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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade Memória e imagens da Bahia no documentário de Alexandre Robatto Filho Ana Luisa de Castro Coimbra Vitória da Conquista 2011

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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade

Memória e imagens da Bahia no documentário de Alexandre Robatto Filho

Ana Luisa de Castro Coimbra

Vitória da Conquista 2011

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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB

Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade

Memória e imagens da Bahia no documentário de Alexandre Robatto Filho

Ana Luisa de Castro Coimbra

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Memória: Linguagem e

Sociedade, como requisito parcial e obrigatório

para obtenção do título de Mestre Em Memória:

Linguagem e Sociedade.

Orientadora: Profa. Dra. Lívia Diana Rocha Magalhães

Vitória da Conquista

2011

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Título em inglês: Memory and imagery of Bahia in the documentary of Alexander Robatto Filho

Palavras-chaves em Inglês: Cinema. Memory, Bahia, Alexandre Robatto Filho

Área de concentração: Multidisciplinaridade da Memória

Titulação: Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade. Banca Examinadora: Profa. Dra. Lívia Diana Rocha Magalhães (titular), Prof. Dr. Jorge Luiz Bezerra Nóvoa (titular), Profa. Dra. Milene de Cássia Silveira Gusmão (titular), Profa. Dra. Ana Palmira Bittencourt S. Casimiro (suplente), Profa. Dra. Teresinha Bernardo (suplente).

Data da Defesa: 07 de fevereiro de 2012

Programa de Pós-Graduação: Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade.

Coimbra, Ana Luisa de Castro.

C633m Memória e imagens da Bahia no documentário de Alexandre Robatto Filho / Orientadora Livia Diana Rocha Magalhães - - Vitória da Conquista, 2011.

111 f.

Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação e Memória: Linguagem e Sociedade). Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2011.

1. Cinema 2. Memória 3. Bahia 4. Alexandre Robatto Filho I. Magalhães, Lívia Diana Rocha. II. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Programa de Pós- Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade. III. T.

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À minha mãe, pelo seu amor incondicional, dedico.

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v

AGRADECIMENTOS

Não seria possível completar mais essa etapa de vida sem ajuda de muitos e a

vibração de outros tantos. Agradecer é o mínimo que posso fazer, ainda que em breves

linhas, como forma de demonstrar minha gratidão.

E porque nos créditos iniciais de qualquer filme os primeiros nomes que aparecem

são os apoios financeiros e institucionais recebidos, agradeço, inicialmente, à Fundação de

Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), e à Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior (Capes) por terem me concedido bolsa que possibilitou os meus

estudos e a realização da pesquisa que resultou neste trabalho. Grata também estou ao

Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade e à Universidade

Estadual do Sudoeste da Bahia por terem tornado possível a minha formação em nível de

mestrado.

Seguimos com o pensamento de uma narrativa fílmica. O desenrolar da história,

com suas tramas, cenas, personagens, só foi possível porque alguém a escreveu antes para

que pudéssemos ouvir o “gravando”, na voz de um diretor. Quem cria, que dá vida à

história que será contada são os roteiristas, figuras cruciais para a realização de um filme.

Para a grande trama que é viver, agradeço incomensuravelmente quem me concebeu, quem

me deu a vida, quem me criou e para que, a mim, é dispensado todo o afeto que não cabe

em palavras: meus pais, Acácia Castro Silva e Antônio Gilson da Silva. Sem vocês, nada

disso seria possível.

Para uma complexa história como essa, um só protagonista não daria conta de

encenar tantos atos. E com palavras de agradecimento, ressalto as pessoas que

protagonizaram esses dois anos de amadurecimento acadêmico.

À minha irmã, Leda Coimbra e à meu cunhado Eric Campos pela acolhida inicial,

pelo carinho e apoio de sempre. As baixas temperaturas do Planalto da Conquista ficaram

amenas porque sabia que sozinha eu não estava, os abraços e conselhos aqueciam apesar

do frio que insistia.

À professora Dra. Lívia Diana Rocha Magalhães que aceitou o desafio da

orientação, mas, sobretudo, pela paciência, pelos ensinamentos e pela generosidade de

compartilhar o seu saber. Tenho você como referência do que é ser uma pesquisadora de

excelência. Obrigada por estar ao meu lado durante esse percurso, que sabemos, não foi

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nada fácil e por ter proporcionado a missão de estudo tanto na Argentina (Universidad

Nacional do Litoral - UNL), como na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.

Com toda certeza, hoje te afirmo: não, não voltei a mesma depois das viagens.

À professora Dra. Maria da Conceição Fonseca-Silva por tão bem coordenar esse

programa de mestrado. Por sua dedicação incondicional desfrutamos de uma estrutura

impecável e seu esforço torna possíveis as nossas conquistas.

Ao Prof. Dr. Jorge Luiz Bezerra Nóvoa e à Profa. Dra. Ana Palmira Bittencourt S.

Casimiro por participarem da Banca Examinadora de Qualificação deste trabalho e pelos

comentários que, com certeza, contribuíram e muito para este trabalho final. Agradeço

também à professora Dra. Milene de Cássia Silveira Gusmão não só pela participação na

referida banca, mas pelas tantas ajudas, pelos tantos conselhos, pela conversa amiga, pela

generosidade em compartilhar a sua biblioteca e por ter oportunizado fazer o Tirocínio

Docente nos estudos do documentário. À Profa. Dra. Teresinha Bernardo por aceitar o

convite para participar da banca de defesa deste trabalho.

Aos professores, tanto do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e

Sociedade, como dos intercâmbios – UNL e UNICAMP – pelos ensinamentos transmitidos e pelo

comprometimento na produção do conhecimento. Em especial, agradeço ao professor Dr.

Edson Silva de Farias pela indicação de referências, pelo exemplo de docente e pelos seus

estudos contribuírem de maneira significativa para esta dissertação.

À Sônia Robatto, por tão bem me receber em sua casa, pelas conversas em fim de

tarde, pelas imagens que ainda ficaram retidas em sua memória. Agradeço pela gentileza

dos gestos, pela paciência e por abrir seu acervo pessoal que contribuiriam de modo

singular para essa pesquisa.

Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e

Sociedade, Lídia e Mirian pela presteza sempre que precisei.

Aos funcionários da Cinemateca Brasileira e da Diretoria de Audiovisual da Bahia

pela agilidade das respostas e pela ajuda para encontrar os filmes.

Aos pesquisadores do Museu Pedagógico pela acolhida no grupo e por

compartilhar conhecimentos, mesmo que o universo de pesquisa fosse diferente. Agradeço

profundamente a Daniela Moura por tudo que hoje representa na minha vida, por ser um

exemplo de dedicação; suas palavras foram bálsamo e seu apoio, eu hei de agradecer

sempre.

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À professora Dra. Rosana Elisa Catelli por ter se tornando, desde a graduação, meu

referencial de docente e pesquisadora. Obrigada por ter despertado em mim a paixão pelos

documentários e por se fazer constante ao longo desses dois anos, mesmo com toda

distância geográfica.

Aos meus colegas de mestrado: Joaquim Antônio, a sabedoria e alegria moram em

você; Antônio Joaquim, sua genialidade ainda há de ser reconhecida por muitos; Luis

Cláudio, o advogado brilhante e amigo de todas as horas; Glauber Lacerda, quantas foram

as nossas conversas, quantos foram os filmes compartilhados e quantos abraços que

acalmavam; Roney Gusmão, parceiro de viagens e de boas risadas.

À Fabíola Pereira e Cecília Barros-Cairo pelos laços eternos de irmandade que nos

unirá mesmo sem saber o que nos aguarda daqui para frente. Foram tantos os momentos de

apoio, de carinho que, sem dúvida, o caminho seria muito mais difícil sem vocês ao meu

lado.

À Jerry Guimarães, pelos ensinamentos teóricos, pelas tantas conversas e por ter

me dado o prazer de sua convivência. Não chegaria aqui se não fosse sua ajuda, seu

carinho e seu ombro sempre amigo.

À Sara Martin que desde a elaboração do projeto para o ingresso neste programa de

Mestrado esteve comigo. Suas palavras de incentivo me impulsionaram a seguir em frente,

acreditando, acima de tudo, que sim, eu era capaz.

À Mirela Souto que de perto acompanhou toda angústia e todas as alegrias do que

foi sendo conquistado e por sempre me fazer enxergar a vida com mais graça e leveza. Sua

amizade é mesmo um presente.

À Guto Cruz e Isaac Bonfim pela amizade que me fortalece, por compreender

minhas ausências e por sempre ter uma palavra de apoio.

À Leonardo Bião pela amizade e companheirismo de tantos anos e por se fazer

presença constante, mesmo de longe. À Poliana Alves, Isis Sampaio, Marina Sartório,

Scheilla Franca, Paulo Vitor, Luiz Fernando, Ingridd Lopes e Karol Almeida pela torcida,

pelo desejo de me ver chegar além.

E para o gran finale, ali, onde o diretor geral assina a sua obra, agradeço a Deus e

aos espíritos benfeitores pela proteção constante e por sempre me envolver em laços de

amor e esperança me fazendo crer que seria capaz de cumprir mais essa etapa na jornada

terrena.

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Quando tudo passar eu vagarei pelos ermos

com o tripé dos meus sonhos.

Nas chapadas bravias, nas caatingas floridas,

nas praias, nos coqueirais.

Os pescadores falarão de uma vela, deslizando nas noites de banzeiro,

entre os barcos paralisados.

Nas noites de luar haverá frêmitos estranhos na água parada do Abaeté.

Os negros ouvirão batuques perdidos pelas dunas

com os toques de Ijexá,

Os homens me sentirão nas sombras projetadas

da minha obra.

Mas eu permanecerei na beleza irrealizada.

Na ação surpreendida, no ritmo pressentido das sequências,

de todas as fitas que eu não fiz.

(Réquiem para um cineasta, de Alexandre Robatto filho)

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RESUMO

O trabalho de pesquisa que resultou nesta dissertação tem como objetivo analisar o acervo

documental do documentarista Alexandre Robatto Filho, que entre as décadas de 30 a 50

do século XX registra aspectos culturais, sociais e históricos dos baianos, tomando como

campo de observação o contexto no qual os seus filmes foram produzidos observando que

eles revelam uma memória documental significativa sobre uma Bahia imbricada em uma

teia de relações dinâmicas entre a tradição e o moderno, o velho e o novo, bem como

evidenciam a atuação da visão de mundo do autor, mas também, de certa forma,

dependente das condições de financiamento. Observamos os assuntos recorrentes que irão

permear suas obras classificando-os em temáticas onde pudemos notar que o registro das

imagens suscitava a idéia de um modo único, singular que vivia os baianos, principalmente

na perpetuação de um discurso modernizante calcado em valores tradicionais,

contribuindo, assim, para a construção da chamada baianidade. Tomamos os estudos da

memória como recurso importante por entender que o cinema pode ser visto como

importante documento imagético, como também, partimos da compreensão de que o autor

não pode ser deslocado de um contexto sócio-histórico em que está inserido, registrando

nos filmes, portanto, não apenas suas lembranças, mas o reflexo da conjuntura de uma

época.

PALAVRAS-CHAVE

Cinema. Memória. Bahia. Alexandre Robatto Filho.

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ABSTRACT

The objective of this research, that resulted in this dissertation, is to analyze the colection

of the documentary film-maker Alexandre Robatto Filho, that among the decades of 30 to

50 of the twentieth century, records the cultural, social and historical aspects of Bahia,

taking as a field of observation the context which their films were made by noting that they

reveal a significant document memory about Bahia, intertwined in a web of dynamic

relationships between tradition and modern, old and new, as well as highlight the work of

the author's worldview, but also somewhat dependent on the conditions of funding. We

observed the recurrent issues that will permeate his works, classifying them into themes

where we noted that the registration of the images raised the idea of a unique and singular

way in which the Bahia’s population lived, mainly in the perpetuation of a discourse of

modernization, fixed on traditional values, contributing for the so called construction of

bahianity. We take memory studies as an important resource for understanding that cinema

can be seen as an important document imagery, but also, we believe that the author can’t

be moved from a socio-historical context in which it is inserted, recording on film,

therefore, not only his memories, but the reflection of the situation of an era.

KEYWORDS

cinema, memory, Bahia, Alexandre Robatto Filho

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SUMÁRIO

1. Introdução 13

2. Da baía da Guanabara à de Todos os Santos: o cinema no Brasil e na

Bahia

18

2.1 O nascente cinema brasileiro 18

2.1.1 Naturais, cinejornais e o cinema de cavação 23

2.1.2 O Estado no cinema 25

2.2 Cinema em terras da Bahia 31

3. Da poesia ao cinema: as diferentes formas de apreensão da memória 35

3.1 Oralidade e escrita 35

3.2 Memória e arquivo 40

3.3 A imagem como documento 42

3.3.1 Imagem como memória 45

3.4 Abordagens coletivas e sociais da memória 49

4. A Bahia em cena nos documentários de Alexandre Robatto Filho 57

4.1 Estrelando: Alexandre Robatto Filho 57

4.2 Com quantas imagens se faz uma Bahia 64

4.3 Bahia em quatro atos 75

4.3.1 Passa boi, passa boiada 79

4.3.2 E o povo se manifesta 81

4.3.3 Entre o berço esplêndido e as paisagens urbanas 87

4.3.4 A moderna tradição da Bahia 93

4.4 O registro de uma memória baiana 99

5. Considerações Finais 103

Referências 107

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1. Introdução

Em meio a expressivas transformações que marcaram a passagem do século XIX

para o XX, dentre elas o surgimento de novos meios de transporte, a consolidação de

parques industriais e novos modelos de geração de energia elétrica, vimos o nascimento e

consolidação de uma indústria do entretenimento, pautada, principalmente no cinema.

As agitadas ruas parisienses logo se tornariam personagens de fragmentos da

realidade revelados em seu contínuo movimento pelas lentes dos Irmãos Lumière. Era a

novidade que se fazia ver pelas cenas vividas cotidianamente, mas que agora ganhariam

destaque pela projeção em um espaço pensado para exibição, pela dimensão das imagens

em uma tela, pela possibilidade de reprodução de um movimento vivo através de aparatos

tecnológicos.

A novidade não tardaria a chegar ao Brasil, muito menos à Bahia. Se em 1895, data

oficialmente atribuída à invenção do cinema, Paris lança para o mundo a boa nova do

cinematógrafo, o Rio de Janeiro conhecerá a invenção um ano após e os baianos, em 1897,

já tinham conhecimento da máquina que projetava cenas da vida.

O desenrolar dos primeiros passos do cinema em solo baiano é contado pelos

jornais ainda preservados da época e por escritores que se lançaram pioneiramente no

ofício do registro de um acontecimento histórico para a Bahia, acreditando que, mais que

entreter, o cinema era parte de um processo de modernização.

Dos primeiros registros feitos no Estado até o efervescente movimento do chamado

Cinema Novo, na década de 1950, tendo como grande referência a figura de Glauber

Rocha, houve uma produção de filmes documentais que, por um longo período,

sustentaram o fazer cinematográfico local. O interesse para o desenvolvimento desta

pesquisa partiu, justamente, em percrustrar esse período e houve motivações sobre as quais

ressaltaremos abaixo.

Ainda durante a graduação despertamos o interesse pela filmografia baiana que,

certamente, não se restringiu aos feitos de Glauber Rocha ou ao renascente movimento

cinematográfico no final do século XX. Perguntávamo-nos por que o silêncio ou a falta de

interesse em se pesquisar filmes que, embora rudimentares na sua feitura, revelavam

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através de imagens não só os aspectos sociais, históricos e culturais como também o

desenvolvimento de uma arte cinematográfica no estado.

É sabido que na dinâmica dos filmes pioneiros produzidos até os anos 1950, como

ressalta Bernardet (2003), o curta-metragem brasileiro embora importante, como os

cinejornais, filmes turísticos ou oficiais, e reveladores de diversos aspectos da sociedade e

da produção cinematográfica, não era visto como um cinema crítico. Nas palavras do autor,

“é com o Cinema Novo que o curta-metragem deixa de ser a sala de espera do longa-

metragem” (p. 11). Entretanto, para perceber a potencialidade das imagens como

reveladoras de uma realidade social do Brasil, tem de se considerar que muitos

aprendizados ocorreram anteriormente até se chegar à eclosão de filmes com mais enredo e

melhor tratamento na estética fílmica. Ademais, o que nos transparece pelo

posicionamento do autor é a conhecida peleja entre o cinema de ficção e os documentários,

ou, para usar classificação da época, o cinema “pousado” e os filmes “naturais”.

Outro aspecto que despertara nosso interesse foi a comemoração do centenário do

cinema baiano, no ano de 2010, marcado pela primeira exibição de um documentário feito

no Estado no ano de 1910. As mobilizações em torno do centenário estavam atreladas,

sobretudo, à DIMAS – Diretoria de Audiovisual da Bahia, órgão estatal ligado à Fundação

Cultural do Estado da Bahia – FUNCEB que detém um acervo extenso constando mais de

quatro mil itens entre eles películas, DVD´s, cartazes, fotografias, livros e roteiros.

Sendo assim, a proposta inicial que ingressamos neste programa de mestrado

centrava-se em perceber o que a DIMAS, que tem como uma das frentes de ação a

preservação e difusão da memória audiovisual baiana, e levando em conta que é uma

instituição pública formal, entendia por memória audiovisual baiana. No entanto, os

primeiros contatos com o acervo desta instituição nos revelaram um número significativo

de produções documentais que ainda estavam preservados e que possibilitariam um estudo

correlato com as mudanças políticas, econômicas e sociais que assolaram o estado baiano,

principalmente entre os períodos de 1930 e 1950. Assim, chegamos à obra de Alexandre

Robatto Filho, considerado um dos pioneiros do cinema na Bahia.

Robatto Filho receberia a alcunha de pioneiro da cinematografia baiana graças a

não preservação das obras de Diomendes Gramacho e José Dias da Costa. Desses só

restaram os relatos da impressa da época em que seus filmes foram confeccionados.

Produzindo ao logo das décadas de 30, 40 e 50 do século XX, Robatto Filho, com registros

documentais, ia imprimindo na película não apenas imagens de uma Bahia ainda marcada

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por fortes traços coloniais, como também as forças econômicas que se convergiam para

tornar possível um fazer cinematográfico baiano. Não estaria a Bahia livre do cinema de

cavação, procedimento que marcou o início da sétima arte no Brasil.

Dentre os mais de cinquenta filmes produzidos por esse cineasta, observamos que a

Bahia ganhava um lugar de destaque e esse conjunto de filmes revelaria aspectos sobre as

cidades e as pessoas ali retratadas.

É importante ressaltar que o período correlato às obras de Robatto Filho foram anos

de importância para as discussões que tinham a Bahia como palco central de ações

governamentais. Afirmam alguns estudiosos (RISÉRIO, 1995; OLIVEIRA, 2002,

GUIMARÃES, 1982) que a crescente onda de industrialização que alavancou a produção e

os investimentos econômicos, principalmente no sudeste e sul do país, não foi

acompanhada pelos baianos. O estado apresentava uma estagnação tanto no crescimento

populacional como no setor econômico.

Se no sudeste e sul do país as plantações de café e a nascente industrialização

propiciaram uma modernização latente transformando os diversos setores da sociedade, na

Bahia, com o declínio da economia primário-exportadora, principalmente da indústria

açucareira, o quadro era antagônico ao que se passava em outras regiões, apresentando

cidades pouco urbanizadas e uma defasagem na mecanização das fábricas.

Esse quadro começaria a ser discutido, sobretudo, no final da década de 1940, com

as ações do governador Otávio Mangabeira que assume a liderança no estado entre os anos

de 1947 a 1951 com o apoio de forças políticas que se unificaram para advogarem em prol

de um programa de reconstrução econômica e democrática. O seu governo se respaldou na

política federal de investimentos compensatórios, que lançou as bases para a acumulação

capitalista na Bahia através da construção da refinaria de Mataripe, das ligações

ferroviárias e rodoviárias com o sul do país e de investimentos em educação e saúde

pública (GUIMARÃES, 1982).

Com o a mudança da capital federal para a cidade do Rio de Janeiro, afirma Risério

(1993), a Bahia vai assumindo um papel secundário no cenário nacional mergulhando,

assim, em um período de relativo isolamento e foi desse momento que se desenvolveram

tramas societárias insurgindo o que hoje chamamos de cultura baiana. Desse processo de

“ensimesmamento” foi se compondo um conjunto imagético que sustentariam o discurso

de uma baianidade calcada, sobretudo, nas belezas naturais do Estado, em seu passado de

feitos históricos e na sua originalidade das manifestações culturais.

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Inúmeros trabalhos contribuíram para a disseminação de um jeito baiano de viver,

destacamos, as canções do compositor Dorival Caymmi, os livros de Jorge Amado, as

imagens produzidas por Pierre Verger e pelo pintor argentino Carybé, e porque não, os

documentários de Alexandre Robatto Filho.

Nessa perspectiva pretendemos analisar o acervo documental robattiano tomando

como campo de observação o contexto no qual os seus filmes foram produzidos

observando que eles revelam uma memória documental significativa sobre uma Bahia

imbricada em uma teia de relações dinâmicas entre a tradição e o moderno, o velho e o

novo, bem como evidenciam a atuação da visão de mundo do autor, que, por vezes, é

dependente das condições de financiamento.

Trata-se de uma pesquisa que toma o documentário como revelador de uma

memória societal, que é possibilitada por meio de um recurso técnico, e por isso acaba

tornando evidente aspectos de outrora que já não são os mesmos, mas que persiste quando

são mobilizados e servem para o entendimento do passado e do presente, possivelmente,

produzindo o que Sá (2007) denomina de “memória histórica documental”.

Do ponto de vista dos procedimentos metodológicos, inicialmente realizamos o

levantamento dos filmes de Alexandre Robatto Filho produzidos na Bahia nas décadas de

1930 a 1950. Observamos que pela fragilidade do material fílmico e os cuidados exigidos

para o arquivamento das películas, algumas obras desapareceram do seu acervo, restando

apenas, de algumas, fotogramas, e de outras, descrições feitas pelos pesquisadores André

Setaro e José Umberto Dias, em seu livro Alexandre Robatto Filho, pioneiro do cinema

baiano, lançado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, em 1992. Os filmes que

resistiram à ação do tempo estão sob a guarda da Cinemateca Nacional Brasileira, situada

em São Paulo e da Diretoria de Audiovisual da Bahia, em Salvador. Em seguida

realizamos a análise dos filmes nos ancorando tanto na materialidade das imagens que

podemos assistir, como nos relatos dos pesquisadores a pouco mencionados. Após essa

etapa, a partir da observação dos filmes, e notando os assuntos recorrentes das produções

de Robatto Filho, catalogamos e organizamos os filmes em quatro temáticas: a Bahia

agropecuária, as manifestações públicas, as paisagens naturais e urbanas e aspectos da

modernidade.

Do ponto de vista da organização do trabalho, no primeiro capítulo buscamos

situar o contexto cinematográfico brasileiro e baiano em seus primeiros desdobramentos

até meados do da década de 1950, período que compreende os documentários aqui

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retratados, ressaltando as características próprias aos primeiros registros cinematográficos

realizados em solo brasileiro, passando pelos chamados filmes de cavação até que se

institucionalizasse, através de uma intervenção estatal, políticas de incentivo para a

produção de filmes no Brasil, destacando-se nesse panorama a criação do Instituto

Nacional de Cinema Educativo – INCE. Essa parte inicial não serviu apenas para traçar um

panorama, ainda que incompleto, sobre a historiografia do cinema brasileiro, mas,

entendendo que autor e obra são reflexos de um tempo, achamos importante demonstrar

que Robatto Filho não estava alheio a um movimento cinematográfico que vinha ocorrendo

no país.

Para constituir o segundo capítulo, tomamos as teorias da memória tentando

observar a importância do filme como documento que, quando mobilizado, a partir de uma

vontade do presente, revelam não apenas o que a imagem estampa, mas o contexto sócio-

histórico no qual o filme está inserido. Além disso, ressaltamos os aspectos sociais da

memória trazendo à tona, sobretudo, os estudos de Halbwachs (2006), Aróstegui (2004) e

Sá (2007).

Em seguida apresentamos uma discussão sobre os documentários de Robatto Filho

tentando revelar o seu entrelace com os debates, preocupações e contextos do Estado

baiano fortemente marcado por uma coexistência do conservador e do revolucionário,

como notou Jorge Amado (1966). Observando também como o legado de Robatto Filho

propicia a visão de uma Bahia que se situa entre a história e a memória para a manutenção

de muitas de suas necessidades oficiais e/ou materiais e culturais e como através dos

documentários o cineasta enreda essa trama a partir de sua visão e da visão que deveria ter

sobre uma dada tessitura da realidade.

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2. Da baía da Guanabara à de Todos os Santos: o cinema no Brasil e na Bahia

2.1 O nascente cinema brasileiro

No final do século XVIII, o surgimento de novas tecnologias provenientes da

utilização da máquina a vapor, promoveu uma acelerada transformação no setor industrial,

sobretudo nos países da Europa. Um novo salto neste processo de desenvolvimento

tecnológico ocorreu devido à incorporação e aplicação de descobertas científicas que

propiciaram o domínio e a exploração de novos potenciais energéticos. Tais mudanças

ocorreram em meados de 1870 e este período ficou conhecido como Segunda Revolução

Industrial ou Revolução Científico-Tecnológica.

Segundo Sevcenko (2001), nesse impulso desenvolvimentista se desenvolveram as

aplicações da eletricidade, com as primeiras usinas hidro e termoelétricas, o uso do

petróleo, dando origem aos motores de combustão interna, aparecem as indústrias

químicas, os altos-fornos de fundições das usinas siderúrgicas e os primeiros materiais

plásticos. Também é desse período, como destaca o autor:

Os novos meios de transporte, como os transatlânticos, carros, caminhões, motocicletas, trens expressos e aviões, além de novos meios de comunicação. Como o telégrafo com e sem fio, o rádio, os gramofones, a fotografia, o cinema (SEVCENKO, 2001, p. 15).

Os efeitos dessa mudança poderiam ser notados não somente pela ampliação do

potencial econômico, com o aumento da capacidade de produção e consumo, como

também na alteração da própria estrutura da sociedade, principalmente com o crescimento

e a concentração de um contingente populacional nas cidades, uma vez que as atividades

industriais provocaram um êxodo coletivo da população rural para os centros urbanos.

O fluxo de pessoas e mercadorias ganhou impulso com a modernização dos meios

de transporte, assim, as noções de espaço e tempo passavam por mudanças significativas.

O nascimento do cinema, datado a partir da apresentação do cinematógrafo – aparelho

inventado pelos irmãos Lumière no ano 1895 em Paris – foi reflexo dessa época de

importantes transformações sociais, políticas e econômicas e as conseqüências desse

processo poderiam ser medidas pela alteração da percepção de mundo e uma constante

aceleração no ritmo de vida.

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O Brasil, marcado pelo subdesenvolvimento e recém saído de um sistema

econômico escravocrata e de um regime político monárquico, se depara com essa nova

conjuntura de efervescência nas áreas científicas e tecnológicas. No entanto, como observa

Gomes (1996), a novidade cinematográfica chegou cedo ao país e só não chegou antes

“devido ao razoável pavor que causava aos viajantes estrangeiros a febre amarela que os

aguardava pontualmente a cada verão” (p. 8). Os aparelhos de projeção chegaram ao Rio

de Janeiro em 1886, um ano após serem apresentados aos europeus e as primeiras

filmagens em solo brasileiro datam de 1898. Mas é preciso considerar que, conforme

suscita o autor:

[...] dez anos, porém, o cinema vegetou tanto como atividade comercial de exibição de fitas importadas, quanto como fabricação artesanal local. A explicação, como sempre, está no retardo do país. No caso específico, o que impedia o desenvolvimento do cinema no Rio, para não falar no resto do território ainda mais arcaico, era a insuficiência elétrica. (...) Só em 1907 houve no Rio energia elétrica produzida industrialmente, e então o comércio cinematográfico floresceu. A abertura contínua de dezenas de salas no Rio, e logo em São Paulo, animou a importação de filmes estrangeiros, e foi seguido de perto por um promissor desenvolvimento de uma produção cinematográfica brasileira (GOMES, 1996, p. 9).

O cinema se consolidava como uma das diversões favoritas do brasileiro, afirma

Viany (1959) baseado nas inúmeras notícias que circulavam pelos jornais da época e no

aumento das salas de exibição. As matérias ressaltavam, sobretudo, o caráter real das

imagens como podemos notar nas palavras registradas pelo Jornal “A notícia”, em julho de

1896, um tom profético para com os aparelhos de projeção recém chegados ao país: “os

leitores que hão de ter curiosidade de lá ir, terão que concordar comnosco em que a

photographia é o vivo demônio” (p. 19). O mesmo jornal em dezembro de 1896 veicula:

“e, tal a perfeição do extraordinário apparelho que a ilusão é completa; quasi que se sente

medo de que as ondas do mar, ultrapassando os limites do quadro, invadam o elegante

salão” (p. 21). Em anúncios publicados nos jornais da época podia-se ler que a projeção

buscava “procurava atrair o espectador não só pelo que teria a ver, mas também pelo quase

que conseguiria ouvir, apalpar, cheirar e comer” (p. 21).

Embora algumas salas já tivessem sido inauguradas no país, não foi a exibição do

primeiro filme que marca a data do nascimento do cinema brasileiro. Observa Bernardet

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(2008) que é voz corrente entre os estudiosos que essa gênese se deu em 18981, feito de

Alfonso Segreto, um italiano radicado no Brasil. De um barco francês, o paquete Brèsil,

filma a chegada à Baia da Guanabara registrando fortalezas e navios de guerra ancorados.

Alfonso Segreto era irmão do exibidor Paschoal Segreto, dono do salão “Paris no

Rio” importante sala de exibição do Rio de Janeiro e que investiu não só na exibição, mas

na produção de “vistas nacionais”, que seriam projetadas em suas salas (MARTINS, 2004).

Por iniciativa de Paschoal Segreto seu irmão Alfonso é enviado para Nova Iorque e Paris

com a pretensão de conhecer as novas técnicas cinematográficas e trazer equipamentos

para a empresa. Foi na volta ao Brasil que Alfonso Segreto fez seu registro pioneiro.

Possivelmente ele foi “um dos únicos conhecedores das técnicas da produção

cinematográfica no país, pois, quando de sua estada em Paris, fez um curso na Pathé

Films” (p. 126).

Os fatos que marcaram o nascimento do cinema para o mundo e o surgimento dele

no Brasil não foram os mesmos. A máxima aceita e divulgada amplamente de que o

cinema nasce no subsolo do Grand Café em Paris, em 28 de dezembro de 1895 exalta a

exibição de um material filmado anteriormente pelos irmãos Lumière, ignorando o fato de

que outras projeções já teriam ocorrido em congressos científicos. No entanto, pela

primeira vez a sessão era pública e paga, e não estava restrita a um público específico. Já

no âmbito nacional, a idéia aceita é a de que o cinema nasce com uma filmagem.

Para Bernardet (2008) não é ocasional a escolha de uma filmagem como marco

inaugural do cinema brasileiro, ao invés de uma projeção pública: é uma profissão de fé

ideológica. Com essa oposição, privilegia-se a produção em detrimento da exibição e do

contato com o público.

Não é difícil perceber que esta data está investida pela visão corporativista que os cineastas brasileiros tem de si mesmos, e por uma filosofia que entende o cinema como sendo essencialmente a realização de filmes. [...] Pensa-se o cinema até a primeira cópia, depois são outros quinhentos. Tal filosofia marca o conjunto da produção cinematográfica brasileira (p. 26).

1 Embora a versão amplamente divulgada do primeiro registro fílmico brasileiro seja atribuído a Alfonso Segreto, pesquisas mais recentes apontam que há controvérsias quanto ao pioneirismo. Souza (1993) aponta que no dia 27 de novembro de 1897, o médico e advogado José Roberto da Cunha Salles depositou na seção de pedidos de Privilégios Industriais do Ministério da Agricultura, Comercio e Obras Públicas, o relatório do invento que denominou “fotografias vivas”, além disso, anexou cópias de dois fragmentos de filmes. Salles tomou como assunto para sua filmagem um ancoradouro de pescadores, localizado na baía de Guanabara. “Essa cena, vem a ser o primeiro filme brasileiro, antecipando-se em mais de sete meses ao registro de Alfonso Segreto” (SOUZA, 1993, p. 172).

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Só em 1907, quando houve um fornecimento de energia elétrica produzida

industrialmente na cidade do Rio de Janeiro, é que floresce o comércio cinematográfico no

Brasil. O mercado brasileiro era visto, desde cedo, com interesse por parte dos centros

produtores de filmes estrangeiros. No início, a preferência nacional era por películas

italianas, mas logo as produções norte-americanas chegariam com força ao mercado

nacional sobrepondo-se pouco a pouco à concorrência.

A abertura contínua das salas de cinema no Rio, e logo em São Paulo, animou a

importação de filmes estrangeiros, e foi seguido de perto por um “promissor

desenvolvimento de uma produção cinematográfica brasileira. Um número abundante de

curtas-metragens de atualidades abriu caminho para numerosos filmes de ficção cada vez

mais longos” (GOMES, 1996, p. 9).

Quem compunha o quadro técnico, artístico e comercial do nascente cinema eram

estrangeiros, sobretudo italianos remanescentes do fluxo imigratório no final do século

XIX. Esclarece Gomes (1996) que a ausência de nativos engajados na feitura de filmes

provinha de um tempo recente em que “o trabalho com a mão era, quando mais simples,

obrigação de escravos, e, quando mais complexo, função de estrangeiro” (p. 10) e o cinema

era tido como difícil. Aos poucos foi ocorrendo a inserção de brasileiros nos processos de

filmagem, laboratório ou mesmo projeção, principalmente dos recentes fotógrafos de jornal

que aprenderam a manipular a câmera de filmagem. Em sua maioria, filmaram

acontecimentos sociais, políticos e cenas do cotidiano.

Juntaram-se a esses registros de cunho documental os filmes de ficção de gêneros

variados, alguns obtendo notável sucesso alcançando repetidas exibições nas salas de

cinema. O primeiro filme de ficção feito no Brasil, segundo Viany (1959) foi Os

estranguladores de Antônio Leal e foi baseado em um crime notório que ocorrera na

época.

O período de 1907 a 1911 ficou conhecido como a Bela Época do cinema brasileiro

(ou a Idade de Ouro) devido ao grande número de produções nacionais que provinham em

grande parte da iniciativa de donos de salas, que se tornam simultaneamente exibidores e

produtores (BERNARDET, 2008). Essa situação que articulava a um só tempo produção e

exibição, condicionou o cinema nacional a um virtuoso desenvolvimento durante o período

supracitado.

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Cabe notar que durante esse período a produção não estava restrita ao Rio de

Janeiro e São Paulo visto que outros Estados também já tinham os meios possíveis para

realizar a confecção de filmes, sendo eles, como cita Gomes (1977), Rio Grande do Sul,

Paraná, Minas Gerais, Amazônia e Bahia. Os gêneros dos filmes ficcionais, também

chamados de “filmes posados”, eram variados, predominando inicialmente os filmes de

reconstituição criminal. Outros temas que se destacaram nessa época foram os filmes

cantantes ou falantes2, os dramas históricos e patrióticos, as abordagens religiosas, como os

milagres dos santos e os temas carnavalescos e de comédia.

O declínio das produções por volta de 1911 marca o fim da Bela Época do cinema

brasileiro e o motivo que explica esse momento de crise pode ser justificado pela

transformação do cinema artesanal em importante indústria nos países mais adiantados.

Em troca do café que exportava, o Brasil importava até palito e era normal que importasse também o entretenimento fabricado nos grandes centros da Europa e da América do Norte. Em alguns meses o cinema brasileiro, em constante desenvolvimento, ficou inteiramente à disposição do filme estrangeiro. Inteiramente à margem e quase ignorado pelo público, subsistiu, contudo um debilíssimo cinema brasileiro (GOMES, 1996, p. 11)

Com a consolidação de um comércio cinematográfico internacional, o mercado

brasileiro se vê invadido por um contingente fílmico estrangeiro que era importado tanto

por empresas brasileiras como por subsidiárias de produtores europeus e norte-

americanos. O exibidor nacional, que por vezes era também o produtor, assume uma

posição passiva quanto à exibição dos filmes internacionais visto que não era exigido dele

nenhuma ação arriscada envolvendo a comercialização da obra. Ao chegar ao Brasil, por

ter sido exibido em outros locais, o filme já tinha definido seu público alvo e as salas mais

adequadas para serem veiculados.

Mas esse sistema de vigência dos filmes estrangeiros não se deu apenas por

motivos econômicos. Ressalta Bernardet (1979), que devido ao processo de colonização, as

informações culturais emitidas pelas metrópoles econômicas e/ou culturais e transportadas

para o Brasil não encontram aqui um terreno heterogêneo, ao contrário, “o próprio tecido

da formação cultural brasileira provém em grande parte destas metrópoles e permite a fácil

absorção dos produtos culturais metropolitanos” (p. 16).

2 O filme cantante brasileiro exigia que os artistas se escondessem atrás das telas e acompanhassem com a voz a movimentação das imagens (GOMES, 1996, p. 31)

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Com o fechamento do ciclo primitivo do cinema brasileiro os profissionais

envolvidos nas produções cinematográficas abandonam seus postos de trabalho e muitos

deles, retornam aos antigos ofícios na área jornalística e teatral.

Os que persistem no fazer cinematográfico encontram dificuldades para exibir suas

obras. Nos anos seguintes à Bela Época, os filmes posados foram raros e a continuidade do

cinema brasileiro é assegurada, sobretudo, pelo cinema documental.

2.2 Naturais, cinejornais e o cinema de cavação

Findado o expoente ciclo produtivo que perdurou até 1911, ainda que tenham

surgidos filmes brasileiros que foram considerados sucesso de bilheteria, como O guarani,

de Vittorio Capellaro, em 1916, a predominância no mercado cinematográfico nacional era

de filmes estrangeiros. Os europeus e norte-americanos superlotavam o país com suas

produções ficcionais, pois “a indústria vinha se desenvolvendo exclusivamente em função

do filme de enredo” (BERNARDET, 1979, p. 23). Não era de interesse dos produtores

internacionais assuntos de alcance local e foi devido a esse fator que se criou uma área

livre da concorrência estrangeira.

Desponta no cenário nacional a produção dos documentários – ou “naturais”, como

eram chamados na época, e dos cinejornais – ou atualidades – que eram, em geral,

programas noticiosos exibidos antes dos filmes de ficção e são esses filmes que irão

sustentar a produção brasileira assegurando uma regularidade, ainda que incipiente, frente

às produções estrangeiras, dos trabalhos realizados pelos produtores nacionais que ainda

insistiam no ofício. Os “naturais” e os cinejornais abordavam assuntos locais como:

O futebol, o carnaval, as quermesses, a melhoria das rodovias, as inaugurações, as vantagens de uma fazenda, ou de alguma fábrica quando os donos querem valorizar seu nome, uma figura política, alguns grandes acontecimentos políticos [...] sempre apresentados do ponto de vista de quem fica com o poder (senão a política ou o Estado Maior não autorizam a exibição) (BERNARDET, 1979, p.24)

Mas a exibição dos documentários e cinejornais não tinham um mercado nem

público específico que sustentasse e viabilizasse a produção desses gêneros

cinematográficos. O capital para tornar possível a confecção dos filmes não provinha do

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público nem dos produtores e por esse fator, o cenário cinematográfico documental se

tornaria dependente de uma prática denominada “cavação”, termo utilizado na década de

1920 para designar os filmes de encomenda que condicionava a produção cinematográfica,

em grande parte, a propagandas, feitos políticos e eclesiásticos e o ensino em pequenas

escolas de cinema (MIRANDA e RAMOS, 2000).

Para o historiador do cinema brasileiro Paulo Emílio Sales Gomes (1977), havia

aspectos que marcavam fortemente a feitura desses documentários, que iam desde as

primeiras filmagens em 1898 até 1930. Os temas que se afirmavam pelos registros,

giravam em torno da temática “berço esplêndido” – culto das belezas naturais do país, e do

“ritual do poder” – registros de aspectos políticos e sociais. Nesse “ritual” cabiam filmes

sobre fazendas, empresas, famílias onde exploravam o espaço da vaidade alheia através da

imagem cinematográfica, tratando-se, na maioria das vezes, da vaidade de ricos e

poderosos que podem bancar os custos envolvidos.

A respeito do tema “ritual do poder” os registros prediletos são os das visitas, viagens e chegadas de autoridades, cobrindo deslocamentos físicos e respectivas celebrações. No campo das cerimônias oficiais temos principalmente posses de eleitos, paradas e manobras militares, inaugurações, funerais, feiras e exposições (MIRANDA e RAMOS, 2000, p. 177).

Salienta Bernardet (1979) que a qualificação “ritual do poder” pode ser estendida a

filmes que não somente tratam de personalidades ou feitos políticos, mas também os que

abordam assuntos populares. O autor descreve o que ocorre no documentário A santa de

Coqueiros, de 1929, onde o cinegrafista registra a santa Manoelina fazendo curas no sertão

mineiro e a multidão de seus adeptos que são pessoas do povo. Mas nos registros consta

também que na oportunidade estavam presentes um jornalista que o ajudou no trabalho e

uma comissão de acadêmicos que tinha ido averiguar os milagres. “É bastante provável

que não haja aí nenhuma coincidência: o cinegrafista não foi por decisão própria procurar

Manoelina no sertão, foi acompanhando a comissão. [...] A aproximação desses assuntos

populares se dá através de atos da elite, a reboque dela” (p. 26).

Em torno do chamado cinema cavação surgiam polêmicas por considerar que tal

prática estava a serviço dos interesses de uma pequena classe abastada. A Cinearte,

importante revista de cinema da década de 1920, fundada por Adhemar Gonzaga e Mário

Behring, rechaçava os filmes cavados, por entender que estavam a serviço do poder

público ou de algum financiador, e exaltava o filme de ficção como sendo o único capaz de

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alavancar a indústria cinematográfica brasileira. Afirmava Gonzaga3 (apud BERNARDET,

1979, p. 27): “o meio sujo dos cavadores, piratas, imbecis, ignorantes de cinema e até

ladrões”. Era visto com desprezo, também, por Alex Viany (1959), um dos pioneiros dos

estudos sobre cinema brasileiro, ao ressaltar a existência de filmes publicitários ainda na

primeira década do século XX. Segundo o autor, “logo de inicio foram feitos dois filmes

publicitários, um para remédio, outro para água mineral. Um inimigo do cinema brasileiro

nasceu antes de nosso próprio cineminha (p. 28).

Eram mal vistos, sobretudo, por quem defendia os filmes ficcionais atribuindo

todos os problemas do cinema brasileiro aos cinegrafistas cavadores. Bernardet (1979)

ressalta que muitos defendiam que cinema era filme de ficção, com estrelas glamourizadas,

mas a realidade brasileira mais sólida eram os cinejornais e os naturais. O desprezo pelas

cavações não deixam de revelar a constatação de que o sustentáculo da produção local não

foram os filmes de ficção, mas os cinejornais e naturais pela facilidade em serem feitos e

por envolver menos custos nas suas produções.

Mesmo que a produção documental e a incipiente produção ficcional ainda tenham

resistido, a grande presença do filme estrangeiro no cenário nacional era uma realidade

inegável. À essa incômoda presença soma-se outro “novo ator”, como denominou

Bernardet (1979): a insurgência do Estado na posição de defesa das formas de produção

cinematográficas brasileira. Só no Estado os cineastas nacionais encontrariam o suporte

que lhes permitiria enfrentar a concorrência do cinema estrangeiro.

2.2.1 O Estado no cinema

O Brasil, desde o período pós Primeira Guerra Mundial, passara por um processo

intenso de ajustes ao capitalismo e ao seu ideal de desenvolvimento. As mudanças

ocorridas nos campos educacionais, culturais e políticos faziam parte desse processo de

reestruturação e os meios de comunicação de massa tiveram papel importante tanto para

quem defendia seu uso para fins educativos, como para quem adotava as práticas

comunicacionais pelo seu caráter mobilizador e propagandístico. A ótica adotada

principalmente pelo poder do Estado Novo, em um dado momento, e depois

continuadamente até ser sucedido pela televisão, incumbia ao rádio e ao cinema a tarefa de

contribuir com o processo civilizatório em curso.

3 Segundo Bernardet (1979) o próprio Adhemar Gonzaga passa a fazer naturais e cinejornais para sustentar a Cinédia, companhia cinematográfica fundada por ele em 1930

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O Estado Novo do presidente Getúlio Vargas que perdurou entre os anos de 1937 a

1945, em seu projeto de organização política e cultural, sempre contou com um grupo de

intelectuais que buscaram fundamentar e desenvolver uma ideologia que se destinasse a

difundir uma concepção de mundo para o conjunto da sociedade. (ORTIZ, 2006, p. 52)

A ligação do Ministério da Educação e Saúde, no governo de Getúlio Vargas, com

os intelectuais que pensavam um novo movimento cultural brasileiro, principalmente os

modernistas, se estendia à área de ação cultural do ministério e, mais particularmente, às

formas de ação orientadas para o grande público, ou seja, o rádio, o cinema e a música. O

cinema era visto como um instrumento privilegiado que teria o poder de influir

beneficamente sobre as massas populares, instruindo e orientando, instigando os belos

entusiasmos e ensinando as grandes atitudes e as nobres ações. Mas pode, também, agir

perniciosamente pela linguagem inconveniente, pela informação errada, pela sugestão

imoral ou impatriota, daí a necessidade de o Estado intervir no cinema com o objetivo de

fazer do meio de diversão, um aparelho de educação (SCHWARTZMAN, 1984, p. 87).

Em pronunciamento feito numa manifestação promovida pela Associação de

Produtores Cinematográficos, em 25 de junho de 1934, o presidente Getúlio Vargas

reforça:

o cinema será, assim, o livro de imagens luminosas, no qual as nossas populações praieiras e rurais aprenderão a amar o Brasil, acrescentando a confiança nos destinos da Pátria. Para a massa dos analfabetos, será essa a disciplina pedagógica mais perfeita, mais fácil e impressiva. Para os letrados, para os responsáveis pelo êxito da nossa administração, será uma admirável escola (VARGAS apud SCHVARZMAN, 2004, p. 135).

Lembra Simis (1996) que as iniciativas oficiais em prol da utilização do cinema,

reconheciam as vantagens que poderia trazer para o aprendizado, especialmente tendo-se

em conta que grande parte da população era analfabeta – 12.2 milhões em 1900 ou 85% da

população.

A consolidação de uma política de comunicação que não poderia deixar de lado o

cinema nem a produção de imagens que fossem capazes de uma integração nacional é

confirmada com a criação do INCE - Instituto Nacional de Cinema Educativo, em 1936,

pelo presidente Vargas, tendo como mentor principal Gustavo Capanema, então ministro

da Educação e Saúde entre os anos de 1934 a 1945. O surgimento do INCE está dentro de

uma conjuntura de iniciativas do governo que visavam a definição de uma unidade do

pensamento nacional para a população do Brasil. Embora já estivesse funcionando desde

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1936, somente em 13 de janeiro de 1937, o INCE começou a existir oficialmente, com a

publicação da Lei 378, no seu Artigo 40, que dizia: “Fica criado o Instituto Nacional de

Cinema Educativo, destinado a promover e orientar a utilização da cinematografia,

especialmente como processo auxiliar do ensino, e ainda como meio de educação popular

em geral”.

Outras iniciativas, como a criação do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional, a criação de uma grande escultura, assinada por Antônio Celso

intitulada “Homem Brasileiro” que deveria ficar nos jardins do Ministério, o Museu de

Belas Artes, os painéis de Cândido Portinari com desenhos dos ciclos econômicos da

evolução história do país (SCHVARZMAN, 2004, p. 133) fazem parte do legado do

ministério de Gustavo Capanema, como parte de ações para a construção da memória de

uma nação com suas singularidades e projeções.

Apesar de o Instituto Nacional de Cinema Educativo ter sido criado em 1937, com

o apoio do presidente Getúlio Vargas e do ministro Gustavo Capanema, Catelli (2007)

aponta que as concepções que deram origem à criação de um cinema educativo no Brasil,

não estavam associadas exclusivamente ao cenário ideológico do Estado Novo. O debate

de uso do cinema na educação já ocorria desde o final do século XIX, em vários países, e

desde o início do século XX no cenário brasileiro.

Vale lembrar que a utilização do cinema como veículo de educação não era uma

particularidade brasileira. O Brasil manteve vínculos com os institutos de cinema educativo

na Alemanha e Itália, “mas também teve intensos contatos com o cinema educativo francês

e com a experiência de uso do cinema nas escolas e nas universidades dos Estados Unidos”

(CATELLI, 2007, p. 4).

Embora algumas abordagens ligando a questão educacional e cinematográfica já

tivessem ocorrido anteriormente4, destacam-se frente ao cenário nacional as iniciativas de

Fernando de Azevedo, então diretor da Instrução Pública no antigo Distrito Federal,

quando este assina o decreto 2.940 em 22 de novembro de 1928, ressaltando o uso do

cinema para fins educativos. Ficou assim instituído:

As escolas de ensino primário, normal, doméstico e profissional, quando funcionarem em edifícios próprios, terão salas destinadas à instalação de

4 Para saber mais sobre as ações evolvendo o cinema e a educação antes da criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo – INCE, consultar CATELLI, Rosana Elisa. Dos "Naturais" ao documentário: o cinema educativo e a educação do cinema, entre os anos de 1920 e 1930. Tese de doutorado em Multimeios – Universidade Estadual de Campinas – Campinas, SP: 2007.

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aparelhos de projeção fixa e animada para fins meramente educativos; o cinema será utilizado exclusivamente como instrumento de educação e como auxiliar do ensino que facilite a ação do mestre sem substituí-lo; o cinema será utilizado, sobretudo para ensino científico, geográfico, histórico e artístico; a projeção animada será aproveitada como aparelho de vulgarização e demonstração de conhecimentos, nos cursos populares noturnos e nos cursos de conferências; a Diretoria Geral de Instrução Pública orientará e procurará desenvolver por todas as formas, e mediante a ação direta dos inspetores escolares, o movimento em favor do cinema educativo. (SERRANO & VENÂNCIO FILHO apud BRUZZO, 2004, p. 162).

Nos anos seguintes surgiram outras ações dos educadores tendo como foco o

cinema educativo como, por exemplo, a realização em 1929 da Primeira Exposição de

Cinematografia Educativa do Rio de Janeiro. Em 1930 ocorre o lançamento público de

Cinema e Educação, livro escrito pelos professores Jonathas Serrano e Francisco Venâncio

Filho. Em 1931 é publicado Cinema contra cinema, do promotor público Joaquim Canuto

Mendes de Almeida e a revista Escola Nova, órgão da Diretoria Geral do Ensino de São

Paulo, que dedica um número especial ao cinema educativo. Entre os dias 20 e 28 de julho

de 1931, Venâncio Filho encarrega-se do fornecimento de aparelhos de projeção para as

escolas públicas paulistas, promovendo a Exposição Preparatória do Cinema Educativo. Já

Anísio Teixeira cria no Rio de Janeiro, em 1933, a Divisão de Bibliotecas e Cinema

Educativo do Distrito Federal, incumbida do fornecimento de filmes para as escolas

públicas (BRUZZO, 2004).

Para Catelli (2007), a união entre educadores e os “homens de cinema5” foi

interessante para o cinema nacional, na medida em que não só por fomentava a produção

de filmes brasileiros, mas, sobretudo, porque contribuía para uma “domesticação” do

cinema nacional, em especial do cinema documentário. O cinema educativo cumpria,

assim, um papel de padronização das formas de se fazer o filme “natural” que era

produzido sem controle, por amadores e ou estrangeiros.

O cinema educativo, na perspectiva da história do cinema tal como era vista no período, daria conta de fazer o cinema nacional passar para uma nova etapa na “escala evolutiva” do cinema mundial. Nesse processo educativo poderíamos dizer que a produção nacional passaria do filme “natural” para o estágio do documentário (p.5).

5 O que Catelli (2007) chama de “homens de Cinema” são todos aqueles que se dedicavam a atividade e a crítica cinematográfica do período. Tal denominação se deve ao fato de se tratar de um grupo heterogêneo, sem uma formação profissional específica

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Segundo Schavarzman (2004), a questão do uso educativo do cinema no Brasil

desde o final dos anos 20 está ancorada na crença de que “o cinema é um artifício, uma

‘arma’ moderna, portadora e transmissora da modernidade” (p. 18) e o presidente Getúlio

Vargas era favorável também a esta idéia, além de considerá-lo como o lugar de contato

entre os brasileiros que poderiam se conhecer, reconhecer, ver-se, apesar das diversidades,

como um povo uno.

A evocação do real pelas imagens despertava o interesse dos educadores e por isso

viam a potencialidade deste meio, para a integração popular nas idéias nacionalistas que

estavam sendo propagadas. Mas as discussões em torno da nacionalidade do ensino só

ganhariam força, de fato, no período de governo brasileiro conhecido como Estado Novo.

A formação da nacionalidade era entendida como algo que dependia da construção de

certas práticas disciplinares de vida que, pouco a pouco, fossem introjetando no cotidiano

das pessoas a consciência da vida comum, a consciência cívica e uma educação pautada

nos ideais morais e cívicos transpareciam a necessidade da construção da nacionalidade

atravessada por atividades de cunho pedagógico (SCHWARTZMAN, 1984). Foram estes

debates em torno da utilização do cinema na educação e como instrumento para uma

formação de consciência nacional que acabaram culminando na criação do INCE.

O ministro Capanema escolhe para direção do Instituto Nacional de Cinema

Educativo Edgar Roquette-Pinto permanecendo até 1948. Roquette-Pinto já tinha certo

prestígio político quando foi escolhido para dirigir o INCE. Era médico e conhecedor não

só da fisiologia, mas também da antropologia e etnografia. Foi diretor do Museu Nacional

no Rio de Janeiro onde cria uma Filmoteca Científica para emprestar gratuitamente os

filmes e o salão para quem tivesse interesse e divulgar produções científicas, inclusive um

filme produzido por ele próprio sobre os índios Nambiquaras da região norte do Brasil,

quando participou da expedição Rondom. Durante esta expedição, Roquette-Pinto já

observava a importância do telégrafo, não apenas como forma de comunicação, como

também para proteger e circunscrever o território nacional. É dessa forma que se torna um

dos pioneiros na implantação do rádio no Brasil. Segundo Schvarzman (2004), ele

acreditava que mais que progresso técnico e atividade comercial, o rádio era veículo de

cultura e contato entre os brasileiros e já em 1926 falava de como este meio de

comunicação poderia sanar os principais problemas brasileiros com a criação das rádio-

escolas.

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Roquette-Pinto precisava de alguém que traduzisse em imagens suas idéias. Coube

a Humberto Mauro integrar o Instituto de Cinema Educativo como chefe dos serviços

técnicos. Aponta Schvarzman (2004) que Mauro já tinha produzido filmes desde 1925,

tendo sempre o Brasil como temática para suas obras e por isso foi considerado por muitos

como o mais brasileiro dos cineastas no país. Fez parte nos anos 20 do Ciclo Regional de

Cataguases em Minas Gerais e na Cinédia, companhia cinematográfica idealizada por

Adhemar Gonzaga onde dirigiu seu filme mais conhecido, Ganga Bruta, que foi finalizado

em 1933. Entre os anos de 1936 e 1967, Mauro realizou mais de trezentos filmes do INCE.

Os cineastas envolvidos na formulação do cinema educativo tinham, segundo eles,

a preocupação de formar um cinema verdadeiramente nacional, por isso deveriam

transportar para a tela imagens do Brasil. Humberto Mauro, principal documentarista do

INCE, considerava que os brasileiros desconheciam seu próprio país e que através do

cinema seria possível conhecer a nós mesmos, nossos costumes, riquezas e possibilidades

econômicas das diferentes regiões. Para Mauro, o filme brasileiro deveria transportar para

a tela o ambiente brasileiro. Deveria disseminar por todo o país o que somos e os

fundamentos da nossa nacionalidade. (VIANY apud CATELLI, 2007, p. 10).

A produção do INCE dividiu-se como aponta Simis (1996) em:

filmes escolares, de 16mm, silenciosos e sonoros, destinados a circular em escolas e institutos de cultura, e filmes populares, sonoros, de 35 mm, encaminhados para o circuito das casas de exibição pública de todo o país, ora reproduzindo títulos da literatura brasileira, (...) ora evocando episódios da história. (...) Até 1941, já haviam sido editados cerca de duzentos filmes que foram distribuídos não apenas nas escolas, mas também em centros operários, agremiações esportivas e sociedades culturais (p. 35).

Todo processo de feitura dos filmes poderia ser realizado no próprio Instituto –

desde a revelação, montagem, sonorização, copiagem e filmagem - isso fez com que o

INCE servisse de escola para os realizadores das obras cinematográficas. Além disso,

promoveu uma integração dos cineastas que faziam filmes de cunho educativo por todo

país. E a Bahia não ficaria fora desse contexto.

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2.2 Cinema em terras da Bahia

Paulo Emilio Sales Gomes, crítico e historiador do cinema brasileiro escreveu, em

1962, um artigo intitulado “Perfis baianos” publicado no jornal O Estado de São Paulo.

Nas palavras de Gomes (1981):

na conjuntura salvadoriana a expressão “cinema baiano” é ampla e envolve, num só movimento, cultura, crítica e produção cinematográfica. Essa situação dá aos acontecimentos da Bahia uma singularidade que provoca o interesse, conquista a cumplicidade e acaba mergulhando o observador numa tensa esperança. No quadro geral do grande cinema brasileiro que certamente irá eclodir na década que vivemos, a participação baiana será eminente, e os estudiosos irão um dia pesquisar o seu nascimento (p.401).

E os primeiros movimentos cinematográficos na Bahia têm sua data de nascimento

marcada pela primeira exibição: um filme de curta duração trazido do exterior por Dionísio

Costa foi projetado no teatro Politeama, em Salvador, no dia 4 de dezembro de 1897,

embora a primeira sala permanente de cinema na cidade seja datada de 1909.

Segundo Setaro (1976), essa informação das primeiras exibições na Bahia estão no

livro Os cinemas da Bahia: 1897-1918, de Sílio Boccanera Junior, o primeiro escrito no

Brasil sobre assunto de cinema, no qual revela que os baianos já tomam conhecimento das

imagens em movimento desde o final do século XIX, logo depois da descoberta do

cinematógrafo e de sua exibição pública que aconteceu em Paris. Nas páginas iniciais de

seu livro, Boccanera (2007) explicita que o objetivo dos escritos é fazer uma resenha

histórica dos cinemas da Bahia, desde o primeiro inaugurado, destacando que o trabalho

foi fruto de um trabalho de investigação oral e documentada “para com o reconhecimento

único da consciência, sacrificando horas de repouso do corpo, ou de íntima expansão do

espírito, em lazer, deixarmos registrados em um livro [...] fatos de maior ou menor monta”

(p. 25).

Dois dias antes da estréia oficial no Politeama, ocorreu uma sessão especial para

imprensa que foi relatada nas primeiras páginas do Diário de Notícias:

O cinematógrafo, que produz os efeitos, geralmente conhecidos, das lanternas mágicas, tem sobre estas a grande novidade e aperfeiçoamento de serem fotografias ou desenhos projetados que reproduzem cenas da vida, representadas como se os seus personagens fossem pessoas vivas e em movimento. Assim tivemos ontem ocasião de apreciar, entre outras cenas, o desfilar de um esquadrão de cavalaria, destacando-se nitidamente

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todos os movimentos dos cavalos com os pés e caudas, etc., cujo efeito ótico era perfeito (SILVEIRA, 2006, p. 125).

O pioneirismo baiano sobre os escritos de cinema também envolvia uma revista

semanal dedicada a assuntos cinematográficos. Segundo Silveira (2006), os editores

Fonseca & Filho lançam em 12 de outubro de 1920 a Artes e Artistas persistindo na

publicação até abril de 1922, quando é lançado seu último número. Foram editadas setenta

e oito revistas que “refletiam uma encantadora ingenuidade provinciana, mas já é um

esboço de avaliação cultural que se anuncia: desde a abertura se fala em educação

cinematográfica” (p. 124)

As exibições que ocorriam no Politeama não iriam perdurar por muito tempo visto

que, passado o interesse inicial pelas imagens animadas, o projetor é retirado voltando o

espaço a funcionar com exibição de peças teatrais. Afirma Setaro (1976) que as ações que

se desdobraram depois partiram de Nicolas Parente, que instala numa casa, na Rua Carlos

Gomes, um outro projetor, no entanto, as exibições eram esporádicas e não existia uma

sala adequada para acomodar os espectadores. Dessa forma, entre 1897 a 1909 não se pode

falar em instalações permanentes voltadas para o cinema, o que havia eram projeções

ambulantes e ocasionais, até que em 1909 é inaugurado o Cinema Bahia, localizado na rua

Chile e, com isso, o registro de uma sala especialmente dedicada à projeção de filmes.

Como aponta Gusmão (2007), essa bem sucedida experiência do Cine Bahia,

despertou o interesse de comerciantes que, estimulados pelas possibilidades do novo

negócio, investiam nas exibições cinematográficas, noticiando a nova opção de diversão,

atraindo os soteropolitanos a assistirem com maior freqüência às fitas das mais diversas

fábricas, principalmente as européias “muito embora, até então, dos vinte e seis cinemas

que se instalaram em Salvador nesse período, nenhum tivesse a princípio funcionado

diariamente, inclusive o Cine Bahia” (p. 196).

No entanto, não se tinha registros de produções fílmicas realizadas no Estado. As

salas concentravam-se na exibição de filmes estrangeiros que dominavam os circuitos

mundiais. Tudo indica que o mérito de serem os primeiros realizadores cinematográficos

da província cabe a Diomedes Gramacho e José Dias da Costa. Em 1910 foram exibidos

Segunda-feira do Bonfim e Regatas da Bahia filmes realizados por esses precursores que

tinham aprendido a técnica com o alemão Lindemann, dono da Photo Lindemann, atelier

para confeccionar filmes nacionais (SILVEIRA, 2006).

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Anos depois os dois cineastas baianos tornam-se proprietários da empresa, mas não

tinham muitos fregueses, o principal era o Teatro São Paulo, cujos freqüentadores

admiravam os cines jornais produzidos. Outros documentários foram produzidos pela

Lindemann, sendo eles Exploração da borracha na Bahia, Carnaval na Bahia 1911, N.S.

dos Navegantes e Festa da bandeira.

Embora, anos mais tarde, surgisse a Nelima Film. como possível concorrência para

a Photo Lindemann, as produções mais substanciais ainda caberiam a Gramacho e Da

Costa, os primeiros no registro de imagens na Bahia. Com algumas tentativas frustradas de

filmar um longa metragem de ficção, o maior êxito da Nelima, nota Silveira (2006), foi

uma reportagem sobre o time de futebol do América da Bahia.

Informa Setaro (1976) que tomando conhecimento das atividades de Diomedes

Gramacho, o coronel Rubem Pinheiro Guimarães, encomenda-lhe cinejornais com o

registro dos fatos importantes que acontecem em Salvador. “O coronel tinha o hábito de

reunir os amigos, em sua casa na Rua Chile, para passar os filmes de Gramacho. Neste

particular, poder-se-ia dizer que Rubem Pinheiro Guimarães é o primeiro produtor

cinematográfico da Bahia” (p. 5).

Os aspectos da fisionomia da cidade e os costumes baianos, a tradição das festas

populares e a transformação do urbanismo não foram salvaguardados pelo registro da

película. Silveira (1978) salienta uma entrevista do próprio Gramacho onde conta o destino

das obras: a Photo Lindemann perdera os arquivos em conseqüência de uma penhora e os

filmes ele jogara ao mar em 1920, desesperado por conta de um incêndio ocorrido no

atelier devido o celulóide, material inflamável de que eram feitas as películas.

O fato das películas possuírem um caráter de fácil combustão, o que chegou a

provocar catástrofes em vários cinemas, causava temor nos produtores dos filmes. Por isso

era comum que películas fossem descartadas por ainda não se ter desenvolvida uma técnica

adequada de armazenamentos. Os acidentes que vinham ocorrendo em Salvador inspiraram

os conselheiros municipais a propor que o Intendente não permitisse o funcionamento de

nenhum cinematógrafo na cidade sem que fossem observadas com rigor as condições de

garantia para a vida. As portas teriam que ficar abertas durante as sessões, apenas com

leves reposteiros sendo expressamente proibida a entrada de explosivos e inflamáveis,

havendo pena de prisão e multa para quem praticasse a infração (SILVEIRA, p. 15, 1978).

Sem a preservação das obras realizadas por Diomedes Gramacho e José Dias da

Costa, destaca-se no cinema baiano, nas primeiras décadas do século XX, o documentarista

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Alexandre Robatto Filho que produziu por mais de quatro décadas, registros videográficos

de festejos, eventos políticos e sociais importantes, costumes que deixavam transparecer a

Bahia em suas nuances.

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3. Da poesia ao cinema: as diferentes formas de apreensão da memória 3.1 Oralidade e escrita A crescente preocupação com os estudos acerca da memória desde o final do

século XIX, com os trabalhos de Bergson na filosofia, Freud na psicanálise, Proust na

literatura e Ebbinghaus na psicologia, (SMOLKA, 2000) põe novamente no centro da

discussão um assunto que já interessava aos gregos antigos.

Na Grécia antiga, a deusa Mnemosyne representava a memória, era a mãe das

musas e das divindades que inspiravam a imaginação dos poetas. Conforme Smolka

(2000), inspirado pela musa, o aedo cria, repete, recita, compõe palavras em ritmos, sendo,

portanto uma memorização da tradição poetizada que depende da recitação constante e

reiterada. O poeta é suporte e mestre da verdade, resgata o acontecido do esquecimento e

presentifica o passado. No entanto, as formas de conhecimento através do desenvolvimento

das habilidades de escrita vão sendo difundidas, “na tensão entre o restrito acesso e

insipientes condições, e o lento movimento de expansão da alfabetização e a

universalização das letras” (p. 173).

Para Havelock (1996) provavelmente, na história da palavra grega, o texto mais

antigo seja atribuído ao poeta Hesíodo onde se é possível observar nos seus versos uma

capacidade em reter uma consciência viva da oralidade que precedeu a escrita do seu texto,

sendo possível reconhecer a função de preservar uma memória viva. A forma composta

pelo poeta “significa o exercício da memória como uma atividade, isto é, recordação ou

evocação” (p. 97). A função comemorada pelo poeta fez alcançar um reconhecimento mais

explicito numa época em que o extenso uso do alfabeto produzia um meio de recordação

rival que competia com o oral. Ao descrever os grammatas, que são “inscrições”, isto é,

letras escritas, o autor coloca:

Nestes é agora preservada a memória armazenada. Foi transferida da custódia da linguagem oral para a sua guarda e tornou-se abertamente reconhecível como uma “memória” precisamente porque as letras, como artefatos, objetivaram a memória, tornando-a visível. (HAVELOCK, 1996b, p. 98)

Embora sistema de escrita, como a dos fenícios, que precedeu o sistema grego e do

qual o grego emprestou muitas de suas letras, fosse uma realidade entre os povos antigos,

é, em geral, identificado como alfabeto, para Havelock (1996a, p. 65), o sistema de signos

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linguísticos inventado na Grécia depois de 700 a.C. O alfabeto grego converteu a língua

falada num artefato visível onde se poderia pensar em preservação. Deste modo, separou a

língua falada do locutor, tornando-a “linguagem”, isto é, “um objeto disponível para

inspeção, reflexão, análise” (p. 16).

Ainda segundo o autor, mesmo que a transcrição de testemunhos orais tenha sido o

primeiro uso que se deu ao alfabeto, o que efetivamente este sistema linguístico trouxe a

lume foi a prosa registrada e preservada em quantidade. Na Grécia sem escrita e nas

culturas pré-gregas onde só os peritos-letrados dominavam a escrita, as condições de

preservação eram mnemônicas, envolvendo o uso de ritmo verbal e musical. “O alfabeto,

tornando disponível um registro visual completo, em lugar de um registro acústico, aboliu

a necessidade de memorização, e, por conseguinte a de ritmo” (idid, p. 85).

Observa Smolka (2000) que para os gregos a poesia tinha um poder de sustentar, de

controlar, de certa forma, a cultura, a tradição. Mas se a tradição deveria ser praticada,

permanecer estável e ser lembrada por todos, precisava, então, corresponder às

possibilidades de memorização das pessoas comuns, e não apenas das mais bem dotadas.

Estava na memória rítmica “a maneira mais direta de imitação, de memorização, de

sustentação da tradição” (p. 169).

Por memorização, Ricoeur (2007) entende como uma “modalidade do ato de fazer

memória que se dá como prática por excelência” (p. 73). Para este autor a memorização

consiste em maneiras de aprender que pressupõem saberes e habilidades, de tal modo que

estes sejam fixados e permaneçam disponíveis.

Os vestígios remotos deixados pelos gregos remontam uma arte da memória que

buscava a memorização por meio de uma técnica de imprimir lugares e imagens na

memória – mnemotécnica. Na ausência da imprensa e de uma efetiva circulação do texto

escrito, treinar a memória era essencial.

Frances Yates (2007), lembra que esta arte da memória, como as outras artes

gregas, foi transmitida a Roma, de onde passou para a tradição européia. Esta arte

pertencia à retórica “como uma técnica que permitia ao orador aprimorar sua memória, o

que o capacitava a tecer longos discursos com precisão impecável” (p. 18), e foi graças à

retórica, que a arte da memória sobreviveu no tempo. A memória era treinada, sobretudo

na formação de lugares na memória, sendo o tipo mais comum de sistema mnemônico de

lugares aquele que refletia a arquitetura e a arte do mundo antigo.

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Segundo esta autora, o princípio dessa arte, legado da civilização greco-romana,

pressupunha dois tipos de memória: uma natural – inserida em nossas mentes que teria sua

origem ao mesmo tempo que o pensamento – e outra artificial – seria aquela reforçada e

consolidada pelo bom treinamento (YATES, 2007, p.21). Uma boa memória natural pode

ser aprimorada por esse treinamento fazendo com que pessoas detentoras de uma fraca

memória pudessem melhorar sua condição através do uso da tal arte.

A memória artificial se fundamentaria em lugares e imagens, sendo o locus um

lugar facilmente apreendido pela memória e as imagens seriam as formas, signos

distintivos, símbolos daquilo que queremos nos lembrar. Lembrar de muita coisa é também

prover um grande número de lugares e por isso seria preciso colocar tais imagens em

devidos lugares (loci). A importância da formação dos loci se dá pelos rearranjos que se

pode fazer pelos usos atribuídos de formas indistintas para lembrar coisas variadas. Seria,

portanto, a arte da memória uma escrita interior.

Os que conhecem as letras do alfabeto podem escrever o que lhes é ditado e ler o que escreveram. Do mesmo modo, aqueles que aprenderam a mnemônica podem colocar em lugares específicos aquilo que ouviram e falar de memória. Porque os lugares são como tábuas de cera ou como papiros, as imagens são como letras, o arranjo e a disposição das imagens são como a escrita, e o fato de pronunciar é como a leitura. (YATES, 2007, p. 23)

Atribui-se ao poeta Simônides de Ceos a invenção de uma arte da memória que

inferiu a necessidade de um treinamento da faculdade mnemônica baseado

primordialmente na seleção de lugares e na formação de imagens mentais do que se quer

lembrar. No entanto, a importância de Simônides não pode ser atribuída somente pela

invenção de uma mnemotécnica, mas também na afirmação de que o sentido da visão é o

mais forte de todos os sentidos para a memória. Ele percebeu que as imagens das coisas

que melhor se fixam na mente são aquelas que foram transmitidas pelos sentidos e de todos

os sentidos, a visão é o mais sutil, consequentemente, as percepções ouvidas ou concebidas

pelo pensamento podem ser bem mais retidas se também forem transmitidas à mente por

meio dos olhos (CÍCERO apud YATES, p. 20).

No Fedro, diálogo atribuído a Platão, é possível observar a desconfiança do filósofo

com a inflação da escrita, vista como uma verdadeira revolução cultural. Lembra Gagnebin

(1997, p.52) que se a escrita já tem direito de cidadania e, em particular, é força de lei na

Atenas do século IV, o verdadeiro logos político, no entanto, continua sendo a palavra oral,

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cultivada nas escolas de retórica e disputada na assembléia dos cidadãos. Porém, é

crescente a importância do texto escrito graças a uma difusão cada vez mais ampla do

livro.

Platão critica, na escrita, seu caráter de imagem por estar próximo demais da

pintura, “dessa "zoo-grafia" que pretende (d)escrever o vivo, mas que só é cópia morta sob

a ilusão de vida, simulacro” (GAGNEBIN, 1997, p. 55). A desconfiança de Platão com a

escrita não diz tanto respeito à escrita enquanto técnica. A autora reforça que:

pelo contrário, ele empresta a esta última numerosas comparações, amparando-se no "paradigma gramatical" das combinações entre letras e palavras para descrever melhor a tarefa analítica do método dialético. As resistências de Platão são de outra ordem: remetem aos deslocamentos socioculturais que a difusão do texto escrito provoca em relação à tradição e à memória coletivas (GAGNEBIN, 1997, p. 53).

Antes o poeta era o detentor de uma memória que permitia a um povo inteiro se

construir e se assegurar numa identidade. Segundo Platão, citado por Gagnebin (2007, p.

53), a transferência cada vez maior da função mnêmica ao escrito acarreta,

simultaneamente, sua democratização e sua dessacralização, isto é, a banalização até a

perversão da atividade do lembrar.

Embora as técnicas mnemônicas fizessem parte da realidade grego-romana, não

foram tais procedimentos os únicos movimentos em torno da memória quando pensamos

em sociedades em que a escrita ainda não figurava como expoente documental. As

primeiras tentativas no intuito de cristalizar a memória coletiva desses povos estão ligadas

aos mitos de origem que serviam para registrar a existência dos chamados homens-

memória, considerados a memória da sociedade, responsáveis por manter a coesão dos

grupos dos quais faziam parte. Contrariamente ao que em geral se crê, “a memória

transmitida pela aprendizagem nas sociedades sem escrita não é uma memória ‘palavra por

palavra’” (LE GOFF, 1994, p. 429).

Longe de ser uma aprendizagem automática, observa o autor, o que se visava não

era uma memorização mecânica, a memória funcionava, desse modo, muito mais segundo

uma lógica regenerativa, o que possibilitava mais liberdade e criatividade. Prevalecia uma

vontade em manter viva uma memória mais criadora que repetitiva.

Assim, a passagem da oralidade para a escrita é fator determinante de uma profunda

transformação da memória coletiva, ou seja:

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A utilização de uma linguagem falada, depois escrita, é de fato uma extensão fundamental das possibilidades de armazenamento da nossa memória que, graças a isso, pode sair dos limites físicos do nosso corpo para estar interposta quer, nos outros quer nas bibliotecas (ATLAN apud LE GOFF, 1994, p. 425).

A escrita permitiu duas formas de memória, remonta Le Goff (1994). A primeira é

a comemoração, a celebração através de um monumento comemorativo de um

acontecimento que se entende memorável, suscitando a memória a assumir a forma de

inscrição. As inscrições comemorativas, posteriormente, deram lugar à profusão de

monumentos como as estelas e obeliscos (ibid., p.431). Era um esforço extraordinário de

comemoração e de fazer perdurar a lembrança tendo como suporte a durabilidade e a

ostentação da pedra e do mármore acrescentando à função de arquivo um caráter de

publicidade insistente, uma vez que o monumento pressupunha uma exibição em forma de

comemoração.

A criação de um suporte especialmente destinado à escrita marca a outra forma de

memória que só foi possível graças à grafia (ibid., p. 432). As funções principais que

derivam do documento escrito referem-se ao fato de que ele pode proporcionar o

armazenamento de informações, permitindo a comunicação através do tempo e do espaço,

como também assegurou a passagem da esfera auditiva à visual possibilitando rearranjos e

reordenações.

Santos (2003) afirma que o fim da tradição oral e o surgimento da escrita apontam

para a perda de transmissão de conhecimento e valores entre gerações. Para a autora a

memória enquanto aprendizado se perde no mundo da informação. Essa memória “que é

transmitida por textos, objetos, pedras, edifícios e máquinas, embora dê a impressão de

preservar o passado em sua totalidade, reproduz apenas parte do que foi vivenciado

anteriormente” (p. 19).

O surgimento da imprensa revoluciona a memória, sobretudo quando atrelada aos

tratados científicos e técnicos que foram produzidos graças às técnicas de impressão

acelerando e alargando, assim, a memorização do saber. Mas também é deste período, que

separa o fim da Idade Média, os primórdios da imprensa e o começo do século XVIII onde

se situa um declínio da arte da memória (LE GOFF, 1994, p. 457).

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3.2 Memória e arquivo Conforme suscita Le Goff (1994), a partir de meados do século XIX emerge na

Europa uma nova civilização da inscrição, a exemplo – monumentos, placas de paredes e

comemorativas, comércios de souvenirs fomentado pelo turismo. “Ao mesmo tempo,

acelerava-se um movimento científico destinado a fornecer à memória coletiva das nações

os monumentos de lembrança” (p. 464). Surgiam em números significativos os arquivos

nacionais, os depósitos de arquivos, os museus públicos e as bibliotecas.

Tanto nas sociedades cuja memória é, sobretudo, oral, como nas que já

incorporaram a escrita, empreende-se uma luta da dominação da recordação e da tradição.

O ponto focal de uma política da memória pode ser atrelado às práticas realizadas

pelo reis, na Antiguidade, que se desdobravam em um programa de memorização, o tendo

como centro sobre toda extensão na qual tinha autoridade. Criam, assim, instituições-

memória como arquivos, bibliotecas, museus encorpando uma memória real, fazendo

perdurar no tempo principalmente os grandes feitos (LE GOFF, p. 434).

Nas sociedades desenvolvidas, os novos arquivos (arquivos orais e audiovisuais) não escaparam à vigilância dos governantes, mesmo se podem controlar essa memória tão estreitamente como os novos utensílios de produção dessa memória, nomeadamente a do rádio e da televisão (LE GOFF, 1994, p, 477).

Partilhando desta mesma idéia, ressalta Peralta (2007) que houve uma emergência

de estudos que se concentraram na instrumentalização da memória por parte de diferentes

regimes políticos, principalmente através dos meios de comunicação, do sistema de ensino,

dos monumentos e dos museus, celebrações e rituais públicos. Este enfoque na dimensão

política da memória, que também pode receber outras designações como teoria das

políticas da memória ou teoria da invenção das tradições, assume que “as imagens do

passado são estrategicamente inventadas e manipuladas por setores dominantes da

sociedade para servir as suas próprias necessidades do presente” (p. 8). Por essa

perspectiva, procura-se analisar quem controla ou impõe o conteúdo da memória e de que

forma essa memória socialmente imposta serve os propósitos atuais dos poderes

instituídos.

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Sobre a criação de inscrições onde se ancora a memória, afirma Ricoeur (2007): “o

momento do arquivo é o momento do ingresso na escrita da operação historiográfica” (p.

176), e o que é escutado ou ouvido é testemunho, sendo este originalmente oral. O arquivo

é escrita, que por sua vez pode ser lida e consultada. O arquivo apresenta-se, assim, “como

um lugar físico que abriga o destino dessa espécie de rastro que cuidadosamente

distinguimos do rastro cerebral e do rastro afetivo, a saber, o rastro documental” (p. 177).

Para o autor, como toda escrita, um documento de arquivo está aberto a quem quer

que saiba ler; ele não tem, portanto, um destinatário designado, diferentemente do

testemunho oral, dirigido a um interlocutor preciso.

Se os testemunhos orais apenas se constituem em documentos depois de gravados,

registrados, então a passagem da esfera oral para escrita provoca o distanciamento do que

comumente se pensa como testemunho. Conforme o autor, é possível, dessa forma, falar

em memória arquivada, documentada e seu objeto deixou de ser uma lembrança, ou seja,

algo retido numa relação de continuidade e de apropriação com respeito a um presente de

consciência.

Se os escritos constituem a porção principal dos depósitos de arquivos, e se entre os

escritos os testemunhos das pessoas do passado constituem o primeiro núcleo, todos os

tipos de rastros possuem a vocação de ser arquivados.

Para um historiador, tudo pode tornar-se documento, obviamente, os cacos das escavações arqueológicas e outros vestígios, mas, de modo mais marcante, as informações tão diversas como tabela e curva de preços, registros paroquiais, testamentos, bancos de dados estatísticos, etc. torna-se assim documentos tudo o que pode ser interrogado por um historiador com a idéia de nele encontrar uma informação sobre o passado. (RICOEUR, 2007, p. 189).

A idéia suscitada por Ricoeur de um alargamento do que se poderia considerar

documento, possivelmente, coaduna-se com os postulados dos pensadores da chamada

História Nova, “corrente histórica que subverte não só o domínio tradicional da história,

mas também o das novas ciências humanas (ou sociais), e inclusive, sem dúvida, todo o

campo do saber” (LE GOFF, 1988, p. 16).

A História Nova se afirma como história global, total, e reivindica a renovação de

todo o campo da história. Essa é associada à chamada École des Annales, na França,

agrupada em torno da revista Annales: économies, societés, civilisations. Para muitos, diz o

autor, a Nova História está atrelada a Lucien Febvre e a Marc Bloch, que fundaram a

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revista Annales, em 1929, para divulgar sua abordagem, e na geração seguinte, a Fernand

Braudel (BURKE, 1992, p. 17).

A História Nova defende uma história baseada numa multiplicidade de

documentos, ou seja:

escritos de todos os tipos, documentos figurados, produtos de escavações arqueológicas, documentos orais, etc. Uma estatística, uma curva de preços, uma fotografia, um filme, ou, para um passado mais distante, um pólen fóssil, uma ferramenta, um ex-voto, são para história nova, documentos de primeira ordem. (LE GOFF, 1988, p. 28).

Se antes a concepção do que se poderia chamar documento referia-se, sobretudo, ao

que se estava escrito, agora seu conteúdo era revisto e ampliado. Não era a negação da

escrita, mas a proposição de que na ausência desta a história poderia se fazer apoiada em

outros rastros. Destacamos, aqui, as debates que emergiram em torno do uso das imagens

em sua ascensão ao posto de documentos.

3.3 A imagem como documento

É interessante observar que organizar imagens como documentos já inquietava o

cameraman polonês Boleslaw Matuszewski, no ano de 1898, ao lançar a idéia pioneira de

criação de arquivos de cinema onde propôs a criação do Depósito Cinematográfico

Histórico, denotando a importância de preservar o material filmado para a posteridade.

Para ele, o filme era uma fonte privilegiada da história e lhe seria conferido a mesma

autoridade e oficialidade que os outros arquivos já conhecidos.

O filme cinematográfico, em que de mil fotos se compõe uma cena e que, passado entre um foco luminoso e uma tela branca, faz se erguerem e andarem os mortos e os ausentes, essa simples fita de celulóide impressionada constitui não só um documento histórico, mas uma parcela da história, e da história que não desapareceu, que não precisa de um gênio para ser ressuscitada. Está aí apenas adormecida, e como aqueles organismos elementares que, vivendo uma vida latente, reanimam-se após alguns anos, com pouco de calor e umidade, só necessita, para acordar e viver novamente as horas do passado, de um pouco de luz que atravesse uma lente no seio da escuridão! (MATUSZEWSKI, 2004, p. 7).

Como ressalta Bazin apud Schvarzman (2004, p. 24) seja ficção, ou o que

efetivamente aconteça, a câmera garante a permanência. E sendo as imagens

cinematográficas testemunhas de um tempo passado ou do pressente, elas ascendem

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também com “pleno direito ao estatuto de documentos históricos” (FERRO apud LAGNY,

2009, p. 100).

Para Nóvoa (1995), os historiadores, na época da fundação do cinema, estavam

mergulhados na concepção positivista, atualizada na França por Langlois e Seignobos, para

a qual a história só se fazia com documentos. Ainda segundo o autor, o documento, para a

mentalidade de então, “era, sobretudo o escrito, ponto de partida e de chegada para a

reconstrução do fato histórico. (s.p)

As discussões que tomam a imagem como documento para história cresceram ao

longo dos anos, no entanto, lembra Freire (2006) que ainda existe alguma desconfiança por

parte dos especialistas das ciências humanas em relação ao cinema como fonte histórica e

isso se deve em parte porque o considera um mero instrumento de arte ou por talvez

carregar o estigma do seu nascimento no início do século XX quando era considerado pela

classe pensante como refúgio de marginais e desocupados ou, como instiga a indagação

feita por Ferro (1992), afinal: “o que é cinematógrafo para os inteligentes, para as pessoas

cultivadas? Uma máquina de embrutecimento e de dissolução, um passamento de iletrados,

de criaturas miseráveis iludidas por sua ocupação” (p. 84)

O filme recorre a estratégias variadas que norteiam a construção dos documentos,

sejam eles em linguagem escrita ou imagética e conforme Freire (2006), não estão longe

dos mesmos recursos usados pela construção das demais fontes. Nas palavras do autor:

Não seriam eles também [textos escritos], assim como os filmes, construções, fabricações, artefatos elaborados a partir de informações coletadas e organizadas por alguém que, para lhes dar significado, nelas injeta sua própria subjetividade? Por que razão a presença dessa subjetividade seria um apanágio dos cineastas? (FREIRE, 2006, p. 709).

Kornis (1992) ressalta que na década de 1920 surgiram indícios de que

historiadores já começaram a reconhecer o cinema como fonte de conhecimento histórico.

Segundo a autora, o interesse pelo filme como documento histórico é revelado quando um

grupo de historiadores, que compareceu aos encontros do Congresso Internacional das

Ciências Históricas realizados entre os anos de 1926 e 1934, começou a se preocupar com

as condições de preservação dos filmes em arquivos próprios. Uma concepção de valor

fílmico bem próximo das idéias propostas por Matuszewski (2004) para quem o filme tinha

que ser pensando como um registro da realidade, ressaltando a verdade obtida por esse

registro.

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Particularmente, a partir da década de 1960, a discussão metodológica sobre a

relação cinema-história passou a levar em conta a questão quando ressalta a natureza das

imagens cinematográficas. Aponta Kornis (1992) que o reconhecimento do cinema como

objeto da análise histórica estava inserido nas preocupações levantadas pela Nova História.

As idéias precursoras do historiador Marc Ferro foram expostas pela primeira vez

na revista Annales, em 1968, em um artigo intitulado "Sociélé du XX e siêcle et histoire

cinématographique" no qual referia-se ao culto excessivo do documento escrito que

julgava ter levado os historiadores a utilizarem técnicas de pesquisa válidas para o século

passado, alertava que, “para a época contemporânea, estavam à disposição documentos de

um novo tipo e com uma nova linguagem que traziam uma nova dimensão ao

conhecimento do passado” (KORNIS,1992, p. 242)

Lembra Nóvoa (1995) que Marc Ferro, um historiador da Primeira Guerra Mundial

e da Revolução Russa, no bojo de um movimento científico e cultural que carregava os

reflexos do movimento cinematográfico da Nouvelle Vague, e, junto com outros

movimentos que apareceram no pós-guerra — como o neo-realismo italiano ou o cinema

novo brasileiro —, consolidava definitivamente o cinema, não somente como fonte de

divertimento, mas como expressão artística a mais completa.

O que propunha Ferro (1992), era partir das imagens não procurando nelas somente

exemplificações, confirmações ou desmentir outro saber, era preciso considerar as imagens

tais como são, com a possibilidade de apelar para outros saberes para melhor compreendê-

las. Resta, então, estudar o filme e associá-lo ao mundo que o produz e a hipótese é de que

“o filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura

invenção, é História” (p. 86).

O filme é abordado nessa perspectiva teórico-metodológica não como uma obra de

arte, mas como um produto, uma imagem-objeto, cujas significações não são somente

cinematográficas: a imagem vale por aquilo que testemunha e nessas condições, diz o

autor:

Empreender a análise de filmes, de fragmentos de filme, de planos, de temas, levando em conta, segundo a necessidade, o saber e o modo de abordagem das diferentes ciências humanas, não poderia bastar. É necessário aplicar esses métodos a cada substância do filme (imagens, imagens sonoras, imagens não sonorizadas), às relações entre os componentes dessas substâncias; analisar no filme principalmente a narrativa, o cenário, o texto, as relações do filme com o que não é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime. Pode-se assim esperar

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compreender não somente a obra como também a realidade que representa (FERRO, 1992, p. 89)

Ressalta Nóvoa (1995), que quando o historiador passou a observar o filme, para

além de fonte de prazer estético e de divertimento, ele o pode perceber como agente

transformador da história e como registro histórico. Neste momento, tornou-se inevitável a

cunhagem do binômio cinema-história. Este binômio busca traduzir a importância que a

relação cinema-história adquiriu ao longo do século XX. No entanto é muito breve para dar

conta dos problemas teóricos e epistemológicos que a relação impõe. Nas palavras do

autor:

É possível afirmar que, desde que a história foi fundada por Heródoto e Cia., nunca nenhum elemento ou agente histórico foi tão importante a ponto de ter a sua designação associada à palavra história. Nenhum documento se impôs tanto, de tal modo a fazer jus a uma elaboração teórica, como ocorreu com o filme. Este, para o cientista social, para o psicólogo e para o psicanalista, passou a ser visto como um modelador de mentalidades, sentimentos e emoções de milhões de indivíduos, de anônimos agentes históricos, mas também como registro do imaginário e das ações dos homens nos vários quadrantes do planeta. (s.p)

Se acreditarmos que é possível afirmar que o cinema mobiliza um pensamento

sobre o mundo em sua existência histórica, não se trata de fazê-lo somente pela imagem

cinematográfica em si, e sim pelos encadeamentos de sentido, ou seja, não apenas marcar

os fatos históricos dos quais um filme se alimenta, ou as identidades sobre as quais ele

propõe um movimento, mas entender “os resultados desse movimento como possibilidade

de compreensão do passado, este como ‘escritura’ presente da memória/imaginário”

(SOUZA, 2009, p. 61). É pensar a articulação do sentido histórico com o filme buscando o

caráter político envolto nas imagens que mesmo se apoiando no registro reinventa e

atualiza o sentido histórico. Nessa perspectiva, não estaria aí embutida uma relação

imbricada entre a história e a memória.

3.3.1 Imagem como memória

Documentar é algo importante do ponto de vista da humanidade e todo filme é

documental no sentindo que documenta algo, afirma Penafria (2004). Subjacente a esse ato

estará, porventura, “a vontade de preservação das nossas memórias, uma tomada de

consciência da nossa diversidade ou uma necessidade de nos manifestarmos” (p. 11). Em

todo e qualquer filme é possível verificar um conjunto de idéias e pressupostos que

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constituem o universo mental, cultural e social do seu autor e da sua época. Segundo a

autora,

Um autor não vive isolado, é ele mais a sua época, poderá ser muito ou pouco visionário/genial, mas não poderá nunca ser desligado da sua época. As imagens que melhor nos permitem (a nós espectadores) reconhecer a presença ou a visão deste ou daquele autor são, precisamente, as imagens de caráter documental. (PENAFRIA, 2004, p. 6).

O cinema reflete, assim, a concepção que o seu autor tem do mundo e assistir a um

filme é participar de uma experiência cujos temas estão ligados, em maior ou menor grau,

ao mundo de quem vê as imagens a partir da visão de quem o realiza. A atitude de

registrar, de documentar está presente em todo o cinema, independentemente do gênero

fílmico. Lembra Penafria (2004), que o cinema iniciou-se com o registro em imagens de

momentos da vida quotidiana e que o registro in loco dos acontecimentos do mundo e da

vida das pessoas é a matéria base de um filme documentário.

Na verdade, desde a sua gênese como lembra Oliveri (2006), o cinema tem como

assunto principal de seus registros aspectos da vida cotidiana. Através do cinematógrafo,

invenção do francês Louis Lumière, faz um registro da capital francesa. Contrário a outros

aparelhos cinematográficos da época, o cinematógrafo era leve e funcionava à manivela,

podendo, sem maiores dificuldades, “sair para explorar o mundo – e o mundo mais

próximo era o urbano, que se torna, assim, o seu primeiro habitat” (BARNOW apud

OLIVERI, 1983, p. 6).

As primeiras projeções em Paris, no final de 1895, exibiam cenas do cotidiano

moderno das cidades, o interesse era filmar a vida, como ressalta Lagny (2009). As

imagens registraram a saída de trabalhadores da usina, a refeição deles junto aos filhos, as

manifestações públicas da vida política ou de acontecimentos jornalísticos, passageiros

numa estação de trem, o trânsito numa movimentada avenida. Aqui no Brasil não foi

diferente uma vez que as primeiras filmagens nacionais, que ocorreram em 1898, tinham

como tema principal imagens do Rio de Janeiro registradas pelo cinematógrafo operado

por Afonso Segretto.

Le Goff (1994) afirma que a invenção da fotografia consta entre as manifestações

significativas que revolucionam a memória na medida em que se abriu a possibilidade de

guardar a memória do tempo e da evolução cronológica. O mundo, então, tornou-se de

certa forma “familiar” após o advento da fotografia, por volta de 1826, afirma Kossoy

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(2001), visto que o homem passou a ter um conhecimento mais amplo de outras realidades

que lhe eram, até aquele momento, transmitidas pela tradição escrita, verbal e pictórica.

Com a descoberta da fotografia, se inicia um processo de conhecimento do mundo, mas

agora de um mundo em detalhes, posto que fragmentário em termos visuais e, portanto,

contextuais e qualquer que seja o assunto registrado na fotografia, esta também

documentará a visão de mundo do fotógrafo. “A fotografia, é, pois, um duplo testemunho:

por aquilo que ela nos mostra da cena passada, irreversível, ali congelada

fragmentariamente, e por aquilo que nos informa acerca de seu autor”. (p. 50)

A importância de tais imagens vem do esforço de se conhecer e compreender o

momento histórico que foi fragmentariamente congelado no conteúdo da imagem e

globalmente circunscrito ao ato da tomada do registro. Para Kossoy (2001):

o fragmento da realidade gravado na fotografia representa o congelamento do gesto e da paisagem, e, portanto a perpetuação de um momento, em outras palavras, da memória: memória do individuo, da comunidade, dos costumes, do fato social, da paisagem urbana, da natureza. (p. 155).

O movimento que já se iniciou com a fotografia, culmina-se nas imagens em

movimento, afirmando Nichols (2005) que “o cinema foi uma revelação, as pessoas nunca

tinham visto imagens tão fiéis a seus temas nem testemunhado movimento aparente que

transmitisse sensação tão convincente de movimento real” (p. 117). O diferencial era a

capacidade das imagens animadas de transmitir uma impressão viva da realidade, que

inclui o movimento como um aspecto fundamental da vida, que a pintura e a escultura

foram capazes de aludir, mas não copiar.

Uma aparente fidelidade do registro filmográfico ao que ele registra confere à

imagem a aparência de um documento. Oferece uma comprovação visível do que a câmera

viu. Desse modo, o cinema, tanto documental, quanto ficcional, constitui-se como uma

ferramenta de preservação de cultura, tornando visível “um tempo que se torna presente,

mas que é, também, um presente que se torna passado” (PENAFRIA, 2004, p. 11).

Pollak (1989) por sua vez faz uso da expressão “memória enquadrada”, tomada de

empréstimo de Henry Rousso, ressaltando que “o trabalho de enquadramento da memória

se alimenta do material fornecido pela história. Esse material pode sem dúvida ser

interpretado e combinado a um sem-número de referências associadas” (p. 9).

Os rastros desse trabalho de enquadramento da memória são os discursos

organizados em torno de acontecimentos e de grandes personagens, e os monumentos, os

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museus, as bibliotecas, etc., sendo a memória guardada e solidificada. Ressalta que o

filme-testemunho e documentário tornou-se um instrumento poderoso para os rearranjos

sucessivos da memória coletiva:

Ainda que seja tecnicamente difícil ou impossível captar todas essas lembranças em objetos de memória confeccionados hoje, o filme é o melhor suporte para fazê-lo: donde seu papel crescente na formação e reorganização,e portanto no enquadramento da memória. Ele se dirige não apenas às capacidades cognitivas, mas capta as emoções (POLLAK, 1989, p. 11)

Pierre Nora (1981) defende que hoje a sociedade vive instada pelo produtivismo

arquivístico. Na visão do autor, não é somente guardar, conservar sinais indicativos de

memória, é preciso produzir arquivo e nenhuma época foi tão voluntariamente produtora

de arquivos como a nossa. “À medida em que desaparece a memória tradicional, nós nos

sentimos obrigados a acumular religiosamente vestígios, testemunhos, documentos,

imagens, discursos, sinais visíveis do que foi” (p. 15).

Ainda segundo o mesmo autor, o que se chama hoje de memória é a constituição

vertiginosa e gigantesca do estoque material daquilo que é possível lembrar, sendo,

portanto, uma memória registradora, que delega ao arquivo o cuidado de se lembrar por

ela. Em suas palavras:

É uma memória que se apóia inteiramente sobre o que há de mais preciso no traço, mais material no vestígio, mais concreto no registro, mais visível na imagem. O movimento que começou com a escrita termina na alta fidelidade e na fita magnética. Menos a memória é vivida do interior, mais ela tem necessidade de suportes exteriores e de referências tangíveis de uma existência que só se vive através delas. Daí a obsessão pelo arquivo que marca o contemporâneo e que afeta, ao mesmo tempo, a preservação integral de todo o presente e a preservação integral de todo passado. (NORA, 1981, p. 14).

Em assim sendo, faremos eco às palavras de Nichols (2005) quando afirma que o

papel da memória com relação às imagens cinematográficas, aprofunda-se de duas

maneiras. Em primeiro lugar, o filme em si é um tangível “teatro da memória”, se

configura como uma representação externa e visível do que foi dito e feito. Como a escrita,

o filme alivia o fardo de confiar sequência e detalhe à memória, podendo, portanto, se

converter numa fonte de “memória popular”, dando-nos a sensação vívida de como alguma

coisa aconteceu num determinado tempo e lugar.

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Em segundo lugar, a memória é parte das variadas maneiras como os espectadores

se servem do que já viram para interpretar o que estão vendo. Esse ato de retrospecção, de

olhar para trás, relembrando acontecimentos anteriores no decorrer do filme e fazendo

ligação com o que está presente no momento, “pode ser fundamental para a interpretação

do filme, exatamente como a memória pode ser fundamental para a construção de um

argumento coerente” (p. 91).

Dessa forma observamos que se antes, o oral, o que se poderia comunicar através

do som das palavras, transmitia uma memória que sobrevivia pela repetição, poder-se-ia

dizer que o alfabeto possibilitou, na passagem da oralidade para a escrita, uma memória

que passou a ser objetivamente visível. E mais ainda com o surgimento e desenvolvimento

das técnicas cinematográficas que passaram a promover outra ruptura, incutindo nos

registro ao mesmo tempo, e em um só tempo imagem e som: um artefato audiovisual que

articula a palavra, a imagem e o som acrescidos do movimento que fora negado aos outros

suportes mnemônicos.

Com isso poderíamos dizer que um filme pode responder tanto a registros da

história como da memória. Nem sempre um filme é pensado como documento, embora

possa sê-lo. Contudo nos parece que é fundamental destacar que o filme é o registro do

cotidiano, é o pensamento de uma época, é, sobretudo, uma visão de mundo do realizador,

seja cineasta de ficção ou documentarista. É a memória de um indivíduo, que inserido

numa coletividade, captura através de um suporte tangível, palpável o movimento

sociocultural passado e/ou presente que foi vivido ou recebido e os organiza por meio de

suas visões, anseios, evidências de um dado momento histórico.

3.4 Abordagens coletivas e sociais da memória

Rosa, Bellelli e Bakhurst (2000) afirmam que qualquer estado presente é uma

marca do que aconteceu no passado. Para os autores, nosso sistema nervoso está

constituído de uma maneira tal que registra os acontecimentos experimentados e pode

tornar esses rastros acessíveis quando se é necessário. No entanto, ressaltam, “essas marcas

do passado não são registros fidedignos do efetivamente acontecido, mas os traços que os

eventos deixaram na matéria (viva ou inerte) para ser interpretada e utilizada mais adiante”

(p. 43).

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Os grupos humanos, como já ressaltamos, desenvolveram técnicas de ampliação do

registro da memória, por meio de sistemas de notação, poemas, histórias, rituais ou mesmo

monumentos como formas de se manter a memória, sendo os artefatos o que possibilitaria

que um indivíduo tenha acesso a experiência acumulada por um grupo, tornando possível,

dessa forma, a cultura.

No entanto, o que vai se tornar memorável, passa por uma decisão consciente ou

não, de escolher que aspecto do momento presente há de ser memorável para o futuro.

Segundo Rosa, Bellelli e Bakhurst (2000), a memória não estaria formada “unicamente

pelos rastros que o passado deixou, mas também por aqueles aspectos de seu presente que

os contemporâneos de um evento decidiram que era conveniente registrar”6 (p. 44)

alertando para o a importância não apenas do que é lembrando, mas também da sua

negação, ou esquecimento.

Embora os artefatos contribuam para o registro da memória, é necessário ressaltar,

conforme postula Nora (1981) que cabe “mas cabe a mim me lembrar e sou eu que

lembro” (p. 17). Desse modo, a coerção da memória pesa sobre o indivíduo, como sua

revitalização possível repousa sobre sua relação pessoal com seu próprio passado.

Quando a memória não está mais em todo lugar, ela não estaria em lugar nenhum se uma consciência individual, numa decisão solitária, não decidisse dela se encarregar. Menos a memória é vivida coletivamente, mais ela tem necessidade de homens particulares que fazem de si mesmos homens-memória. (NORA, 1981, p. 18).

Segundo Magalhães, Santos e Souza (2009) nos séculos XX e XXI, os estudos

teóricos sobre a memória se tornam notórios provocando inúmeros debates a partir de

tendências e perspectivas teóricas variadas, seja como “uma das dimensões para o

entendimento da manutenção da cultura, seja como resposta a reivindicações

socioculturais, como objetivo de recuperação de experiências sociais e políticas ou como

categoria histórica e historiográfica” (p. 106) conferindo, por sua vez, o caráter multimodal

e multidisciplinar para essa área do conhecimento.

Entre os debates que emergiram estava contestação de que nossas memórias são

estritamente pessoais, perspectiva trazida à tona principalmente pelos trabalhos do

sociólogo Maurice Halbwachs e o psicólogo Frederic Charles Bartlett que estabeleceram

bases teóricas que permitiram rejeitar a rígida cisão entre memória e sociedade defendendo

6 Tradução nossa

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a memória como sendo uma construção social. A memória vista como um processo social

tornava evidente a máxima de que os indivíduos não são vistos como seres humanos

isolados, mas interagindo uns com os outros e a partir de estruturas sociais determinadas.

Em A memória coletiva, obra póstuma lançada em 1950 a partir de uma compilação

de textos diversos, Maurice Halbwachs afirma que a lembrança é uma reconstrução do

passado com a ajuda de dados tomados de empréstimo ao presente e preparados por outras

reconstruções feitas em épocas anteriores. Sobre o caráter coletivo das lembranças, reforça

o autor:

Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isso acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem (HALBWACHS, 2006, p. 30).

Para Halbwachs (2006), não é suficiente reconstruir pedaço a pedaço uma imagem

do passado para que se obtenha uma lembrança. Essa reconstrução precisa funcionar a

partir de dados ou de noções comuns que estejam “em nosso espírito e também no dos

outros, o que será possível somente se tiverem feito parte de uma mesma sociedade, de um

mesmo grupo” (p. 39). Assim, lembraremos se nos colocarmos no ponto de vista de um ou

muitos grupos existentes e se nos situarmos em uma ou muitas correntes do pensamento

coletivo.

Um dos grandes méritos de Halbwachs, ressalta a maioria da literatura, foi ter

escrito sobre memória coletiva numa época em que a memória era compreendida

primordialmente enquanto fenômeno individual e subjetivo sendo este autor, também,

quem primeiro afirmou que nenhuma lembrança pode existir sem a sociedade.

Em Les cadres sociaux de la mémoire, Halbawachs (apud SANTOS, 2003), suscita

afirmações relevantes para entendermos o pensamento do sociólogo para com os estudos

da memória, afirmações estas que perpassarão por todo seu trabalho, embora

posteriormente os mesmos tenham sido flexibilizados. As suas principais afirmações sobre

a memória são três:

a crença de que memórias só podem ser pensadas em termos de convenções sociais, denominadas quadros sociais da memória; a abordagem a estas convenções a partir do mundo empírico observável e a

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afirmação de que o passado que existe é apenas aquele que é reconstituído continuamente no presente (SANTOS, 2003, p. 47).

Halbwachs (2004) não deixa de observar que a memória coletiva não pode ser

confundida com a história e a expressão memória histórica é problemática uma vez que

associa termos antagônicos em diferentes pontos. A história, segundo o autor, é a

compilação dos fatos que ocuparam maior lugar na memória dos homens, os

acontecimentos que são transmitidos passam por uma seleção, comparação e classificação,

conforme necessidades ou regras. Já a memória coletiva é corrente de uma continuidade,

retendo do passado aquilo que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo,

nada tendo de artificial e não alcança outros limites que não o do grupo, diferente da

história que se situa fora dos grupos e acima deles.

Segundo o mesmo autor, quanto à pluralidade de memórias coletivas existentes, a

história não dá conta de abarcar todas as multiplicidades, podendo-se afirmar que só existe

uma história. Isso acontece pelo fato da história se interessar principalmente pela diferença,

abstraindo as semelhanças sem as quais não haveria memória, e por esse motivo consegue

apresentar uma visão única, total e abreviada do passado “juntando em um instante,

simbolizando em algumas mudanças bruscas, em alguns avanços dos povos dos

indivíduos, lentas evoluções coletivas” (p.107)

Na sua concepção, é inútil a tentativa de fixar uma lembrança, porque essa

necessidade de escrita da historia só vem à tona quando já estão distantes das testemunhas

que poderiam conservá-las. A história começaria, pois, no ponto em que termina a

tradição. Quando a memória não pode mais ser sustentada por um grupo, o único jeito de

preservar as lembranças é tentando fixá-las em suportes variados que irão resistir à morte.

Indaga Halbwachs:

Se a condição necessária para que exista a memória é que o sujeito que lembra, individuo ou grupo, tenha a sensação de que ela remonta a lembrança de um movimento contínuo, como poderia a história ser uma memória, se há uma interrupção entre a sociedade que lê essa historia e os grupos de testemunhas ou atores, outrora, de acontecimentos que nela são relatados? (p. 101)

O que traria, para Halbwachs (2004, p. 78 e 86), uma possível relação da história

com a memória seria compreender que há uma distinção entre uma história que é vivida e

outra que é escrita. É no passado vivido, bem mais do que no passado apreendido pela

escrita da história, que a memória se apoiaria. A história vivida pode ser perpetuada e

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renovada, tem o necessário para constituir um panorama vivo e natural sobre o que se

possa basear um pensamento para conservar e reencontrar a imagem do passado.

Os diversos estudos posteriores aos postulados de Maurice Halbwachs apontam

lacunas no pensamento do sociólogo e em sua releitura, amplia ou coaduna a relação entre

memória e história ou memória histórica.

Para Aróstegui (2004), devemos dirigir nossa atenção para a maneira que se

estabelece a relação entre memória, como representação permanente da experiência, e a

história, como racionalização temporalizada de tal experiência. Despontam duas funções

cruciais da apreensão da história como sustento da continuidade da experiência. A primeira

é a capacidade de reminiscência das vivências em forma de presente e um presente que é

“o conteúdo completo de uma memória viva, não herdada, ainda que o tempo esteja

ordenado segundo a sequência passado-presente” (p. 162). A segunda função da memória

deriva não como pressuposto ou mesmo umbral da história, mas como um suporte e como

veículo de sua transmissão, ficando limitada praticamente a ela quando se trata de uma

transmissão oral.

Embora história e memória sejam realidades distinguíveis, o autor afirma com

cautela, que “definitivamente não há história sem memória” (ARÓSTEGUI, 2004, p. 162),

ainda que tenhamos que levar em conta que a estreita relação entre ambas não são

correlativas relacionadas em um sentido único. A história tem sua própria autonomia que

não coincide necessariamente com a memória, não podendo, portanto, descartar os

conflitos existentes entre essas realidades.

A memória é valor social e cultural, é reivindicação de um passado que se quer

impedir que passe, a historia é, além disso, um discurso construído, sujeito a um método

que pode ser distinto de alguns conteúdos da memória. A relação que se estabelece entre a

memória e a história pode ser determinante, mas, segundo o autor, não se interfere na

identidade de ambas realidades. A relação entre elas é complexa, sinuosa e em modo

algum unidirecional.

Para que a memória transcenda suas limitações e seja ponto de partida de uma

história, “é preciso que se opere o fenômeno de sua historicização” (AROSTEGUI, 2004,

p. 165). A memória não produz naturalmente uma história, ela é uma matéria que pode ser

historicizada.

Historicizar a memória é, portanto, tomar consciência de que existem mudanças em sua percepção que modifica o sentido que damos ao

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passado. O conteúdo da memória pode ser interpretado, como o da história, mas a argumentação desta última tem que passar sempre por uma prova (p. 166, tradução nossa.)

Para ser entendida como fatos sociais, a memória coletiva e social há de ser

públicas, na medida em que se baseiam no presente histórico. Essa memória pública não

pode prescindir de uma memória herdada, da continuidade da transmissão histórica. Para

Aróstegui (2004) é dessa forma que memórias individuais e coletivas, memórias sociais,

memórias vivas e herdadas podem adquirir a qualificação de memória histórica.

Já os estudos psicossociais da memória defendidos por Sá (2007), ainda que tenham

ciência das concepções de cunho sociológico que tomam aos processos mnemônicos como

atributos da sociedade ou de grupos sociais, ressaltam a proposição de que,

em última análise, são as pessoas que se lembram, embora a forma e boa parte do conteúdo das suas memórias sejam socialmente determinadas pelos grupos, pelas instituições, pelos marcos mais amplos da sociedade, por recursos culturalmente produzidos, dentre os quais se inclui a própria linguagem (SÁ, 2007, p. 291).

Para Sá (2007), o conceito tradicional de memória coletiva, cunhado por

Halbwachs (2004) se defronta com dificuldades geradas pelas transformações da

sociedade. As delimitações grupais que foram se tornando cada vez mais imprecisas, bem

como a crescente influência dos meios de comunicação de massa que vem tomando o lugar

da comunicação e da negociação intragrupais e a substituição da interação face a face pela

interação via internet, são fatores que apontam para essa dificuldade conceitual.

Dentre as várias abordagens das manifestações mnemônicas – memória coletiva,

memória pública, memória individual, etc. – Sá (2007, p. 292) opta por designar como

“memória social” o inteiro conjunto dos fenômenos ou instâncias sociais da memória.

Assim, segundo o autor, “quando se fala em memória social pode-se estar falando de

muitas outras coisas, não necessariamente muito diferentes entre si, mas distinguíveis em

função de variados critérios” (p. 292)

Como ressalta Sá (2007), “a memória humana não é uma reprodução das

experiências passadas, e sim uma construção, que se faz a partir daquelas, por certo, mas

em função da realidade presente e com o apoio de recursos proporcionados pela sociedade

e pela cultura” (p. 291).

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Ao remontar os dois campos distintos na categoria de “memórias históricas

documentais”, o campo da memória social expande para além dos limites autorizados por

Halbwachs (2004) e “nada obsta que se possa falar hoje de uma memória da história, em

duas modalidades – documentais e orais” (SÁ, 2007, p. 293).

A categoria das memórias históricas documentais é proposta para dar conta do que

Jedlowski (apud Sá, 2007) chama de memória social e que consiste nos mais variados

registros e traços do passado, documentos no seu sentido amplo, que se encontram

disponíveis a qualquer membro de uma dada sociedade. Para Jedlowski (2000), no mundo

contemporâneo as possibilidades das técnicas de fixação e de conservação de marcas do

passado produzem uma ampliação da memória social, ao mesmo tempo que a relativa

homologação e extensão dos meios de comunicação de massa produzem a formação de

memórias comuns extremamente extensas, ainda mais fragmentadas e circunstanciais.

No entanto, os documentos não se configuram pela mera disponibilidade, como

uma memória, “cabendo falar de memórias históricas somente quando tais documentos são

de fato mobilizados – efetivamente lidos, utilizados, visitados, apreciados ou ainda

simplesmente referidos – por pessoas e grupos sociais contemporâneos” (SÁ, 2007, p.

293).

Dois outros recursos, de uso amplamente socializado, são ainda apontados por Sá

(2007, p. 294) como fontes para as memórias históricas documentais, são eles: os manuais

escolares de história e os registros proporcionados pela comunicação de massa. Esses

recursos tem sido responsáveis pela transformação de fatos não vividos em memórias

comuns, notadamente geracionais e coletivas.

Assim sendo, diríamos que importa para esta pesquisa destacar desse inteiro

conjunto dos fenômenos sociais da memória a variante da chamada “memórias históricas

documentais” trazendo à tona a complexa interface entre memória e história que, como

lembra Sá (2007, p. 293), já foi veto terminológico por parte de Halbwachs (2004). Mais

do que isso, como ressaltamos por meio das palavras de Penafria (2004), a vontade de uma

preservação da memória pelo registro fílmico possibilita verificarmos as idéias e

pressupostos não só do autor do registro, mas do contexto sócio-histórico no qual ele e sua

obra se inserem.

Acrescentaríamos a memória experiencial recebida e vivida em seu grupo de

origem e formação e a inter-relação com o contexto histórico imediato que se entrelaça em

sua produção de documentários.

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Para Magalhães, Santos e Souza (2009) falar em memória hoje, implica,

necessariamente uma discussão da transmissão de experiências e o conjunto de

complexidades que daí decorre, ou seja, “como ocorre essa transmissão e recepção das

experiências coletivas, sociais, herdadas, construídas e aceitas, que são mantidas

valorizadas, modificadas pela prática social” (p. 107). As autoras afirmam que as

experiências podem se tornar uma práxis social, por meio da memória guardada, latente ou,

por muitas vezes submersas. Correlacionado o campo da memória com a educação, seja ela

escolar ou não, ressaltam a importância de se analisar a memória, as experiências herdadas,

mantidas ou modificadas, para se ter uma dimensão próxima da visão de mundo em que as

novas gerações estão sendo educadas. Nessa perspectiva, a educação se faz mediante a

transmissão das experiências, e, portanto, mediante a memória.

Pensar a educação supõe discutir o caráter das experiências que estão permeando o presente e aquelas que foram se acumulando ao longo do tempo e que estão inseridas na vida cotidiana das famílias, das instituições, dos alunos, professores, situados historicamente e portadores de memórias coletivas e sociais. A escola é um lugar de produção de memória, que ocorre a partir de memórias cruzadas que objetiva socializar, transmitir tanto os conhecimentos sistematizados, acumulados e selecionados, mas também experiências que contêm práticas sociais, culturais, de costumes, linguagens, historicamente validados (p. 112)

Dessa maneira, podemos entender o registro da memória possibilitado através dos

recursos tecnológicos de captação de imagem como um processo para ser transmitido por

processos educativos informais, percebendo como os filmes são proposições de um

momento em que havia um apelo para consolidação da idéia de região e de nação em sua

unidade diversa.

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4. A Bahia em cena nos documentários de Alexandre Robatto Filho

4.1 Estrelando: Alexandre Robatto Filho

O cineasta Glauber Rocha, em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (2003) não

deixa de reconhecer o pioneirismo de Alexandre Robatto Filho, mas segundo ele, as

produções não interferiram no desenvolvimento orgânico da cultura cinematográfica de

Salvador e o inventor do cinema baiano foi mesmo Roberto Pires, diretor de Redenção,

primeiro longa metragem feito na Bahia em 1959.

Pelas palavras de Glauber Rocha, transparece a tendência dos historiadores de

cinema no Brasil que segundo Bernardet (1979) foi aplicado aqui um modelo de história

elaborado para os países industrializados em que os filmes de ficção é o sustentáculo da

produção. No entanto, não foi o que se deu em terra brasileira, afirmando o autor que “o

conceito de historia do cinema que se usou no Brasil está mais vinculado à vontade dos

cineastas e dos historiadores que à realidade concreta” (p. 28).

A realidade baiana, em consonância com os modos de produção cinematográfica do

país, vê nos documentários de Alexandre Robatto Filho os primeiros passos para uma

consolidação de ações de cinema no Estado. Afirma Setaro e Umberto (1992):

[...] é Alexandre Robatto Filho o primeiro cineasta do cinema baiano, principalmente porque é quem desenvolveu, durante mais de quatro décadas, uma filmografia sistemática, um tipo de cinema centrado no documentário e no registro dos festejos dos eventos, dos acontecimentos que plasmam a baianidade (p. 33).

Nascido em Salvador, na praia do Cantagalo em 1908, Alexandre Robatto Filho

descendia de imigrantes italianos, por parte de seu pai, já o lado materno pertencia a uma

família aristocrática de Saubara, no Recôncavo Baiano, sendo filho de Camila Rocha

Robatto. Casou-se com Stella Pereira Robatto, tendo como filhos Sílvio Pereira Robatto,

Yedda Pereira Robatto e Sônia Robatto. Apesar de ter nascido na capital baiana, passa

parte da infância e adolescência no interior do Estado onde desde cedo se dedica às

experiências com imagens, visto que seu pai era proprietário de um cinema na cidade de

Alagoinhas.

Ficou conhecido como “um homem de mil instrumentos” porque tinha como

profissão o ofício de dentista e professor de Odontologia da Universidade Federal da

Bahia, mas também era escritor, desenhista, pintor, produtor de discos fonográficos, fazia

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jóias em ouro e prata, foi rádio-amador, fundou o Iatch Clube da Bahia, e como

documentarista teve seu nome reconhecido dentro e fora da capital baiana.

Preocupava-se em registrar a cultura

baiana não só através dos filmes que fazia, por

isso junto, com o pintor argentino Caybé lança

uma série de discos intitulados “Documentários

da Bahia” registrando toques de capoeira angola

e sambas de roda. Setaro e Umberto (1992)

ressalta que Vinicius de Moraes teve contato

com um dos discos e solicitou a Robatto Filho a

liberação do uso da música “Labareda”, como

base para uma canção de sua autoria.

Participou ativamente da vida política e

cultural do Estado desempenhando tarefas junto

ao Departamento de Educação Superior da

Cultura, no tempo do secretário Navarro de Brito, e também no Instituto da Pecuária da

Bahia. Afirma Robatto Filho:

o grosso de meu trabalho, a rigor, foi todo concentrado na bitola de 35mm e muito devo, neste sentido, à Cooperativa de Pecuária da Bahia. O filme técnico sempre me fascinou. Por exemplo: fiz um documentário sobre a plantação de fumo, desde a semente até o charuto, o produto final. Levava, mais ou menos, dois anos até a conclusão do filme. Entre os muitos que fiz, destaco o da eletrificação da Rede Ferroviárioia da Leste Brasileira. Também aqui há o registro de todo o processo: da primeira estação até o trem inaugural. Lauro de Freitas me acompanhava e me deu muito apoio (ROBATTO FILHO apud SETARO, 1976, p. 9).

Além disso, o cineasta, que mantinha uma sala de projeção permanente montada

próxima a sua casa, conviveu de perto com artistas responsáveis pelas agitações modernas

em torno das artes na Bahia. O artista plástico Mário Cravo, o pintor Carybé e Jorge

Amado que escreveu um personagem no em sua homenagem no romance “Dona Flor e

seus dois Maridos” (SETARO e UMBERTO, 1992). Consta no prefácio do seu único livro

publicado, a obra “Raimunda que foi – uma estória da Bahia”, lançada em 1976, o parecer

do Conselho Estadual de Cultura, assim escrito:

Robatto Filho e Carybé nas gravações de Vadiação(Reprodução: SETARO e UMBERTO, 1992).

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Alexandre Robatto Filho, personalidade das mais expressivas na vida cultural da Bahia como professor universitário, profissional liberal, cineasta pioneiro que foi do cinema de arte na Bahia, com algumas realizações premiadas e incorporadas à filmografia nacional, não surpreende também como escritor, afirmando o seu talento polimorfo (PARECER DO CONSELHO ESTADUAL DE CULTURA, SALVADOR, 1974).

Em 1930 Robatto Filho começa a produzir curta-metragem registrando aspectos da

vida cotidiana da capital soteropolitana e continua filmando até final da década de 1950. O

legado do cineasta baiano consta aproximadamente cinquenta e nove filmes, no entanto,

uma parcela significativa dessa obra cinematográfica se perdeu devido a deterioração das

películas. Admirador confesso do cineasta americano Robert Flaherty, Robatto Filho

ressaltava o intuito em registrar imagens em movimento:

Eu queria que meu trabalho chegasse até os estudiosos e que os filmes não morressem em gavetas. Tive sempre a noção de que meu papel era de um cineasta explorador. A figura de Robert Flaherty que eu procurava seguir: era meu interesse fotografar em movimento, registrar, colher (ROBATTO FILHO apud SETARO E UMBERTO, 1992, p.12).

É perceptível em seus filmes a influência do fazer cinematográfico de Flaherty e do

movimento de documentarismo inglês liderado por John Grierson que foi produtor de

diversos filmes e defensor do uso pedagógico do cinema. Como lembra Catelli (2003),

Grierson tinham como proposta rever o processo educacional, reformular seus métodos e

sua filosofia, pois é pela educação que se poderia resolver parte dos problemas sociais. Por

isso defendia um cinema de intervenção social, reforçando a capacidade do documentário

para observar e selecionar cenas da própria vida e de interpretar os acontecimentos mais

complexos do mundo real. A visão do documentarista precisava ser jornalística, “mas,

sobretudo, poética e dramática. Defendia que os filmes documentários poderiam também

ser obras de arte e que a escolha do documentário representava a escolha da poesia em

lugar da ficção” (s.p.)

Grierson reúne um grupo que viria a se constituir na escola britânica de

documentário, e entre eles, figuravam o cineasta Robert Flaherty e também o brasileiro

Alberto Cavalcanti. Aliás, o termo documentário foi aplicado pela primeira vez por

Grierson, tomando como referência o trabalho de Robert Flaherty.

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Não posso esquecer que quando Nanouk7 apareceu, o filme foi uma verdadeira revelação. (...) E Robert Flaherty tornou-se logo um personagem legendário. Nós, que lutávamos contra o filme “artístico”, o filme literário, o filme teatral, compreendemos que a solução que procurávamos, ali estava com toda a sua admirável simplicidade, com toda a poesia de verdadeiro drama cinematográfico. (CAVALCANTI, 1936, P. 63).

Cavalcanti (1936) defendia que o nome de batismo para a escola nascente deveria

ser “neo-realistas”, antecipando o cinema italiano no pós-guerra que adotou posteriormente

esse nome. Mas Grierson replica a sugestão preferindo adotar o termo documentário, visto

que “documento” era um “argumento muito precioso junto ao governo conservador” (p.

64).

Seguindo os preceitos da Escola Britânica de Documentário, Cavalcanti (1936)

elabora normas de conduta para serem seguidas por realizadores de documentários. Dentre

alguns pontos ressaltados por essa norma pode-se ler:

Não trate de assuntos generalizados: você pode escrever um artigo sobre os correios, mas deve fazer um filme sobre uma carta. Não se afaste do princípio segundo o qual existem três elementos fundamentais: o social, o poético e o técnico. Não hesite em tratar elementos humanos, e relações humanas: seres humanos podem ser tão belos quanto os outros animais, tão belos quanto as máquinas ou uma paisagem (p. 81).

Os registros cinematográficos de Robatto

Filho estavam imbuídos nas idéias propostas por

Cavalcanti e na dita simplicidade exposta nas

obras de Flaherty. Embora grande parte de sua

obra seja fruto de cavações bem sucedidas, o

cineasta não se distancia dos aspectos sociais e

muitas vezes dos fundamentos poéticos.

Paisagens geográficas e humanas, aspectos da

vida cotidiana na capital e no interior do Estado,

manifestações culturais diversas são aspectos que

encorpam a obra robattiana.

7 Nanouk, o esquimó foi filmado por Flaherty em 1992 registra a vida de um esquimó e sua família para sobreviver em meio a difíceis condições.

Alexandre Robatto Filho (Reprodução: Setaro

e UMBERTO, 1992).

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Outra influência percebida nos filmes de Robatto Filho é quanto ao caráter

pedagógico das imagens atrelando cinema a educação. Dois aspectos ressaltam: primeiro a

relação do cineasta com o Instituto Nacional de Cinema Educativo; segundo, um plano de

cinema educativo apresentada por ele à Prefeitura de Salvador.

Devemos considera que a partir de 1930 o cinema ganha o acréscimo do som

aumentando ainda mais as dificuldades do fazer cinematográficos dos pioneiros que quase

sem técnica e capital suficiente para realizar seus filmes buscavam apoios locais e

nacionais. Robatto Filho declara sempre, segundo seu filho Silvio Robatto (1992), que

devia a Manoel Ribeiro, chefe do laboratório do INCE, onde processava os seus filmes, o

estar fazendo cinema. Com as novas tecnologias agregadas à produção e finalização dos

filmes, Robatto Filho pode continuar sua trajetória como cineasta graças ao apoio de

Humberto Mauro.

Robatto Filho viaja para o Rio de Janeiro onde conhece Roquete-Pinto, então

diretor do INCE, que segundo Setaro e Umberto (1992), logo o convida, para integrar a

equipe dos seus colaboradores roteiristas e operadores, incluindo de imediato na galeria do

catálogo do Instituto, o que lhe proporciona uma intensificação no seu processo de

produção. Robatto Filho declara numa reunião que ocorreu no dia 29 de junho de 1979, no

Departamento de Imagem e Som da Bahia:

Mauro, com toda sua grandeza, seu espírito aberto, um homem de uma grandeza enorme, que nunca negou nada a ninguém, chegava ao ponto que, certa feita, quando eu estava no Centro Educativo ele perguntou: – Robatto, você hoje precisa da moviola? – Mas que é isso, Mauro? – Não, ele então respondia, mas você está aqui de passagem, pode estar pagando hotel. Depois vim saber que Mauro estava finalizando uma montagem e tinha necessidade da moviola, mas porque um espírito desprendido, fez questão de ceder-me (ROBATTO FILHO apud SETARO E UMBERTO, 1992, p. 15).

A posição do INCE, como núcleo principal de difusão e produção do documentário

brasileiro entre as décadas de 30 e 60, não se restringem à produção de Humberto Mauro

sendo Robatto Filho um dos colaboradores. A parceria entre o cineasta baiano e o INCE

estão registrados nos catálogos da Cinemateca Brasileira, órgão federal ligada ao

Ministério de Educação e Cultura, onde constam três obras como parte do acervo do

Instituto. O levantamento total dos filmes produzidos pelo INCE também permearam as

pesquisas de Carlos Roberto de Souza (1990), onde se é possível localizar o nome de

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Robatto Filho como um dos diretores que compunham o quadro de cineastas do órgão e

como autor do texto da locução de “Cidade de Salvador – Bahia”, filmado em 1949, com

direção de Humberto Mauro.

Mas os assuntos educativos não ficariam restritos à produção do conteúdo de seus

filmes e sua ligação com o Instituto Nacional de Cinema Educativo. Walter da Silveira

(2006) apresenta na íntegra um Plano de Cinema Educativo para o Povo, publicado no dia

4 de maio de 1952 no jornal O Imparcial.

O texto é uma apresentação dos principais pontos de um plano de serviço de cinema

para a prefeitura municipal, na gestão do prefeito Osvaldo Gordilho, onde duas comissões

são nomeadas pela Diretoria do Arquivo, Divulgação e Estatística com o intuito de levar à

prática o projeto de Cinema Educativo e das bibliotecas de bairro. A primeira comissão era

a do cinema, composta por Robatto Filho, presidente da comissão e Walter da Silveira

como relator, Rômulo Almeida e Waldemar Carias; e a segunda era das bibliotecas, tendo

como participantes Bernadete Sinay Neves, Oswaldo Imbassahy e Abeillard Rodrigues

Santos, então superintendente da Difusão Cultural da Secretaria de Educação, além do

professor Luiz Monteiro e do chefe de finanças Gorgônio Araújo.

Conforme aponta Silveira (2006), as comissões reuniram-se com o prefeito

Gordilho juntamente com representantes da impressa da capital baiana. A comissão de

cinema ressalta, no plano de serviço para implantação de um cinema educativo, a

importância da arte e a necessidade de unir o caráter do divertimento ao caráter educativo.

E se não se visse que o cinema nada perde como arte ao ganhar como espetáculo, certamente se comprometeria o êxito do plano: em vez de atrair o povo, o repeleria (sic). Daí, a consideração preliminar de que para educar as massas através do cinema será imprescindível lhe oferecer essa educação em forma de divertimento. E isto será possível desde que se perceba a justeza da ampliação e do aprofundamento gradativo do valor cinematográfico (p. 262)

Conforme explicitado no plano elaborado pela comissão de cinema, de início as

grandes obras cinematográficas não poderiam ser apresentadas pela falta de costume em

vê-las, pois a população estava acostumada com a natureza do cinema comercial e não

aceitariam a primeira vista os filmes com maior densidade estética, com temas complexos

e estilos menos populares. Aos poucos o público tomaria gosto por essas produções menos

comerciais, sobretudo pelas exibições gratuitas que aconteceriam em diversos pontos da

cidade.

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Na reunião ficou explicito para os presentes a próxima relação da comissão de

cinema com distribuidores de filmes e com as associações culturais da Aliança Cultural

Franco-Brasileira e com o Serviço de Divulgação do Consulado Americano com sede em

Salvador que demonstraram interesse em apoiar o projeto. O funcionamento do Teatro

Guarani como cinema constituía o eixo central da proposta apresentada ao prefeito. O

teatro teria exibição de filmes de longa duração e de alto valor educativo e artístico com

preços acessíveis a todos. Outro ponto debatido na reunião foi a possível criação de uma

filmoteca podendo constituir-se como fonte real de renda para prefeitura uma vez filmes

seriam alugados para os Clubes de Cinema do Estado e de outras localidades fora da Bahia,

assim como o uso Teatro Guarani poderia gerar tributos para o município.

Mas proposta para exibição não ficaria restrita ao teatro, o intuito era levar o

cinema para os bairros mais distantes e para a população menos favorecida, educando-as

no gosto pelo cinema. Enquanto o cinema fixo, no Teatro Guarani, seria procurado pelo

público, o cinema móvel, através dos seus diversos pontos de irradiação, procuraria pelas

pessoas nos lugares mais recônditos. As exibições ocorreriam gratuitamente em praças ou

ruas de grande afluência popular em locais que não tivessem salões de espetáculo. Os

horários atenderiam as conveniências e costumes de cada bairro juntamente com a

disponibilidade de tempo dos moradores. Era preciso criar o hábito da espera pela exibição

e o cumprimento de tal prática demonstraria “a ação metódica do poder público em seu

desejo de servir à coletividade” (SILVEIRA, 2006, p. 263).

Os filmes para a exibição viriam de fontes diversas desde consulados estrangeiros,

que cederiam suas películas sem nenhum custo, até distribuidores brasileiros que cederiam

obras mediante contrato de aluguel. Além dessas fontes o Instituto Nacional de Cinema

Educativo, o Clube de Cinema do Museu de Arte Moderna de São Paulo e outras entidades

estrangeiras dedicadas à arte cinematográfica serviriam de fomento para o catálogo dos

filmes a serem exibidos.

Entre os nomes que firmavam o documento encaminhado para a Prefeitura de

Salvador, Robatto Filho e Walter da Silveira eram os que já tinham uma relação

reconhecida publicamente de dedicação à arte cinematográfica. Silveira, em 1943,

publicou no jornal O Imparcial um artigo sobre a arte que considerava a mais importante

dos tempos. A extrema capacidade de comunicação com o público e a disposição para

atrair diariamente para as salas exibidoras milhões de espectadores, inclusive os iletrados

que ignoravam a existência de escritores eram questões debatidas pelo estudioso que

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ressaltava que a grande importância do cinema residia no poder, maior do que qualquer

outra arte, de se aproximar, senão de realizar, o ideal popular e isso se devia a esses

fatores: comunicabilidade e facilidade em se dirigir ao povo.

Poderá faltar público para uma exposição de pintura ou de escultura, para um concerto de piano ou de orquestra, poderá o romancista ou o poeta não encontrar leitores, mas, um filme, por pior que seja, em qualquer parte terá publico (...). Não porque o cinema, como arte em si mesma (...) explore e degenere para o popularesco, o fácil, o barato, o inculto, o grosseiro. E sim porque o cinema, por seus fundamentos – a imagem e o movimento –, constitui a linguagem contemporânea mais adequada para o povo, mais representativa da compreensão popular, num período em que a ação – a imagem em movimento – traduz a psicologia coletiva (SILVEIRA, 2006, p. 87).

Nas palavras de Walter da Silveira, encontramos a importância dada ao cinema

principalmente por retratar aspectos coletivos de uma época. Desse modo, acreditamos que

não apenas imagens são capturadas no momento do registro fílmico, mas também as

próprias transformações societárias envolta nas realidades retratadas. Interessa-nos pensar

os documentários de Alexandre Robatto Filho como fragmentos que tornam tangíveis

momentos vividos pelo cineasta, evidenciando os vestígios de uma Bahia em sua relação

entre a memória e a história.

4.2 Com quantas imagens se faz uma Bahia Como podemos observar, nas páginas precedentes, acerca do cineasta Alexandre

Robatto Filho, as relações sociais, sem dúvida, foram um traço marcante na sua trajetória.

A sua ligação com órgãos públicos e as amizades com personalidades de destaque tanto na

política como no âmbito artístico redeu-lhe parcerias que ganharam visibilidade nas

imagens registradas por sua câmera.

Guiada por essa perspectiva, vamos encontrar nos registros fílmicos Robatto Filho

indícios de da memória de uma Bahia, que, na sua relação entre parte e todo, se inter-

relacionam mutuamente, como afirma Goldmann (1991). Segundo o autor, para o

pensamento dialético nunca há pontos de partida absolutamente certos, nem problemas

definitivamente resolvidos, ou seja, o pensamento nunca avança em linha reta, pois a

“verdade parcial só assume sua verdadeira significação por seu lugar no conjunto da

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mesma forma que o conjunto só pode ser conhecido pelo progresso no conhecimento das

verdades parciais” (p. 5).

Por esse motivo, ainda segundo o mesmo autor, que uma idéia ou mesmo uma obra

só recebe sua verdadeira significação quando é integrada ao conjunto de uma vida e de um

comportamento e acontece com certa freqüência que o comportamento que permite

compreender a obra não é a do autor, mas de um grupo social, ao qual o autor pode não

necessariamente pertencer.

Para a análise dos documentários que compõem o legado de Robatto Filho,

buscaremos o entrelaçamento das temáticas recorrentes com o contexto social latente da

época retratada nos seus filmes. Ademais, reforçamos que não só os aspectos da Bahia e

suas tramas societárias ficaram transparecidos na sua obra. Lembramos que o cineasta em

questão não estava deslocado de um contexto cinematográfico que era nacional – os filmes

de cavação - e até mesmo internacional, uma vez que as obras de Flaherty eram do seu

conhecimento.

Segundo Nichols (2005), para cada documentário, há pelo menos três histórias que

se entrelaçam: a do cineasta, a do filme e a do público. Assumindo formas diferentes, essas

histórias são parte daquilo a que assistimos quando nos perguntamos de que se trata tal

filme. Isso quer dizer, nas palavras do autor, que “quando assistimos a um filme, tomamos

consciência de que ele provém de algum lugar e de alguém. Existe uma história de como e

por que ele foi feito” (p. 93).

Partindo dessa teia de relações é que podemos conjecturar acerca das intenções do

autor com o que está sendo exposto pela narrativa fílmica, bem como compreender como

as considerações do filme se relacionam com o contexto social geral no qual a obra foi

realizada, mas para isso, se faz necessário levar em conta que cada espectador assiste a

uma obra com pontos de vista e motivações baseados em experiências prévias.

As predisposições e experiências não podem ser totalmente descartadas, uma vez

que “os documentários trabalham intensamente para extrair de nós as histórias que

trazemos, a fim de estabelecer ligação” (NICHOLS, p. 96, 2005), podendo apelar para

nossa curiosidade ou para nosso desejo de uma explicação.

Afirma Goldmann (1991) que toda grande obra literária ou artística é expressão de

uma visão do mundo que por sua vez não é um dado empírico imediato, mas, ao contrário,

um instrumento conceitual de trabalho, indispensável para compreender as expressões do

pensamento dos indivíduos. No entanto, em se tratando de um estudo de uma obra, não se

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deve ficar limitado àquilo que explica essa ou aquela visão. Cabe ainda perguntar “quais

são as razões sociais ou individuais que fazem com que essa visão (que é um esquema

geral) tenha sido expressa nessa obra, nesse lugar e nessa época, precisamente desta ou

daquela maneira” (p. 22).

Abordaremos, então, a grande temática das obras do documentarista Alexandre

Robatto Filho: a Bahia. Cantada nos versos de Dorival Caymmi ou na prosa de Jorge

Amado; retratada nos traços de Carybé ou na fotografia de Pierre Verger. O que

despertaria o interesse de artistas e intelectuais para consolidar um imaginário acerca da

Bahia e dos baianos? Na tentativa de elucidar tal questionamento, vale lembrar as palavras

de Mariano (2009), ao relatar que no Marrocos existe um palácio cujo nome é Bahia, “que

quer dizer ‘a bela’, a preferida entre as quatro mulheres e vinte e quatro concubinas de um

vizir do século passado” (p. 15).

Beleza esta que é reforçada pelas palavras de exaltação do escritor baiano

categorizando-a como eterna e sólida “como em nenhuma outra cidade brasileira, nascendo

do passado, rebentando em pitoresco no cais, nas macumbas, nas feiras, nos becos e nas

ladeiras, sua beleza tão poderosa que se vê, se apalpa e se cheira” (AMADO, 1966, p. 18).

Já no quesito predileção, poderíamos nos ancorar em fatos históricos que remetem à

chegada portuguesa ao Brasil, sendo em solo baiano o terreno onde as coisas aconteceram,

nasceram, surgiram. Soma-se também a escolha de Salvador para sede da primeira capital

do país.

Partir do ponto de um passado histórico é interessante para pensar como se

compuseram um conjunto imagético que mantém certa hegemonia na organização das

imagens baianas, que formariam o que Risério (1993) chamou de “mito baiano”

denominando como o que “está assentado no tripé: antigüidade histórica, originalidade

cultural, beleza natural e urbana” (p. 118) e esse mito evoluiu dos tempos coloniais até o

presente.

Desse modo, segundo Pinto (2001) o processo de formação e disseminação da idéia

de uma genuína e idiossincrática cultura baiana embasaria a construção de uma Bahia

estereotipada ora mítica, ora temporal, praieira, festeira. Existiria, então, segundo o autor,

um modus vivendi baiano ideal, distinto do resto do país e dotado de características

peculiares, que seria denominado baianidade.

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Esta baianidade poderia se inserir em uma espécie de gramática representacional da brasilidade como um todo, amplo imaginário coletivo onde caberia à Bahia o posto de ator especializado no lúdico, na promoção do entretenimento festivo-musical (p. 2)

No entanto, Risério (2004) alerta que ao contrário do que podem sugerir as diversas

fantasias da “baianidade”, ninguém é ou foi “baiano” por conta de algum decreto divino.

Segundo o autor:

[...] baiano é uma categoria histórica, gerada na convergência de determinados processos sociais. O que significa que houve um momento, em nossa trajetória histórica, no qual nossos antepassados começaram a se sentir, a se perceber e a se pensar como uma gente relativamente específica ou um povo algo singular, em comparação aos demais – isto é: como uma comunidade política e cultural. (p. 434)

Para Moura (2001), a baianidade é um texto construído, para isto concorrendo o

trabalho de inúmeros artistas e escritores, incluindo até alguns que muito pouco estiveram

em Salvador, como Carmem Miranda e Ari Barroso. Colaboraram também para essa

construção, ainda segundo o autor, os diversos setores do empresariado do turismo e pelas

elites que vêm ocupando o governo estadual e o municipal, que souberam captar e

reelaborar o capital simbólico da baianidade na forma de uma propaganda que, ao mesmo

tempo, apresenta a Bahia como sede da fruição tropical e moradia de um povo feliz. O

despertar para a dita singularidade, de certo modo, parte da visão desses artistas-

pensadores e do cenário político.

Essa capacidade de se manter sempre alegre, confiante ao ponto de contagiar o

outro com este “estado de espírito” aparece como um dos principais ensinamentos baiano,

é o que afirma Mariano (2009). Para a autora, uma das mais importantes lições da

baianidade, e o mais caro de todos os seus ensinamentos, é essa “forma positiva de encarar

a vida, a capacidade de não ter pressa, de não se aborrecer a toa” (p. 169). Além disso, a

originalidade, o ser ou o fazer de um modo diferente, aliados com a graça, habilidade, afeto

ou beleza também comporiam o arcabouço do jeito baiano.

Retomando a idéia de uma imagem baiana alavancada por artistas, nos deparamos

com a obra de Jorge Amado que continham traços muito próximos das canções entoadas

por Dorival Caymmi. Para Albuquerque Júnior (1999), a visibilidade que a Bahia teve com

os escritos de Amado enfatizava, o pitoresco e o sensual, reproduzindo a visão naturalista

da Bahia, centrada em aspectos exóticos, tropical, elementos marítimos, como também

trouxe à tona o mundo popular baiano que tinha como base, sobretudo, uma produção

negra saída da escravidão, com seus costumes e traições. Desse modo que, na visão do

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autor, a obra de Jorge Amado, como a de Caymmi, instituirão o ser baiano, pensarão a

baianidade, a identidade baiana e da sua cultura como algo à parte no Brasil. A Bahia,

como a própria obra de Jorge Amado, cultivaria o passado e projetaria o futuro e em

matéria de cultura, despontaria como “um defensor e inventor de uma tradição: a tradição

do nordeste negro da Bahia. Um nordeste também reativo à modernidade” (p. 228).

A baianidade representaria a imagem da Bahia e do seu povo nas suas

características específicas, no seu modo de ver e ser visto pelos nativos e não-nativos do

Estado e a literatura, as canções e, poderíamos incluir, as imagens cinematográficas

contribuíram de modo significativo para a manutenção da idéia de uma cultura baiana

principalmente pela circularidade própria a cada meio.

O que chamamos hoje de cultura baiana, lembra Risério (1993), é um complexo

cultural historicamente datável que desde o século XIX vem se desdobrando quando a

Bahia ingressa num período de declínio. Desde a mudança da capital para o Rio de Janeiro,

bem como a instalação posteriormente da sede da monarquia em solo carioca, atestam o

papel secundário que a Bahia vinha desempenhando no cenário nacional. Nas palavras do

autor:

A Bahia vai mergulhar, por bem mais de cem anos, num período de relativo isolamento e solidão, antes que aconteça sua inserção periférica na expansão nordestina do capitalismo brasileiro. E foi justamente na maturação desse mais de cem anos insulares, de quase assombroso ensimesmamento, que se desenvolveu a trama psicossocial de uma nova conjuntura organicamente nascida, sobretudo, das experiências da gente lusa, da gente banto e da gente iorubana (p. 158)

E foi em meio ao que Risério (1993) chama de mormaço econômico e ao crescente

desprestígio político que se deu a articulação das práticas culturais no sentido da

individuação da Bahia no conjunto brasileiro de civilização, movimento que ocorreu entre

meados do século XIX e as primeiras décadas do século XX.

Cabe ressaltar que há uma significativa historiografia baiana do século XX, haja

vista que uma literatura substancial já foi produzida tendo como centro de pesquisas e

discussões esta temática. Portanto, traremos à tona, circunstancialmente, alguns pontos

para contextualizar o período histórico aqui retratado.

Durante os primeiros cinquenta anos do século XX, a Bahia praticamente não

aderiu ao alcance dos fluxos econômicos, tecnológicos e simbólicos da modernização que

assolava o país. A vida no estado baiano nesse período permaneceu distante dos fenômenos

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da industrialização, urbanização acelerada, emergência de um proletariado industrial e de

classes médias urbanas.

O século XX baiano parece partido ao meio. Até a década de 1950, a Cidade da Bahia e o seu Recôncavo permanecem compondo um espaço coeso, essencialmente tradicional. Ainda é a Bahia do saveiro, do terno branco, da vegetação exuberante, das ruas que se espreguiçam sob o sol. (RISÉRIO, 2004, p. 455).

No início do século XX, Salvador se configura como uma cidade quase paralisada,

uma vez que será a capital brasileira que apresentará as menores taxas de crescimento

populacional. Afirma Risério (2004) que essa paralisia não se resumia exclusivamente aos

aspectos demográficos. Com o reinado do café no centro-sul do país, se afirmando como

principal produto de exportação do Brasil, aprofunda-se no estado baiano o declínio da

economia primário-exportadora pautada principalmente na indústria açucareira. O

deslocamento do espaço produtor de cana de açúcar para as Antilhas e Cuba, alcançando a

preferência do mercado internacional, fez a Bahia perder o posto de destaque na

exportação do produto.

No entanto, neste mesmo período emerge uma nova fronteira agrícola para Bahia

com as plantações de cacau no sul do estado. Se Ilhéus antes era um pequeno povoado

fundado por jesuítas, com a chegada dos cacauais a cidade deu um salto de crescimento se

transformando em um centro gerador de riquezas. O fato é que “se a Bahia tivera a

“guerra” arcaica de Canudos, tinha também agora, em outro extremo, a lavoura “moderna”

das terras sulistas, que exibiam então, em seus núcleos urbanos, agências bancárias, casas

de comércio, jornais” (RISÉRIO, 2004, p. 458).

Embora a Bahia não conseguisse acompanhar o ritmo de crescimento industrial da

região sudeste do país vale lembrar que nem sempre essa configuração foi a mesma. A

agroindústria açucareira dispunha dos aparatos tecnológicos mais avançados da época

tecnologias. É assim que em meados do século XIX, a Bahia apresenta um potencial

notável no setor industrial, mas o fato da perda da primazia no comercio exterior da cana

de açúcar produzida no Brasil, bem como a não consolidação de um outro tipo de atividade

extra-açucareiro, foram fatores que contribuíram para a estagnação que se estabeleceu no

estado.

As atividades industriais iam se enfraquecendo, sobretudo porque continuavam

atreladas aos ramos tradicionais da economia. Para Risério (2004), a queda na demanda

externa do açúcar, implicava a queda na demanda interna dos produtos da indústria, assim

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a decadência da exportação conduzia ao desmantelamento progressivo do parque industrial

nascente. Dessa forma, do século XIX até meados do século XX, a Bahia possuía

indústrias, mas não chegaria a vivenciar uma verdadeira industrialização, na acepção

processual do termo. Mas é necessário atentar para outros fatores que concorreram para o

esse quadro econômico: os dirigentes políticos estaduais foram contrários à movimentação

que levou Getúlio Vargas a assumir o poder no episódio conhecido como Revolução de

1930; outro ponto é que o próprio governo federal pós revolução não trazia uma política

sistematizada para expansão do setor comercial.

Afirma Oliveira (2003) que praticamente toda a primeira metade do século XX é o

desenrolar desse drama, com Salvador controlando a circulação do excedente do cacau e

do tabaco produzidos no estado marcado por uma indústria de pouca expressão. Só por

volta dos anos 1950 a Bahia vai ser alcançada por transformações que a empurrarão na

direção de uma sociedade com características normalmente associadas ao espírito dos

tempos modernos inaugurados pelo novecentos.

Otávio Mangabeira, em 1947, assume o governo da Bahia que ainda era dependente

da exportação agrícola, principalmente do cacau. Outras dificuldades também foram

enfrentadas pelo então governador, como aponta Guimarães (1982): “provinha também

uma grande variedade de interesses econômicos que prevaleciam, na Bahia, sem que

houvesse, entre eles, uma organicidade regional” (p. 107). O mérito do governo de

Mangabeira, foi saber aliar ao espírito liberal uma firme liderança econômica e moral sem

deixar de lado o espírito da reconstrução.

A questão de uma Bahia que não se industrializava, tendo como conseqüências a

estagnação e uma perda de posição na economia do país permeava a mente de políticos da

época o que fez com que essa realidade da primeira metade do século fosse batizada por

Otávio Mangabeira, como “enigma baiano”, que assim o definiu:

Intrigava-me, desde muito, o que chamei o enigma baiano: porque razão a Bahia, cujas qualidades e riquezas eram, em geral, tão celebradas, se mantinha, todavia, em condições de progresso indiscutivelmente inferior ao que resultaria, em boa lógica, de semelhante conceito, assim tivesse ele a procedência que se lhe atribuía? (...) Reinava de modo geral, uma atmosfera de desanimo e – o que era talvez pior – de conformação com o abandono, para não dizer com a decadência, uma grande, profunda descrença na ação do pode público. A Bahia, que indiscutivelmente se distingue por notáveis qualidades de inteligência como também generosidades, revelou sempre assinalado pendor para o culto dos grandes ideiais de liberdade, justiça, solidariedade humana. Mas o estudo, terra a terra, sob o pondo de vista prático, dos problemas fundamentais do

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aumento da produção, ou seja dos meus concretos de ir ao encontro do povo, que precisa alimentar-se, vestir-se, de ter onde morar, de saber ler, escrever e aprender a ganhar a vida, nunca terá sido propriamente da predileção dos baianos, mais propensos ao gosto da eloqüência, da beleza, do brilho das palavras e das idéias (A TARDE, 30.1.1951 apud GUIMARÃES, 1982, p. 109 )

Estudar a Bahia nos seus diferentes aspectos parece ter sido o ponto de partida para

o desenvolvimento de propostas de governo pensadas por Otávio Mangabeira, pois

cumpria conhecer a realidade da Bahia como passo importante para entender-se

possibilidade de mudança (MEDEIROS, 2009, p. 97).

Ao defender que o estudo das ciências básicas seria capaz de uma transformação da

mentalidade dos baianos, celebra um convênio com o Programa de Pesquisas Sociais –

Columbia University para pesquisas no território baiano, é a versão baiana do Projeto

Unesco desenvolvido no Brasil. Segundo Farias (2007) a proposta teve suas linhas gerais

básicas traçadas em 1949, envolvendo intelectuais como Charles Wagley, Thales de

Azevedo e Luiz Aguiar Costa Pinto e tinha como propósito tanto estimular abordagens

sócio-antropológicas quanto realizar um mapeamento das áreas rurais e urbanas

considerando fundamentalmente o tema da dinâmica de mudanças sócio-culturais na

elaboração de um projeto de implementação de um novo sistema de ensino no estado.

Confluíram forças para efetivar a Bahia enquanto uma unidade de poder frente à

conjuntura nacional, ou seja:

Estava clara a intenção na esfera do governo, naquele momento, de recorrer aos préstimos das ciências sociais e outras disciplinas afins para dotar as políticas públicas de insumos que de fato contribuíssem para o objetivo de potencializar a ação governamental em favor do desenvolvimento estadual. (FARIAS, 2007, p. 106)

O cenário de estagnação baiana começaria a mudar no final dos anos quarenta, com

a chegada da energia elétrica produzida pela CHESF – Companhia Hidrelétrica do São

Francisco instalada em Paulo Afonso, e das ações empreendidas pelo Ministério da

Agricultura e do Conselho Nacional de Petróleo.

Imbuído no princípio desenvolvimentista das políticas governamentais de Otávio

Mangabeira, Anísio Teixeira assume no final da década de 1947 a Secretaria de Educação

e Saúde. Na sua gestão, viu-se a implantação de escolas diferenciadas dos modelos

tradicionais e criação da Superintendência de Difusão Cultural que em pouco tempo se

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tornaria um centro de apoio para as artes plásticas, a música, o teatro, o cinema e a

literatura baiana.

No campo cinematográfico, como ressalta Gusmão (2007) apoiou a iniciativa de

Walter da Silveira na fundação do Clube de Cinema da Bahia que iniciou as suas

atividades no auditório da Secretaria de Educação em 27 de junho de 1950. Em 1951, a

mesma secretaria apoiará as atividades do clube de cinema, através de patrocínio ao I

Festival de Cinema da Bahia. “Não se conhecia filme de arte na Bahia. Começamos em

Salão da Secretaria de Educação, graças a Anísio Teixeira, então secretário, e Alexandre

Robatto, antigo e tenaz cineasta, que conservou aceso o ideal a vida toda” (COQUEJO

apud DIAS, 2006, p. 259).

Esse movimento cinematográfico que acontecia na Bahia não era isolado, como

lembra Paulo Emílio Salles Gomes (1981). Cita o autor que para compreender será

necessário situá-lo num conjunto de fenômenos artísticos e sociológicos no tempo e no

espaço, ou seja, “será preciso repensarmos tudo, do barroco à Petrobrás, a fim de vermos

organizarem-se as linhas de um acontecimento de importância nacional e para o qual a

única expressão cabível será a de Renascença baiana” (p. 405).

Risério (1995) aponta que a partir do final da década de 1940 se criou um

“ecossistema” propício ao aparecimento, à formação e ao desenvolvimento de uma

personalidade cultural criativa que se encarnou em artistas-pensadores. A história da

produção estético-intelectual brasileira no século XX, tomando como base os escritos

críticos, não deixa de mencionar a conjuntura de efervescência renovadora.

Derrotar a província na própria província parece ter sido, de fato, a palavra-de-ordem geral, atravessando gerações e as inevitáveis diferenças e singularidades dos agentes transformadores. Numa fórmula concisa, a província se pensou planetária: informações de – e para – todos os lugares (p. 15).

A modernização da Bahia, agora aparecia como uma meta, um ideal para que o

Estado acompanhasse a primeira investida industrialista, modernizadora. A estrutura

econômica da província permaneceu essencialmente agro-mercantil, apesar da virada

reformista que mobilizou o centro sul do país. Uma elite modernizante se mostra disposta a

balançar o coreto provinciano, conforme palavras do mesmo autor. Edgar Santos, reitor-

fundador da Universidade da Bahia entre os anos de 1946 a 1961, defendia que o poder

econômico e o poder cultural convergissem para a superação desse atraso. E no âmago

desse poder cultural deveria estar a universidade, se fazendo centro da agitação cultural,

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numa época de múltiplas iniciativas no campo da produção estético-intelectual. A

Universidade é vista por Edgar Santos como geratriz do progresso social onde se irmanam

e se imantam as energias fundamentais, onde se desenham tanto uma fisionomia estética

quanto uma nova mentalidade econômica.

Embora a Bahia, na segunda metade do século XX, iniciasse os primeiros passos

para o despertar do atraso frente aos outros estados brasileiros, fica evidente que a primeira

fase significativa da modernização nacional não foi acompanhada de perto pelos baianos.

Para Risério (1993), quanto mais o Brasil conhecia as inovações, mais ficava exposto o

enraizamento das estruturas da sociedade baiana no passado colonial. E o que chamava

atenção, ainda segundo o autor, é que, quanto mais visível ia se tornando o seu

tradicionalismo, mais esclarecia, em tudo o que fosse Bahia, uma aura mítica; “o Brasil

passa a chamá-la ‘a boa terra’, epíteto da Bahia provinciana em tempos recentes” (p. 166).

A descrição das práticas culturais e um modo de sentir e pensar tradicionais foram

opções adotadas pelo discurso da baianidade, é o que afirma Mariano (2009) que nomeia

tradição como tudo o que remete à continuidade, manutenção, sobrevivência. A tradição

pode ser citada como um motivo para se optar pelo modo baiano de viver e pelas vantagens

que traria – proteção e primazia –, como também pode aparecer como um resultado da

repetição de antigos costumes. Nas variáveis formas de se convocar a manutenção dessas

práticas tradicionais, a simples referência a elas, já representaria uma forma de mantê-las

vivas, mesmo que na memória, uma vez que merecer ser tematizada já é atestado claro de

importância. Ainda segundo a autora:

[...] uma tensão presente nessas idéias associadas a uma “habilidade baiana de perpetuar” é que elas remetem ora a uma capacidade de adaptação – convívio/coexistência, mistura/fusão – ora a uma dimensão conservadora – hereditariedade, pioneirismo, obrigatoriedade (p. 144)

Por vezes, uma idéia ou outra é acentuada em favor da finalidade que tal prática

acerca dos elementos tradicionais venha a acionar, podendo resultar em estratégias

incitadas por questões políticas e de poder. Propõe Farias (2008) que a narrativa sobre a

tradição esteve em consonância com as vicissitudes experimentadas pelo leque de grupos

dominantes regionais, no momento em que o processo de centralização estatal nacional os

colocou em posição inferiorizada nas linhas de comando concentradas no centro-sul do

país, desde o terço final do século XIX. O autor aponta duas tendências para esse

movimento:

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De um lado, as facções dominantes aplicam esforços – calcados no recurso do discurso sobre a antecedência da Bahia na formação dos valores nacionais –, visando a integrarem-se nos pólos decisórios da República. De outro, a consequência não programada de tal aplicação consiste na exigência de estender suas bases de legitimidade, o que transportou práticas, símbolos e instituições dos segmentos populares para as instâncias conspícuas da representação regional. Cada vez mais, eles são referidos como elementos constituintes da chamada “Bahia tradicional”, núcleo da “mística brasilidade lúdica”. (p. 578)

Importante perceber que na dinâmica entre as partes e o todo, as discussões em

torno do tradicionalismo não se restringia à Bahia. A própria concepção de nordeste se

calcou nas premissas da saudade e da tradição, afirma Albuquerque Júnior (1999),

ressaltando, ainda, que a região surgiu na paisagem imaginária do Brasil no final da década

do século XX, em substituição à antiga divisão regional do país entre norte e sul. Assim, o

nordeste tem um ponto de partida, que não estaria dado desde sempre, e se configura como

uma espacialidade fundada historicamente, originada por uma tradição de pensamento,

uma imagística e textos que lhe deram realidade e presença. Seria, pois, a Bahia fruto deste

mesmo entrelaçamento para a construção de uma dita baianidade: tradição, elementos

textuais e imagéticos.

Ainda segundo Albuquerque Júnior (1999), o nordeste dito “tradicional” é um

produto da modernidade e não é por acaso que essas tradições são sempre calcadas em

fragmentos de um passado rural e pré-capitalista, sendo ainda buscadas em padrões de

sociabilidade e sensibilidade patriarcais, quando não escravistas. Este quadro se configura

como uma idealização do popular, da experiência folclórica, da produção artesanal, tidas

sempre como mais próximas da verdade da terra. Para o autor,

a busca das verdadeiras raízes regionais, no campo da cultura, leva a necessidade de inventar uma tradição. Inventando tradições tenta-se estabelecer um equilíbrio entre a nova ordem e a anterior; busca-se conciliar a nova territorialidade com antigos territórios sociais e existenciais. A manutenção de tradições é, na verdade, sua invenção para os novos fins, ou seja, a garantia da perpetuação de privilégios e lugares sociais ameaçados. (p.90)

Perpetuar traços de um passado perpassa pelo receio de não ter espaço em uma

nova conjuntura, de perder a memória individual e coletiva, e por isso uma ênfase na

tradição, na construção deste nordeste é imprescindível.

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Uma região que se constrói pela memória implica uma convivência entre a idéia de sobrevivência e a de vácuo. O passado aparece em todas as alegria de redescoberta, para, ao mesmo tempo, provocar a consciência triste do seu passar, do seu fim. (...) A ênfase na memória nasce dessa vontade de prolongar o passado para o presente e, quem sabe, fazer dele também o futuro. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 81)

No que toca aos desdobramentos do conceito de uma invenção da tradição,

recorremos aos estudos de Hobsbawm (1984) quando afirma que o termo “tradição

inventada”, que é pensado por ele num sentido amplo e definido, inclui tanto as “tradições”

realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que

surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de

tempo e, por vezes, se estabeleceram com enorme rapidez.

Ressalta ainda se pode entender como um conjunto de práticas, normalmente

reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas e essas práticas, de natureza ritual ou

simbólica, visam propor alguns valores e normas de comportamento através da repetição, o

que implica automaticamente, na visão do autor, numa continuidade em relação ao

passado.

No entanto ao passo que há referência a um passado histórico, as tradições

“inventadas” caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade artificial. Segundo

Hobsbawm (1984):

elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória. É o contraste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social que torna a “invenção da tradição” um assunto tão interessante para os estudiosos da história contemporânea (p. 10)

Escudado no pensamento deste autor, poderíamos suscitar que a construção de uma

idéia de Bahia foi calcada na invenção de uma tradição pautada, sobretudo, na confluência

de um antigo e um moderno. Desponta-se um cultuar o passado, sonhando com o futuro,

como observou Jorge Amado (1966) alertando ainda que “o conservador e o revolucionário

coexistem no espírito da cidade [Salvador], chocam-se, fundem-se por vezes, são quase

palpáveis no seu contraste” (p. 24).

Das cantigas de Caymmi para a literatura de Jorge Amado. Das imagens fixas de

Pierre Verger para os fotogramas animados de Alexandre Robatto Filho. O cinema também

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corrobora o leque imagético que deu corpo aos discursos tendo como temática principal a

Bahia.

Poderíamos dizer que na obra de Alexandre Robatto Filho há uma demonstração

das faces de uma transição pela qual passava o Estado: de um lado uma Bahia ainda

marcada fortemente por traços provincianos, do outro, o processo industrial que emergia

no novo panorama local. No entanto, os outros aspectos da baianidade, sobretudo

ancorados no tripé antigüidade histórica, originalidade cultural e a beleza natural e urbana,

do qual falou Risério (1993) são temas recorrentes na filmografia deste cineasta. É possível

notar ainda as imbricações que tornaram possível o fazer cinematográfico de Robatto

Filho, apoiando-se por vezes em apoios de nível privado, estadual e federal.

4.3 Bahia em quatro atos Pelas obras de Alexandre Robatto Filho é possível notar a sua predileção temática,

ora estampada em imagem, ora pelas páginas de sua faceta romancista, tornando evidente

que a Bahia era a protagonista de seus feitos independente do meio que ele viesse a

utilizar.

No ano do lançamento do único livro de sua autoria, o romance “Raimunda que

foi”, o escritor Jorge Amado publica uma nota, pela mesma editora que lançou a obra,

intitulada “Mestre Robatto Filho”. O incansável trabalhador da cultura: assim Amado

(1976) se refere ao cineasta ressaltando ainda que “a Bahia é o território, é o chão de

Robatto” (s.p). Atributos como incansável, múltiplo e pioneiro também aparecem no

decorrer do texto. Segue nas palavras do autor:

Veterano das lides da cultura baiana, pioneiro da pesquisa, do disco, da fotografia, do cinema, sei lá de quantas coisas mais! Robatto Filho, nos tempos difíceis, quando ninguém ligava a mais mínima para essas coisas, foi dos poucos que não desistiram, que acreditaram na necessidade, urgência e viabilidade da criação cultural no Estado da Bahia e a ela se dedicaram. (AMADO, 1976, s.p.)

Em outro trecho, discorre sobre o pioneirismo de Robatto Filho e a importância de

seu trabalho com as canções populares. Vale lembrar, que Vinicius de Moraes, ao ter

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contato com discos produzidos por Robatto Filho, solicita a liberação do uso da música

“Labareda” como base para uma canção de sua autoria8:

Hoje os músicos, baianos ou forasteiros, pesquisam as raízes de nossa música popular, aquela aqui nascida da fusão de raças e sangues. Os mais sérios, um Caetano, um Gil, sem falar em Dorival, trabalham essa tradição, sobre ela constroem sua criação para restituí-la engrandecida ao povo de onde ela proveio. A propósito, recordo uma cena em minha casa, no Rio de Janeiro, há muitos anos. Antonio Maria, pernambucano que a Bahia laminou, mestra da música popular brasileira (...), explodindo em exclamações da maior admiração, ao ouvir um disco de samba de roda e cantos de capoeira, recolhidos por um pesquisador baiano: Alexandre Robatto Filho. Disco precioso, pioneiro: o pioneirismo foi condição quotidiana da árdua tarefa de Robatto (AMADO, 1976, s.p.).

Ainda tendo como foco a obra literária robatiana, Thales de Azevedo, médico e

pesquisador que atuou juntamente com Anísio Teixeira e outros estudiosos no Programa de

Pesquisas Sociais Estado da Bahia – Columbia University entre os anos de 1950 a 1953,

publica no Jornal A Tarde, do dia 08.12.1976, o artigo “Pontos Altos da Nossa Cultura”.

Em seu texto, destaca que a gênese da história narrada é sem duvida a própria vida, a vida

baiana no recôncavo, a vida de experiência do autor com as coisas, as muitas coisas dessa

região da Bahia. Defende Azevedo (1976) que muitos partidos se podem tirar da riqueza

existencial da nossa gente, porém “é forçoso reconhecer que poucos o fariam melhor que

esse tardio estreante de ficção” (s.p.).

Embora nossa atenção esteja voltada para as obras cinematográficas de Robatto

Filho recobramos os textos de Jorge Amado e Thales de Azevedo com o intuito de

demonstrar como os assuntos ligados à Bahia estavam presentes em seu legado refletindo

as próprias experiências de vida, de um homem que sempre viveu no Estado e ajudou na

construção de um arcabouço cultural baiano.

Interessa-nos observar no legado fílmico robattiano a sintonia estabelecida entre

imagens da Bahia e uma tradição inerente ao Estado, percebendo que as idéias de uma dita

baianidade, são elementos que permeiam as suas obras e que estabelecem uma conexão

com uma produção imagética recorrente ao se referenciar à Bahia e ao povo de sua terra.

Dessa forma, percorreremos os documentários do cineasta em questão

classificando-os em grandes temáticas, tendo como parâmetro os próprios elementos que

compõem o discurso da baianidade, além disso, uma vez que revisitamos os filmes, nos foi

8 Informação obtida através do Catálogo Comemorativo pelo Centenário de nascimento de Alexandre Robatto Filho, lançado pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, em 2009.

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possível a catalogalização completa de seu acervo fílmico. Para uma melhor compreensão

do entrelaçamento sócio-histórico baiano com os documentários produzidos por Robatto

Filho, optamos por dividir sua obra em quatro eixos centrais por entender que os assuntos

tratados poderiam ser agrupados em denominadores comuns que aproximavam filmes

realizado em datas diferentes. As temáticas encontradas foram assim definidas por nós: a

agropecuária, as manifestações públicas, aspectos da modernização nascente e paisagens

naturais e urbanas. Embora em um documentário possamos identificar duas ou mais

temáticas, reforçamos que para enquadrá-lo em um ou outra utilizamos os aspectos que

mais ressaltavam nas imagens apresentadas.

Para grande parte dos documentários, nos restringiremos a uma pequena sinopse

com os pontos mais relevantes registrados pelo documentarista. No entanto, elencamos três

obras, dentro dos blocos temáticos, para as quais desprenderemos mais atenção por

revelarem elementos significativos que corroboram com aspectos da tradição baiana. São

eles: Aconteceu na Bahia n° 2 (1947); Bahia Pitoresca (1942); Um milhão de KWA (1949).

De antemão, adiantamos que os três filmes sobreditos, com relação ao seu modo de

feitura, são constituídos aos moldes do chamado documentário clássico, no qual, segundo

Ramos (2008) as asserções sobre o mundo são feitas mediante o uso da voz over9, uma voz

onisciente, fundindo música, ruídos, montagem rítmica com uma função educativa e social,

intencionando a formação de uma opinião. Faremos uma ressalva para Bahia Pitoresca

que, embora siga os mesmo preceitos citados acima, a voz que aparece é a voz off10, ou

seja, a fala que se ouve é atribuída a um dos personagens que aparece no filme, ela não é

onisciente, no entanto, ele não aparece frequentemente enquadrado, ouvindo-se, apenas

uma narração.

Com relação à voz do documentário, Nichols (2005) chama atenção que esta muitas

vezes não se restringe apenas ao que é dito verbalmente ou ao que aparece escrito na tela.

Se os documentários representam questões, aspectos, características e problemas encontrados no mundo histórico, pode-se dizer que falam desse mundo através de sons como de imagens. Essa questão de discurso

9 Para Nichols (2005), as palavras ditas ou escritas em um documentário representam o ponto de vista do filme diretamente, caracterizando-se como comentário com “voz de Deus” ou “voz onisciente” a pessoa que fala, mas não aparece no vídeo, apenas sua voz se dirige a nós, expondo o seu ponto de vista de maneira explícita. 10 O que Bernardet (2003) chama de “locutor” ou “voz off” é a voz que lê o comentário ou narração do filme. É a voz de um ator que deixa o campo (espaço visível na imagem), mas, continua falando tornando-se off.

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suscita a questão da “voz”. Todavia, documentários não são palestras, e questões de discurso e voz não são entendidas aqui literalmente (NICHOLS, p. 72, 2005).

A voz do documentário fala através de todos os meios disponíveis para o criador,

passando pela seleção das imagens que serão mostradas, os enquadramentos utilizados, os

movimentos de câmera e os seus arranjos com os sons que irão compor a montagem final

da obra.

Os mesmos filmes também podem ser classificados no que Nichols (2005)

denominou como “modo expositivo”, referindo-se aos documentários que “agrupam

fragmentos do mundo histórico numa estrutura mais retórica ou argumentativa do que

estética ou poética” (p. 142). Ainda segundo o autor, o modo expositivo dirige-se ao

espectador diretamente, com legendas ou vozes que propõem uma perspectiva, expõem um

argumento ou recontam uma história. O tom oficial que é dada às narrações apresenta um

estilo peremptório dos âncoras e repórteres noticiosos, empenham-se na construção de uma

sensação de credibilidade, usando características como distância, neutralidade e

onisciência.

Com relação aos filmes que retratam as questões agropecuárias do Estado nos

restringimos a uma breve contextualização histórico-social e descrição primária dos filmes,

uma vez que em sua grande maioria são pequenas vistas11 sobre fazendas e feira de

negócios. No entanto, vale ressaltar, muitas histórias só puderam ser contadas pelas lentes

de Robatto Filho graças a cavações bem sucedidas junto a fazendeiros e políticos.

4.3.1 Passa boi, passa boiada A criação de gado diferiu das outras atividades do período colonial principalmente

por ser um tipo de comercio voltado para o mercado interno, com irradiação significativa

capaz de unir diferentes regiões do país e pela não utilização do trabalho escravo. Alencar

(1996) ressalta que nas fazendas de açúcar havia criação de gado, destinado para a

alimentação da população local e como força motriz para os engenhos. Com o tempo, o

gado foi considerado antieconômico porque exigia pastos e ocupavam terras que poderiam

ser mais rendosas se cobertas de canaviais. Isso desencadeou uma reação da corte

portuguesa que proibiu a atividade pecuária perto do litoral. Por resistir ao clima semi-

árido, o gado desbravava o agreste e o sertão do Nordeste, abrindo caminhos que se

11 Chamamos aqui de vistas documentários sem grandes preocupações estéticas e com narrativa menos elaboradas, restringindo-se, por vezes, a imagens estáticas e ilustrativas.

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tornariam importantes meios de comunicação na época. Dessa maneira, essa atividade “ia

realizando a integração de diferentes regiões econômicas por ser a única do período

voltada para o mercado interno. Os proprietários que não conseguiam manter os engenhos

tornaram-se fazendeiros de gado. (p. 54)

Para Prado Júnior (1994), os processos empregados para a criação bovina são mais

simples do que as atividades industriais. As instalações de uma fazenda são sumárias,

restringindo-se a currais e casa de vivenda. Os empregados são os vaqueiros e alguns

poucos auxiliares. A pecuária que era possível se realizar naqueles tempos era rudimentar,

com a criação do gado em pastos livres, os cuidados com o rebanho se restringia à cura das

feridas e a proteção contra possíveis predadores.

Com as primeiras criações bovinas, surge também o dono do gado, que

posteriormente se tornarão importantes fazendeiros com respaldo e influência nas políticas

locais. Surgiram também as feiras que juntamente com as fazendas deram origem a núcleos

de povoamento, como Feira de Santana, na Bahia e assim iam se formando extensas

enormes propriedades sertanejas (ALENCAR, 1996, p. 54).

Juracy Magalhães, então governador da Bahia em 1935 pôs como objetivo de sua

gestão, do ponto de vista econômico, o fortalecimento das bases técnicas e financeiras da

agricultura. Para isso, como lembra Guimarães (1982), pôs em funcionamento o Instituto

do Cacau, criou o Instituto do Fumo, o Instituto do Fomento Econômico da Bahia e o

Instituto da Pecuária, órgão que Alexandre Robatto Filho trabalhou por um dado período.

É interessante observar que há uma divulgação da Bahia agropecuária

possivelmente retratada como uma realidade econômica e política que se baseia na grande

produção agrícola, na simbolização do poder rural, no latifúndio interiorano e nas relações

de poder baseadas nesse processo com uma forte ênfase na Bahia rural. A aproximação do

documentarista com o Instituto da Pecuária possibilitou a realização de uma significativa

produção fílmica.

A Quinta exposição de “animaes” e productos derivados (1939) evidencia o

desfile de gado, aves e cavalos na V Exposição de Animais e Produtos Derivados que

ocorreu no Parque de Ondina em Salvador contando com a presença de civis e militares no

palanque. A Cooperativa Central do Instituto de Pecuária da Bahia patrocina não só esta

obra, aparecendo como apoio em diversos filmes ao longo dos anos de produção de

Robatto Filho. Também em 1949, é produzido com o apoio da Secretaria de Agricultura,

Indústria e Comércio Quatro séculos de pecuária, que narra a história dos fundadores da

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pecuária na Bahia juntamente com imagens da XVI Exposição Pecuária Nacional de

Animais em Salvador, registrando nas dependências no evento o governador Otávio

Mangabeira e do secretário de agricultura Nestor Duarte e na mesma temática lança

Exposição pecuária ocorrida no Parque da Ondina com desfile de animais, entrevistas de

veterinários e aparição de algumas figuras políticas baiana: Governador Otavio

Mangabeira, Juracy Magalhães, Nestor Duarte, Anísio Teixeira.

Desfile de animais e a presença de autoridades políticas, como o governador Otávio Mangabeira e Anísio Teixeira em Quatro séculos de pecuária.

Alguns filmes não deixam explícita a data de feitura, porém sabe-se que foram

gravados entre os anos de 1940 a 1960, é o caso, por exemplo, de Vaqueiros que traz nos

letreiros iniciais: “integrando o vaqueiro na vida social fez-se justiça ao herói obscuro de

uma batalha sem vitórias. Mostrou-se ao Brasil a rocha viva da nacionalidade”. Homens de

terno e vaqueiros vestidos a caráter são protagonistas de uma entrega de documentos. Um

vaqueiro mostra o documento para câmera e segue, escrito na tela, o registro da 2ª

Exposição de Caprinos e Ovinos do Nordeste.

Em 1953, outros dois filmes são rodados: A marcha das boiadas, apoiado pela

Cooperativa Central do Instituto de Pecuária da Bahia, trazendo ainda agradecimentos

explícitos a fazendeiros, mostra imagens do Tabuleiro da Mutuca, no chapadão da Serra do

Tombador onde uma boiada parte em direção a cidade de Ruy Barbosa; Pecuária baiana

retrata fazendas localizadas na cidade de Mundo Novo, que compõem a Companhia

Agrícola Industrial Pastoral S/A e outras que são mantidas pelo Instituto de Pecuária da

Bahia, que inclusive aparece como patrocinadora da obra.

Escudado em Risério (2004) lembramos que enquanto mineiros e paulistas se

revezavam à frente do governo nacional, na Bahia o que marcava o panorama político era

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uma insurreição de coronéis – os senhores das terras – descendentes das velhas formas de

governança com costumes próprios e leis não escritas. Quem pleiteasse assumir a dianteira

da política no Estado era preciso estar em boa paz com os coronéis. Ainda sobrevivia em

tempos republicanos o mandonismo da “ponta da faca, do brilho do punhal e do disparo do

fuzil” (p. 457) que foi característico dos tempos coloniais.

Embora não tenha defendido a figura do coronel, percebemos que nas imagens de

Robatto Filho os encontramos de maneira transfigurada nos fazendeiros que participavam

das exposições de gado, até os donos de hectares significativos de terra. Era como se as

imagens denunciassem, sim, os tempos são outros, mas a Bahia ainda encontra poderio

econômico nos rebanhos espalhados nos diversos recônditos do Estado. Além disso,

notamos que estes filmes são frutos de cavações, são filmes encomendados por órgãos

públicos e a agropecuaristas baianos. Conforme exposto anteriormente, Robatto Filho

trabalhou no Instituto da Pecuária da Bahia e afirmou que devia à Cooperativa da Pecuária

da Bahia a possibilidade de seu trabalho ser registrado na bitola de 35mm.

4.2.1 E o povo se manifesta A vida cultural revela aspectos centrais da Bahia, com suas peculiaridades e

manutenção da tradição como ideário de uma singularidade que demarca fé, poder,

intelectualidade e reminiscências em um espaço comum de memória popular e oficial.

Lembra-nos Santos (2005) que os signos que definiriam a baianidade não eram só

ligados ao candomblé, nem só a paisagem ou a arquitetura. Estaria também definida pela

gente e o viver da Bahia, reforçando uma singularidade do povo baiano. Em seu livro

“Bahia: imagens da terra e do povo”, Odorico Tavares (1951) dedica um capítulo às festas

populares e religiosas do Estado ressaltando os ciclos de festejos em que, segundo o autor,

a tradição não morreu. Focalizando, sobretudo, a cidade de Salvador, exalta que “a cidade

mais bela do Brasil sabe entregar-se ao seu povo, sabe com ele fundir-se num só

organismo, tornar-se como um único ser” (p. 20)

E nas imagens de Robatto Filho o povo se manifestava nas festas particulares, nos

eventos oficiais promovidas pelo governo, no jogo de capoeira e, como não poderia faltar,

nas saídas em cortejo para as celebrações religiosas.

Carnaval – g´D´avila – Racho (1946) traz à baila foliões dançando no Clube

Baiano de Tênis. Nos dizeres escritos em uma fachada de igreja é possível ler: “Louvado

seja o Santíssimo Sacramento e a Imaculada Conceição da Virgem Senhora Nossa

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concebida sem pecado original. Imagens do Rancho Alegre com grupo de crianças e

adultos e da praia.

Aconteceu na Bahia n° 1 (1947), dedica-se ao registro da procissão do Senhor Bom

Jesus dos Navegantes, com a presença do prefeito da cidade empunhando bandeira

nacional. Embarcações de diversos tamanhos acompanham a imagem santa em celebração

ao evento que abre o ciclo das festas populares na Bahia.

O ano de 1949 é um dos mais produtivos da carreira de Robatto Filho,

contabilizando para seu legado: o Desfile de Quatro séculos12, festividade ocorrida na Av.

Sete de Setembro em homenagem ao IV centenário de Salvador, com a presença de

autoridades incluindo o governador Otávio Mangabeira; A Volta de Ruy registrando o

cortejo que acompanhou o enterro de Ruy Barbosa, incluindo personalidades políticas e da

intelectualidade baiana que se aglomerou, principalmente, na Praça Castro Alves.

Carnaval – Festa do Hawai (1940/1969) retrata cenas de um carnaval ocorrido no

Clube Baiano de Tênis e Ginkana em Salvador (1952) trata de uma prova automobilística

que ocorreu na Av. Sete de Setembro na qual se fazia presente o governador Regis Pacheco

e do coronel Santa Rosa. Além de percorrer as ruas com os carros, os participantes eram

submetidos a pequenas intervenções para realizar brincadeiras típicas de gincana.

Automóveis participantes da prova Casal se prepara para a corrida percorrem as ruas de Salvador

12 Segundo Setaro (1976) devido à participação de um grande número de pessoas da sociedade baiana, surgiram muitos pedidos de cópia do filme, por isso, Robatto Filho consegue vender mais de uma centena de exemplares do documentário Desfile de Quatro Séculos.

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Santo Amaro – Recôncavo Baiano (1953) é produzido para o INCE - Instituto

Nacional de Cinema Educativo e documenta aspectos da cidade e a Festa de Nossa

Senhora da Purificação. Vadiação13 (1954), outra obra de destaque do cineasta, mostra

homens que se revezam entre o jogo da capoeira, os toques dos berimbaus, pandeiros e

cânticos, entremeado com explicações sobre

a origem da luta. Figuram nos créditos como

colaboradores deste filme o pintor Carybé e o

músico Paulo Jatobá.

Destacaremos, aqui, o documentário

Aconteceu na Bahia n° 2 (1948), obra

dedicada às festividades do Senhor do

Bonfim, com pouco mais de cinco minutos de

duração.

Logo após os letreiros indicando o nome do filme, ouve-se Dorival Caymmi entoar

o os versos da canção “Você já foi à Bahia”. Conforme já discutido neste capítulo, a figura

do cantor baiano foi de suma importância para a conformação acerca da idéia do que viria

a se configurar como jeito baiano amplamente difundido. Acompanhamos na letra da

música que segue abaixo:

Você já foi à Bahia, nêga? Não? Então vá! Quem vai ao "Bonfim", minha nêga, Nunca mais quer voltar. Muita sorte teve, Muita sorte tem, Muita sorte terá Você já foi à Bahia, nêga? Não? Então vá! Lá tem vatapá Então vá! Lá tem caruru, Então vá!

13 O documentário foi feito tendo como base o storyboard – ilustrações dispostas em sequências de cada plano que será gravado com o intuito de pré-visualizar o filme – que foi desenhado pelo artista plástico argentino Carybé.

Tocadores e jogadores em Vadiação

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Lá tem munguzá, Então vá! Se "quiser sambar" Então vá!

Nas sacadas dos sobrados Da velha São Salvador Há lembranças de donzelas, Do tempo do Imperador. Tudo, tudo na Bahia Faz a gente querer bem A Bahia tem um jeito, Que nenhuma terra tem!

A singularidade baiana é reforçada na música de Caymmi, importando a

originalidade de ter o que “nenhuma terra tem”. Segundo Mariano (2009), uma das

características marcantes que define a proveniência baiana é a defesa de que nascer na

Bahia é sinônimo de ser melhor, ou, no mínimo, diferente, compondo um dos itens da idéia

de baianidade. Para a autora, um dos recursos mais utilizados para enfatizar o diferencial

baiano, refere-se algumas vezes a uma alteridade difusa, mas em alguns momentos, nomeia

com clareza: o outro seria o resto do Brasil ou até o mundo. O fundamental seria, portanto,

“a defesa de idéia de singularidade, recorrendo-se às noções de originalidade e

superioridade, que se fundem muitas vezes em expressões como ‘fazer’ ou ‘ser’ como

ninguém” (p. 158).

A letra da canção ressalta ainda elementos da culinária, da arquitetura saudosa dos

tempos de outrora, da mística em ter uma sorte abençoada, faz alusão ao samba – que para

alguns nasceu na Bahia – como também, destaca a temática do documentário que ela

ilustra: a festa do Senhor do Bonfim. Lembramos que os símbolos cantados nos versos

aparecem estampados também em imagens, completando o sentido imagético-sonoro do

documentário.

No ano de 1929, é publicado na revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia

um artigo de Xavier Marques intitulado “Tradições Religiosa da Bahia”. No texto, o autor

se dedica primordialmente aos festejos do Bonfim ressaltando que ainda em 1881, podia

escrever, sem exagero, um cronista local, que a importante festa do Senhor do Bonfim, a

primeira da Bahia e talvez de todo o Brasil, acudiam mais de trinta mil pessoas de todas as

classes e de toda a parte. O culto, para Marques (1929), se configura como uma das mais

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vivazes tradições do Brasil e basta por si só para documentar a maneira como o povo

baiano entretém as suas relações com o divino e cultiva as suas crenças católicas.

A lavagem do Bonfim, segundo o mesmo autor, tantas vezes suspeitada de

africanismo e selvagismo, teve os seus precedentes históricos na velha e civilizada

metrópole portuguesa. Relata ainda que a festa era um verdadeiro “pandemonium às portas

do céu, uma assombrosa bambochata, cujas liberdades com o sagrado chegaram ao delírio

da irreverência” (p. 376) e no mesmo instante, joelhos que se dobravam nos altares,

estiravam-se agilmente nos passos e voltas de atrevido fandango.

No entanto, os excessos provocaram a hostilidade do clero e da imprensa. Para

Marques (1929), até mesmo viajantes ilustres, alheios dessas formas culturais e mais ainda

do temperamento, dos costumes, das tradições populares desta parte do país, notaram com

estranheza, desde os primeiros tempos da metrópole brasileira, semelhantes modalidades

religiosas, que não deixavam de explicar como caracteres ou indícios de barbaria. E assim

ia se expandindo o catolicismo mestiço baiano, apregoando a máxima de que “o baiano

quer entrar no céu, mas com alardo e fanfarra”. (p. 378)

Assim é o povo na afirmação dos seus instintos e sentimentos religiosos. Orando e folgando, ele nos dá, a um tempo, um espetáculo delicioso e piedoso, talvez paradoxal aos olhos daqueles que só encaram na religião a austeridade das cerimônias e o alto objeto do culto, mas certamente um espetáculo humano, ou pelo menos brasileiro, especialmente baiano, em que há lugar para todos os júbilos e exteriores testemunhos de conciliação com a vida, por intermédio do supremo mediador, só não havendo lugar para a hipocrisia (MARQUES, 1929, p. 379).

Durante o decorrer da narrativa do documentário, as imagens acompanham a voz

do narrador que ressalta as origens da festa, bem como a importância para o povo baiano.

Nas imagens, figura a vista do litoral, o movimento em torno da igreja, animais enfeitados

acompanham o cortejo, a chegada dos fiéis para a lavagem das escadarias da igreja, uma

sala com ex-votos fruto de pedidos benfeitores ao santo. Emolduram ainda a tela

cinematográfica planos da igreja de diversos ângulos, imagem da representação sacra do

Senhor do Bonfim e o registro da presença dos “ternos brancos” do governador e demais

autoridades que participaram das comemorações.

Se em um primeiro momento a música que ilustrava o documentário evidenciava

uma visão de quem era nascido em solo baiano, por quem conhecia nas minúcias essa

terra, sugerindo, portanto, um convite, uma segunda canção aparece em forma de pedido

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ao Senhor do Bonfim para que torne possível uma ida à Bahia. Cantada pelo Trio de Ouro,

formado por Herivelto Martins, Dalva de Oliveira e Nilo Chagas a letra exclama:

Senhor, meu Senhor do Bonfim, Pedimos tanto ao Senhor do Bonfim. Pra nos mandar à Bahia, Bahia de São Salvador.

Senhor do Bonfim, nos ouvir, Senhor do Bonfim, atendei. Quem nasceu e morreu, E não viu a Bahia não viveu.

Bahia, cidade de três andares, Tão alta, que usa elevadores. Até Senhor do Bonfim, Mora no alto do morro.

Um morro sem tamborim, Sem violão e seresta. É bem feliz todo aquele, Que for ao Bonfim no seu dia de festa.

A canção foi composta por Herivelto Martins14 em 1947, um ano antes da data que

consta na catalogalização do documentário de Robatto Filho. Além da devoção ao santo, a

música revela aspectos da paisagem geográfica de Salvador, faz uma menção, ainda que

velada, a um dos símbolos soteropolitanos que veio a se tornar ponto turístico, o elevador

Lacerda, bem como sinaliza a “morada” do Senhor do Bonfim, lá no “alto do morro”, para

buscar uma precisão, na Sagrada Colina.

Evidenciamos as duas canções retratadas em Aconteceu na Bahia n° 2 por acreditar

que a escolha de ambas ressoa além da temática que dá título à obra – as festividades do

Senhor do Bonfim – uma idéia de Bahia que já vinha se consolidando com o passar dos

anos e não por acaso uma trilha sonora de um compositor forasteiro é incluída como

partícipe dos elementos que, juntamente com as imagens, conformarão a voz do

documentário.

Nesse tempo, já contávamos com a ascendência de um imaginário nacional sobre os

aspectos pitorescos da Bahia, graças, principalmente, ao campo artístico que soube

14 Outras canções compostas por Herivelto Martins fazem referência direta à Bahia e as peculiaridades da terra, sendo elas, “Na Bahia” (1938), “Baiana falsificada” (1943), “A Bahia te espera” (1950).

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propagar um conjunto de símbolos e trejeitos, seja por imagens pictóricas, fotográficas,

pela literatura ou canções, que seriam identificados como tipicamente baiano e as festas de

largo, como afirma Farias (2000) seria o momento sincrético em que o enlace do sagrado e

profano celebraria o espírito, o modo de ser, alegre do povo da Bahia. Ademais, quando a

religiosidade é referida, conforme Mariano (2009) a transmissão dos valores e

conhecimentos antigos vem à tona sempre acompanhada da repetição das práticas

tradicionais e o fervor religioso que já é sugerido pelo nome da capital (cidade do

Salvador) certamente possui um significado especial no discurso de baianidade.

Lembramos ainda que o documentário parece ser o segundo de uma série sobre as

festividades baianas, uma vez que Aconteceu na Bahia n° 1, lançado em 1947, dedica-se às

celebrações que envolvem a procissão do Senhor Bom Jesus dos Navegantes.

4.2.2 Entre o berço esplêndido e as paisagens urbanas O berço esplêndido da Bahia, para usar a categorização feita por Paulo Emílio Sales

Gomes (1977), figurava imagens principalmente de sua capital, marcando os contrastes da

paisagem litorânea e os aspectos urbanos. As imagens davam vazão ao desejo do cineasta

em registrar o que estava a sua volta e, muitas vezes, imbuíam-se de um saudosismo ou

tomava o discurso fílmico para atestar as singularidades da sua terra e da sua gente.

Lembramos, conforme demonstramos em capítulo precedente, que era uma vontade

política o uso do cinema como reforço de uma idéia de nação. Os filmes serviriam como

elo entre os brasileiros, possibilitando reconhecer-se como povo único, apesar das

diversidades. Desse modo, além de incitar um sentimento de unidade, filmar lugares

distintos possibilitaria revelar os “brasis” gerando uma visibilidade de uma parte para o

todo.

O fazer cinematográfico de Robatto Filho tinha, por excelência, o registro da Bahia

nas múltiplas facetas que comporiam o mosaico paisagístico aliado ao modo de viver do

baiano. Consoante Setaro e Dias (1992),

na sua obstinação e força de vontade, no seu animus em exercitar o cinema, conseguiu a realização de obras acabadas, com roteiros elaborados, sentido de ritmo e, mais importante, a preocupação emergencial com o registro da brasilidade, ou, melhor dizendo, da baianidade (p. 13)

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Em 1933, filma Favelas com imagens da praia do Farol da Barra e planos gerais da

cidade de Salvador. Aparecem também barcos, casas em construção, pequenos casebres em

morros, igreja, passando pelo cemitério onde focaliza a lápide de Antônio Castro Alves e

logo após, mostra a bandeira do Brasil. No letreiro inicial diz que o filme faz parte do

Amateur Cinéma Leaque (ACL), The worldwide organization of moviemakers15.

Também é de sua autoria Caxixi, sem data definida, evidenciando a Feira de

Caxixis que ocorria todo ano em Nazaré das Farinhas, no estado da Bahia. Uma igreja

bahiana (1955) traz aspectos da Igreja da Venerável Ordem Terceira da Penitência do

Seráfico Padre São Francisco da Congregação da Bahia. Aparece escrito na tela: “O alto

comércio da Bahia tornou possível a apresentação desse filme aos participantes do XXXVI

Congresso Eucarístico Internacional”.

No ano e 1953 Robatto Filho

lança Entre o Mar e o Tendal, obra que

despontaria como expoente do seu

trabalho como documentarista, sendo

considerado por alguns críticos

cinematográficos como a obra de maior

destaque. O documentário registra a

pesca do xaréu nas praias de Chega-Nego

e Carimbamba em Salvador,

evidenciando os processos que iam desde

a armação de redes, a ação dos

mergulhadores, as jangadas partindo ao mar e chegando à praia, a coleta dos peixes e o

transporte para o tendal.

Contou com o apoio da Prefeitura de Salvador, através da Diretoria do Arquivo e

Divulgação e Estatística. Em 1954 lança Xaréu, documentário com a mesma temática de

Entre o Mar e o Tendal contando com o apoio do Instituto Nacional de Estudos

Pedagógicos – INEP.

Embora não seja intenção nossa uma análise pormenorizada dessa obra de relevo

dentro do legado robattiano, já que nos propomos para essa temática destacar outro filme,

entendemos que a importância que Entre o Mar e o Tendal depreende uma necessária,

15 A Amateur Cinéma League fora criada em 28 de julho de 1926 nos Estados Unidos contribuindo para o fortalecimento do uso do 16mm pelos cinegrafistas amadores-profissionais.

Pescadores de xaréu em Entre o Mar e o Tendal

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ainda que breve, consideração. A narração inicial anuncia como viviam os descendentes de

escravos no litoral da Bahia, ressaltando que muitos deles ainda cultuavam práticas

primitivas de pesca que eram mantidas pela tradição. Na voz de quem narra o

documentário, pode-se ouvir: “Essa gente humilde e vigorosa nos permite uma visão do

passado nos atos singelos da mais poética das profissões”.

Na sequência, aparecem imagens da praia e dos procedimentos empregados para a

puxada de rede, sempre acompanhada por cânticos atribuídos aos antepassados dos

pescadores. Na finalização do documentário, nota-se o tom saudosista que envolvia os

aspectos das tradições e da exaltação do passado como um momento glorioso. Exclama

Robatto Filho: “O progresso virá, virão fatalmente os métodos modernos e as velhas

canções se perderão no ronco dos motores. Ficará, porém naquelas praias a lembrança de

uma gente alegre que trabalhava cantando”.

Arrastão para retirada dos peixes Resultado da pesca

A maneira como o tema do documentário é apresentado denota traços de

intersecção com o legado da escola britânica de documentário e com os filmes de Robert

Flaherty, para quem Robatto Filho não escondia uma admiração. Importante lembrar que

em 1928 John Grierson filma Drifters - o único filme dirigido por ele – tendo como

temática central o trabalho em alto mar de pescadores de arenque. Anos antes, em 1922,

Flaherty lança Nanook of the North resultado de filmagens com esquimós que habitavam a

região da Baía de Hudson, no norte do Canadá e ao tecer comentário sobre sua obra

afirma:

O documentário é filmado no próprio lugar que se quer reproduzir, com pessoas do lugar. Assim, o trabalho de seleção será realizado sobre material documental, com a finalidade de narrar a verdade da forma mais adequada e não dissimulando-a por trás de um elegante véu de ficção, e quando, como corresponde ao âmbito de suas

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atribuições, infunde à realidade o sentido dramático, este sentido surge da própria natureza e não unicamente da mente de um escritor mais ou menos engenhoso. (FLAHERTY apud DA-RIN, 2006, p. 51).

As proximidades tanto do tema retratado como da maneira como se configura Entre

o Mar e o Tendal, do ponto de vista da produção, montagem, ritmo e poética apresentados

no documentário, percebemos que há uma coadunação com os feitos dos realizadores

ingleses.

Observemos com certa atenção, Bahia Pitoresca16, lançado em 1942, com seis

minutos de duração e que contou com o financiamento da Prefeitura de Salvador. Na tela

inicial aparece um casal conversando em um restaurante. O personagem masculino17

pergunta: “você já foi à Bahia?”. Pela negativa das respostas surge, então, o convite para

ver “um filme interessante sobre o estado”. Os dois se dirigem aos estúdios identificados

como da Tupi Filmes e começam a assistir a película mencionada. Sentados, acompanham

o desfile de imagens da capital baiana. Aspectos do litoral com suas embarcações o faz

ressaltar: “ali alguns tipos de barcos muito curiosos de feitio nitidamente colonial, note

como é pitoresco esse conjunto de mastros!”. Segue mostrando a praia de Itapuã e

Amaralina, a península de Itapagipe, pescadores fazendo sua “pesca de arrastão” com as

redes, o Farol da Barra, banhista em dia de sol, tudo isso com o acompanhamento da

narração que não deixa ressaltar o contexto histórico, as peculiaridades da cidade, a

religiosidade, bem como as manifestações populares que marcam as festividades baianas.

16 Importante notar a semelhança do nome deste filme de Robatto Filho com Brasil Pitoresco, lançado pelo escritor e folclorista Cornélio Pires no ano de 1926. Nas lentes de Pires encontramos imagens de uma viagem de São Paulo a Pernambuco onde a intenção do registro não estava restrita apenas a traços das belezas naturais e arquitetônicas de cada lugar, mas o foco se traduzia, sobretudo, nos costumes, nos aspectos típicos de cada localidade por onde ele passava. A Bahia não ficou de fora do roteiro e Salvador, o Recôncavo Baiano e Ilhéus, no sul do Estado, também figuram na tela e ajudam a compor o ideário de um país dito pitoresco. 17 Quem dá voz ao personagem masculino é Celso Guimarães importante locutor e radioator nas décadas de 40 e 50. O ingresso na Rádio Nacional, do Rio de Janeiro, deu-lhe fama e reconhecimento pelo trabalho prestado.

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Imagens da Bahia (Fonte: “Alexandre Robatto Filho – Pioneiro do Cinema Baiano”)

Em um ato metalingüístico, vemos um filme que se baseia em outro filme para

contar sua história. Além disso, a interação dos personagens e o desenrolar das cenas nos

faz pensar que Bahia Pitoresca está na linha tênue que separa documentário e ficção.

Dentro dos moldes do documentário clássico a distinção para o ficcional partia de uma

ruptura entre a realidade e a ficção, o que acabou por se restringir, como afirma Teixeira

(2006), a um deslocamento que veio opor estúdio e locação, artifício, naturalidade,

parafernália técnica e elenco não profissional, ao documentário com seu ideário de

simplicidade, despojamento, autenticidade temática, elementos que supostamente

sustentariam uma captação mais verídica, direta, da realidade, da vida como ela era e não

como era imaginada. Ao unir na mesma película elementos que caberiam ao ficcional e ao

documental, Robatto Filho quebra com o classicismo que vinha adotando em seus outros

trabalhos fílmicos.

Com relação à temática que envolve o filme em questão, notamos o forte cunho de

apelo ao turismo na Bahia, embora na época em que foi realizado o Estado não dispunha

de programa de incentivos formal. No entanto, os estudos realizados por Farias (2008)

apontam para um Relatório das Atividades da Administração Pública no biênio 1938-1939,

apresentado pelo Interventor Landulpho Alves, no qual estava exposto:

As condições que a Bahia oferece para o grande turismo, já pelo seu clima excepcional, já pela variedade sem par de suas paisagens, pela riqueza de suas antiguidades, desde as arquitetônicas, às ligadas aos usos, costumes tradicionais, estão a indicar a alta importância que assumirá, em futuro remoto, o turismo no Estado. Cumpre, para isto, aparelhar-se a Capital com o hotel e o restaurante moderno, com o “cassino”, com os centros de diversões, com os meios de transportes adequados. Na falta de recursos para atender a todos esses fatores simultaneamente tem, entretanto, o Governo encaminhado a solução de alguns deles, tais como o aparelhamento para restaurante, o “cassino”, o melhoramento das

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estações balneários, o auxílio ao Touring Club do Brasil (ALVES, apud FARIAS, 2008, p. 578).

Ainda segundo Farias, (2008), nesse documento, fotos e textos-legendas destacam

os “aspectos turísticos da Bahia”, situados em Salvador e, no entanto, Landulpho Alves

não deixa de enfatizar a importância do apoio do governo federal para sanar problemas de

infra-estrutura da capital baiana, destacando ainda, que a cidade poderia ser fonte de renda

ao lado de apreciável meio de propaganda para o Brasil no estrangeiro.

Bahia Pitoresca coaduna-se com as idéias propostas pelo então interventor, uma

vez que é notório na locução que permeia o documentário o tom propagandístico auxiliado

com a apresentação de imagens soteropolitanas. O cinema também cumpriria sua parcela

nas diversas tentativas de mostrar a Bahia para o Brasil e para o mundo e, possivelmente,

dentro do legado robattiano, este seja o documentário que reuniu o maior numero de

elementos que endossam o discurso da baianidade (ou uma idéia de Bahia que é/foi

amplamente divulgada).

No mesmo veio, e com a mesma preocupação de tornar público aspectos pitorescos

da Bahia, o escritor Jorge Amado lança, em 1945, Bahia de Todos os Santos contando as

especificidades, principalmente, da capital do Estado. Nas palavras de exaltação do autor:

“não há cidade como essa por mais que procureis nos caminhos do mundo. Nenhuma com

as suas histórias, com o seu lirismo, seu pitoresco, sua funda poesia” (AMADO, 1966, p.

34).

O livro serviria como um guia da cidade, evidenciando os aspectos históricos, desde

a sua fundação, até uma cartografia da cidade com a localização das praias, a descrição de

bairros, feiras, mercados, manifestações culturais e religiosas passando pelas contradições

do espírito baiano que coexistia o conservador e o revolucionário.

Com tantas semelhanças, inclusive porque o autor começa o livro com uma espécie

de “conversa” ressaltando as características marcantes da cidade e insistindo em um

convite para se conhecer a Bahia, ousaríamos em dizer que ali estava o filme de Robatto

Filho transposto para as páginas da literatura amadiana.

Embora ocorressem ações para tornar a Bahia um chamariz para atrair divisas para

o Estado, ainda não se tinham ações concretas por parte do poder público que

regulamentasse o turismo no Estado. Aponta Farias (2008) que uma aproximação entre a

implantação de um sistema de órgãos culturais e a otimização de certa vocação turística da

capital transparecia a aliança que, aos poucos, será estabelecida entre ambos, o que

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definiria um eixo sobre o qual a execução de projetos no setor cultural teria por

contrapartida indireta o incremento nas atividades turísticas. Para o autor:

Dava-se, desse modo, a paulatina triangulação entre turismo, cultura e ordenamento público estatal, sendo o último uma espécie de guardião e promotor dos recursos artísticos, culturais, históricos e arquitetônicos do Estado, os quais poderiam ser realçados como fatores de atratividade de visitantes nacionais e internacionais (FARIAS, 2008, p. 579).

Sem um impacto expressivo na economia local e sem uma ordenação substancial, a

atividade turística no Estado ganha fôlego a partir da década de 1950, quando aparecem as

primeiras medidas efetivas que estampavam o claro interesse pela cultura da Bahia por

parte do poder público. Em suas pesquisas, Mariano (2008) não deixa de notar que foi

criada em 1951 a taxa do turismo em, posteriormente o Conselho do Turismo, em 1953;

primeiro Plano Diretor do Turismo, no ano de 1954 e culminou na criação da Bahiatursa,

para citar alguns exemplos. Com a adoção dessas medidas, Salvador “se torna um produto

turístico vendido sobre o seguinte tripé: o povo, com seus costumes e festas; belezas

naturais e patrimônios históricos” (p. 71).

Assim uma idéia de Bahia vai sendo constituída pautada, sobretudo, na diversidade

e peculiaridade da terra, e tanto a literatura, como a música e o cinema estariam no bojo

dos que alardeavam aspectos pitorescos que só o Estado baiano aparece como detentor. Se

hoje parece ser improvável pensar a Bahia dissociada das ações turísticas, notamos que foi

necessária uma trajetória para que se consolidassem mecanismos que promulgavam um

imaginário calcado nas idéias da baianidade. Sendo pautada numa construção em que cada

passo levava em direção a uma formalização por meio das ações governamentais,

percebemos como o documentário Bahia Pitoresca de Robatto Filho, que só foi possível

graças ao dinheiro público, serviu de lastro para que o interesse pela Bahia circulasse fora

dos limítrofes do estado.

4.2.3 A moderna tradição da Bahia Já é sabido do relativo atraso que a Bahia estará envolta até meados da década de

50 com relação, principalmente, ao sudeste do país. Ainda envolta no epíteto da “boa

terra”, ostentava uma tradição que subjazem os processos industriais, culturais,

urbanísticos da cidade.

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A demonstração de força de uma sociedade arcaica consiste, segundo Rubim

(2000), na sua resistência que se opõe à

modernização tanto no âmbito das elites

brancas quanto naquele dos segmentos

populares. Os efeitos da industrialização

e urbanização poderiam ser nefastos,

uma vez que constrói, mas também a

capacidade de destruir coisas belas,

privando de usufruto das dimensões

positivas do progresso.

Nos primeiros passos de uma

agitação modernizante, ainda que tardia,

nota-se que na Salvador de então, como

afirma Oliveira (2002) que o cinema era a única coisa capaz de competir com a incrível

velocidade de quarenta quilômetros horários que desenvolviam pelas já modernas ruas do

centro, os poucos carros da cidade. No entanto a mesma cidade que se pretendia moderna

nos trilhos dos bondes e telas de cinema, ainda estava “fortemente marcada pela

estagnação econômica e pela rigidez das suas relações sociais” (p. 156), ainda era a cidade

dos saveiros e do terno branco.

Com isso vai se impondo uma singularidade baiana calcada, principalmente, pelo

entrelaçamento e convivência dos traços modernos e tradicionais. Observa Oliveira (2002)

que só por volta do final da década de 1940 é que os ventos modernos começam a arejar

definitivamente a Bahia e como responsáveis pela mudança desse quadro de estagnação

constariam a chegada da energia hidroelétrica e de campos de refinaria de petróleo que

darão o “tiro de misericórdia na civilização do açúcar, impactando profundamente o

Recôncavo e a Cidade da Bahia”. (p. 185).

Alexandre Robatto Filho retratou duas fábricas de grande relevância para a

economia baiana, no entanto, ambas ainda eram baseadas nas atividades econômicas

primárias. S/A Wildberger – exportação, importação e representações (1955) é lançado

para narrar a história de dois irmãos suíços que chegaram à Bahia em 1829 e tiveram como

principal atividades comerciais as fazendas de cacau e cana-de-açúcar que resultou na

empresa S/A Wildberger. O documentário trata da comemoração dos 125 anos da empresa

evidenciando imagens de Ilhéus, onde a companhia mantém seu principal escritório,

Trabalhadores nas roças de cacau em S/A Wildberger –exportação, importação e representações

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imagens do processamento da cana no Recôncavo Baiano e da “Festa da Boizada”, que

marcava o início da moagem da cana.

Outra indústria é tema de um documentário, ainda em 1955. Organização

Suerdieck lavoura, comércio e indústria mostra os diversos aspectos das Organizações

Suerdick na indústria do fumo em Cruz das Almas. Nas imagens fica evidente desde a fase

do plantio, processamento, a linha de montagem, embalamento e armazenamento até o

transporte para os portos de São Paulo e Rio de Janeiro. Aparece nos letreiros finais: “Este

filme é dedicado à memória de Gerhard Suerdieck, falecido em 31.7.1950, grande produtor

propulsor da Organização Suerdieck e um exemplo para os que trabalham pela indústria e

pelo progresso do Brasil”.

O primeiro registro videográfico produzido por Robatto Filho foi Vacina BCG

(1930) patrocinado pela Secretaria de Educação e Saúde Pública do Estado com um

propósito específico de complementar um relatório sobre o funcionamento da vacina

Cometina, fabricada na Bahia.

Bacias e barragem (1937), possivelmente gravado em Rio do Cobre no subúrbio de

Salvador, retrata as etapas do tratamento da água e os processos pela qual esta se envolve

até ser considerada própria para o consumo.

O Regresso de Marta Rocha (1955) registra trechos da volta de Marta Rocha à

capital baiana. Logo no início é informado: “Filme dedicado a quantos não tiveram a

oportunidade de ver a consagração da linda baiana que tão alto elevou o nome da mulher

brasileira num concurso de âmbito universal”. Marta Rocha caminha por alguns pontos

importantes de Salvador passando também pelas instalações da fábrica de cristais e

refrigerantes, Fratelli Vita. No final aparece na tela: “Um presente da Fratelli Vita”. A

Fratelli Vita18 foi fundada em 1902 dedicando-se à fabricação de refrigerantes e cristais.

Foi criada em sociedade pelos irmãos Giuseppe e Francesco Vita, dando início às suas

atividades após a chegada dos irmãos da Itália, no final do século XIX, a Salvador. Na

década de 1950 a empresa viveu sua época áurea da empresa, e neste período os donos da

fábrica investiram no trio elétrico Dodô e Osmar e na candidatura de Martha Rocha ao

Miss Brasil de 1954, que era a garota propaganda da companhia.

18 Informações obtidas através do site oficial da empresa. Disponível em: < http://www.fieb.org.br/FratelliVita/index.html >

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Visita de Marta Rocha à fábrica Fratelli Vita

Documentário lançado em 1958, Nadir-Juracy registra o estudo e pesquisas

médicas realizadas com o caso de irmãs xipófagas. Filmou também a visita do Presidente

Dutra à Bahia, a eletrificação da rede ferroviária da Leste Brasileira, a passagem inaugural

do trem na Ponte de São João, porém estas obras encontram-se desaparecida de seu acervo.

Um milhão de KWA, lançado em 1949 e com pouco mais de treze minutos de

duração, se dedica ao registro da implantação da Companhia Hidrelétrica do São Francisco

- CHESF na cidade de Paulo Afonso, na Bahia.

Os letreiros iniciais estampam que “a companhia hidro elétrica do São Francisco

tornou possível esse filme” e logo depois surge na tela um trecho de Os Sertões, obra de

Euclides da Cunha, onde se lê: “O homem fez talvez o deserto. Mas pode extingui-lo ainda

corrigindo o passado. E a tarefa não é insuperável”.

Esse prólogo dentro da narrativa do documentário anuncia a implantação da

CHESF no interior baiano. Através de um mapa que surge na tela, vai indicando onde

nasce o Rio São Francisco, as cidades

que são banhadas por ele até chegar

nos “saltos assombrosos da cachoeira

de Paulo Afonso. Seguindo o padrão

clássico que une a voz over, música e

imagens que sustentam o que diz a

narração, o filme traz à tona a história

de como muitos tiveram a concessão

para utilizar a força da cachoeira,

mas que não chegaram a utilizá-la

como hidrelétrica e segundo nos é

possível saber pelo narrador presente no filme, Delmiro Gouveia foi quem conseguiu

Vista panorâmica das construções da CHESF

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realizar parte da obra, utilizando-a para sua fábrica, mas somente com a criação da CHESF

é que se resolveu o problema.

Torna evidente que a companhia foi criada em 1945, mas suas obras só foram

iniciadas em 1949 e em 1955 teve a sua inauguração oficial contando com a participação

do presidente João Café Filho sendo esta hidrelétrica responsável pelo fornecimento de

energia elétrica para o Recife e também para Salvador, contribuindo para a modernização

destas cidades nordestinas.

Reforça que Paulo Afonso foi fruto da implantação da hidrelétrica naquele local e,

com imagens panorâmicas, mostra a cidade no segundo aniversário de sua fundação

exaltando que “surgiu no deserto, brotou da caatinga com a força e a beleza das plantas

novas”. É ressaltado que o visitante logo ao chegar percebe o “elevado padrão de vida” que

se instalou naquela localidade, destacando ainda que a cidade possui mercado, igreja,

clubes e até um banco. Entre Salvador e Recife está ligada ao mundo pelo telégrafo e pela

radiotelefonia, como também por uma linha comercial de aviação mantém um serviço

regular com a saída de vôos diários do aeroporto local. Há um hospital com todos os

serviços médicos e dentários e até ambulância. Paulo Afonso, naqueles anos, já dispunha

de distribuição de água tratada e clorada e uma rede de telefones automáticos que poderia

ser ligada pelo rádio estabelecendo a comunicação com os escritórios da cidade de Recife,

Salvador e Rio de Janeiro. Não deixa de notar que um restaurante popular fornece bandejas

aos operários e funcionários por um preço ínfimo e proporcional aos seus vencimentos e

exclama que há um curioso sistema de transporte urbano. “Não se assustem: o serviço de

ônibus é gratuito em Paulo Afonso!”.

O progresso alavancado pela instalação da hidrelétrica é notado pelo

desenvolvimento da cidade, embora o pouco tempo de existência. Possivelmente Paulo

Afonso poderia ser encarada como modelo do que a modernização poderia proporcionar

aos baianos.

Para Brandão (1998), a instalação da CHESF significou a oferta abundante de

energia e a eletrificação em rede do Recôncavo juntamente com a criação da Petrobrás,

com seus campos e refinarias, abrem um novo ciclo de atividades para a região. O

Recôncavo é riscado e marcado “com centenas de quilômetros de rodovias e oleodutos,

poços, tanques, barracas e oficinas, abertas para a pesquisa e extração e o embarque do

petróleo” (p. 41). A Petrobrás juntamente com a CHESF irá para colocar a Bahia

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definitivamente na rota da modernização, contribuindo para novas construções bem como

para liquidar velhos padrões existentes.

No documentário são apresentados, ainda, dados técnicos sobre a construção como,

por exemplo, onde irão se instalar as barragens de contenção inclusive com a parte que será

toda submersa. As informações são ilustradas por uma animação gráfica bem aos moldes

dos documentários produzidos pelo Instituto de Cinema Educativo – INCE, o que não

causa estranheza, uma vez que já ressaltamos o envolvimento de Robatto Filho com aquele

órgão, onde mantinha estreitas ligações com o documentarista Humberto Mauro e com

Manoel Ribeiro, responsável pela montagem e fotografia de grande parte da obra de

Mauro. Ribeiro aparece como colaborador de algumas obras de Robatto Filho, inclusive de

Um milhão de KWA.

Animações indicavam em Um Milhão de KWA onde e como seria construída a hidrelétrica

O trecho final do documentário denuncia a conjuntura política que atravessava o

país. Notemos na transcrição abaixo:

A paisagem grandiosa do cânion milenar, onde o rio se escoa na corrida final para o oceano permite a variação surpreendente da altitude do planalto de onde observamos. E lá embaixo, entra as escarpas do desfiladeiro, a água parece agora cantar, na alegria vibrante das corredeiras o hino de glória ao patriotismo dos homens que estão recuperando o nordeste (Um Milhão de KWA, 1949).

Lembramos que a criação da CHESF, bem como a criação da Companhia

Siderúrgica Nacional, em 1941, e a Companhia Vale do Rio Doce, em 1942,dentre outros

feitos, fazem parte do legado de Getúlio Vargas em seu regime político que ficou

conhecido com Estado Novo caracterizando-se como um período de forte intervenção

estatal na economia, desenvolvimento de um projeto nacionalista e avanço significativo na

industrialização do Brasil. A instalação da hidrelétrica em uma cidade nordestina, sem

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dúvida, contribuiu para diminuir as distâncias com relação ao notório desenvolvimento que

assolava o centro-sul do país.

4.4 O registro de uma memória baiana

A memória, como é sabido não é apenas uma faculdade mental, mas como ressalta

Le Goff (1994), a utilização de uma linguagem falada e posteriormente com o surgimento

da escrita foi a extensão fundamental das possibilidades de armazenamento da memória e

através do desenvolvimento de técnicas e da criação de novos suportes possibilitou que

experiências fossem, assim, armazenadas permitindo uma comunicação através do tempo e

do espaço. Esse movimento que começa com a escrita, desemboca nas modernas formas de

apreensão do que foi vivido como, por exemplo, a captação de imagens em movimento que

registram fragmentos do mundo real tornando possível a perpetuação de um momento, ou

seja, da memória de uma época.

Através dos documentários de Robatto Filho nos é revelada uma Bahia que,

principalmente na segunda metade do século XX, se modernizava sem deixar de lado seu

passado marcado por tradições, traços que passam a compor a idéia de uma baianidade,

identificada como o modo de viver dos baianos que o tornava distinto do restante do país.

Manter essas tradições, como afirmou Albuquerque Júnior (1999) é inventá-la para novos

fins, é garantir sua perpetuação.

Com efeito, se de um lado podemos dizer que a obra de Robatto Filho está

diretamente relacionada com uma idéia de baianidade, que não está longe de interesses

instituídos em âmbitos nacional regional e até local, também podemos considerar que o

documentarista, por meio de um veículo de comunicação – no caso o cinema –, assume as

imagens do passado em favor de uma cultura e de uma história comum que une e identifica

uma população com a sua comunidade de origem e de destino, de certa forma,

concentrando sua atenção na permanência e ao mesmo tempo na resposta de uma Bahia

que transita entra passado e presente a partir do local e do particular, sem perder sua inter-

relação com o desenvolvimento corrente. (PERALTA, 2007).

A câmera de Robatto Filho registra os festejos populares e religiosos (Aconteceu na

Bahia n° 1 e n° 2), as comemorações oficiais (Desfile de Quatro Séculos, Ginkana em

Salvador, O regresso de Marta Rocha), os traços peculiares da paisagem e do cotidiano

das cidades (Entre o Mar e o Tendal, Caxixi, Bahia Pitoresca), tornando possível, desse

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modo, viver um tempo pretérito que se torna presente quando as imagens são projetadas.

Idéia corroborada pelas palavras de Schvarzman (2004):

Os filmes, com seus sons e ritmos, constituem um inventário para a eternidade; trazem como aspirações a possibilidade de reter o tempo nas imagens, e num mesmo movimento reproduzir o passado, produzir o presente e projetar o futuro, pois constituem simultaneamente memória e utopia (p. 289)

Importante lembrar que a memória não estaria ligada unicamente ao passado, mas

também por aspectos do presente que os contemporâneos – neste caso, o documentarista

baiano Robatto Filho – de um evento julgaram importante registrar (ROSA, BELLELLI E

BAKHURST, 2000) e atentar para isso é importante para perceber não apenas o que é

lembrado, mas também da sua negação, ou esquecimento.

O velho e o novo coexistem na obra de Robatto Filho, transitando entre uma visão

otimista do desenvolvimento, observada na inauguração de uma usina hidrelétrica

importante para a geração de energia do Nordeste, a construção de bacias e barragens e de

obras de saneamento básico que proporcionaram uma melhor qualidade de vida, mas

abordava a temática, também, sob uma ótica do pesar, como podemos notar em Entre o

Mar e o Tendal, que esse mesmo progresso, com seus modernos métodos e com o ronco

dos motores, emudeceriam os cânticos poéticos dos descendentes de escravos que ainda

realizavam a pesca de xaréu como seus antepassados. Era a Bahia dos cristais, Fratelli

Vita, de figuras públicas notórias, como Ruy Barbosa e Marta Rocha, mas era também a

dos fazendeiros, dos vaqueiros e boiadeiros.

Lembremos Penafria (2004) quando afirma que o ato de documentar transparece

uma necessidade de manifestar-se e de preservar uma memória. O documentarista não

escondia sua vontade de que sua obra perpetuasse a ponto verbalizar a recusa em ver seus

filmes se perderem em gavetas, queria que os mesmos chegassem às mãos de estudiosos,

por entender que os fragmentos capturados por ele, se constituíam em um importante

documento imagético-sonoro sobre a Bahia. No entanto, ressaltamos que estavam ali

registrados no filme a memória do autor, Robatto Filho, mas imbuído com uma memória

de uma Bahia em seus aspectos singulares e pitorescos. Sua obra, expressa principalmente

e seus documentários, nos faz lembrar a afirmação de Goldmann (1991), ao ressaltar que a

obra só recebe significação quando integrada ao conjunto de uma vida e de um

comportamento, ou seja, não podemos considerar que o autor vive isolado, é ele na

conjuntura de uma época (PENAFRIA, 2004). Robatto Filho partilhava de uma memória

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da Bahia e usa o recurso dos filmes para guardar, fazer perdurar os acontecimentos e as

peculiaridades que envolviam os Estado baiano.

Em consonância com a historiografia baiana, ao notar o atraso relativo que vivia o

Estado nas primeiras décadas do século XX, podemos perceber na leitura das imagens

robattiana símbolos que denunciavam essa realidade. Pelos seus filmes notamos a sua

desenvoltura em mostrar que a tradição singularizava a Bahia, discurso que tangencia a

própria constituição de uma baianidade. Em Bahia Pitoresca é onde encontramos o maior

numero de elementos reunidos que reforçam essa idéia de singularidade, uma vez que

abarca não só os monumentos históricos e paisagísticos, como também o povo nas suas

manifestações diversas.

O legado robattiano contribuiu para cravar aspectos que repercutiriam na

construção de um imaginário nacional do que é ser baiano, fomentando uma memória

social, que segundo Sá (2007) é como se pode classificar o inteiro conjunto dos fenômenos

ou instâncias sociais das manifestações mnemônicas, por exemplo, memória coletiva,

memória publica, memória individual.

Desse modo, notamos que a Bahia vivida pelo documentarista parece voltar à

realidade presente, e isso é possível pela construção mnemônica apoiada em recursos

fílmicos que são revelados porque o filme permitiu uma revisita ao um tempo pretérito.

Também observa-se que Robatto Filho se apropria das possibilidades de

financiamento dos seus filmes a partir dos interesses oficiais e econômicos. Como já

destacou Le Goff (1996), essa política de memória não é nova, e teve início com os reis na

Antiguidade ao criarem as instituições-memória, fazendo perdurar suas façanhas através

dos tempos. No caso dos documentários em questão, os feitos de quem possuía capital

suficiente capaz de patrocinar um filme, podia estabelecer, também, que memória seria

lembrada e registrada. Assim sendo, podemos nos remeter aos filmes cavados, como por

exemplo, A marcha das boiadas, Pecuária baiana e Quatro séculos de pecuária,

observando o retrato de uma elite baiana que detinha o poderio econômico passando pelo

governo do Estado, através de suas secretarias, prefeituras e institutos subordinados, ou

mesmo pelos grandes proprietários de terras.

Desse modo, poderíamos dizer que Robatto Filho capta os diversos movimentos de

uma Bahia em seus aspectos tradicionais ou modernos. Ao se ressaltar características

tradicionais estaríamos, pois, remetendo a uma continuidade, manutenção e sobrevivência,

conforme Mariano (2009), e assim, os filmes facultaram uma potencialização dessas

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características, umas vez que, caberia agora não só aos diversos grupos sociais o repasse de

um arcabouço imagético baiano, mas o cinema, pelo seu caráter de veículo comunicacional

e por ser um objeto tangível de fácil compreensão popular, representaria uma ferramenta

eficaz para que as histórias, os costumes, as figuras públicas, as formas de governança não

ficassem relegadas ao esquecimento.

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5. Considerações Finais

À medida que fomos revendo as discussões relativas ao campo da memória, foi se

tornando evidente que o cinema é um registro importante de uma memória do que

aconteceu no passado, mas que ao mesmo tempo, ganha movimento quando requisitada

por interesses do presente. Os filmes produzidos por Alexandre Robatto Filho refletem,

assim, a concepção que ele tinha da realidade que estava à sua volta, incorporando à sua

obra tanto os aspectos mais técnicos, de feitura dos documentários, como registra uma

memória documental significativa sobre a Bahia imbricada numa teia de relações

dinâmicas entre a tradição e o moderno.

Desse modo, procuramos focar no primeiro capítulo deste trabalho, em um breve

panorama do desenvolvimento e consolidação da arte do cinema em solo brasileiro,

evidenciando desde os primeiros registros, as primeiras salas de exibição, os embates entre

os campos ficcionais e documentais, como também evidenciamos aspectos peculiares que

envolviam o fazer cinematográfico dos que primeiro se lançaram nesse desafio. A

produção documental vai ganhando força, principalmente porque envolvia um menor custo

se comparado aos filmes de ficção, com isso, muitos historiadores do cinema afirmam que

um hiato dos registros cinematográficos só não aconteceu no Brasil porque os “naturais”

ainda resistiram à chegada dos filmes estrangeiros e às transformações políticas e sociais.

A cena documental ganha maior destaque quando o governo resolve incorporá-lo

como meio educativo, criando assim, o INCE – Instituto Nacional de Cinema Educativo,

que teve como figura chave o documentarista Humberto Mauro, realizador expoente que

ajudou a revelar o Brasil para os brasileiros, como queria o então presidente Getulio

Vargas.

Percebemos dessa conjuntura nacional, que mesmo longe da efervescência que

marcava a região sudeste do país, Robatto Filho consegue produzir na Bahia

documentários alinhados com o pensamento nacional. A proximidade com Mauro rendeu-

lhe aprendizado e permitiu que a Bahia, em seus traços mais peculiares, fosse revelada a

um maior número de pessoas.

No entanto, como pudemos ver, não só a ligação com o INCE propiciou um

deslanchar nas produções robattianas. A própria relação pessoal do documentarista com

fazendeiros, políticos e órgão estatais também contribuíram para que insurgisse uma

quantidade significativa de registros da Bahia. Além disso, frisamos que as influências da

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escola documental inglesa, com os filmes de Robert Flaherty e Jonh Grierson são

perceptíveis nos filmes de Robatto Filho.

Constatamos, pela análise do legado fílmico robattiano, que a Bahia ocupa lugar de

destaque na sua obra, e pelas múltiplas imagens, vimos não só a capital baiana e seu

recôncavo, mas a captura de traços e paisagens interioranas. E se diversa é a Bahia, diversa

é a obra de Alexandre Robatto Filho, o homem de mil instrumentos, como denominou seu

filho, Silvio. Nessa multiplicidade imagética, foi possível notar que havia latente às

abordagens documentais uma preocupação em mostrar o Estado que galgava nos trilhos

dos tempos modernos, no entanto, sem abandonar os velhos costumes e esse

entrelaçamento, essa convivência aparentemente harmônica entre o liberal e com

conservador, servirá base de um discurso sobre uma dita baianidade, que se incumbia,

sobretudo, de se ancorar nas peculiaridades de sua gente e de sua terra.

Nessa configuração, torna-se importante destacar como o cinema se constitui como

uma ferramenta de preservação de cultura, tornando visível, no presente, experiências

passadas, cujo assunto retratado interliga, o mundo de quem vê as imagens, com a visão de

quem o realiza.

Também percebemos que as imagens não deixam de revelar que ali constam as

memórias de um individuo que inserido numa coletividade, captura através de um suporte

tangível, evidências de um dado momento histórico, captura o movimento sociocultural

passado e/ou presente que foi vivido ou recebido e os organiza por meio de suas visões e

anseios ou mesmo atrelada a uma política que se ancora na construção de imagens por

acreditar na potência de perpetuar os feitos através dos tempos.

Destacamos ao longo do trabalho que a historiografia sobre os desdobramentos

políticos e econômicos dá conta de um relativo atraso que assolou a antiga capital da

província nas primeiras décadas do século XX, sendo perceptível uma paralisia frente ao

desenvolvimento de outros Estados brasileiros. De um certo isolamento que mergulhou a

Bahia, insurgiram as bases que propiciaram a consolidação de uma cultura genuinamente

baiana, construindo um arcabouço imagético que passou a ser o sustentáculo do discurso

da baianidade. Percebemos que havia uma necessidade de evidenciar a Bahia, concorrendo

para isso, ações no campo das políticas estaduais, da literatura, da música, da fotografia,

das artes plásticas, como também, do cinema e posteriormente, se intensifica com os

projetos turísticos.

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Certamente não esgotamos as potencialidades geradas pelo legado que nos foi

deixado por Alexandre Robatto Filho. As lacunas que aqui ficaram poderão servir de ponto

de partida para pesquisas posteriores, assim esperamos. O que procuramos reforçar durante

essa trajetória de pesquisa é o poder da imagem em tornar atual o que está ausente, em

fazer repercutir através dos tempos um passado que se torna presente quando o filme é

projetado. É um tempo que não morre, fica retido em um suporte tangível retratando não só

pessoas, cenários, costumes, mas também o que tornou possível a realização de tal obra e o

pensamento de uma época.

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