do passado, sem prejudicar o estilo de nenhuma época" (CURY, 2004, p. 13)243

.

Diante da constatação de que existem diferenças entre as nações acerca das

legislações criadas com o objetivo de proteger dos monumentos de interesse histórico,

artístico ou científico, apresentando dificuldades de conciliar o direito público e o privado, a

243 CURY, Isabelle (Org.). Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, 3ª edição, 2004.

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Carta de Atenas se preocupou em aprovar uma tendência geral que abordasse os instrumentos

legais, adaptando as circunstâncias locais à opinião pública "de modo que se encontre a menor

oposição possível, tendo em conta os sacrifícios que estão sujeitos os proprietários, em

benefício do interesse geral" (IPHAN, CARTAS PATRIMONIAIS, 2004, p. 14).

A conferência, no que concerne à conservação da escultura (o que se poderia, a

priori, ser estendido a outros casos de manifestações artísticas que se enquadrem na questão

colocada), que "retirar a obra do lugar para o qual ela havia sido criada é, em princípio,

lamentável. Recomenda, a título de precaução, conservar, quando existem, os modelos

originais e, na falta deles, a execução de moldes" (IPHAN, CARTAS PATRIMONIAIS,

2004, p. 15). Quanto a outros monumentos, a Carta de Atenas recomenda que os especialistas,

em unanimidade, aconselhem, antes de qualquer consolidação ou restauração parcial, a

análise escrupulosa das moléstias que afetaram o bem e que as decisões sejam tomadas

considerando que cada caso assume um caráter especial e, como tal, deve ser tratado.

Considerando a importância técnica e moral de conservação dos monumentos, e

entendendo que o interesse pela conservação do patrimônio artístico e arqueológico da

humanidade interessa à comunidade dos estados, a conferência que culminou na Carta de

Atenas, em nome do espírito do Pacto da Sociedade das Nações, sugere a colaboração entre os

países. Assim, propõe, em nome do interesse de salvaguardar as obras primas, que as

proposições a respeito das intervenções sejam submetidas à Organização de Cooperação

Intelectual da Sociedade das Nações para que, após sindicâncias e estudos acerca do bem, se

pronuncie sobre a oportunidade das providências a serem adotadas e sobre os procedimentos a

serem seguidos em cada caso particular.

Uma nova discussão da Carta de Atenas apresenta o contexto da cidade e sua região

como parte de um conjunto econômico, social e político, assim, avalia que os valores de

ordem psicológica e fisiológica própria do ser humano devem ser introduzidos nos debates

considerando as preocupações de ordem social, afirmando que "A vida só se desenvolve na

medida em que são conciliados os dois princípios contraditórios que regem a personalidade

humana: o individual e coletivo" (IPHAN, CARTAS PATRIMONIAIS, 2004, p. 22).

Isolado, o homem sente-se desarmado; por isso liga-se espontaneamente a

um grupo. Entregue somente a suas forças, ele nada construiria além de sua

choça e levaria, na insegurança, uma vida submetida a perigos e a fadigas

agravados por todas as angústias da solidão. Incorporado ao grupo, ele sente

pesar sobre si o constrangimento de disciplinas inevitáveis, mas, em troca,

fica protegido em certa medida contra a violência, a doença, a fome: pode

aspirar a melhorar sua moradia e satisfazer também sua profunda

necessidade de vida social. Transformado em elemento constitutivo de uma

sociedade que o mantém, ele colabora direta ou indiretamente nas mil

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atividades que asseguram sua vida fisica e desenvolvem sua vida espiritual.

Suas iniciativas tornam-se mais frutíferas, e sua liberdade, melhor defendida,

só se detém onde ameace a de outrem. Se os empreendimentos do grupo são

sábios, a vida do indivíduo é ampliada e enobrecida. Se a preguiça, a

estupidez e o egoísmo o assolam, o grupo, enfraquecido e entregue à

desordem, só traz a cada um de seus membros rivalidades, rancor e

desencanto. Um plano é sábio quando permite uma colaboração frutífera,

propiciando ao máximo a liberdade individual. Irradiação da pessoa no

quadro do civismo. (IPHAN, CARTAS PATRIMONIAIS, 2004, p. 22)

Sob o aspecto abordado pela Carta de Atenas, a concepção urbanística de Brasília

planejada por Lucio Costa, conforme categorizou Brendle (2006, p. 14)244

, tem plano

essencialmente clássico, pela pureza, simetria e regularidade geométrica das cidades ideais

renascentistas e, ao mesmo tempo, moderno e contemporâneo, atendendo às quatro doutrinas

urbanísticas previstas no documento: habitar, trabalhar, cultivar o corpo e o espírito e circular.

Tais funcionalidades foram propostas para as cidades modernas em detrimento das cidades

tradicionais.

A Carta de Veneza (Carta internacional sobre conservação e restauração de

monumentos e sítios, 1964), permanece um texto básico e suas orientações continuam válidas

para decidir e atender às questões ligadas à preservação de monumentos históricos. Suas

considerações são essenciais para que os princípios de conservação e restauro sejam

elaborados e formulados num plano internacional que envolva um comum acordo entre as

nações, embora reconheça a competência de cada país aplicar tais princípios de acordo com

sua própria cultura e tradições. Apesar desse entendimento, o documento procura orientar

para que as intervenções ocorram seguindo princípios críticos, observando regras definidas

após discussões críticas acerca do tema, incansavelmente debatidas pelos teóricos percussores

da restauração e, finalmente, consagradas como premissas básicas a serem consideradas.

As definições constantes na Carta de Veneza compreendem, quanto ao monumento

histórico:

A criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá

testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou

de um acontecimento histórico. Estende-se não só às grandes criações, mas

também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma

significação cultural. (IPHAN, CARTAS PATRIMONIAIS, 2004, p. 92)

Quanto à conservação e restauro dos monumentos, a Carta de Veneza afirma que

estas constituem uma disciplina que enseja a colaboração de todas as ciências e técnicas que

possam, de alguma forma, contribuir para o estudo e a salvaguarda do patrimônio

244

BRENDLE, Maria de Betânia Uchôa Cavalcanti. Brasília Rediscutida. Continente Multicultural, v. 64, p.

12-17, 2006.

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monumental, abrangendo tanto a obra de arte quanto o testemunho histórico. A conservação

dos monumentos é favorecida por sua destinação a uma função útil à sociedade, mas não pode

nem deve alterar a disposição ou decoração dos edifícios. Esses limites devem ser observados

antes de promover qualquer modificação pelos usos e costumes que passem a ter essas

edificações. "Enquanto sua ambiência subsistir, será conservada, e toda construção nova, toda

destruição e toda modificação que possam alterar as relações de volumes e cores são

proibidas" (IPHAN, CARTAS PATRIMONIAIS, 2004, p. 92). E ainda, os elementos de

escultura, pintura ou decoração que forem partes integrantes do monumento não poderão ser

retirados, a menos que essa medida seja a única capaz de assegurar sua conservação.

O processo de restauração deve ter caráter excepcional. Seu objetivo de conservar e

revelar os valores estéticos e históricos dos monumentos fundamenta-se em três princípios:

respeito ao original; autenticidade (a intervenção termina quando começa a hipótese); e

distinguibilidade (todo trabalho feito deve se destacar da composição e ostentar a marca do

tempo, distinguindo-se das partes originais, a fim de que a restauração não falsifique a obra).

Se uma edificação sofreu, ao longo do tempo, várias alterações, as contribuições

válidas de todas as épocas devem ser respeitadas, uma vez que a unidade de estilo não

representa a finalidade a ser alcançada numa restauração. Entretanto, a exibição de uma

dessas etapas pode ser considerada excepcional se for reconhecida como de "grande valor

histórico, arqueológico ou estético, e seu estado de conservação é considerado satisfatório. O

julgamento do valor dos elementos em causa e a decisão quando ao que pode ser eliminado

não podem depender somente do autor do projeto" (IPHAN, CARTAS PATRIMONIAIS,

2004, p. 94).

Os trabalhos de conservação, de restauração e de escavação serão sempre

acompanhados pela elaboração de uma documentação precisa sob a forma de

relatórios analíticos e críticos, ilustrados com desenhos e fotografias. Todas

as fases dos trabalhos de desobstrução, consolidação recomposição e

integração, bem como os elementos técnicos e formais identificados ao

longo dos trabalhos serão ali consignados. Essa documentação será

depositada nos arquivos de um órgão público e posta à disposição dos

pesquisadores; recomenda-se sua publicação. (IPHAN, CARTAS

PATRIMONIAIS, 2004, p. 95).

Apesar de essa recomendação parecer, de certa forma, evidente, devendo ser uma

prática consolidada, obrigatória e integrante de uma intervenção de restauro, infelizmente,

nem sempre ocorre como realmente deveria ser. Essas propostas já eram formalizadas nos

textos de Viollet-le-Duc, reiteradas por Camillo Boito e referendadas pela Carta de Atenas

(item VII, c), sendo ainda essenciais para a elaboração de um projeto bem fundamentado, para

controle das ações implementadas e dos resultados obtidos, além de garantir ao executor da

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restauração a comprovação da execução ética e correta de seu trabalho, evitando

questionamentos posteriores. É essa uma forma de resguardar os profissionais envolvidos no

trabalho de restauro, inclusive para divulgação e apreciação crítica dos resultados obtidos.

O Iphan, como órgão responsável pela fiscalização e pela operacionalidade das

normativas de preservação de Brasília, sempre esteve envolvido nas discussões e estudos

estabelecidos aos longos dos anos, voltados para a complementação e detalhamento dos

critérios normativos para a cidade. A preocupação institucional, de acordo com a

Superintendência do Iphan no Distrito Federal, em relação ao conjunto urbanístico de

Brasília245

, entende o tema como uma grande complexidade:

decorre do entendimento de que a área tombada de Brasília, ainda se ressente

de uma normativa de maior amplitude para enfrentar o desafio de sua

preservação. A razão é que o conjunto sob proteção histórica desafia os

conceitos e práticas utilizadas nos demais centros históricos já estratificados

pelo tempo. (SUPERINTENDÊNCIA DO IPHAN NO DISTRITO

FEDERAL, 2016, p. 3)

Brasília, segundo o documento, tem um acervo urbano incomum, configurando-se

num projeto urbanístico autoral e inconcluso, de grande extensão, contemporâneo, sob intensa

dinâmica urbana, entendimento também legitimado pelo Comitê do Patrimônio Mundial da

Unesco. O desafio imposto no campo preservacionista exige, portanto, novas abordagens,

instrumentos e práticas de gestão além de sua condição patrimonial. Não se trata apenas de

preservar um artefato patrimonial, é preciso incorporar sua dimensão urbana, considerando

que Brasília é a capital do país. Daí a necessidade de se articular o conceito de espaço como

categoria histórica, fruto de relações sociais em perene movimento.

Lúcio Costa, ao falar da preservação da cidade, afirma a complexidade das

interpretações acerca da sua preservação:

Sinto que há duas correntes, aparentemente contraditórias: uma, daqueles

que acham o que o Plano Piloto é intocável; e outra, daqueles que, pelo

contrário, entendem que a vida continua e que a cidade tem de ser

reformulada de acordo com as novas necessidades. Não vejo contradição,

porque é fato que o Plano Piloto, como dissera anteriormente, não foi

concluído. E gostaria que isso ocorresse dentro das proposições originais.

Depois, então, haveria oportunidade para novas formulações. Não impedirá

que haja grandes inovações dentro da cidade, uma vez mantidos certos

parâmetros, certos pontos já assimilados [...] (LUCIO COSTA, 1974, in

SUPERINTENDÊNCIA DO IPHAN NO DISTRITO FEDERAL, 2016, p.

4)

245

BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Superintendência do Iphan no Distrito

Federal. Conjunto urbanístico de Brasília. Complementação e detalhamento da portaria nº 314/1992.

Documento Técnico. Brasília, maio de 2016. Disponível em:

http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/portaria_166_doc_tec.pdf. Acesso em: 06 de mai. 2019.

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177

O documento conclui que o Conjunto Urbanístico de Brasília é

um organismo urbano amplo, disperso, rarefeito e heterogêneo em sua

morfologia, temporalidade e valoração para a história do urbanismo mundial.

Portanto, qualquer normativa para sua preservação deve considerar essa

multiespacialidade e avançar na formulação de uma abordagem

preservacionista própria, distinta da utilizada em centros históricos já

estratificados pelo tempo. Entendimento que se alinha com o ideário

preservacionista construído ao longo da história da cidade.

(SUPERINTENDÊNCIA DO IPHAN NO DISTRITO FEDERAL, 2016, p.

12)

Brasília, dessa forma, está inserida nos conceitos e normativas apresentados, sendo

observados vários problemas quanto a sua gestão enquanto patrimônio histórico e artístico

tombado. A cidade não passa imune aos riscos inerentes ao mercado imobiliário, ao

crescimento demográfico e à fragilização de políticas públicas para sua preservação que,

muitas vezes, não são cumpridas como deveriam por uma série de fatores, como a

interferência político-econômica, ou padecem da falta de discussões exaustivas junto à

comunidade para que os problemas, postos e resolvidos, resultem em soluções em benefício

da cidade.

No caso da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, os conflitos resultantes são patentes e

demonstram como as relações entre o monumento e comunidade podem se tornar fortalecidos,

principalmente quando o vínculo se dá por uma relação de grande afetividade por ser onde o

povo exerce sua fé. Portanto, um patrimônio dotado de sacralização, assume um valor que

ultrapassa a relação material e estética, mais voltada para o contorno espiritual.

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8. FORMULAÇÃO DO PROBLEMA E METODOLOGIA DE

TRABALHO

A abordagem dos problemas relacionados à destruição do afresco de Alfredo Volpi

da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima e à polêmica que suscitou a substituição da pintura,

buscou o alinhamento em consonância com a linha de pesquisa Museologia e

Desenvolvimento Social, propondo investigações relacionadas à teoria museológica

contemporânea, com base nas relações de identidade, indivíduo e patrimônio, tendo a cidade

como espaço onde se processam tais as relações. Entretanto, com o encaminhar da pesquisa, a

questão do patrimônio ficou mais evidente, o que levou a optar por concentrar as discussões

mais atentas a essa questão.

A metodologia de trabalho adotada buscou analisar:

a) Documentos de instituições públicas que pudessem ter informações acerca do templo,

do histórico do afresco e do processo de restauração, como: Arquivo Público do Distrito

Federal (ARPDF); Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito

Federal (Depha), Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito Federal

(IPHAN-DF); e da Paróquia Nossa Senhora de Fátima, responsável administrativa pela

Igrejinha.

b) Matérias publicadas na mídia local e nacional como fontes potencialmente informativas,

uma vez que a mesma deu ampla cobertura aos problemas relacionados à Igrejinha.

c) Entrevista com o Instituto Volpi de Arte Moderna (Iavam) para levantamento de

informações biográficas do artista, suas obras e sobre o afresco perdido.

d) Entrevista com Francisco Galeno, a fim de obter informações acerca da pintura que

realizou na Igrejinha, dos problemas encontrados e outras informações sobre sua

experiência de trabalho.

e) Instrumentos de pesquisa aplicados na comunidade - nesse caso, foram feitas entrevistas

presenciais e, posteriormente, aplicado um questionário on-line, abordando questões

acerca do perfil dos entrevistados, levantamento dos problemas relacionados ao templo

e buscando a opinião da comunidade em relação às obras de Volpi e Galeno.

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179

PESQUISA DOCUMENTAL

O levantamento de dados e informações se baseou em pesquisas documentais em

instituições públicas e privadas, como:

ARQUIVO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL (ARPDF) - Realizadas pesquisas em

fontes bibliográficas e documentais. Foram encontrados livros, revistas, mapas, fotografias,

depoimentos orais, matérias publicas em jornais e outros documentos relativos à Brasília.

DEPARTAMENTO DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DA SECRETARIA

DE ESTADO DE CULTURA DO GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL (Depha) - O

Órgão dispunha de boa documentação acerca da Igrejinha, entretanto, nada que fornecesse

informações sobre o que aconteceu com o afresco. Foi encontrado um laudo técnico, emitido

por dois restauradores, atestando a perda irreversível do afresco. Foram também encontrados

mapas, fotografias, depoimentos orais e matérias publicadas em jornais, além dos processos

relativos ao tombamento distrital do templo e a duas restaurações realizadas na Igrejinha na

década de 1980.

INSTITUTO DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL DO DISTRITO

FEDERAL (Iphan) - A pesquisa realizada na documentação disponibilizada pelo órgão, com

o objetivo de levantar como se deu a última restauração do templo, se baseou na análise dos

processos de tombamento de Brasília, da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima e da restauração

do templo, que ocorreu em 2009. Nesse último, não foi possível conseguir dados muito

relevantes sobre o processo de restauração, principalmente em relação ao problema com a

comunidade. O processo examinado não continha documentos relativos a qualquer tipo de

convocação da comunidade ou da igreja para discutir o assunto, bem como não foram

encontradas atas de reunião. Foi encontrada documentação referente ao processo movido por

algumas pessoas no Ministério Público, porém, o documento foi respondido pelo órgão àquele

Ministério sem mencionar qualquer discussão com a comunidade. As menções, publicadas na

imprensa e nos argumentos apresentados ao Ministério Público foram de natureza técnica e,

de alguma forma, arbitradas.

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INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO DISTRITO FEDERAL (IHGB) - O

instituto foi utilizado como fonte de pesquisa bibliográfica por possuir um grande acervo

sobre a cidade. A arquiteta Vera Bosi, representante do Instituto, concedeu entrevista e falou

sobre a complexidade de preservação da cidade, entretanto, a questão da Igrejinha,

especificamente, não foi abordada porque Vera não acompanhou o problema de perto.

PARÓQUIA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA (PNSF) - A tentativa de pesquisa na Paróquia

Nossa Senhora de Fátima, responsável administrativa pela Igrejinha, foi frustrada, uma vez

que não foi possível ter acesso a qualquer documentação sobre a Igrejinha e os responsáveis

por ela, no momento, não quiseram se manifestar. Aqueles que trabalharam na Igrejinha no

período da última restauração não estão mais em Brasília, Frei Odolir está doente e o frei

Junio Roza, que o sucedeu e com o qual consegui obter algumas informações, foi transferido.

A Arquidiocese de Brasília também foi procurada, mas adotou a mesma postura de não se

manifestar. A alegação feita pelo Frei Messias Chagas Braga, atual pároco responsável pela

Igrejinha, foi de que o tema é bastante polêmico e que, internamente, decidiram que não iriam

mais falar sobre qualquer assunto relacionado ao ocorrido, nem em relação ao afresco

perdido, nem em relação ao conflito gerado pela inserção da nova pintura. E-mails enviados

não foram respondidos ou me encaminharam de um lado para o outro. Outras fontes

pesquisadas, principalmente na mídia, também referiram a dificuldade de comunicação e a

falta de manifestação por parte da igreja.

INSTITUTO ALFREDO VOLPI DE ARTE MODERNA - IAVAM - O Instituto,

representado por seu presidente Pedro Mastrobuono, prestou informações relevantes acerca da

biografia e das obras do Mestre do Cambuci, por meio de entrevistas e fornecendo farto

material para pesquisa (fotografias, livros e indicações de fontes documentais e de pessoas). A

imagem colorida do afresco do artista na Igrejinha Nossa Senhora de Fátima foi fornecida por

ele e consta na obra “Oscar Niemeyer – Territórios da Criação”, lançada em comemoração

aos 100 anos do arquiteto, pela editora Pinakotheke246

. O Instituto Alfredo Volpi informou

que, em nenhum momento, foi procurado pelo Iphan para discutir sobre o trabalho de Alfredo

Volpi, nem lhes foi solicitada qualquer informação que pudessem fornecer sobre a obra. O

instituto também demonstrou insatisfação com a alternativa utilizada pelo órgão, de

substituição da obra de Volpi por outra, principalmente pela falta de comunicação. Antes

246

COSTA, Marcus Lontra. Oscar Niemeyer (1907-2012): Territórios da criação. Rio de Janeiro: Pinakotheke,

2017.

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representado por Marco Antonio Mastrobuono, hoje falecido, e respondendo por ele seu filho,

Pedro Mastrobuono, o Iavam tem como principais finalidades fomentar o desenvolvimento da

cultura brasileira, a preservação e a divulgação da memória e da obra artística de Alfredo

Volpi, entre outros artistas, atuando na formação, desenvolvimento e consolidação da

consciência de defesa do patrimônio cultural brasileiro247

.

PINAKOTHEKE CULTURAL - A pesquisa também contou com a colaboração de Max

Perlingeiro, da Editora Pinakotheke, responsável pelo lançamento da obra “Oscar Niemeyer –

Territórios da Criação”248

, cujo exemplar foi cedido para a realização desta pesquisa. A

Pinakotheke Cultural é uma organização especializada em planejamento e produção de

exposições e publicações específicas, exclusivamente voltadas para a história da arte no

Brasil. Com sede no Rio de Janeiro e representação em São Paulo e Fortaleza, destaca-se

como espaço cultural de relevância, apresentando exposições relacionadas à arte moderna e

contemporânea de artistas brasileiros. Atuando paralelamente ao campo editorial, a

Pinakotheke Cultural tem trabalhado também em atividades voltadas para exposições

museológicas e tratamento de acervos públicos e privados.

PESQUISA JUNTO À COMUNIDADE

Foi elaborado um questionário e aplicado pessoalmente, mediante a abordagem de

pessoas na quadra 307/308 sul e nas imediações da Igrejinha. Também foi feito um

questionário online, divulgado por meio de redes sociais, buscando um alcance maior de

pessoas que teriam alguma relação com o patrimônio de Brasília, principalmente aquelas que

frequentam ou já frequentaram o templo. Observou-se certa dificuldade de acesso às pessoas

que poderiam dar mais informações sobre o que supostamente teria ocorrido com a pintura de

Alfredo Volpi, uma vez que tratam-se de pessoas muito idosas e algumas já falecidas.

Como resultado das duas pesquisas, apresentamos os dados a seguir:

247

INSTITUTO ALFREDO VOLPI DE ARTE MODERNA. Disponível em:

<http://www.institutovolpi.com.br/sobre/#finalidades>. Acesso em: 20 ago. 2018.

248 COSTA, Marcus Lontra. Oscar Niemeyer (1907-2012): Territórios da criação. Rio de Janeiro: Pinakotheke,

2017.

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184

Trabalho.

Resido.

Não.

Não.

Arquivo Nacional.

Trabalhei próximo do local por 10 anos.

Não.

Residi nos anos 60/70.

Já residi no passado, década de 1960.

Não. Moro e trabalho na Asa Norte.

Moro em Sobradinho, mas apaixonado po Athos Bulcão e Nossa Senhora.

Não mais. Eu fazia ballet ao lado da Igrejinha.

Atualmente não, moro em Santa Catarina.

Trabalhei ali próximo. Na 508 sul e também na 106 sul.

Nenhum dos dois.

Já visitei a igreja.

Já residi próximo.

Não trabalho nem resido próximo à igreja.

Moro na Asa Norte.

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Tem valor como templo religioso.

Tem valor como patrimônio.

Tem valor como templo religioso e patrimônio.

Meus pais frequentaram.

Muito valor sentimental. Uma parte de minha história.

Valor sentimental. Quando criança era lá que participava das missas.

É fundamental como patrimônio.

Adoro os 13 dias de festa de Nossa Senhora Aparecida, entre 1 e 13 de maio. Comida

de festa junina.

É uma maneira de preservar a memória da cidade que, apesar de jovem, já tem muita

história para contar.

Me identifico com ela somente como um templo religioso.

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Me identifico com ela como patrimônio.

Me identifico com ela como templo religioso e patrimônio.

Não tenho sentimento especial por ela.

Meus pais frequentaram.

Valor como templo religioso, como patrimônio e valor também sentimental.

De total afetividade e de boas lembranças.

Identificação por ter sido moradora da SQS 308 nas décadas de 60/70.

Não frequento, mas também tenho sentimento de pertencimento e afetividade.

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Concordei porque não tinha mais como recuperar a obra antiga.

Não concordei e gostaria de ter dado minha opinião.

Não se aplica.

O iphan considerou a pintura de Volpi irrecuperável e contratou Galeno para fazer a

nova pintura, por considerar um artista mais próximo à pintura de Volpi. Houve

várias manifestações a favor e contra a nova pintura.

Não acompanhei os acontecimentos, apenas vi as reformas.

Será que não tinha mesmo como recuperar ou prevaleceu a vontade de uma minoria

que nem sequer frequenta a igreja?

A Igrejinha estava sem vida. As paredes brancas e muito estragadas. Os azulejos

quebrados por causa de um incêndio. Houve muita movimentação de artistas da

cidade que defendiam as mudanças. Parte da comunidade foi conservadora. Galeno

pinta com elementos visuais (geometria e cores) que lembram Volpi. Foi cuidadoso e

aplicado. Gosto do resultado. Sinto profunda alegria em estar lá dentro. Também sou

comunidade.

Não acompanhei o processo. Sei que Galeno era aluno de Volpi e procurou usar

referência das obras do artista.

Gosto da obra e acho que o Iphan fez uma boa escolha do artista.

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192

Por intermédio da igreja.

Por intermédio do Iphan.

Por intermédio de amigos, vizinhos etc.

Por intermédio de grupos comunitários (associações, grupos organizados, prefeitura

etc).

Reportagem de canal de televisão.

Televisão e jornal.

Pela imprensa.

Jornal Correio Braziliense.

Iphan, imprensa e grupo de arquitetos.

Televisão/mídia.

Imprensa.

Não me senti representada no processo de decisão do Iphan.

Não me senti representada pelo Iphan.

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193

Por intermédio da igreja.

Por intermédio de amigos, vizinhos etc.

Por intermédio de grupos comunitários (associações, grupos organizados, prefeitura

etc).

Pelos jornais. Houve movimentação em defesa da pintura. Assinei abaixo-assinado.

Tive conhecimento, mas não participei.

Também por intermédio de colegas e vizinhos.

Também da igreja e de vizinhos e colegas.

Pela imprensa.

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194

Uma réplica da obra de Volpi, idêntica à anterior.

A obra atual, do artista Francisco Galeno.

A obra de outro artista.

Nenhuma, preferia as paredes brancas.

Ambas.

A obra do artista Francisco Galeno é muito bonita, mas creio que o Iphan poderia ter

optado por fazer uma réplica de Volpi. Segundo eles, não havia como identificar, o

que não creio...

Se fosse tecnicamente possível a restauração da obra original, preferiria a restauração.

Não podendo ser restaurada a obra de Volpi, Galeno fez a sua arte traduzindo muito

bem a cena da aparição com olhar inocente e singelo das crianças e do próprio Volpi.

Estou feliz com a mudança.

A de Volpi não conheci. Um templo sagrado tem que ter seus símbolos religiosos

preservados com o devido respeito.

Gostaria que a obra de Volpi continuasse lá, preservada pelo Iphan.

A obra original de Volpi, se pudesse.

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Não tenho opinião formada sobre a obra.

Não gostava por questão estética.

Não gostava porque não representava os ícones do catolicismo (considerava profana -

aquilo que transgride as regras sagradas; contrário ao respeito devido às coisas

divinas; é estranho à religião).

Considero que era uma obra moderna e correspondia ao contexto de Brasília.

Era uma obra compatível com o contexto e com a simplicidade sofisticada do templo.

Conheço pouco a obra de Volpi que havia nas paredes da Igrejinha. Gostaria que

tivesse sido preservada. O fato de ter sido substituída pela - muito sensível e bela -

obra de Francisco Galeno indica a falta de compromisso e responsabilidade do poder

público para com a preservação do patrimônio artístico e cultural do país.

Gosto dos painéis de Galeno. Pelo que representam. As crianças e a simbologia de

Nossa Senhora de Fátima ter aparecido para as três crianças. Galeno se utiliza de

signos presentes em sua infância comuns a tantas outras crianças nascidas no interior

e vindas para Brasília nos anos 50/60.

Totalmente apropriada.

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196

Não tenho opinião formada sobre a pintura.

Não gosto por questão estética

Não gosto porque não representa os ícones do catolicismo (considerava profana -

aquilo que transgride as regras sagradas; contrário ao respeito devido às coisas

divinas; é estranho à religião).

Gosto da obra. Considero que é moderna e corresponde ao contexto de Brasília.

Totalmente apropriada.

Pelos comentários, parece seguir a mesma linha de Volpi, misturando o sagrado e o

profano.

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198

09. CONCLUSÃO

Ao discutir a questão da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima como patrimônio

coletivo, afetivo e sob tutela do Estado e da comunidade, é possível entender as tensões que

envolvem a relação estabelecida entre a esfera pública e a coletividade em relação à

representatividade que têm os monumentos.

É evidente que muitas pessoas têm uma relação mais especial com as igrejas do que

com outros monumentos nas cidades, porque essas edificações adquirem o caráter de

sacralidade e simbolizam, de alguma forma, o encontro com Deus, o recolhimento, a fé e o

conforto. O caso da Igrejinha não é diferente, já que ela é cuidada e frequentada pelas pessoas

que moram na vizinhança, embora administrada por uma paróquia superior. Situada num local

tranquilo e próximo a tudo, servindo, muitas vezes, como lugar de passagem, o contato com

ela é praticamente diário. Ali as pessoas se reúnem para uma série de atividades, como

participação em missas, eventos e festas, sendo comum, pela manhã, a praça em volta ter

sempre pessoas idosas com cuidadores e crianças com mães e babás - isso mesmo, porque a

Igrejinha é frequentada por uma classe social mais privilegiada. Afora pessoas que trabalham

por ali e alguns poucos moradores de rua que vivem no lugar, a vizinhança é composta por

pessoas que tem um padrão de vida confortável. Talvez por isso o barulho recente relativo à

restauração tenha tomado uma proporção tão grande. Não se mexia com qualquer um.

E talvez também por isso a primeira obra tenha sido destruída, porque ali se

estabelecia a relação de poder representada por membros da própria igreja e pessoas

influentes, que reuniriam condições suficientes para fazê-lo sem que ninguém ousasse

contestar, principalmente num período em plena instalação da ditadura militar. Quem iria

questionar um padre por apagar uma pintura? Que tipo de influência ele poderia ter tido sobre

os fiéis para convencê-los de que o que estava ali não era adequado? Quem seriam as pessoas

que se mostraram coniventes com a situação e que tipo de motivação teriam? As hipóteses

mais prováveis levantadas são de que a pintura de Alfredo Volpi teria sido destruída por dois

principais motivos: porque não agradava esteticamente à igreja e aos fiéis e porque não se

reconhecia a iconografia habitual de Fátima representada nas pinturas. Quem teria feito?

Muita gente. Daí o apagamento silencioso da memória e a falta de questionamentos, inclusive

ao longo dos anos que se sucederam. Nem mesmo o apelo de Kubitscheck, em 1960, a

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Rodrigo Melo Franco de Andrade, então diretor do Serviço de Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional (Sphan), pedindo a adoção de medidas que garantissem a proteção da

cidade, foi capaz de evitar o dano, já que o tombamento veio tardiamente. "Pensei que o

tombamento podia constituir elemento seguro" (KUBITSCHEK, 1960)249

, disse JK,

afirmando que tinha dúvidas sobre a aprovação da lei de proteção pelo Congresso. Sem

dúvida, haveria motivos conhecidos pelo presidente para tentar colocar uma "barreira às

arremetidas demolidoras que já se anunciam vigorosas" (KUBITSCHEK, 1960).

Não seria surpresa, como afirmado por outras pessoas já citadas nesse trabalho, que

os mesmos pensamentos que teriam motivado a destruição do afresco de Volpi - por não

corresponder à leitura correspondente da arte sacra até então reconhecida e apreciada pelos

católicos ou simplesmente por não gostar da obra - teria voltado à tona com a representação

de Francisco Galeno. A diferença é que hoje não seria possível um ato como o anterior voltar

a acontecer, principalmente porque vivemos outra mentalidade, temos outras condutas e

acesso a mais informações, de forma que tal atitude não passaria despercebida. Além disso, as

políticas de preservação de um patrimônio tombado, como é a Igrejinha, garantem sua

proteção e impedem que qualquer ação seja adotada sem o conhecimento e autorização do

poder público.

Não cabe, na presente proposta, discutir questões relativas à recuperação da obra de

Volpi, até porque, segundo laudos técnicos, foi constatada a impossibilidade de restauração e

restituição do original. Os parcos fragmentos não permitiriam isso. A destruição foi de tal

vulto que, segundo alguns relatos, o reboco foi retirado em algumas partes. Não cabe,

também, apontar a responsabilidade por tal ato, uma vez que tudo se transformou em lenda,

agravada pela falta de documentação pública e registros, por exemplo, na imprensa, e pela

dificuldade de comunicação com a igreja. A falta de diálogo com os párocos foi também

relatada por outras fontes, como a imprensa e o próprio Iphan. Não há manifestação

conhecida nem do próprio artista, Alfredo Volpi, que estava vivo quando o afresco foi

apagado. A única informação obtida, mencionada por Marcelo Mastrobuono em entrevista

para esta pesquisa, foi de que o Mestre do Cambuci teria sido convidado, passado o período

da ditadura, para pintar novamente a igreja, mas teria se recusado, aborrecido. Também há

249

KUBITSCHECK, Juscelino. Bilhete a Rodrigo Mello Franco de Andrade, 1960. In Cronologia do

pensamento urbanístico. Iphan tomba Brasília. Disponível em:

<http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1586>. Acesso em: 21 jul. 2017.

.

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200

menções de que a pintura teria problemas, que teria sido feita às pressas, como afirmaram

Mário Pedrosa e Athos Bulcão250

.

Cabe, então, abordar a relação entre a comunidade e as instâncias públicas, tecendo

algumas considerações acerca da forma como o poder público trabalhou as políticas de

patrimônio tão discutidas na atualidade, inclusive pelo próprio órgão.

O caso da Igrejinha demonstra a íntima relação estabelecida entre grupos sociais e o

patrimônio, evidenciando o reconhecimento dos monumentos como objetos simbólicos

ímpares que compõem a cidade, carregados de valores e significados, totalmente inseridos na

comunidade, fazendo parte dela e com os quais se identificam e dos quais, ao mesmo tempo,

se apropriam e desenvolvem sentimento de proteção. Demonstra, também, a necessidade de se

promover o diálogo entre o poder público e a comunidade, no sentido de construir políticas de

patrimônio que busquem favorecer tanto os monumentos quanto a sociedade.

É possível que os conflitos resultantes da inserção de uma nova pintura no templo

pudessem ter sido resolvidos por meio da implementação de ações educativas. Tais iniciativas

estão previstas na cartilha Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos, publicada

pelo Iphan, em 2014, manifestando a preocupação do órgão, desde a sua criação, em 1937, da

educação patrimonial ser "implementada como estratégia de proteção e preservação do

patrimônio sob sua responsabilidade, instaurando um campo de discussões teóricas, e

conceituais e metodologias de atuação que se encontram na base das atuais políticas públicas

de Estado na área" (IPHAN, 2014, p. 5)251

A gestão compartilhada do patrimônio mostra-se como uma alternativa viável e

conveniente para discutir o tema, colaborando, de forma democrática, para a valorização e

melhoria das políticas públicas adotadas para as cidades. Nesse sentido, as ações educativas

orientadas pelo próprio órgão como convenientes e necessárias para a implementação de

políticas de preservação devem promover, estruturar e consolidar as atuações voltadas para a

preservação do Patrimônio Cultural brasileiro envolvendo os diversos segmentos da sociedade

civil. Tais ações estão, inclusive, previstas no Decreto nº 6.844, de 7 de maio de 2009, que

criou a Coordenação de Educação Patrimonial – CEDUC e o Departamento de Articulação e

Fomento – DAF, com o objetivo de fortalecer a promoção, coordenação, integração e

avaliação de programas e projetos de Educação Patrimonial no âmbito da Política Nacional do

250

MACIEL, Nahima. Um tesouro perdido. Correio Braziliense. Brasília, 28 jun. 1998, Caderno Dois, p. 5.

251 IPHAN. Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico

e Artístico Nacional, 2014.

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201

Patrimônio Cultural252

. Como setor responsável pela educação patrimonial, a CEDUC

defende que

A Educação Patrimonial constitui-se de todos os processos educativos

formais e não formais que têm como foco o Patrimônio Cultural, apropriado

socialmente como recurso para a compreensão sócio-histórica das

referências culturais em todas as suas manifestações, a fim de colaborar para

seu reconhecimento, sua valorização e preservação. Considera ainda que os

processos educativos devem primar pela construção coletiva e democrática

do conhecimento, por meio do diálogo permanente entre os agentes culturais

e sociais e pela participação efetiva das comunidades detentoras e produtoras

das referências culturais, onde convivem diversas noções de Patrimônio

Cultural. (IPHAN, 2014, p. 19)

É imprescindível, segundo o órgão, que toda ação educativa assegure a participação

da comunidade na formulação, implementação e execução das atividades propostas para a

construção coletiva do conhecimento, identificando a comunidade como produtora e

reconhecedora de suas referências culturais associadas à memória social do local.

As políticas de preservação devem priorizar a construção coletiva e democrática do

conhecimento por meio do diálogo entre os agentes institucionais e sociais e da participação

das comunidades. Suas iniciativas devem ser utilizadas como recurso fundamental para a

valorização da diversidade cultural e para o fortalecimento da identidade local, a partir de

múltiplas estratégias construídas coletivamente. As ações ou projetos propostos devem buscar

Identificar e fortalecer os vínculos das comunidades com o seu Patrimônio

Cultural, incentivando a participação social em todas as etapas da

preservação dos bens. Nesse processo, cabe aos poderes públicos exercer o

papel de mediador da sociedade civil, contribuindo para a criação de canais

de interlocução que se valem, em especial, de mecanismos de escuta e

observação. (IPHAN, 2014, p. 21)

Ao reconhecer que as políticas de preservação se envolvem num campo de conflito e

que as negociação entre diferentes segmentos, setores e grupos sociais para definição dos

critérios de seleção, atribuição de valores e práticas de proteção dos bens culturais acautelados

podem se tornar tensas, os especialistas que discutem o tema no Iphan admitem o risco de

origem de um desequilíbrio de representatividade, provocando crises de legitimidade e baixa

identificação da população em relação ao conjunto reconhecido como Patrimônio Cultural.

Assim, as políticas de patrimônio concebem como de fundamental importância a realização de

"práticas educativas em sua dimensão política, a partir da percepção de que tanto a memória

como o esquecimento são produtos sociais" (IPHAN, 2014, p. 23)

Desse ponto de vista, ao assumir funções de mediação, as instituições públicas

devem, mais do que determinar valores a priori, criar espaços que facultem a mobilização e

252

Idem.

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202

reflexão dos grupos sociais em relação ao seu próprio patrimônio, mediando os "processos de

patrimonialização, encaminhando demandas e intervindo em questões pontuais e estratégicas,

sempre se pautando pelo respeito à diversidade sociocultural" (IPHAN, 2014, p. 23).

Ao discutir a questão do patrimônio cultural, psicólogo José Clerton de Oliveira

Martins253

, professor da Universidade Federal de Fortaleza, que mantém seu foco em estudos

acerca de temas como Cultura Popular, Patrimônio Cultural e Identidades na

contemporaneidade, comenta o poder que o afeto, investido no espaço comum, o transforma

em lugar especial:

Portanto, o que dota o lugar desse sentido especial é o conjunto de

significados, os símbolos que os sujeitos que o vivenciam e dele se

apropriam em sua elaboração subjetiva imprimem no espaço a condição de

“lugar especial e único”.

Esse conjunto de valores representado pelos significados e símbolos

imateriais que estão projetados no espaço geográfico, tornando este lugar

especial é advindo de uma relação afetiva e por isso resguarda marcas de

cada sujeito que está, de certa forma, ligado, implicado, comprometido com

esse lugar. Assim, ao observarem o lugar ou se referirem a este lugar que é

tomado como seu, em seu íntimo expressam: “isto sou eu” e em comunhão

com o grupo, “isto somos nós”[...]. (MARTINS, 2015, p. 49)

O autor define, de forma bem conveniente para o que aqui se estuda, que o conceito

de participação deve ter ênfase no princípio democrático, devendo todos o que forem, de

alguma forma, atingidos por medidas sociais e políticas, ser chamados a participar dos

processos decisórios. Os grupos devem ser estimulados para se sentirem comprometidos com

os projetos de gerência e decisão em assuntos que são de interesse comum. A participação

popular, afirma o especialista, pode, muitas vezes, parecer não ser muito eficiente, porque

demanda tempo e impacta em custos, além de interferir na complexidade do processo

decisório. Entretanto, ressalta Clerto Martins, os benefícios estendidos para a comunidade e o

lugar são capazes de aproximar, convocar à cooperação e gerar responsabilidade pelo

compromisso conjunto assumido.

A atuação do Iphan mostrou-se, de certa forma, arbitrária e imperativa. Mesmo que a

maioria das pessoas tenha afirmado gostar da nova pintura, os grupos que manifestaram não

se identificar ou não gostar da nova intervenção, deveriam ter recebido, por parte do órgão,

um tratamento mais acolhedor. As reclamações e protestos foram desconsiderados por terem

partido de uma parcela "insignificante" da comunidade, sem avaliar o nível de participação

daquele grupo na igreja, evidentemente muito mais comprometido e ativo na participação das

253

MARTINS, José Clerton de Oliveira. Patrimônio Cultural: Sujeito Memória e sentido para o lugar. In:

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203

atividades que ocorrem ali dentro e com uma frequência bem mais assídua nos ritos

religiosos.

Nesse sentido, a educação patrimonial teria um papel fundamental no fortalecimento

e apreensão das necessidades identificadas no templo. Conhecer, discutir e convencer é bem

diferente de tratar pessoas como portadoras de "mentalidade medieval", inseridas no

"obscurantismo", como afirmou Alfredo Gastal254

. Considerar que a quantidade de pessoas

que se manifestaram contra a pintura não era representativa, também não se apresenta como a

ideia mais adequada. Chamar grupos para defenderem a posição adotada pelo órgão e em

defesa da intervenção não aceita, também soou como afronta, aos olhos da comunidade. O

convencimento, o diálogo, a informação acerca do contexto em que se inseririam as obras e o

acolhimento para uma participação popular mais afetiva, talvez tivesse tido resultados menos

traumáticos tanto para aquela comunidade que frequenta mais assiduamente a Igrejinha e

mantém laços afetivos e religiosos mais conservadores, além dos demais, quanto para o

próprio Iphan.

254

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