memorias de um paraquedista

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Este é o primeiro livro escrito por Julio A. Sinara no ano 2004. Nele são relatadas as experiências de um jovem que decide fazer um curso de paraquedismo esportivo. O tema apresentado é uma autobiografia que relata os fatos pitorescos vivenciados pelo autor durante 1969 a 1973, ano do golpe militar no Chile. Paralelamente os fatos políticos terminam com a queda do presidente Salvador Allende. O livro destaca o valor da amizade, sem entrar em analise política

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Page 1: Memorias de um paraquedista

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Page 2: Memorias de um paraquedista

Memórias de um paraquedistaVersão digital

Arte da capa: Julio Aranis Contreras

Todos os direitos reservados a: Julio A. Sinara.

E-mail: [email protected]

ISBN 85-905458-1-4

Baseados em fatos reais. Os nomes dos personagens mencionados no texto,

foram trocados.

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Agradecimentos:

Agradeço de todo coração a força recebida da minha querida esposa e família, como também de meus colaboradores e amigos que revisaram e colocaram sua cultura, na difícil tarefa de esculpir cada página desta obra.

Versão impressa:

Carlos Scholles

Julio Felix Garcia Vieira

Leopoldo Alberto Arqueros Gallo

Luis González

Márcia Velloso

Marisete de Moraes Viera

Oscar Inzulza

Patrícia Figueroa Bender

René Adolfssen Fuentes

Versão digital:

Paulo Ronaldo Oliveira Machado

Sonja Soares Pinto

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Page 4: Memorias de um paraquedista

Prefácio

Abrir espaços de nossa vida relatando emoções e percepções do que nos rodeia, torna as experiências passadas numa referência para as futuras gerações. A procura de superar desafios e limites pondo a prova à capacidade de produzirmos adrenalina e, controlar nossos movimentos sujeitos a fortes emoções é reflexo da essência própria da alma humana, a juventude propicia ações de maior ousadia, das quais o autor não se furtou de experimentá-las.

O desprendimento de nos brindar com o relato literário de parte de sua vida, contando-nos a sequência de situações para se decidir a enfrentar as leis da física, como prática de passatempo, lançando-se por vezes ao vazio desde um avião em pleno voo pendurado por umas cordas ligadas a uma cúpula de fino tecido, sem dúvida que é uma experiência para poucos, não tanto pela oportunidade que se oferece para realizar tal feitio, que é muito reduzida, haja vista que precisa de preparo, mais pela capacidade de desafiar com tanto entusiasmo e dedicação uma prova de adversidade explícita dessa natureza. Voar de avião resulta para muitos num esforço de controle da sensação de pavor, imaginem o que é então pular no ar, a vários milhares de metros de altura, numa época em que os materiais dos equipamentos utilizados não tinham a perfeição do que se dispõe agora no início deste século 21. Isso torna a história de Julio num testemunho de proezas com relatos alternados de suas conclusões, suas contradições, suas deduções, seus conflitos, suas fraquezas, seus êxitos, tudo matizado por descrições do que seus olhos, transformados no alto em luzeiros, observavam e interpretavam, num turbilhão de pensamentos, naqueles instantes, sem tempo para incertezas, de poucos segundos de descida no vazio. Esse mesmo olhar é utilizado para relatar em palavras as belas paisagens de seu querido Chile. Seus sentimentos constroem na narrativa os efeitos dos fatos vividos com relação à importância de seus vínculos familiares, seus relacionamentos pessoais, seu compromisso ideológico, que somados trilharam e marcaram sua biografia desde essa época. Somente um acontecimento relevante é que foi capaz de transformar esse período de sua vida. Se o esporte por ele escolhido e praticado tem muito de romantismo pela audácia de sua realização, o relato de suas memórias tem muito de fascinante. Façam bom proveito da história sem esquecer que tudo foi vivenciado. Oscar Inzulza

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I.- O início

Caminhava por aqueles campos que circundavam o aeródromo do Clube Aéreo de Melipilla. Cachorros, galinhas e vacas vinham a meu encontro cada vez que transitava por essa trilha. Durante os últimos três meses, estabeleci um vínculo de amizade com esses animais.

Era uma fria manhã de dezembro de 1969, o vento cortava meu rosto. Nas costas transportava meu paraquedas recém comprado. Nunca pensei que um simples aviso classificado do jornal “El Mercúrio” me levaria tão longe: “Curso de Paraquedismo Esportivo”, foi só lê-lo e no dia seguinte estava matriculado, amor a primeira vista. Mas não somente atividades esportivas serão encontradas na pratica deste passatempo, sem saber estava iniciando uma etapa cheia de: alegrias, aventuras, conquistas, amores e tragédias. Eram os primeiros passos entrando num futuro difícil de prever. Casualmente nessa época estava terminando uma relação amorosa de sete anos, que podemos chamar de romance adolescente. Tudo ficava atrás e uma nova vida começava.

Com passo firme e decidido aproximava-me da base do clube dos “Diablos Rojos”. Lembro-me do início do curso, éramos aproximadamente trinta alunos, dos quais, terminamos oito. Os motivos para desistir foram muitos. As poucas mulheres que participaram, ficaram fora por não cumprir as exigências físicas mínimas, solicitadas pela Direção de Aeronáutica.

Outra coisa que nos impressionou foi a visita que realizamos ao centro de paraquedismo da cidade de Colina, onde são preparados os “Boinas Negras” do Exército. Nessa oportunidade conhecemos uma torre de aproximadamente quinze metros de altura, a qual permitia simular uma saída de avião. Fomos equipados com coletes unidos a dois fios de aço, que freavam a queda depois de alguns metros. O fato de saltar no vazio era realmente impressionante, cada prática --- que foram várias --- precisava de uma grande cota de coragem.

Esta foi nossa primeira experiencia que refletia aproximadamente uma saída de avião, e que nenhum de nós tinha experimentado jamais. Outra coisa assustadora foi observar uma série de caveiras e ossos humanos ao pé da torre. Segundo os militares eram despojos de alunos, que pereceram durante as práticas. Mentira deles! Era uma montagem para assustar os novos recrutas, mesmo assim nos impressionou bastante.

Os aviões estacionados perto do hangar pareciam brinquedos. O vento frio deixava meu rosto vermelho. O curso teórico estava chegando ao fim e o próximo passo era iniciar as práticas de salto. Muitas perguntas apareciam enquanto caminhava em direção ao campo aéreo:

---- Qual seria meu comportamento no momento de saltar? ---- Teria coragem suficiente para enfrentar esse desafio?

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Claro, foram três meses de intenso preparo físico e teórico, mas nada garantia o fato de vencer o medo e saltar de um avião em pleno voo. Teste excitante e assustador. Internamente esperava por esse momento desde o primeiro dia que iniciei o curso e, nada me privaria pelo menos, de efetuar o primeiro salto.

Na sede encontrei o instrutor chamado Bambi, até hoje desconheço o motivo desse nome, perguntei com muito interesse se minha licença estava pronta, a resposta foi afirmativa, logo me entregou um documento pequeno com foto. Agora estava confirmado, esse fim de semana faria meu primeiro salto. Esse minúsculo papel era o passaporte para testar a coragem, e conhecimento adquirido os últimos três meses. Um intenso arrepio percorreu minhas costas. Estendi meu paraquedas numa mesa especialmente preparada para essa função. Ordenar as cordas e a cúpula era um rito que devia ser cumprido em todas as etapas, meticulosamente. Nossa vida dependia desse cuidado. Em nosso jargão este ato se denominava “empacar”.

Aos poucos chegou o resto dos colegas de curso. Senti confiança ao saber que outro aluno também tinha ganhado a licença. O “manco” Gana dava pulos de felicidade por serem uns dos primeiros alunos em alcançar o objetivo do curso. O apelido de “manco” foi dado pela pequena diferença no comprimento das pernas, produto de um acidente de moto.

Os primeiros cinco saltos, de forma obrigatória, são realizados com “linha estática”. Este elemento é uma corda fixada na aeronave, e tem como função abrir automaticamente o equipamento. É uma medida de segurança aplicada pela Direção de Aeronáutica, para prever acidentes. Nos primeiros saltos se desconhece as reações do aluno, existem casos de tontura, desmaio, pânico, etc. Por esse motivo é uma norma obrigatória.

Enquanto nos equipávamos, meu colega Gana não parava de falar, eram milhares os argumentos relacionados com nosso futuro salto.

---- Como podia falar tanta coisa se nunca saltou? --- perguntava para mim mesmo.

Qualquer pessoa que o escutasse pensaria que era um paraquedista com muita experiência, mas na verdade era o reflexo do nervosismo vivido nesses momentos.

Um rústico quarto de madeira localizado na beira do campo aéreo, era a sede dos “Diablos Rojos”. Bancos e armários faziam parte da mobília, tudo bem tosco. Nele eram guardados os equipamentos, servindo também para aparelhar-se.

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Equipado com botas, óculos, macacão, capacete, paraquedas principal e reserva, esperava o voo que me levaria às alturas. Minha posição nesses instantes foi refugiar-me dentro de mim para escapar da realidade. Sentia-me no interior de uma fortaleza observando através de uma fenda. As ações aconteciam na minha frente, mas não participava de nada, era um mero espectador: alunos conversando, aviões decolando, carros estacionando, visões que chegavam através dos meus olhos, mas continuava escondido na parte mais profunda da minha mente.

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II.- O primeiro salto

O avião com capacidade para quatro pessoas (quadriplace) disponibilizava dois lugares na frente com bancos separados, e dois atrás. Similar a um carro de duas portas. Quando a aeronave era usada para efetuar saltos, o banco e a porta do “caroneiro” eram retirados. O aluno que ocupava esse lugar ficava sentado no piso, suportando o fluxo de ar que entrava sem perdão durante todo voo. Vale a pena mencionar, que a porta fica exatamente embaixo da asa e frente à roda de aterrissagem.

Quando fomos chamados para embarcar, meu coração queria escapar do peito e minha boca estava seca. As correias que sustentavam o paraquedas me impediam caminhar com naturalidade. O medo complica qualquer coisa! Na porta do avião o instrutor revisou os equipamentos e posteriormente nos mandou praticar saídas da aeronave, conforme o aprendido no curso:

Primeiro: - “Sentar-se na porta”. Nesta posição ficam ambas as pernas fora da fuselagem.

Segundo: - “Ao montante”. (“montante” é a barra de alumínio que une a asa à fuselagem de forma diagonal)

O aluno deve pisar no estribo e segurar-se no “montante” para posteriormente apoiar a perna esquerda na roda, e a direita estendida para trás. Ao chegar neste ponto o aluno está totalmente fora do avião e, literalmente parado embaixo da asa.

Terceiro: - “Saltar”. Esta é a etapa mais simples, basta soltar as mãos e simultaneamente pular levemente para atrás, a gravidade faz o resto.

Gana realizou a saída de forma perfeita, a não ser pela expressão de louco quando o instrutor gritou “salte”.

---- Ainda estamos em terra! Imaginem lá em cima! --- pensei.

Posteriormente foi comigo. No momento de pisar a roda me surgiu a seguinte dúvida:

---- Quem frearia a roda para que não girasse quando estivesse no ar?

Preocupado coloquei esta questão para o instrutor, ele me respondeu que era problema do piloto, que não me preocupasse com isso. Esse argumento não foi satisfatório para mim, e senti ainda mais insegurança. Logo pensei:

---- Que diferença faz? Ao final vou cair do mesmo jeito.

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Os colegas de curso a nossa volta, observavam atentamente os processos de preparação, até que decidiram lançar piadas de mau gosto. Algumas delas diziam que nos tirariam com espátula do chão, outros queriam herdar nossos equipamentos, em fim, era o ambiente criado em volta do avião. Nós ríamos meio sem graça, tudo isso fazia parte do primeiro salto. A festa terminou quando o piloto ligou o motor e o vento golpeou com força os macacões. Bambi com o capacete na mão me ordenou sentar no banco traseiro, atrás do piloto, ele ficou a meu lado e no chão meu parceiro Gana, com sua expressão de louco.

O avião começou a mover-se lentamente. Pela janela observei os colegas fazendo sinais de despedida, a sensação era de estar recebendo a extrema-unção. Até sorri para eles ao fazer o sinal de positivo. Quando o avião chegou ao cabeçal da pista, o piloto acelerou toda a potência do motor para ganhar velocidade e decolar. O barulho e a vibração eram tão fortes que parecia que a estrutura não resistiria. Assustado imaginava que o aparelho se desintegraria e todos nós ficaríamos despedaçados na pista. Nada disso aconteceu, decolamos perfeitamente e um vento forte começou a entrar pelo espaço vazio da porta anteriormente retirada.

---- Que falta de consideração com os passageiros! --- pensei --- última vez que voo nesta linha aérea!

Durante o tempo que durou a ascensão, repassei os procedimentos de emergência aprendidos durante o curso teórico. O paraquedas de reserva se encontrava localizado na barriga com a alça livre, minha função era protegê-la, para evitar uma abertura dentro do avião. Um descuido com esse pequeno objeto poderia causar grandes danos à aeronave. Pela janela observava os campos agrícolas ficarem cada vez menores, meus amigos viraram pontos e as casas idênticas ao jogo do Banco Imobiliário. O momento estava chegando.

-- Preparar-se! --- mandou Bambi.

Gana colocou os óculos e revisou a correia do capacete, tudo perfeito. Eu o imitei embora a primeira vítima fosse ele. Bambi trocou de posição sentando-se com as pernas cruzadas, tipo índio. Sacou a cabeça fora do avião e depois de observar minuciosamente gritou para o piloto:

--- Três graus à direita.

O avião se mexeu levemente nessa direção, a sensação foi muito suave, igual à pressão exercida por um carro ao virar uma esquina. A seguinte ordem também foi para o piloto:

--- Mantenha rumo.

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Isso significava que estávamos na linha de salto. O instrutor gritou:

--- Desligue motor!

A ordem seguinte foi para Gana

--- Sente-se na porta.

Escutei o ruído do macacão tremulando com a pressão do vento. Ele obedeceu sem reclamar. De novo Bambi:mandou:

--- Ao montante!

Meu primeiro pensamento foi:

---- Será que o piloto tem a roda freada?

Claro, era um piloto com muita experiência. Depois de alguns segundos, Bambi deu uma palmada nas costas e simultaneamente gritou:

--- Salte!

Gana foi engolido pelo vento. Da minha posição foi difícil observar o que estava acontecendo, a única coisa que posso comentar é que desapareceu de forma abrupta, quis saber alguma novidade observando inquisitivamente a Bambi, mas ele estava recolhendo a “linha estática” e guardando-a na cabine, portanto não deu bola para mim. O avião começou a girar. Agora era minha vez. Que droga!

Ocupei o lugar de Gana. O fato de ficar sentado no piso duro e frio tinha suas compensações, sem a porta, a vista era impressionante. Conseguia visualizar uma imensa área agrícola, demarcada por suaves morros. Tratei de localizar a pista de aterrissagem, mas não tive tempo, nesse momento Bambi colocou a cabeça fora do avião e falou para o piloto:

--- Mantenha rumo.

Não passaram dois segundos e ordenou:

---- Desligue motor!---- Agora esta porcaria cai --- pensei.

A seguinte ordem foi para mim:

--- Sente-se na porta.

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As pernas com botas e tudo ficaram flamejando com a pressão do vento. Tive que fazer força para colocá-las no estribo metálico que serve para abordar a aeronave.

--- Ao montante! --- lamentavelmente essa ordem era para mim de novo.

Coloquei a perna esquerda na roda e fiz força para constatar que estava freada, posteriormente com ambas as mãos peguei o montante para levantar-me e ficar parado na roda. Agora estava totalmente fora do avião, a perna direita ficou rígida apontando para trás. Observava extasiado a paisagem que pela primeira vez se mostrava diante mim; um céu azul decorado com pequenas nuvens brilhantes, e lá embaixo a Terra, tão longe que não intimida. Era um espetáculo! Continuava parado na roda e o instrutor não dava a ordem para saltar, alguma coisa não estava certa! O coração batia freneticamente. Finalmente ele gritou:

--- Salte!

A essa altura do campeonato não podia fazer outra coisa, soltei o “montante” e ali estava eu caindo nessa paisagem maravilhosa. Percebi alguns golpes nas costas e posteriormente um silêncio impressionante. Olhei para cima e fiquei surpreso com o tamanho da colorida cúpula, estava inflada totalmente e, o mais importante, dando-me sustentação para voar por esse enorme espaço.

O avião se perdeu no azul do céu. O único ruído que escutava era o vento batendo na cúpula. O que me impressionou realmente foi a enorme distancia que separava meus pés da Terra.

---- Felizmente não sofro de vertigem --- pensei.

Ao levantar o olhar descobri duas cordas que permaneciam penduradas das correias da cúpula, eram os “condutores”, um para a mão direita outro para a esquerda. Puxei um deles para abaixo, a resposta foi quase imediata: o paraquedas girou violentamente fazendo um pêndulo com meu corpo.

--- Droga. Funciona mesmo! --- gritei

Puxei a outra corda e aconteceu a mesma coisa. Não cabia de alegria, pela primeira vez estava conduzindo um paraquedas, flutuando naquele céu azul, rodeado de um profundo silêncio. Tudo era mágico, até que chegou o momento de aterrissar, não conseguia reconhecer absolutamente nada, depois de muita observação, localizei a pista de aterrissagem, mas estava muito longe. Por algum motivo desconhecido meu salto estava totalmente fora da programação inicial, teria que aterrissar num potreiro. Abaixo de meus pés observei umas fileiras de árvores, verdes e fechadas. Nesse momento compreendi que estava em uma zona de alto risco, aterrissar em árvores é tão perigoso que é necessário aplicar procedimentos de emergência, era necessário agora lembrar

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as aulas teóricas. Preparei-me então para enfrentar o problema: joelhos no peito e ambos os braços cruzados protegendo o rosto, agora devia esperar o impacto com os galhos, não obstante, foi o chão que chegou com violência, fiquei alguns instantes tratando de entender o que estava acontecendo. Segundo meu ponto de vista deveria estar pendurado de algum galho, mas não conseguia ver nenhuma árvore.

---- O salto me deixou cego?

A realidade era muito simples; o medo, a inexperiência e a visão longínqua foram os fatores que me fizeram trocar umas lindas alfaces por frondosas árvores. E daí? Era minha primeira experiência neste esporte!

Os colegas do curso chegaram para ajudar-me com o equipamento. Abraços, risos e gritos. A clássica pergunta se repetia milhares de vezes.

--- Como foi o salto?--- Maravilhoso! --- respondia. --- maravilhoso!

Naturalmente não contei a experiência com as alfaces, me sentia ridículo. Não demorou muito tempo e todo o pessoal participou de meu “batismo”, que consistia em pegar à vítima (eu) e atirá-la num riacho que passava pela borda da pista de aterrissagem.

Tempo depois, sentados na grama comentamos o salto com Gana. Cada um de nos tinha experimentado coisas diferentes, as sensações vividas por ele eram diferentes das minhas, mas num ponto coincidimos plenamente, o momento da saída era o mais assustador.

Depois de alguns minutos o segundo salto foi anunciado. Por algum motivo desconhecido, nesta segunda ocasião o medo aumentou, deve ser porque esta vez existe plena consciência da realidade, mas por outro lado, aquele maravilhoso momento vivido lá em cima, me dava força para ir novamente ao sacrifício.

Desta vez fui o primeiro a saltar, noutras palavras fiquei sentado no piso durante todo o voo. Coisa linda e assustadora, se o avião girasse muito inclinado iria direto para baixo, pensava. Por esse motivo minha mão esquerda estrangulava o encosto do banco do piloto. Por enquanto a direita protegia a alça da reserva. Agora tudo aconteceu de forma natural, a saída foi totalmente tranquila, aquela dúvida relacionada com a roda do avião, ficou no primeiro salto. Estava flutuando novamente e meu principal objetivo era chegar o mais perto do fosso de aterrissagem. Quase, quase consegui, faltaram poucos metros para colocar as pernas na areia. Para não me machucar desta vez, realizei uma queda de aterrissagem perfeita, os cinco pontos de contato foram executados com

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perfeição, como foi ensinado no curso. Ao olhar o céu, observei meu amigo Gana voando como uma gaivota, entre pequenas nuvens. Uma linda imagem.

Ao terminar o dia, os companheiros do curso nos levaram de volta a Santiago. Sonharia todas as noites com a maravilhosa experiência desse domingo. Vivências que ficaram pelo resto da minha vida.

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III.- Um estranho despertar

Quando Victor acordou sua boca estava seca com sabor desagradável. A cabeça parecia que ia explodir, ao mover-se sentiu uma forte dor no ombro esquerdo. Nele encontrou uma ferida de aproximadamente dez centímetros, o sangue seco manchava a camisa e parte da cama. Que aconteceu na noite anterior? Forçou sua mente e depois de alguns minutos começou a lembrar. Tudo começou numa conhecida casa noturna chamada Manhattam. Era uma das melhores da cidade de Arica, solicitou ao barman um whisky duplo e esperou o início do show. As prostitutas e malandros que frequentavam o estabelecimento, o respeitavam pela fama alcançada no submundo do crime.

O primeiro strip-tease foi realizado por um travesti arrumado com roupas extravagantes, dançando temas de Frank Sinatra.

As amigas de Victor lhe apresentaram uma moça do interior, recém chegada à cidade. A falta de trabalho e as novas “amigas”, a forçavam para entrar na prostituição. Victor sentiu pena da moça, seu nome verdadeiro era Cristina e as mulheres sugeriam diversos pseudônimos “artísticos” para a recém chegada. Morena, delgada, alta, pele branca, lindos olhos verdes e grandes lábios cor de rosa, eram as características de Cristina, Victor sabia que seria explorada pelo dono do estabelecimento, ou por aquelas que se diziam amigas. Em pouco tempo se tornaria uma prostituta doente, velha e pobre. Solicitou uma mesa e convidou Cristina para que o acompanhasse a tomar um drinque. A moça aceitou sabendo que ganharia comissão pelas bebidas consumidas.

Conversaram grande parte da noite. Conheceu praticamente toda a vida da jovem. Ficou comovido com os sonhos que trouxe ao chegar a essa cidade: namorar, casar e ter filhos eram seus objetivos. A família pobre e profundamente religiosa, haviam-lhe ensinado durante sua infância princípios cristãos difíceis de apagar. De alguma forma a juventude de Victor foi muito similar, mas os caminhos da vida o afastaram totalmente dessas doutrinas, seus próprios desejos se refletiam nas aspirações relatadas por essa indefesa mulher. A grata conversação foi interrompida por uma das amigas de Cristina, avisando que um cliente queria conhecê-la. No balcão um homem robusto com um copo na mão, estava disposto a pagar um bom dinheiro, para fazer um “programa” com a novata. Depois de observar o homem que suava como um porco, Cristina respondeu que não estava a fim de fazer “programas”, preferia continuar conversando com Victor, mas as amigas insistiram e chegaram a pegá-la pelos braços para tirá-la do lugar. Foi nesse momento que Victor mostrou sua fama e afastou violentamente as prostitutas. Elas se retiraram resmungando. A jovem agradeceu e continuaram conversando, mas por pouco tempo, o homem se aproximou desafiando Victor para enfrentar-se na rua.

---- Vamos solucionar este problema “homem a homem” ---- gritou.

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A altura de Victor era de aproximadamente um metro e setenta, boa aparência, de traços finos, magro, moreno de cabelo liso. Tinha uns trinta anos e sua ficha criminal era muito mais comprida que sua estatura.

Qualquer pessoa teria fugido ao ver o tamanho do desafiante: alto, corpulento, dava medo de olhar para ele. Mas Victor o analisava de forma diferente; uma pessoa desse tamanho é lenta e pesada, além disso, estava alcoolizado. Com essas características teve certeza que venceria a luta.

Saíram à rua, de entre as roupas tiraram as respectivas armas brancas. O homem estava vermelho e parecia um touro a ponto de acometer. Por sua parte Victor se mantinha extremamente calmo, com os olhos fixos na lâmina reluzente do adversário. Lentamente começaram a girar com as pernas ligeiramente flexionadas, numa mão a arma e na outra o casaco envolto ao braço para proteger-se. Cristina e as prostitutas assistiam atentas, sem expressar uma palavra. O pesado silêncio foi interrompido pelo zumbido de uma faca ao cortar o ar. Mas o gordo não só havia cortado o ar, o sangue começou a fluir do ombro esquerdo de Victor. Foi surpreendido pelo alcance do braço do antagonista. Esta vantagem teve um efêmero momento. Com raiva e com muita velocidade, Victor tomou a mão com a arma do homem e, girou violentamente, ficando de costas. Nessa posição enfiou duas vezes a lâmina no peito do adversário. Este retrocedeu sem compreender o que estava acontecendo. Antes de desabar, palpou o peito molhado em sangue. Estendido no chão gemia como um animal ferido. A luta estava terminada. Cristina e Victor abandonaram o local rumo à casa deste último. Mais tarde com passos vacilantes, entrou o homem à boate, ajudado pelas mulheres. As feridas foram atendidas no banheiro do estabelecimento. Finalmente continuou bebendo numa mesa afastada.

Estava amanhecendo quando o pessoal da limpeza encontrou seu corpo no fundo da boate. Nos pés uma grande poça de sangue coagulada. A polícia chegou rápida e interrogou ao pessoal que se encontrava presente. As prostitutas não titubearam um instante para delatar Victor. O detetive Oscar já conhecia o prontuário penal desse indivíduo, escutou atentamente a versão das mulheres e deu ordem para sua imediata detenção.

Oscar era um homem calmo, inteligente e calculista, podia ver coisas onde os outros nada encontravam. Dez anos na Polícia Civil, lhe forneceram a experiência necessária para solucionar inúmeros casos. Em várias oportunidades havia capturado Victor por delitos menores, conhecia a forma de operar de todos os delinquentes dessa cidade, sempre chamou sua atenção a inteligência e cultura desse bandido. O perfil intelectual era a principal característica para classificá-lo como uma pessoa extremamente perigosa. Os últimos acontecimentos lhe davam agora a grande oportunidade de botá-lo por muitos anos atrás das grades. Colocaria todo seu empenho para conseguir esse objetivo, os dias de liberdade de Victor estavam contados.

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IV.- O primeiro salto livre

Uma das coisas surpreendentes que me proporcionou a prática deste esporte foi a forma de enfrentar os problemas do dia a dia, tanto na vida privada como profissional. Minha existência tomou uma nova dimensão, as prioridades dadas a determinados fatos ficaram justos e precisos, cada um deles era avaliado com a real importância que tinha.

Fiquei extremamente satisfeito com meu desempenho durante os primeiros saltos, provei para mim mesmo que era possível dominar o medo e, desfrutar daqueles instantes maravilhosos que proporcionava o paraquedismo. Estas pequenas vitórias enriqueciam meu espírito e me proporcionavam confiança para enfrentar qualquer obstáculo. E obstáculos não faltariam. O segundo objetivo era saltar livre, e para isso deveria executar ao menos cinco saltos com “linha estática”.

Como mencionei anteriormente, a “linha estática” é uma corda de náilon de aproximadamente três metros de comprimento. Sua função é abrir o paraquedas de forma automática. O sistema funciona da seguinte maneira: um extremo é atado ao avião e o outro a cúpula do paraquedas. Desta forma, depois que o aluno cai três metros, a linha puxa a cúpula para fora do contêiner produzindo a abertura. A corda se corta pela pressão realizada entre o avião e o peso do corpo do aluno, que serve como âncora. O extremo que fica atado à aeronave, é recuperado pelo chefe de salto. Durante esta etapa é colocado um fragmento de tecido muito vistoso atado na alça de abertura, seu objetivo é verificar se o aluno é capaz de puxá-la de forma consciente. O chefe de salto, ao observar desde o avião a tela flamejando na mão do aluno, dá por aprovado o salto, obviamente esta ação não abre o paraquedas, já que ele será aberto pela “linha estática”, é simplesmente um teste para verificar os reflexos do aluno. Depois de dois fins de semana consegui qualificar meus cinco saltos com linha.

No terceiro fim de semana estava pronto para saltar livre. A mesma coisa aconteceu com Gana, passaríamos juntos por uma nova experiência. Impaciente esperava embarcar para cumprir essa etapa. Lamentavelmente o instrutor frustrou nossa ansiedade argumentando que não era conveniente realizar o primeiro salto livre, sem fazer previamente um com linha no mesmo dia. De tal forma que durante a manhã efetuamos o último salto solicitado por Bambi, e participamos dos “batismos” dos alunos que saltavam pela primeira vez. Foi um espetáculo, me vinguei de todas as piadinhas de mau gosto lançadas as semanas anteriores. Finalmente à tarde fomos avisados para realizar o esperado salto livre.

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Cada nova experiência realizada neste esporte produz uma sensação de insegurança. O fato de abandonar um sistema provado por outro desconhecido, requer uma dose extra de coragem.

Gana foi o primeiro a abandonar o avião. Observei atentamente o momento da saída. Quando se encontrava parado na roda sem o clássico cordão umbilical chamado “linha estática”, me transmitiu uma sensação de vulnerabilidade. Por outro lado, ao observar um tremendo sorriso em seu rosto, me deu confiança. Longe ficaram aquelas expressões de loucos, reveladas nos primeiros saltos. Bambi comentou que a posição de planeio, de meu companheiro, foi executada com absoluta perfeição. Troquei de lugar e fiquei esperando instruções. Nesta etapa se enfatiza que a mão deve permanecer longe da alça de abertura durante todo o processo de saída. Os motivos estão à vista; caso o paraquedas seja aberto dentro da cabine, causaria sérios danos. Por outro lado se fosse aberto perto da fuselagem, poderia enrolar-se na cauda. Em consequência a abertura somente deve ser executada depois de cair pelo menos cinco segundos. Essas instruções básicas são lembradas aos alunos nos primeiros saltos livres, pois sabemos que o instinto de conservação é muito forte. As pessoas instintivamente levam a mão à alça no momento da saída, por um motivo bastante simples: a vida depende desse pequeno objeto.

Outra instrução que também é lembrada se refere à posição de planeio. Ao sair do avião os princípios aerodinâmicos colocam o corpo na posição horizontal, de tal forma que o aluno fica olhando o chão, equivale a estar deitado de bruços. A barriga desempenha uma função importantíssima, pois é o centro de gravidade. Caso o aluno contrair a barriga, o corpo gira automaticamente e fica olhando o céu, noutras palavras caindo de costas. Representando graficamente este fenômeno, coloco como exemplo uma folha de árvore, ao desprender-se do galho, sempre cairá com o lado oval para abaixo. Com o corpo humano acontece a mesma coisa.

Estava totalmente consciente desses fatos e, quando saltei, deixei a mão o mais longe possível da alça, o problema é que demorei mais de cinco segundos para abrir. A verdade foi que os primeiros segundos esqueci de contar. Passado os primeiros seis segundos o corpo adquire a “velocidade terminal” que em meu caso era aproximadamente cento e noventa quilômetros por hora. Nesta situação as leis da aerodinâmica são cem por cento efetivas, as mãos e os braços podem servir de timão para efetuar diversas acrobacias. Ignorante destes fatos e com a tensão própria do momento, contraí involuntariamente a barriga e, sem dar-me conta, estava caindo de costas, (olhando para o céu). Nesta posição o paraquedas fica embaixo do corpo, em consequência existe uma enorme probabilidade que a cúpula fique presa em alguma parte do contêiner. Tratei de corrigir curvando a coluna e trocar o ponto de equilíbrio. Embora o esforço realizado fosse totalmente lícito, não consegui voltar à posição original e continuei caindo na mesma posição. O medo falou mais alto e tirei a alça assim mesmo. Vi passar a cúpula muito perto do meu rosto, mas a

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fricção não me queimou. Observei todo o processo de abertura até ficar finalmente pendurado. Que experiência me proporcionou esse salto! Foi a primeira vez que senti insegurança, mas tudo passou e pude comprovar que, apesar de cometer um erro bastante sério, o equipamento conseguiu corrigir minha falha e efetuar uma abertura feliz, foi uma desagradável forma de ganhar confiança no equipamento, mas totalmente válida, agora a próxima preocupação era enfrentar um novo “batismo”

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V.- Saltos de maior altura.

A partir dessa data comecei a viajar todos os fins de semana à cidade de Melipilla, desejava compartilhar com meus amigos essa nova vida. Os primeiros saltos livres são sempre de baixa altura, não ultrapassando os três mil pés, (aproximadamente novecentos metros). O nome dado a este tipo de prática é: salta, olha e puxa. O objetivo é familiarizar os alunos com a saída do avião e principalmente à sequência dos movimentos durante a queda.

“Salta” Quando se abandona o avião.

“Olha” É para verificar que o que estamos pegando é verdadeiramente a alça e não outro elemento do contêiner

“Puxa”: Com a certeza que pegamos a alça, puxamos ela com força.

O tempo transcorrido desde a saída até abrir o paraquedas, é de aproximadamente cinco segundos, nesse curto período de tempo não é alcançada a velocidade terminal --- que só acontece depois do sexto segundo --- portanto o corpo fica instável e no momento da abertura a posição não será ideal, podendo acontecer experiências diferentes.

Ao iniciar a sequência de saltos de maior altura, fomos instruídos de colocar a palavra “mil” por cada segundo contado, ficando da seguinte forma: “Um mil”, “Dois mil”, “Três mil”...etc. Isto proporcionava um equilíbrio com o tempo real.

Desfrutava enormemente cada uma destas experiências. Sempre aprendia alguma coisa interessante, tanto na saída do avião como na condução do paraquedas. Ao terminar a série dos primeiro dez saltos, Bambi me levou a três mil seiscentos pés, (mil cem metros aproximadamente), equivalente a dez segundos de queda livre. Os saltos anteriores me davam confiança para sentir-me totalmente tranquilo. Controlava perfeitamente meu corpo na posição de planeio. Por outro lado havia praticado mil vezes encima da cama, a postura de um escorpião: mãos levantadas e pernas ligeiramente flexionadas, por isso quando saí do avião minha posição era perfeita embora instável. Depois do sexto segundo tudo mudou, os elementos da física afetaram meu corpo, estava alcançando a velocidade terminal. Sentia nas palmas das mãos a pressão do vento. Descobri que ao fechar uma delas se iniciava um suave giro. O horizonte passou frente a meus olhos surpreendendo-me gratamente, quis fazer a mesma coisa com a outra, contudo desisti porque estava preocupado com o tempo que restava, comprovei que minha barriga era o centro do equilíbrio. Sete mil, Oito mil, Nove mil, olhei a alça, dez mil e puxei com força, pela primeira vez havia experimentado o domínio do corpo no ar, era o mais próximo de voar. É incrível

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como a força de gravidade afeta nossa aerodinâmica. A partir dessa experiência, tratei de saltar o mais alto possível, para isso tive que comprar um altímetro para controlar a altura. Este instrumento é redondo, se instala no braço, igual que um relógio de pulso. De fundo branco e números negros, destacando-se um triângulo vermelho que indicava a altura obrigatória de abertura (2500 pés). Este elemento me permitia concentrar-me no salto e esquecer a incômoda forma de contar os segundos.

A experiência me permitiu descobrir que durante a queda livre, estendendo os braços para frente com as pernas flexionadas, o corpo permanece na diagonal, sendo a cabeça o ponto mais alto, outorgando uma tremenda comodidade para observar e facilidade no momento da abertura. Pelo contrário, ao recolher os braços e estirar as pernas, a cabeça ficava mais baixa que os pés, e a velocidade aumentava produzindo uma queda em “picada”. Coisas da aerodinâmica. Numa oportunidade contraí a barriga para satisfazer minha curiosidade. A resposta foi imediata, o corpo girou e fiquei olhando o céu --- igual ao primeiro salto livre --- a partir desse momento continuei caindo de costas. Para recuperar a posição original, bastou curvar a espinha e puxar a barriga para fora.

--- Com experiência as coisas funcionam --- pensei.

Outro recurso muito ocupado em queda livre é o uso das mãos. Elas podem servir para avançar, retroceder ou girar, dependendo da posição, por exemplo: ao apontar os dedos para baixo se avança, ao mudar a posição para cima, se retrocede, ao fechar uma delas se gira. Todos estes movimentos são realizados na linha horizontal. Outra prática comum para aumentar a velocidade é colocar os braços estendidos para trás, colados ao corpo, tipo asa delta. Nesta postura a velocidade pode alcançar trezentos quilômetros por hora. Os exemplos mencionados anteriormente, são aplicados no “trabalho relativo”, técnica usada nos saltos de dois ou mais participantes. O objetivo é tomar-se ou “enganchar-se” durante a queda livre, e fazer uma “estrela”, que consiste em vários paraquedistas tomados.

Uma coisa que chamou minha atenção foi conhecer um paraquedista de aproximadamente sessenta anos, diretor de uma empresa multinacional, que praticava este esporte durante muito tempo e ainda usava “linha estática”.

---- Qual seria o motivo desta medida? ---- me perguntava.

Não consegui dominar minha curiosidade e quando se apresentou a oportunidade lhe consultei. A resposta foi clara e precisa: a qualidade do ar, o sol e em geral o contato com a natureza, era o principal motivo que o levava ao campo aéreo. O paraquedismo era secundário. Minha curiosidade foi satisfeita, mas fiquei inconformado, não consegui entender como uma pessoa deixa de

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lado a maravilhosa sensação que proporciona a queda livre. Aqueles segundos que antecedem à abertura proporcionam uma emoção difícil de ser encontrada em parte alguma na Terra.

Não passou muito tempo para que Patrício --- um paraquedista com bastante experiência --- me convidasse para realizar um “enganche”. Era a oportunidade que estava esperando para aplicar os conhecimentos ganhos nos últimos vinte saltos. Este tipo de atividade --- como mencionei anteriormente --- é denominada “trabalho relativo”. Sentia orgulho de realizar um salto, pela primeira vez, com gente grande.

Quando estávamos equipando-nos, apareceu Bambi manifestando seu desejo de participar. Agora éramos três, e em consequência tudo era mais interessante. Bambi e Patrício foram sentados no banco traseiro, meu lugar foi o piso ao lado do piloto. Um vento frio golpeava minha fraca estrutura durante todo o voo.

---- Como faz falta a porta! --- pensava enquanto meus membros ficavam congelados.

Depois de quarenta minutos o frio tomou conta de meu corpo e tremia compulsivamente, era horrível. Fomos a quinze mil pés, o equivalente a quatro mil e seiscentos metros. Conforme o conversado em terra, minha função era fazer a base da “estrela”. Para consegui-lo, deveria manter uma queda estável para facilitar a chegada de Bambi e Patrício. Quando chegou o momento de abandonar a aeronave, fiquei parado na roda por vários segundos esperando a saída de meus companheiros. Nesse momento estava tão concentrado que nem frio sentia. O vento pegava com força no equipamento, fazendo flamejar as correias do contêiner. Bambi ficou na porta e Patrício colado à fuselagem. Num sinal de Bambi, de forma simultânea, nos soltamos da aeronave. Depois do sexto segundo consegui estabilizar e, esperei por meus companheiros. O primeiro a fazer contato foi Bambi; senti um impacto violento ao pegar meu braço. Quando me recuperava da impressão, chegou Patrício que, por sua vez segurou Bambi, para posteriormente fechar a “estrela” agarrando meu outro braço. Era maravilhoso “flutuar” a essa vertiginosa velocidade e ainda “enganchado”, com dos experientes amigos. Era minha primeira experiência em “trabalho relativo” e desfrutava cada segundo. Patrício sinalizou seu altímetro, avisando que o salto estava acabado. Bambi me soltou e abriu imediatamente, depois foi minha vez e por último, Patrício.

Foi um salto de grande êxito. Esta experiência me deu confiança para continuar participando desta especialidade. Consegui por em prática os conhecimentos aprendidos até o presente momento, e eles funcionaram perfeitamente.

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VI - Nascem “ Los Escorpiones”

O clube “Diablos Rojos” no qual fui formado era muito organizado. Cada diretor velava pela união e principalmente pela segurança dos membros. Levados por esse sentimento era difícil ganhar um cargo que envolvesse responsabilidade. Eles demoravam bastante tempo para depositar confiança em qualquer pessoa, independente da experiência.

Cito como exemplo o caso de Alfredo. Ele cumpria todas as exigências solicitadas pela Direção de Aeronáutica para ser Chefe de Salto, mas a diretiva do clube não dava o passe por encontrá-lo imaturo. Na vida particular, Alfredo tinha uma garagem em Santiago, na Rua Romero, perto da Estação Central. Sérgio seu sócio, era um excelente mecânico. O negocio ia de vento em popa. Nessa época tinha trinta e três anos, de nariz aquilino, moreno, pesava aproximadamente noventa quilos, e se caracterizava por ser um líder inato. Gostava de auto definir-se como o “número um”.

A situação entre o clube e Alfredo criou um descontentamento entre alguns membros que o apoiavam. Finalmente a diretiva cedeu e Alfredo ganhou a licença de Chefe de Salto.

Quando se pensava que estava tudo solucionado, recebeu uma suspensão por realizar saltos sem autorização, esta foi a gota que vazou o copo, não passou muito tempo para que Alfredo chamasse a reunião aos alunos do último curso --- ao qual eu pertencia --- propondo fundar um novo clube. O principal argumento apresentado foi que a diretiva dos “Diablos Rojos”, era um grupo de pessoas que dificultavam a prática do esporte, colocando travas de tipo administrativo. Precisávamos emancipar-nos e voar sozinhos.

Pessoalmente gostava dessas pessoas que me acolheram com tanto carinho. Graças a elas, era hoje um paraquedista formado. Por outro lado adorava saltar e, o fato de pertencer a um time de gente jovem, com desejos de correr aventuras, me atraía enormemente. A primeira reunião foi realizada num pequeno apartamento alugado por Alfredo para seus encontros amorosos. Ficava a meia quadra da Avenida Pedro de Valdívia em Santiago. Apesar de ter só duas dependências; quarto e sala, era aconchegante e adequado para nossos propósitos. Muito se conversou, analisamos todas as possibilidades, que não eram muitas: não possuíamos avião, menos ainda um campo aéreo, tampouco sede. Não tínhamos absolutamente nada com exceção de um Chefe de Salto e vários jovens com desejos de saltar. Apesar de todos os obstáculos optamos por formar a nova sociedade esportiva.

Vários nomes foram sugeridos para batizar o clube que estava nascendo. Felizmente foi aprovado por unanimidade, o apresentado por mim: “Los Escorpiones”.

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Os sócios fundadores foram: Alfredo, Gana, Victor Hugo, Miguel e eu, cinco pioneiros cujo principal objetivo era saltar.

Como funcionário da Corporação da Reforma Agrária, tratei de conseguir um terreno agrícola para instalar nossa base e construir um campo aéreo. Muitas reuniões e nada em concreto, a burocracia foi mais forte que nosso ímpeto esportivo, e tudo ficou para depois.

Na semana seguinte Alfredo fez contato com o Clube Aéreo de San Felipe, pequena cidade situada a cinquenta quilômetros ao norte de Santiago. Marcamos um encontro com os diretores dessa instituição, onde foi acordado realizar um curso grátis para todos os pilotos que desejassem participar.

A partir dessa data viajávamos os fins de semana a essa cidade e, além de ministrar o curso, aproveitávamos de encantar ao pessoal com nossas manobras aéreas. Os pilotos além de ser pessoas agradáveis, eram influentes na comunidade “sanfelipenha”

Para prolongar nossos fins de semana, começamos a viajar as tardes das sextas-feiras. Hospedávamos num hotel simples denominado Reinares, atendido por dom Hugo Reinares e senhora. Dessa forma iniciávamos as atividades a primeira hora do sábado, ganhando um tempo precioso. Mesmo assim o fim de semana sempre era curto.

Alfredo me nomeou responsável pelo curso. Tinha que preparar fisicamente aos alunos. Esforçava-me ao máximo para que os pilotos (que não eram tão jovens e com bastante sobrepeso) ficassem em forma. Era minha contribuição para conseguir uma nova sede. Alfredo controlava e ditava algumas aulas teóricas.

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VII.- Alicia

Não me lembro exatamente em que data conheci Alicia, só posso dizer que um sábado quando chegava ao campo aéreo de manhã, encontrei alguns pilotos com uniforme da FACH (Força Aérea de Chile) marchando frente ao hangar. O comandante era um diretor do clube. Foi nesse momento que soube que existia uma reserva de pilotos voluntários. Eles marchavam e se comportavam como verdadeiros militares. Chamou minha atenção duas moças jovens e bonitas que participavam da apresentação. Não as conhecia. Fiquei gratamente impressionado ao saber que existia essa atividade, mas as responsabilidades não me permitiram continuar observando o desfile, e tive que retirar-me para cumprir as obrigações relacionadas com o curso. Ao meio dia, quando fomos almoçar, fui apresentado às duas “milicas”. Eva era uma morena forte de um metro e oitenta de altura, sempre bem humorada e muito expansiva. Alicia pelo contrario muito retraída, cabelo castanho, longo e liso (chegava até a cintura) rosto redondo, olhos vivos e atentos, um metro e sessenta de altura, pele branca, ambas pilotos.

Depois de almoçar retomamos nossas atividades. Os saltos se sucediam um atrás do outro, o avião não parava. Ao terminar à tarde quando fazia meu último salto depois de lançar dois alunos, observei Alicia perto do poço de aterrissagem, ela me sorria.

---- Será que tem algum interesse neste atarefado paraquedista? --- pensei.

Ao término da jornada nos reuníamos no restaurante do clube para fazer um lanche e comentar as experiências vivenciadas durante o dia. Nessa tarde Alicia estava conosco. Sentada na minha frente escutava as anedotas dos alunos e ria com vontade. Parecia gostar de nossa atividade. Eu me sentia atraído por ela, era a primeira vez que conhecia uma mulher piloto. Ficava muito bonita de uniforme. Após jantar jogávamos sinuca, numa velha mesa que disponibilizava o clube, foi nesse momento que pela primeira vez conversamos particularmente. Depois de alguns minutos conhecia seu currículo completo: solteira, sem namorado, morava no porto de Valparaíso com os pais, bancária e com vários anos de piloto. Era tudo o que precisava saber. Perguntou-me onde me hospedava, respondi no Hotel Reinares. Informou-me que ela também ficava nesse estabelecimento quando pousava em San Felipe, mas este fim de semana teria que voltar a Valparaíso, tinha um compromisso com a família. Ao término dessa semana, além do paraquedismo tinha um novo motivo para viajar a essa cidade.

No trabalho nunca faltava o colega fazendo piadinhas com minha atividade esportiva; uns diziam que podia “aterrissar” em qualquer festa sem ser convidado, outros mais incisivos menosprezavam o esporte, argumentando que não era reconhecido pelo Ministério.

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Pelo contrário havia outros companheiros que queriam conhecer detalhes das novas experiências e, as segundas-feiras perguntavam como foi meu fim de semana. As mais negativas eram as colegas mulheres, elas sem exceção, rechaçavam o paraquedismo por achá-lo perigoso. Expliquei milhares de vezes que os acidentes são praticamente zero, ao contrario dos outros esportes onde verdadeiramente morrem muitas pessoas. Nunca consegui convencê-las, elas tampouco a mim. Empate.

As sextas-feiras levava ao trabalho uma mala transportando os elementos usados o fim de semana: capacete, macacão, óculos, luvas, botas, altímetro, bitácora, e duas mudas de roupa. Desta forma, ao término da jornada, nos reuníamos na sede de “Los Escorpiones” e depois viajávamos a San Felipe.

Nesse fim de semana não foi diferente, o primeiro a chegar foi Gana. Por algum motivo o resto dos integrantes não apareceu. Cansados de esperar decidimos partir deixando uma nota que dizia: “Fomos a San Felipe, lá se salta aqui não! ”

Depois de viajar por uma hora no velho furgão de Gana, chegamos ao Hotel Reinares. Quando nos encontrávamos jantando, apareceu Alicia com seu enigmático sorriso. Usava um vestido marrom com tiras de couros pendurados nas mangas e na saia, tipo apache. Era um sonho!

---- Oi paraquedistas, posso compartilhar a mesa com vocês? --- perguntou.---- Claro! --- respondemos em coro.

Depois da janta conversamos sobre mil coisas. Gana estava altamente impressionado com a moça e eu também. Quando ele se afastou por uns instantes para cumprimentar uns amigos, Alicia me perguntou se tinha um quarto, respondi afirmativamente, ela esqueceu fazer reserva e agora estava tudo lotado. Informei-lhe que podia ficar comigo, mas tinha somente uma cama, ela respondeu rindo que podíamos compartilhá-la. Não podia acreditar nas suas palavras! Pensei que estava brincando, mas não estava. Essa foi minha primeira noite com Alicia, um verdadeiro salto livre.

Conhecer Alicia me trouxe benefícios, além de namorar uma linda mulher, conheci o perfil de cada membro do clube. Ela também destacou as pessoas mais confiáveis.

Esse fim de semana foi diferente, antes de começar os saltos, Alicia me levou a conhecer desde o ar as cidades vizinhas. Foi maravilhoso observar o mundo desde outro ângulo e especialmente com esse piloto.

San Felipe era mágico, nessa cidade haviam-se concretizados todos meus desejos. A partir desse momento minha vida girava em torno de essa linda cidade, desfrutando do esporte favorito, com a mulher desejada.

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VIII.- Cristina e Victor

Agora estava claro, Victor havia conseguido lembrar-se de quase tudo do acontecido na noite anterior, depois de lavar a ferida, escutou passos na sala contígua. Pegou sua arma e enfrentou o invasor. Encontrou Cristina que havia dormido no sofá. Foi uma grata surpresa, tinha esquecido totalmente esse detalhe. A jovem ficou impressionada ao observar a ferida, e recomendou ir imediatamente a um hospital. Ele não aceitou, a experiência lhe dizia que nos centros médicos a polícia investiga a origem desse tipo de feridas, complicando a situação. Depois de muita insistência foram de táxi a um médico conhecido, onde foi atendido sem receber perguntas inconvenientes. Doze pontos sem anestesia foi o resultado da boemia.

Ao voltar encontraram duas mulheres da boate Manhattam esperando-os na porta de casa. Depois de frios cumprimentos informaram a morte do adversário e a posterior visita da polícia. Omitiram dizer que foram elas as que denunciaram Victor, só comentaram que foram interrogadas. Ele pressentiu que alguma coisa estava errada e desconfiou de ambas as mulheres.

Várias hipóteses passaram por sua cabeça, chegando finalmente a mais lógica. Estavam querendo conhecer o paradeiro de Cristina para recrutá-la conforme os planos originais. Não teriam nenhum escrúpulo para denunciá-lo, e com ele preso, a jovem ficaria vulnerável. Com esta ideia na cabeça foi até o quarto e pegou seus pertences, inclusive a arma. Intempestivamente a porta de entrada foi batida com força. Não dava para equivocar-se, era a polícia! Os pressentimentos de Victor estavam certos.

Com a agilidade de um felino escalou um muro escapando pelo telhado, enquanto Cristina conversava com os policiais. A versão colocada por ela, foi que Victor viajou a uma cidade vizinha.

O detetive Oscar não engoliu essa mentira e mandou revisar a residência. Não encontraram o que estavam procurando, contudo levaram a camisa manchada de sangue e outras roupas para realizar análises.

Ao verificar a fuga de Victor, as mulheres ligaram para um gigolô amigo solicitando que viesse apanhá-las. Não tiveram que esperar muito tempo, um sujeito loiro de aproximadamente dois metros de altura, desceu de uma camionete na frente da residência. O cabelo amarrado na parte posterior da cabeça formava um rabo de cavalo, o resto caía pelos costados do rosto de forma desordenada. Parecia um “viking” tirado de uma história de quadrinhos. Entrou na casa e observou detidamente Cristina. Em seguida, sorrindo maliciosamente, fez um sinal de aprovação às mulheres.

Friamente ordenaram à jovem que as acompanhasse à casa do recém-chegado. Cristina não aceitou argumentando que esperaria por Victor. Nesse momento as

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mulheres golpearam o rosto e estômago da jovem violentamente. Esta caiu no chão sem poder respirar. A culpavam da morte do homem acontecida a noite anterior. Gritavam-lhe que pagaria caro por isso, ato seguido o gigolô a colocou nas costas, como se fosse um saco de batatas, e a levou ao veículo. As mulheres a mantinham agachada, enquanto o gigante conduzia. Durante a viajem conversavam qual seria o melhor prostíbulo onde poderia ser vendida, como se fosse um objeto qualquer.

Tudo isso foi observado por Victor de um telhado vizinho. Estava confirmada a traição das mulheres como também o motivo que as levou a delatá-lo. Ele cobraria vingança quando chegasse o momento, agora tinha que recuperar forças, a ferida se abriu com o esforço realizado ao fugir. Cristina foi levada para uma chácara situada no Vale de Azapa. A uns quarenta minutos de Arica. Foi tirada violentamente da camionete e encerrada num quarto no fundo da residência. Desse lugar podia escutar as risadas das mulheres e a música tocada a todo volume. Sozinha com seu corpo machucado, só lhe restou chorar.

Ao cair a tarde apareceram as mulheres com o gigantão. Estavam totalmente drogados e alcoolizados. Ordenaram a Cristina comportar-se bem, para não ser golpeada novamente. No banheiro a desnudaram e colocaram embaixo da ducha. Devia estar limpinha porque participaria de uma festa onde era a convidada de honra, Cristina aterrorizada obedeceu ao vê-los drogados e violentos. Ele principalmente inspirava temor pela aparência volumosa. Ao término do banho o homem cambaleando, se aproximou para secá-la. Cristina não oferecia resistência, estava resignada a aceitar o que o viesse pela frente, não tinha alternativa. As mulheres riam ao vê-lo tocar o corpo da jovem.

Antes de iniciar o estupro, uma das mulheres se ofereceu para dar-lhe algumas “lições práticas”. Ordenaram-lhe observar com cuidado, pois posteriormente, ela teria que fazer a mesma coisa. Era sexo de todo tipo. Cristina assistia horrorizada ao ato bizarro apresentado ante seus olhos, nunca imaginou que uma mulher podia ser tão humilhada. O gigante a observava dizendo:

---- Tu és a próxima ---- enquanto transava com a prostituta.

A outra mulher trouxe uma garrafa de vinho obrigando-a a beber. Argumentava que o álcool era um bom ingrediente para entrar no clima, Cristina continuava desnuda observando o vulgar quadro que se apresentava na sua frente. Num determinado momento, o gigante afastou violentamente a mulher e chamou Cristina para que ocupasse seu lugar. Ela estava tão aterrorizada que não conseguiu caminhar até a cama, foram as mulheres que a empurraram com força.

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Nesse instante se escutaram golpes na porta do quarto. Ficaram surpresos. Estavam no fundo da chácara. Não existia forma de entrar sem antes atravessar toda a residência que se encontrava fechada. O homem colocou as calças, pegou uma faca e abriu violentamente a porta. Ali estava Victor sorrindo.

--- Posso participar da festa? ---- perguntou olhando fixamente o gigante.

O gigolô não sabia o que responder, ficou totalmente paralisado. Conhecia a fama do visitante e era difícil nesse momento tomar uma decisão. Victor entrou na habitação e mandou Cristina vestir-se. As duas prostitutas o observavam apavoradas. O gigante tentou intervir para evitar que a moça cumprisse a ordem do intruso, apesar de estar com a arma branca em punho, Victor com um reflexo felino, lhe cortou a garganta de lado a lado. Com os olhos fora das órbitas caiu de joelhos, com ambas as mãos no pescoço tentava inutilmente conter o sangue que fluía como uma pequena cachoeira. Depois de alguns segundos, desabou estremecendo o quarto ao impactar a cabeça no piso de madeira. Victor observava as mulheres que o haviam traído, elas conheciam como se pagam as dívidas no submundo. Tentaram desesperadamente fugir, mas não conseguiram, cometeram uma falta grave e pagaram com suas vidas por isso.

Pegaram a camionete do gigante, que com certeza não notaria sua falta e, voltaram para a cidade.

Os três cadáveres foram achados pela polícia alguns dias mais tarde. Depois de examinar o local do crime, o detetive Oscar não tinha dúvidas; o autor dos assassinatos era Victor. Reconheceu as duas mulheres que dias atrás, lhe contaram o acontecido na casa noturna. Esse fato foi a sentença de morte. Ele conhecia como eram tratados os delatores no baixo mundo. A única pergunta que não tinha resposta era: porque Victor protegia uma desconhecida? Não era sua forma de operar. Sempre foi um solitário. Algo estranho estava acontecendo e teria que descobrir a razão..

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IX.- A vida profissional.

No inicio de 1970, o presidente Salvador Allende assumiu o governo do país. Alguns meses antes fui trasladado à capital, depois de trabalhar por quatro anos no extremo norte de Chile.

Durante o tempo que morei em Arica, --- cidade litorânea localizada no deserto de Atacama --- participei da criação de vários assentamentos agrícolas tanto na parte administrativa como na comercial. Sentia-me comprometido e orgulhoso de fazer parte de um processo que futuramente traria grandes benefícios ao país, tanto no econômico como no social. Frequentemente ficava no interior de Arica, orientando às diretivas dos assentamentos, das normas administrativas estabelecidas pela Instituição.

Numa oportunidade, quando nos dirigíamos a um assentamento, o jeep Land Rover no qual viajávamos, foi detido num controle policial. Solicitaram a documentação de cada passageiro e depois de comprovar que éramos funcionários públicos, liberados. Que estava acontecendo? Segundo informações conhecidas mais tarde, soubemos que um bandido chamado Victor, havia assassinado de forma cruel, três pessoas numa chácara do lugar. Esse fato não tinha relação com minhas atividades, por tanto não preste muita atenção.

Quando permanecia no escritório em Arica, aproveitava os intervalos do almoço para fugir à praia La Lisera, com meus companheiros de trabalho. Tomávamos banho de mar, comíamos um lanche e voltávamos as nossas funções totalmente reanimados.

Depois de morar quatro anos na areia do deserto e lama dos assentamentos, me era difícil vestir camisa e gravata, pior ainda se pensarmos que a sede da Corporação ficava na Avenida Bulnes, pleno centro de Santiago. Foi uma mudança violenta, sentia falta das viagens ao Vale de Camarones e das aventuras acontecidas nessa época. Como esquecer o Morro de Arica onde combateram bravamente soldados chilenos e peruanos durante a Guerra do Pacifico? E dos colegas que continuavam lutando, para que a Reforma Agrária fosse um projeto bem sucedido?

Por esses dias tudo era confuso na instituição, os cargos de confiança estavam sendo ocupados por novos diretores, e outras mudanças deveriam acontecer no decorrer dos próximos meses. Felizmente estas medidas não me afetavam; era funcionário de carreira e não ocupava cargo de confiança. Noutras palavras, não era importante.

Alicia ligava durante a semana e sempre tinha alguma novidade agradável. Esse fim de semana não foi diferente; avisou-me que poderíamos juntar-nos em Valparaíso. Seus pais estavam em Santiago por motivos de saúde. Foi assim

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que conheci o lindo apartamento onde morava. Jantamos, dançamos e dormimos. As sete da manhã do dia seguinte íamos rumo ao campo aéreo.

Na Instituição bancária onde ela trabalhava, estava acontecendo a mesma coisa que na Corporação, todos os dias havia trocas de chefias. Era um entra e sai de diretores que ninguém entendia. Isso faz parte da troca de poder. No caminho a San Felipe aconteceu algo inesperado; estava conduzindo o carro de Alicia quando fomos detidos num controle policial. Como fazia tempo que havia vendido meu carro, não reparei que a Licença de Condutor, estava vencida. Foi muito incômodo, fiquei preso no Distrito Policial por duas horas, enquanto Alicia procurava um amigo policial. Depois de ser multado retomamos o caminho a San Felipe. Agora a condutora era Alicia. Uma tremenda vergonha.

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X.- Antofagasta uma linda cidade

Victor e Cristina tinham que abandonar a cidade. O problema era a alfândega que se encontra na saída de Arica. Depois dos fatos recentemente acontecidos, era lógico pensar que uma ordem de prisão contra Victor, estava vigorando nesse controle policiai.

No porta luvas da camionete encontraram os documentos do gigante. Isso facilitava enormemente a situação de Victor, com alguns retoques físicos conseguiria assumir a identidade do morto. Felizmente esse documento não mencionava a altura. Pintar o cabelo de loiro e usar grandes óculos escuros ajudaria para realizar a fantasia. Na farmácia comprara os produtos necessários. Como não podiam voltar à casa, foram a um motel nos arredores de Arica e começaram a realizar a operação “troca de identidade”. Sentado no vaso sanitário, desnudo da cintura para acima, Victor pacientemente esperava que Cristina pintasse seu cabelo. Ela também tirou a blusa ficando somente de sutiã Peitos duros e grandes, pele clara e suave era o que seus olhos viam. Em várias ocasiões tratou de pegar essa linda mulher e beijá-la, contudo um sentimento de respeito o detinha.

Depois de alguns minutos utilizando o secador de cabelos, finalizou o serviço. Victor se observou no espelho e comprovou que realmente se parecia ao gigolô. Sua fisionomia havia se alterado com o novo penteado e principalmente pela cor dos cabelos. Aprovou o trabalho realizado. Recostou-se na cama enquanto Cristina arrumava a sala do banheiro.

Após alguns minutos ela entrou no quarto e, pegando o rosto de Victor, verificou a qualidade do trabalho. Sorridente perguntou se tinha gostado do novo visual. Victor era uma pessoa tímida com relação às mulheres. Mesmo assim, sem poder controlar seus impulsos, beijou-a apaixonadamente. Ela não ofereceu resistência, pelo contrário, o abraçou estreitando-o contra seus grandes peitos.

A primeira noite juntos foi algo maravilhoso. Finalmente haviam encontrado o que estavam buscando. Cada um deles deu ao outro o melhor de si. Sentiam-se flutuar numa nuvem longe da terra. Era como estar saltando de paraquedas.

Ao amanhecer abandonaram o motel. Estavam cientes que nessa hora da manhã, o controle não era tão severo. Preencheram alguns documentos relacionados com a camionete e, quando o inspetor revisou o veículo, ficaram receosos. Depois de alguns minutos foram liberados e iniciaram a viagem rumo Antofagasta, felizmente tudo aconteceu de forma positiva.

Depois de sete horas de viagem através do deserto, chegaram a uma das cidades mais populosas de Chile. A primeira coisa a realizar foi vender a camionete num depósito de ferro velho, nesses lugares ninguém faz perguntas.

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Com o dinheiro se hospedaram no Hotel Praça que era um dos melhores da cidade.

Pela primeira vez Victor experimentava um sentimento nobre. O amor havia chegado ao fundo de sua alma. Observava Cristina caminhar pelo quarto e se sentia feliz de tê-la perto, estava profundamente apaixonado e agora ninguém poderia separá-los. Ela por sua parte era uma mulher dócil, seguiria seu protetor a qualquer parte do mundo. Sentia um profundo carinho por essa pessoa que pela primeira vez, havia se preocupado com ela.

Para recuperar-se da longa jornada, repousaram por algumas horas antes de jantar. No restaurante Victor reconheceu um garçom que tempo atrás, estiveram juntos numa prisão. Contou este fato a Cristina e, finalizada a janta, entrou em contato com o indivíduo.

Após de um cálido cumprimento ficaram de conversar mais tarde no bar do hotel. Foi dessa forma que Victor se informou que um dos hóspedes era um famoso joalheiro que realizava vendas aos comerciantes da cidade. As joias eram exibidas em seu quarto, desta forma não corria perigo de furto, até agora

Depois de conhecer fisicamente o empresário, passou a estudar os itinerários da vítima. Sabia a hora que acordava, as reuniões que fazia por dia, horário de almoço, da sesta e da caminhada noturna pela Praça de Antofagasta. Tudo registrado meticulosamente.

Entrou em contato com o amigo e, depois de oferecer-lhe uma abundante gorjeta, conseguiu uma cópia da chave mestra usada pela camareira do hotel. Esperou que o comerciante fosse caminhar, e entrou furtivamente na habitação.

Encontrou uma caixa forte que o hotel facilitava aos clientes importantes. Para qualquer pessoa normal, este seria o final da história, menos para Victor. Colocou seu ouvido na porta e começou a girar a fechadura até encontrar o som correspondente a cada número usado como clave. O tempo passava e não conseguia abrir a caixa. Quando o comerciante voltava foi interceptado no saguão do hotel por Cristina. Com um cativante sorriso, lhe solicitou orientação no mapa da cidade. Gentilmente o homem esclareceu as dúvidas de tão bela jovem.

Dentro do quarto, Victor suava devido ao grau de concentração, finalmente o esforço foi compensado. Na caixa encontrou dois porta-documentos pretos com fivelas douradas; o primeiro estava recheado de braceletes, gargantilhas e brincos. No segundo uma variedade de anéis e pedras preciosas. Os objetos foram guardados numa sacola de papel, e os porta-documentos recolocados dentro da caixa forte como se nada houvesse acontecido. Saiu rapidamente do quarto e desceu pelo elevador até o térreo onde se encontrava Cristina. No

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saguão cruzou com o joalheiro que nesse momento se dirigia ao elevador. De mãos dadas saiu com Cristina do hotel.

Novamente teriam que abandonar a cidade, mas Antofagasta não tem alfândega que controle a saída. Victor estava ciente que a polícia investigaria os passageiros que pousaram no hotel. O fato de estar cadastrado com o nome do gigolô morto em Arica, pouco ajudaria. Mais cedo ou mais tarde a suplantação de identidade seria descoberta, como também a ficha criminal do defunto, não colaborava muito por ser bastante comprida.

Tomaram um táxi e se encaminharam ao Porto Marítimo. Entraram em contacto com o capitão de um barco. O amigo que trabalhava no hotel, havia-lhe informado que essa pessoa comprava objetos roubados.

Depois de exibir as joias chegaram a um preço final que foi interessante para ambas as partes. Com os bolsos recheados de dólares, se encaminharam ao terminal de ônibus. O destino agora era La Serena.

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XI.- Os instrutores tornam-se alunos.

O curso de paraquedismo ministrado aos pilotos estava finalizando. Os alunos começaram a realizar os primeiros saltos. Ao chegar nesta etapa, sempre acontece a mesma coisa, nem todos os participantes fazem os cinco primeiros saltos, e este curso não foi a exceção, mas nem tudo estava perdido, dois alunos continuaram saltando: Cláudio e Rodrigo. Ambos se destacavam realizando os primeiros dez saltos. A diferença entre eles era o caráter, Cláudio expansivo e alegre. Rodrigo, bem mais jovem, sério e reservado.

Foi deles a ideia de nos incluir (Alfredo e eu) num curso de Piloto Privado realizado anualmente pelo clube. Foi a forma de retribuir nossa dedicação, e nos integrar definitivamente como sócios. Para ser sincero foi outra experiência maravilhosa, meu único problema era embarcar sem o paraquedas, me sentia inseguro. Questão de costume.

A marca do avião utilizado para fazer instrução era Aeronca, tinha várias curiosidades que chamaram minha atenção: a hélice era de madeira; a fuselagem metálica em todos os aviões, era de tecido (lona tratada); a estrutura das asas era também de madeira. Na verdade nunca tinha conhecido um avião tão artesanal. O instrutor ficava no banco traseiro e o aluno na frente. (Biplace),

Os instrumentos eram muito simples, altímetro, velocímetro, horizonte artificial, bússola, anemômetro e tacômetro. Um bastão localizado entre as pernas, permitia direcionar a aeronave quando estava voando. O resto dos comandos era um acelerador manual, um estabilizador de voo, pedais com dupla função: direção horizontal durante o voo, e freio quando se encontrava em terra. Não tinha rádio nem radar, como nenhum instrumento de localização. Outra particularidade era a forma de dar partida ao motor; cada vez que precisava voar, um piloto ou o mecânico impulsionava manualmente a hélice. Sempre considerei este procedimento muito perigoso, portanto segurava os pedais dos freios com muita força cada vez que realizava esta operação.

O curso se dividia em duas grandes áreas; teórico e prático. No curso teórico aprendi a conhecer os tipos de nuvens, correntes de ar e interpretar os mapas meteorológicos. Depois de voar dez horas com instrutor, fui autorizado para realizar meu primeiro voo sozinho. Nesta oportunidade o instrutor Sr. Maurício desceu da aeronave e parado embaixo da asa, fez o sinal da cruz, igual aos sacerdotes nas missas. Não encontrei muita graça, mesmo assim lhe sorri.

Lentamente comecei a “taxear” em direção do cabeçal da pista. Pela primeira vez me encontrava sozinho no comando de uma aeronave. Durante o trajeto lembrei que é obrigatório verificar os controles do timão, direção e profundidade, tudo funcionava perfeitamente. Antes de entrar na pista, verifiquei que não houvesse nenhum avião aproximando-se, sem nada por perto estava autorizado para decolar. Respirei fundo, coloquei o avião no cabeçal e sem pensar muito,

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pressionei completamente o acelerador. O motor rugia, a fuselagem de gênero tremia na medida em que tomava velocidade. Após alguns segundos, senti a pressão do bastão avisando que havia alcançado a velocidade suficiente para decolar. Eram as forças aerodinâmicas começando a fazer efeito. Puxei lento e continuado o bastão na direção de meu corpo (para trás). O nariz da aeronave se levantou até sentir as rodas girando no ar. Estava voando! A pista e meu instrutor ficaram lá embaixo. Era difícil entender o que estava acontecendo, me parecia acordar de um sonho, e ao abrir os olhos, encontrar em minhas mãos os comandos do avião, foi inesquecível. Fiz um trânsito pela esquerda --- isto significa que realizei uma volta sobre a pista a oitocentos pés de altura (Duzentos e sessenta metros aproximados) --- e agora tinha que aterrissar. Talvez a parte mais difícil do voo seja esta etapa, mas estava preparado para tal evento. Diminui as rotações do motor e mandei ar quente ao carburador, depois de vários pulos na pista, estava novamente em terra são e salvo. O primeiro em felicitar-me foi o instrutor Sr. Maurício e posteriormente meus amigos, foi um dia muito especial.

Cada vez que é realizada uma nova experiência dentro das atividades aéreas, acontece o famoso “batismo”. Nunca falha, e de novo ali estava totalmente molhado, mas feliz. Agora tinha minhas próprias asas e com elas se abriam novas possibilidades.

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XII.- Festas Pátrias.

Os meses continuaram passando e com eles minha relação com Alicia se esfriava, ultimamente não ligava, como tampouco aparecia os fins de semana, sempre tinha uma desculpa. Por outro lado minhas atividades, tanto em Santiago como em San Felipe, me mantinham super ocupado. Nos fins de semana não parava um minuto. Se não estava saltando, estava voando, tempo para namorar nem pensar. Assim chegou o mês de Setembro de 1970, as Festas Pátrias eram tradicionalmente celebradas no hangar do Clube Aéreo. Pilotos, familiares e amigos se reuniam nesta data, para celebrar a independência nacional, com orquestra, empadas e vinho tinto.

Roberto responsável pela organização da festa solicitou nossa colaboração para atender os convidados vestindo os macacões de salto. Aceitamos por dois motivos; para cooperar com o novo clube que nos acolheu, e conhecer os familiares dos sócios, que não frequentavam o campo aéreo.

Entre as pessoas interessantes que conheci esse dia, foi a filha de um diretor chamada Sílvia Helena, morena de um metro e sessenta e cinco de altura, cabelo preto e ondulado, pernas longas e torneadas, cintura pequena, olhos brilhantes e um lindo sorriso desenhado no rosto. Era muito atraente.

Ao término da ceia, ficamos livres das obrigações e fomos dançar com o pessoal que estava participando da festa. Como Alicia não dava bola para mim, dancei toda a noite com Sílvia Helena, ficamos super amigos, tanto que marcamos um encontro para a próxima semana numa discoteca da cidade. Mais tarde me informei que tinha dezoito anos, era a filha mais velha de Sérgio diretor do clube e gerente de um Banco Comercial, de família respeitada e tradicional da sociedade “sanfelipenha”.

Quando fui autorizado pelo instrutor de voo a levar passageiros, minha primeira passageira foi Sílvia Helena.

Terminava o curso de piloto e, paralelamente o namoro com Alicia. Felizmente compensado com a companhia de Sílvia Helena

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XIII.- Outros cursos.

Durante o ano de 1971 nos dedicamos a realizar vários cursos de paraquedismo, tanto em Santiago como em San Felipe. Nosso objetivo era aumentar o número de esportistas, e também ganhar algum dinheiro para o clube. Um desses cursos foi realizado para os colegas da Corporação. Pela primeira vez o número feminino era maior que o masculino. Estava composto por vinte mulheres e oito homens. Curso caracterizado pela informalidade, pois minhas companheiras levaram irmãs e filhas. Desta forma a quantidade de pessoas ultrapassou o planejado originalmente. No final das contas nosso objetivo era ganhar adeptos, por esse motivo aceitamos esta situação. Foi a primeira vez que ministrei um curso totalmente sozinho. Não contei com a supervisão ou colaboração de ninguém. As aulas foram ditadas num colégio católico, que amavelmente cedeu suas instalações. Nesse local ensinei procedimentos de emergência, saídas do avião, posição de planeio, aterrissagem, além de conseguir um estado físico razoável de cada aluno.

Tudo avançava conforme o planejado me sentia confortado ao saber que meus conhecimentos estavam rendendo frutos, e de alguma forma, estava colaborando com o esporte nacional. Nunca imaginei que acontecimentos trágicos poderiam acontecer futuramente.

Os alunos terminaram o curso em excelentes condições. O primeiro salto foi realizado por quase todos eles, mas os que continuaram saltando foram somente dois alunos. Sônia e seu namorado Francisco, também chamado de “O Padeiro”, seus pais tinham uma padaria. Apareciam os fins de semana com amigas, irmãs e parentes que não saltavam, mas colaboravam nas diversas funções de apoio.

Paralelamente nos fins de semana realizamos outros cursos ao pessoal civil que morava em de San Felipe, como também para alunos da Universidade de Santa Maria de Valparaíso. Eram semanas de muita atividade. O principal objetivo, como foi manifestado anteriormente, era formar um time forte, que amasse o esporte. No fim de 1971, contabilizamos dez jovens que continuaram saltando regularmente; Rodrigo e Cláudio do curso de pilotos, Sônia com seu namorado Francisco, do curso da CORA, quatro alunos da Universidade Santa Maria e representando San Felipe, César e um moço muito colaborador, apelidado de “Cara de Bandeirola” por ter um rosto bastante anguloso e comprido. Era o fruto da colheita semeada durante um ano de trabalho intenso e perseverante.

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XIV.- Um salto para a história

Minha bitácora registrava mais de cem saltos e Alfredo me nomeou Chefe de Salto. Nosso objetivo comum era conhecer a fundo os segredos do “Trabalho Relativo”. Como já descrevi anteriormente, esse exercício consiste na união de vários paraquedistas durante a queda livre, formando uma “estrela”.

Nossas práticas eram realizadas em aviões pequenos, de tal forma que uma “estrela” bem sucedida não passava da união de três paraquedistas. A razão era simples: a aeronave não tinha capacidade para mais gente. Tudo isto mudou quando fomos convidados pelos “Boinas Negras” a saltar de um avião Douglas DC3 que o exército disponibilizava.

No campo aéreo da cidade de Colina, encontrei amigos de todos os clubes de paraquedismo de Santiago. Foi emocionante rever pessoas que não me relacionava a tanto tempo. Era a primeira vez que participava de um evento com tanta gente num mesmo lugar. As dependências da base aérea, ficaram matizadas de cores com os vistosos macacões usados pelos esportistas.

Observar de perto o avião Douglas DC3 era impressionante. Os dois motores equipados com enormes hélices, era um espetáculo para meus olhos acostumados a voar nos teco-tecos do clube.

Embarcamos aproximadamente vinte paraquedistas e ainda sobrava espaço para mais vinte. Parecia-me estar dentro de um galpão. Encontrava-se totalmente vazio, não tinha bancos e nenhum outro elemento para sentar-se. As portas do lado direito foram retiradas para facilitar a saída no momento do salto. Sentados no chão esperávamos que o avião decolasse, nesse momento pensava nos cuidados tomados nos voos comerciais, como: ajustar o cinto, não fumar, manter o respaldo do banco reto, etc. Se uma aeromoça olhasse como estávamos decolando nesse momento, morreria de enfarte.

Quando se aproximou o momento de abandonar o avião, nos aproximamos da porta que tinha aproximadamente dois metros de largura, e graças ao seu imenso tamanho, conseguimos abandonar o avião praticamente todos juntos. Durantes os primeiros instantes era uma confusão de chutes, cabeçadas, empurrões até que depois de alguns segundos estabilizamos e tudo ficou tranquilo. Localizei o paraquedista designado em terra como “Base”, referência central da “estrela”. Fui o terceiro “enganchado” e depois chegaram os outros colegas, era meu primeiro salto de dezoito mil pés --- um minuto de queda livre --- uma eternidade comparada com os saltos de quinze segundos que eram os regulares em nosso meio, e o mais importante; Não passei frio! Durante a queda observava os rostos desfigurados pelo vento, era difícil reconhecê-los, este encanto foi rompido quando subitamente desapareceram da minha frente, aconteceu num piscar de olhos. Observei meu altímetro e faltavam ainda alguns segundos para que a agulha entrasse no triângulo de abertura, continuei caindo

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sozinho e antes de abrir verifiquei que não tinha ninguém acima de mim. A meu redor ficou uma quantidade de cúpulas de diversas cores flutuando como borboletas, era fantástico, parecia estar num filme de desenhos animados, esse salto de alguma forma, estava iniciando uma nova etapa na minha vida esportiva.

Já em terra nos abraçamos celebrando o êxito da “estrela”, lamentavelmente nessa época não era comum realizar filmagem, pois este foi um momento digno de ser gravado, apesar de tudo, realizei um histórico salto, graças aos militares.

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XV.- Valeu a pena terminar o ano dessa maneira.

Uma das surpresas mais agradáveis que tive esse final de ano (1971) foi o convite da chefia de Recursos Humanos da Corporação, para que saltasse fantasiado de Papai Noel na festa realizada anualmente para os filhos dos funcionários. Era o único que faltava para terminar o ano com broche de ouro! Imagina que ironia, saltaria para os filhos dos colegas que anteriormente riam-se das minhas práticas esportivas.

Reuni-me com Alfredo para organizar os detalhes do evento. Como não era um local habitual, tivemos que solicitar permissão à Direção de Aeronáutica, informando motivo, nome do esportista, dia e hora do salto. Felizmente a autorização foi outorgada sem problemas.

O local era o Estádio Apoquindo localizado no bairro de Las Condes, em Santiago. Ao conhecê-lo fisicamente descobrimos, para minha preocupação, torres transmissoras de energia elétrica de alta voltagem na periferia do estádio. Era necessário suspender o abastecimento no momento de realizar o salto. Entramos em contato com a Companhia de Eletricidade avisando dia e hora do evento, para que a energia fosse desligada. Não colocaram nenhum problema.

O último obstáculo era alugar um avião com piloto experiente neste tipo de evento. No aeroporto de Tobalaba, Alfredo entrou em contato com amigos conseguindo o avião e o piloto adequado. Tudo estava funcionando conforme o planejado.

No dia do salto, com uma hora de antecedência, nos encontrávamos com Alfredo no aeródromo de Tobalaba. No estádio de Apoquindo --- lugar da aterrissagem --- um grupo de amigos ficou de plantão sinalizando a intensidade e direção do vento. Conforme as normas de segurança estabelecidas pela Direção da Aeronáutica.

Vesti a roupa de Papai Noel com barba e tudo, com meus sessenta quilos faltava volume para personalizar o velhinho, mas a essa altura do campeonato não podia pedir milagres.

Na hora marcada a energia elétrica foi suspensa, com esta informação confirmada, decolamos do aeródromo. Alfredo era a pessoa indicada para realizar as funções de Chefe de Salto. Ao chegar ao estádio, lançou um indicador para conhecer as condições do vento, com essa informação definiu o ponto de abertura --- lugar físico na terra, onde deveria saltar --- e depois solicitou ao piloto subir a 4000 pés. (Mil duzentos metros aproximadamente)

Durante a ascensão tentei localizar-me, mas a única coisa que conseguia olhar eram morros e mais morros. Fiquei surpreso quando escutei Alfredo dizer:

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---- Já compadre, desça para distribuir os brinquedos!

Saí do avião sem conhecer meu destino. Abri o paraquedas conforme a altura indicada no altímetro (2500 pés) Visualizei o estádio Apoquindo. O campo de futebol onde devia aterrissar parecia um selo postal, rodeado de torres de alta tensão e árvores de grande altura. Os companheiros em terra sinalavam a intensidade e direção do vento. Eram os parâmetros para acertar o alvo, e não frustrar as expectativas das crianças que esperavam ansiosas a chegada de Papai Noel.

O primeiro obstáculo driblado foram as torres de alta tensão, descartando com isso a possibilidade de ficar pendurado numa delas. O seguinte passo era acertar o centro do campo de futebol, esquecendo as árvores que circundavam o local. Era necessária muita precisão para lograr esse objetivo, mas finalmente consegui nivelar meu ângulo de descida. Até esse momento tudo marchava perfeitamente bem.

Os responsáveis das crianças tentavam mantê-las controladas, mas num piscar de olho, elas se descontrolaram e começaram a correr embaixo de mim sem dar-me espaço para pousar. A força do impacto, somado meu peso e do equipamento, podia lesionar gravemente uma delas, e transformar a festa numa tragédia. A última hora consegui fazer um amplo giro, afastando-me das crianças, e aterrissar de forma pouco técnica, mas segura.

Meninos e meninas pularam em cima de mim, sem esperar que ficasse em pé. A cúpula do paraquedas foi pisoteada sem nenhum sentimento. Os responsáveis não conseguiram implantar a ordem. Felizmente estava com capacete, caso contrário teria ficado todo arranhado. Crianças são assim mesmo e não existe remédio para isso. Fui socorrido por meus companheiros que me ajudaram a livrar-me do equipamento, botando o chapéu e a barba em ordem. Posteriormente, fiz entrega dos brinquedos a mais de 300 crianças. Foi uma tarde inesquecível.

Os honorários por esse difícil salto; foram os olhos brilhantes de emoção e os sorrisos de felicidade dessas lindas criaturas. Uma experiência que levarei sempre comigo.

Mais tarde chegou Alfredo do aeródromo. Felicitamo-nos pelo êxito da coordenação, tanto no ar como em terra. Pegamos nossos pertences e abandonamos o lugar. O ano estava completo.

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XVI.- La Serena, uma cidade colonial

Durante a viagem Victor e Cristina comentavam as recentes aventuras vivenciadas em Antofagasta. Riam dos fatos acontecidos. Estavam juntos, felizes e com bastante dinheiro. Cristina contou que sua família morava em La Serena e, se fosse possível, gostaria de visitá-los.

Uma bela arquitetura colonial lhes deu as boas-vindas ao entrar na cidade. As casas, praças e ruas pereciam ambientadas no século dezenove. Os faróis da iluminação pública, de ferro com uma caixa quadrada na parte superior, caracterizavam essa época. Na avenida principal se destacava uma série de estatuas lembrando Roma antiga. La Serena mantinha as tradições do passado, espelhando no presente suas características magnificentes.

Numa revenda de automóveis usados, Victor comprou um Austin Mini Cooper vermelho muito bonito, na continuação visitou diversas lojas comerciais, para adquirir roupas e presentes. Numa ferragem solicitou uma corrente e um cadeado, para segurar o volante do carro quando estivesse estacionado.

---- Nunca falta um ladrão! ---- exclamou sorrindo para Cristina.

Na primeira hora da tarde chegaram a uma humilde casa localizada na periferia da cidade. Pais, irmãos e outros familiares os receberam de braços abertos, demonstrando um grande afeto por Cristina. O único motivo de aflição, foi saber que a mãe da jovem sofria de uma doença terminal, e os médicos estimavam que não tinha muito tempo de vida. Apesar desta notícia, passaram instantes inesquecíveis. De tarde se hospedaram num hotel no centro da cidade.

Durante a noite Cristina não podia conciliar o sono. Uma quantidade de perguntas invadia sua cabeça, impedindo o descanso.

---- Como deixar sua mãe sabendo que tem pouco tempo de vida?---- Como seria o futuro ao lado de Victor?---- Seria uma eterna fugitiva?---- Teria a suficiente coragem para enfrentar essa vida?---- E se Victor fosse preso? --- ficaria novamente a mercê desse submundo terrível que conheceu em Arica, e esta vez não teria ninguém para socorrê-la.

Eram muitas as perguntas que a atormentavam, finalmente tomou uma decisão que seria dura, porém necessária; não podia abandonar sua mãe nessas condições, tão pouco podia continuar com Victor. Era importante lembrar que nesse curto período de tempo, quatro pessoas foram assassinadas por ele, e era possível que em qualquer momento fosse capturado. Essa era a dura realidade. Embora sentisse um profundo carinho e uma imensa gratidão, não podia continuar junto a ele. No dia seguinte lhe informou da sua decisão.

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Mesmo sendo um delinquente, Victor não era uma pessoa inculta. Durante a época escolar e o tempo que esteve preso, lera os melhores autores dos diferentes gêneros literários e, sua cabeça estava aberta para discutir qualquer tema, procurando sempre um final inteligente. Mesmo assim não gostou da posição de Cristina, sentia-se desprezado e pela primeira vez, seu coração doía ao perder o amor da única mulher que realmente lhe importava. Segundo ele essa jovem lhe devia muito, se não houvesse tido sua ajuda, estaria sendo explorada como prostituta, num barraco na periferia de Arica, alimentando-se de lixo. Não achava justa a posição colocada por ela.

Passado o trago amargo e de cabeça fria, compreendeu a posição de Cristina. A deixou na casa dos pais, e ao despedir-se lhe entregou uma quantidade de dinheiro, suficiente para viver tranquila por bastante tempo. Ela agradeceu dizendo que lhe estaria esperando. Um longo beijo foi o presente de despedida.

O novo destino de Victor era Santiago. Com o tanque repleto de gasolina se preparou para enfrentar a estrada. A partir de agora continuaria sozinho, mas isto nunca foi problema para ele, sua vida sempre teve essa característica.

Na cidade de Arica o detetive Oscar continuava procurando-o. Ao conhecer os detalhes do roubo de Antofagasta, descobriu a suplantação de identidade e viajou a essa cidade para conhecer os fatos. Deduziu que a próxima parada era Santiago em companhia dessa jovem chamada Cristina. Com esses antecedentes enviou a descrição de ambos aos postos policiais do país, mas ignorava que Victor havia sofrido uma pequena transformação e que estava sozinho.

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XVII.- Feliz 1972

O verão de 1972 iniciou-se com muita atividade, as últimas safras de paraquedistas funcionavam a todo vapor. Para dormir no Hotel Reinares tinha que fazer reservas com dias de antecedência. O avião não era suficiente para realizar os saltos programados, e frequentemente éramos auxiliados por outras aeronaves que vinham de diversos clubes do país.

Foi assim que sugiram vários convites para participar em diversos eventos organizados por empresas particulares ou prefeituras. Nunca pagaram um tostão, mas em troca cobriam os gastos de avião, translado, hospedagem e alimentação. Era gratificante saber que nosso clube estava sendo conhecido em nível nacional. Visitamos diversas cidades localizadas ao sul de Santiago. Cada viagem era uma aventura. O salto mais constrangedor foi no Estádio de Playa Ancha, em Valparaíso. O motivo pelo qual fomos convidados era surpreender os torcedores com um espetáculo aéreo diferente.

No dia do salto o céu estava cinza e com muitas nuvens. O piloto não queria decolar por temor que o tempo fechasse. Argumentávamos que nada aconteceria, fomos tão insistentes que finalmente aceitou e conseguimos decolar. Para ganhar altura foi necessário romper nuvens, nesse momento compreendemos que o piloto tinha razão, as condições climáticas eram péssimas. Quando chegou o momento de saltar não conseguíamos ver o chão, toda a área estava coberta. Através de pequenos buracos entre as nuvens, conseguimos visualizar algo parecido ao estádio e decidimos saltar. Primeiro saiu Alfredo, posteriormente Victor Hugo e finalmente eu. Ao sair da aeronave a única visão que tínhamos era um enorme colchão branco. Alfredo abriu um buraco enorme ao bater nas nuvens. Com Victor Hugo aconteceu a mesma coisa e quando chegou meu turno, perdi totalmente a visão, os óculos ficaram embaçados, e depois de alguns segundos apareceu repentinamente o estádio. As três aberturas foram quase simultâneas. A partir desse instante iniciamos giros durante a descida, para chamar a atenção dos torcedores. Quanta decepção! O jogo já havia começado e ninguém dava bola para nós. Quando aterrissamos no meio do campo, a partida foi suspensa.

Os jogadores nos ajudaram a tirar os equipamentos do campo para reiniciar o jogo. Era a primeira vez que ambas torcidas uniam-se para reclamar de um adversário comum. Profundamente decepcionados, abandonamos o estádio sem acreditar o que estava acontecendo. De nada valeu o empenho e riscos assumidos para realizar um lindo espetáculo. Posteriormente deduzimos que perdemos muito tempo convencendo ao piloto para que decolasse, assim como também, a falta de visibilidade nos tirou outros minutos preciosos. Agora não valia de nada lamentar-se, e de cabeça baixa abandonamos o estádio.

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XVIII.- Grandes cidades, grandes perigos

Estava anoitecendo quando Victor entrou na principal Avenida de Santiago denominada comumente de Alameda. As fontes iluminadas e os jardins decorados por árvores e flores, forneciam uma bela vista. Nada mais lindo que Santiago de noite, pensou.

Concluiu que era mais seguro ficar na casa de conhecidos, a pousar num hotel no centro da cidade. Ao entrar numa das ruas onde moravam suas amizades, observou várias camionetes da polícia civil fazendo blitz. Era uma péssima recepção.

Os crimes cometidos em Arica e o valioso roubo de joias recentemente realizado em Antofagasta, tinham colocado a polícia atrás dele, e nesse momento era o delinquente mais procurado do país.

Oscar viajou de avião à capital, e se encontrava no comando da investigação. Nesse momento eram realizadas invasões nas residências onde exista suspeita de um eventual esconderijo. Ao observar o carro em baixa velocidade, Oscar mandou interceptá-lo, tinha o pressentimento que a presa estava por perto. Com sua lanterna iluminou o rosto de Victor sem reconhecê-lo. Viu um homem loiro, de óculos e bem vestido, não havia nenhuma mulher acompanhando-o. Não coincidia com o perfil dos procurados, e sem pedir um documento sequer, o mandou continuar. Estava aborrecido, sentia-se traído pelo instinto policial e seu mau humor se refletiu ao gritar para seus homens, continuar as invasões.

Obviamente a sorte estava ao lado de Victor, durante a revisão seu coração parou de funcionar. Sabia que o detetive Oscar pertencia ao comando do norte, o único motivo para estar em Santiago, era sem dúvida, capturá-lo. Com esse panorama não podia ficar na cidade, o clima estava pesado para exercer qualquer tipo de atividade.

Depois de muito pensar resolveu viajar a Viña del Mar, nessa cidade tinha parentes que sempre lhe demonstraram muito afeto. Era o momento de verificar se o afeto era sincero. Por outro lado a polícia nunca o procuraria entre essas pessoas, pois ignoravam o parentesco.

Cada vez que cruzava um controle policial, tinha a sensação que seria preso. Foram duas tensas horas de condução até chegar a uma das cidades mais bonitas do Chile. Rodeada de jardins, praias e altos prédios, parecia que Viña del Mar, o recebia de braços abertos.

O cansaço e a tensão acumulado durante o trajeto, tomou conta de seu corpo. Estacionou na frente de uma praia para descansar um momento, e sem dar-se conta, dormiu profundamente.

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Amanhecia quando foi acordado por uns golpes no vidro, eram dois mendigos solicitando esmola. Mal-humorado fez sinais para que não o importunassem, mas eles insistiam para que abrisse a janela. Profundamente irritado Victor obedeceu para terminar com essa incômoda situação. Quando o vidro estava baixo, um dos homens encostou um revólver na sua cara mandando-o mudar de assento. Um deles se posicionou no volante e o outro no banco traseiro com a arma apontada para a cabeça de Victor. Sujos, fedorentos, com hálito nauseabundo, eram as características dos delinquentes. Riam constantemente como idiotas. Parecia um terrível pesadelo.

Após alguns minutos percorrendo os morros que circundam a cidade, chegaram a uma pocilga situada na periferia. Terrenos baldios, malocas abandonadas, ruas sem calçamento e um precário sistema de iluminação, eram as características do lugar.

Ao descer do carro os homens descobriram a bolsa com o dinheiro roubado em Antofagasta. Ficaram surpresos e felizes. Tinham tirado a sorte grande!

No interior da residência perguntaram a origem do dinheiro. Victor contou a verdade, disse que era produto de um roubo. Os mendigos não paravam de rir, nunca aceitariam essa realidade. Para eles, Victor era um empresário bem sucedido.

Quanta ironia, amarrado ambas as mãos a uma viga que cruzava o teto do quarto, estava Victor sequestrado por dois vagabundos nojentos. Nesse momento estava tranquilo por estar sozinho, com a companhia de Cristina, a coisa ficaria muito pior.

Discutiram que fariam com ele, e sem chegar ainda a nenhum resultado, decidiram comprar alimentos e bebidas. Um deles pegou a bolsa com o dinheiro e as chaves do carro, argumentando que faria as compras no centro de Viña, o companheiro ficou cuidando do prisioneiro.

Passado algum tempo Victor tratou de conversar com o guardião. Perguntou quando tempo conhecia o companheiro, ele respondeu que não era da sua conta e que ficasse calado. Mas ele Insistiu argumentando que fazia estas perguntas por que duvidava que o sócio voltasse. Havia levado o dinheiro e o carro, era difícil acreditar que retornaria a essa pocilga. Furioso o golpeou no estômago com força, gritando que calasse a boca. Depois de tossir várias vezes insistiu dizendo que desse uma olhada no relógio, fazia mais de uma hora que tinha partido e, cada minuto que passava seria mais difícil alcançá-lo. O mendigo caminhou de um lado para outro observando a ponta dos sapatos, era difícil acreditar que foi traído, mas os fatos falavam por si só, não podia continuar nesse quarto, enquanto o outro se divertia na cidade. Compreendeu que suas palavras haviam alcançado o efeito desejado, agora era o momento de dar o toque final. Propôs solicitar a seus parentes um carro, e procurar o sócio

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perdido. O homem bastante desnorteado perguntou se podia confiar nele. Victor argumentou que não conhecia a cidade, precisava de uma pessoa que o levasse aos lugares que comumente frequentavam. Sem sua ajuda seria impossível capturá-lo.

Aceitou a proposta com a condição que ele cobraria as contas pendentes com o sócio. Victor aceitou e foi liberado. Profundo erro, num piscar de olhos o guardião estava abatido no chão pelo duro golpe recebido em plena mandíbula.

Ainda inconsciente o imobilizou e ficou com a arma. Descobriu que tinha somente duas balas. Suficiente para controlar a situação, pensou. Saiu da casa e se refugiou num galinheiro vizinho. Escondido nesse lugar esperou pacientemente o retorno do homem. Pensou várias vezes que não voltaria, mas conhecendo a lei do baixo mundo, apostou todas as fichas na fidelidade bandida e continuou esperando.

Não foi decepcionado, o sujeito voltou com quatro mulheres rindo e bebendo. Pela aparência pareciam bastante embriagados. Desceram do carro levando uma enorme quantidade de sacolas de supermercado, ao interior da residência. Ao entrar acharam o sócio amarrado e com a boca sanguinolenta. As mulheres ficaram mudas, o homem observava atônito ao companheiro, sem compreender o que estava acontecendo. Nesse momento apareceu Victor com o revólver em punho. O vagabundo levantou os braços com o medo desenhado no rosto. Ordenou às mulheres pôr as compras de volta no carro. Revisou a bolsa com o dinheiro e comprovou que estava quase tudo, respirou tranquilo. Ao sair trancou a porta sem antes advertir que qualquer palavra à polícia, voltaria para cobrar contas. Abandonou o lugar com uma sensação de desagrado, esses acontecimentos feriram seu amor próprio. Ser assaltado por dois mendigos nojentos era para ficar envergonhado mesmo. Felizmente o caso foi solucionado com astúcia e inteligência e teve um final aceitável.

Depois de alguns minutos estava cumprimentando os parentes, como se nada houvesse acontecido. Ficaram surpreendidos com os produtos encontrados nas sacolas do supermercado, além de alimento e bebidas alcoólicas, acharam calcinhas e artigos femininos. Ninguém perguntou absolutamente nada para Victor.

Em Santiago o detetive Oscar sentia-se totalmente frustrado ao ver que o esforço não rendeu os frutos esperados. Embora tivesse detido dez delinquentes procurados pela lei, nenhum deles informou a presença de Victor. Deveria estar escondido em outro lugar dessa grande cidade. Era uma tarefa difícil, mas não impossível quando se conhece o comportamento da pessoa procurada.

Ao ordenar seus pensamentos, lembrou-se do rosto daquele motorista detido na blitz, nesse momento reconheceu Victor.

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---- Como pude ser tão idiota!---- Estava com ele nas mãos e o deixei escapar! ---- se lamentava.

Tratou lembrar-se do modelo do veículo, mas na obscuridade todos os carros são iguais. Agora seria difícil capturá-lo, mas conhecendo seus hábitos elucidou que não demoraria muito tempo, para visitar casas noturnas. Enviou seus homens vistoriar aqueles locais, distribuindo fotos e números telefônicos para contato. A vida noturna estava avisada, e desta vez Victor não escaparia, segundo o detetive Oscar.

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XIX.- Um salto no mar.

A classificação das licencias de paraquedismo, segundo a Direção da Aeronáutica, começava com a letra “A” e terminava com “D”, sendo “A” para alunos e “D” para sênior.

Minha licença era classe “C”, correspondente ao penúltimo grau dessa classificação. Para ser exato o numero é C-27 significava que somente vinte e seis colegas conseguiram esta licença antes de mim. Foi uma boa classificação considerando os poucos anos que tinha como esportista.

Alfredo também possuía a mesma classificação (C), e tentava alcançar a categoria máxima (D). Fazia bastante tempo que corria atrás desse objetivo, mas faltavam os meios para cumprir os requisitos mais difíceis que eram: um salto noturno e outro na água.

Com a persistência que o caracterizava, fez contato com um clube de Iates da cidade de Viña, para realizar um salto no mar no dia do aniversário dessa instituição, em retribuição eles nos dariam cobertura quando estivéssemos amerissando. Desta forma cumpriríamos um das exigências para alcançar a licença “D”.

Os elementos usados para efetuar este tipo de salto eram: calção de banho, capacete e tênis. As normas de segurança recomendavam que depois de abrir o paraquedas, as alças de sustentação das pernas, cintura e peito, ficassem abertas, ficando totalmente livre, sustentado apenas pelo arnês, (como um balanço de criança) No momento que os pés tocassem a água, deveria abandonar o equipamento mergulhando no mar, e dessa forma evitar um possível enredo com a cúpula. Estimava-se que o tecido molhado poderia afundar antes que as lanchas de resgate chegassem, arrastando ao usuário às profundezas.

Quando se voa sobre o mar, o sentido de profundidade se distorce, e pode-se abandonar o equipamento a grande altura, ocasionando um acidente. Por esse motivo se recomenda mergulhar quando os pés toquem na água.

Estava ciente dos procedimentos que regulamentam esse tipo de salto, mas o que realmente me preocupava era: não saber nadar.

---- Como poderia confessar Alfredo e companheiros que tinha pavor de água?

Por outro lado não podia perder essa oportunidade. Seria muito difícil apresentar-se outra ocasião como essa. E bom deixar claro que ninguém me perguntou nada relacionado com saber nadar.

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Nesse fim de semana, nos reunimos no aeródromo de Rodelillos, que pertence à cidade de Viña del Mar. Vestíamos roupa social para a reunião marcada com os diretores do clube de iates. Nessa oportunidade coloquei calça cinza, casaco azul marinho, gravata vermelha e sapatos pretos, pensando que essa roupa esportiva seria a mais apropriada. Quando chegamos à reunião, para minha surpresa, encontrei todos os membros dessa instituição, usando exatamente a mesma indumentária. Como poderia imaginar que esse era o uniforme do clube?

Naquele dia pernoite em Viña, dez da manhã do dia seguinte, nos reunimos novamente em Rodelillos. Entramos em contato por telefone para avisar que estávamos decolando. As lanchas de resgate tinham que estar preparadas para tirar-nos da água no menor tempo possível. A tripulação era: Alfredo, o “milico” Contreras e eu. Enquanto voávamos, observava a imensidade do mar, a paisagem era tão subjugante que quase esqueci o problema que teria que enfrentar em alguns minutos. Antes de chegar ao ponto de salto, Alfredo nos comunicou que cada um de nós, teria que saltar em voltas diferentes, para dar tempo às lanchas de resgate. Ele seria o primeiro, segundo Contreras e, na última volta seria minha vez.

Outra curiosidade que vale a pena destacar, é a recomendação de usar tênis sem cadarços. O objetivo é proteger os pés de queimaduras, caso esfregar a cúpula no momento da abertura.

Quando chegou o momento de abandonar o avião não pensei duas vezes e sai fazendo uma linda posição de planeio, não estava preocupado por não saber nadar, o principal problema nesse momento, era manter os tênis presos aos pés, pois sem cadarços, ameaçavam escapar constantemente. E foi isso o que exatamente aconteceu; a força do vento arrebatou um deles, que ficou girando em torno de mim durante todo o salto. Ao abrir o paraquedas descobri um espetacular panorama; o horizonte decorado com nuvens brilhantes de sol, no outro lado, lindas praias longínquas de cores difíceis de definir. Um espetáculo maravilhoso. Observei o mar cada vez mais perto. Causou-me pavor pensar que em pouco tempo estaria flutuando nessa imensa massa de água. Meu problema imediato era soltar o equipamento para cumprir as recomendações da Direção da Aeronáutica. Levei os joelhos ao peito para soltas as correias das pernas, posteriormente do peito e por último liberei a reserva que se encontrava na barriga. Estava totalmente livre e isto me produzia uma grande insegurança, não queria movimentar-me por medo de cair. Soltei os “condutores” (cordas que permitem conduzir o equipamento) e simplesmente deixei que o vento me levasse. Não podia segurar-me e conduzir simultaneamente, era impossível.

Finalmente chegou o momento de fazer contato com a água, quis abandonar o paraquedas, mas não consegui, sem base de apoio foi impossível fazer esta manobra. Tentei várias vezes sem êxito, e sem mais comentários entrei com equipamento e tudo, nas frias águas do Oceano Pacífico.

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A reserva flutua por cinco minutos aproximadamente. Sabendo disto me abracei a ela como se agarra um náufrago a uma tábua, minha situação era bastante similar. Preocupado observava a enorme cúpula absorvendo água e a lancha ainda não aparecia. Quando finalmente chegaram, se detiveram a vários metros de onde me encontrava. Chamavam-me para que nadasse nessa direção. Mexia a cabeça negativamente, não podia explicar nesse momento que não sabia nadar. Quando observaram que não saía do lugar compreenderam que tinha algum problema, e se aproximaram para que embarcasse. Com sua ajuda recuperei o equipamento e um tênis.

Um dia cheio de realizações, consegui meu salto na água e Alfredo sua licença “D”. Vale destacar que ele foi o primeiro paraquedista em alcançar esse nível. Sua licença atualmente é D1.

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XX.- A despedida de Sônia.

Sônia e seu namorado Francisco continuavam participando das atividades esportivas. Todas as semanas viajavam a San Felipe e se integravam cada vez mais com os membros do clube.

Sônia era mais velha que Francisco, a simples vista dava para notar a diferença da idade entre eles. Esse fato nunca foi importante na relação, faço este comentário só de passagem. Com ela participavam sua irmã Vilma, sua amiga Tita e a sobrinha Carmem. Eram pessoas que não saltavam, mas em compensação colaboravam nas diferentes atividades do dia a dia. Gostavam da natureza e principalmente viajavam a San Felipe para desfrutar de um fim de semana diferente. Quando precisava de ajuda para “empacar”, sabia que contava com a ajuda de alguma das acompanhantes de Sônia. Com o passar do tempo elas conheceram os regulamentos das diferentes competências, e chegaram a desempenhar funções de jurado em vários campeonatos.

É necessário destacar que nessa época eram pouquíssimas as mulheres paraquedistas, por este motivo estavam orgulhosos de ter uma mulher em nosso time. Sônia era uma esportista entusiasta e participativa, sua pessoa dava uma imagem diferente a nossa atividade.

Cada segunda-feira quando nos cruzávamos nas dependências da Corporação, comentávamos as experiências vivenciadas no fim de semana, e ríamos das loucuras acontecidas naqueles dias. Uma quarta-feira ligou para mim a irmã dela avisando que Sônia havia falecido. Recebi esta notícia como uma balde de água fria caindo por todo meu corpo. Era difícil entender como uma pessoa com a qual tínhamos compartilhado tantos momentos lindos, pudesse desaparecer de um momento para outro. Difícil era aceitar essa dura realidade, apresentada de forma tão inesperada.

Todos os membros do clube estavam presentes no enterro. Foi um ato emotivo. A cripta pertencia à família de Sônia e ficava num lugar rodeado de grama e flores, como o ambiente que ela gostava. Depois de belas palavras ditas por um sacerdote, o pessoal começou a retirar-se, de um momento para outro descobri que me encontrava totalmente sozinho. Havia ficado hipnotizado com a morte da amiga e companheira. Parecia-me vê-la circular pelo campo aéreo cheia de energia. Era engraçado observá-la transportar o equipamento, apenas conseguia carregá-lo. Estas lembranças chegavam a minha mente e continuei junto ao túmulo por bastante tempo, Ela dentro do caixão e eu com um profundo sentimento de dor.

O motivo da sua morte foi o término do namoro com Francisco, ela não conseguiu sobrepor-se a essa realidade e optou por suicidar-se. Com grande

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dificuldade se enforcou num armário. Foi algo que nunca deveria ter acontecido. Já era tarde quando abandonei o cemitério. Sônia devia descansar em paz.

Nos dias posteriores nossa missão foi conversar com Francisco e, tirar da sua cabeça qualquer sentimento de culpa. Acredito que todos os membros do clube deram um forte apoio a nosso amigo, especialmente Alfredo.

O verão de 1972 terminou de forma triste.

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XXI.- Novas relações

A partir do mês de Setembro do ano passado (1971) --- mês que conheci Sílvia Helena --- saíamos os sábado à noite para dançar numa discoteca no centro da cidade, acompanhados esporadicamente por meu companheiro Victor Hugo e outras amigas. Com o passar do tempo ficamos íntimos, sem chegar a uma relação mais aprofundada.

Para ser sincero existia também outro elemento que é importante mencionar, na cultura de nosso povo prevalece os preconceitos, e eu não era a exceção à regra. Acreditava que seria malvisto trocar de namorada em tão pouco tempo, sendo ambas do mesmo grupo social. Embora gostasse de Sílvia Helena, meus temores e preconceitos, não permitiam acercar-me demasiado. Esta situação se manteve durante cinco meses, éramos amigos, dançávamos nos fins de semana, voávamos e, esporadicamente era convidado a jantar ou almoçar na sua casa. Nessas ocasiões conversava com o pai dela, diversos temas com relação ao clube, planejando o futuro da instituição.

Através das irmãs soube que nunca teve namorado sério, foram romances infantis quando cursava o primeiro grau. Com o passar do tempo, Victor Hugo se afastou e finalmente continuamos saindo sozinhos. De alguma forma isto foi positivo porque permitiu conhece-nos melhor, sem chegar a uma relação romântica.

Com o passar do tempo a amizade com alguns membros do clube se fazia mais profunda. Com Rodrigo, além de saltar, voávamos seguidamente a Santiago e compartilhávamos experiências. Com Cláudio também cultivamos uma bela amizade. Eles foram os pilotos que mais lutaram para estabelecer de forma definitiva a área de paraquedismo no clube. Ambos continuavam saltando os fins de semana. Rodrigo era Chefe de Compras numa empresa processadora de frutas, e Cláudio tinha uma oficina mecânica numa cidade vizinha.

Cláudio era criticado pelos familiares dos pilotos que frequentavam as dependências do clube. O motivo era sua namorada. Esta situação não teria a menor importância se ele fosse solteiro. Pessoalmente gostava muito do casal, eram pessoas expansivas, alegres e regularmente ficávamos até altas horas da noite, no restaurante do clube, conversando ou contando piadas. Uma das características mais destacada, era sua entrega para os amigos, sabíamos que podíamos contar com ele em qualquer situação. Nessa época Cláudio tinha aproximadamente uns quarenta e cinco anos, mas sua forma de atuar e sua capacidade física eram de um adolescente.

Outra pessoa muito legal era Roberto, diretor do clube e sócio da empresa processadora de frutas, onde Rodrigo trabalhava. Figura enigmática e introvertida. Como diretor aplicava as normas de conduta dentro da instituição, mas depois de conhecê-lo se descobria uma pessoa amável e simpática.

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Durante o tempo que convivi com Roberto, soube coisas interessantes. Um dos comentários que realmente me impressionou, foi saber que minha ex-namorada Alicia, teve um relacionamento com ele durante bastante tempo, embora fosse casado. Os membros do clube conheciam a historia e ninguém me contou nada!. Foi talvez essa notícia que quebrou as últimas barreiras que ainda não me permitiam namorar Sílvia Helena. No dia seguinte a pedi em namoro, felizmente ela aceitou.

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XXII.- Inverno do 72.

Por aqueles dias em Santiago os protestos contra o governo de Salvador Allende aumentavam. Os estudantes, trabalhadores e donas de casa, marchavam pelas ruas reclamando das medidas econômicas. Como toda ação gera reação, começou uma série de marchas a favor do presidente, virando o centro da cidade uma praça de guerra. Gente correndo para todos os lados, polícia lançando bombas lacrimogêneas e para terminar, o carro lança água molhava mouros e cristãos.

Ambiente altamente estressante, para as pessoas que trabalhávamos nesse setor. Nunca me envolvi nesse tipo de movimento. Preferia ficar longe das greves, manifestações e enfrentamentos políticos. Por outro lado minhas responsabilidades profissionais na Corporação haviam aumentado devido a um sem número de tarefas novas. Evitava transitar pelo centro, mas o prédio da Instituição ficava a dois quarteirões do Palácio do Governo, denominado La Moneda. Em várias oportunidades me vi envolvido nessas desordens de forma involuntária.

Durante os meses de inverno nem sempre se pode saltar ou voar, o tempo é um fator importante na prática dos esportes aéreos. Por esse motivo, cada sexta-feira ficava atento ao prognóstico. Quando era anunciado mal tempo, viajava do mesmo modo a San Felipe. Passava as tardes de sábados e domingos com Sílvia Helena na beira da lareira, compartilhando com sua família, lindas canções que a sua irmã caçula interpretava. Seus pais rara vez estavam em casa, as responsabilidades sociais os mantinham ocupados. Uma das irmãs tinha síndrome de Dawn, mas esta doença não era impedimento para que participasse do grupo, sempre foi muito divertida. Meu relacionamento com Sílvia Helena até esse instante era totalmente sentimental, o sexo não fazia parte de nosso namoro. Ela desejava preservar sua virgindade até o matrimônio. As fortes tradições familiares influenciavam bastante nesse assunto. Como meu objetivo não era esse tipo de relacionamento, não dava a mínima.

Ao cair a tarde caminhávamos por uma das grandes alamedas que demarcam San Felipe, e posteriormente nos reuníamos com os amigos na praça principal. A maioria deles pertencia a famílias tradicionais, e sentiam orgulho por terem nascido nessa cidade. Nos sábados a noite nunca faltava um lugar onde se divertir: festas, aniversários ou simplesmente discoteca.

Sílvia Helena era uma pessoa especial; alegre por natureza, os problemas perdiam importância ao estar com ela. Em poucos minutos as preocupações se evaporavam e riamos de qualquer coisa. Meu mundo girava ao seu redor. Quando ela estava longe, minha vida ficava sem objetivos. Estava totalmente apaixonado dessa maravilhosa adolescente.

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XXIII.- A boa vida.

Os familiares de Victor o acomodaram num quarto com vista ao Pacifico. Era uma bela paisagem. Pela janela entrava uma brisa marinha com sabor a mar, após jantar se deitou para esquecer as emoções vivenciadas nas últimas horas.

As semanas seguintes foram de festas e celebrações. O dinheiro ia embora pouco a pouco, mas de forma continuada. O cassino de Viña também diminuiu drasticamente os recursos econômicos de Victor, mas isso não tinha a menor importância para ele: ladrão eficiente procura a forma de conseguir uma nova fonte de dinheiro.

Estava ciente que na cidade existem bairros elegantes para roubar artigos valiosos e de fácil venda. Após dias de paciente observação, descobriu que uma mansão ficava sozinha depois das dez da manhã, aparentemente era casa de veraneio. Diariamente uma senhora fazia uma rápida manutenção em aproximadamente uma hora, o resto do dia ficava desprotegida. Como um felino escalou as altas grades do jardim, procurou uma janela lateral e em poucos segundos estava dentro da mansão. Talheres de prata, copos de cristal, joias e algumas roupas femininas bordadas em ouro, foram os elementos selecionados. Quando tudo estava pronto para ser transportado, descobriu uma sala que havia passado despercebida. Era uma imensa biblioteca com aqueles livros que sempre quis ler, não podia deixar passar essa maravilhosa oportunidade! Selecionou os melhores autores, e levou ao veículo num carrinho de mão. Os artigos anteriormente selecionados ficaram esquecidos na sala.

No dia seguinte um jornal local difundiu a seguinte manchete:

“Ladrão intelectual leva livros e deixa as joias”

Em Santiago Oscar continuava procurando-o nas casas noturnas. Estava por desistir e voltar para Arica, quando soube da notícia do ladrão intelectual. Não podia ser outro! Só Victor atuava dessa maneira! Sem pensar duas vezes, trasladou sua equipe de investigadores para Viña del Mar.

Como os livros não renderam lucro monetário, era necessário começar tudo de novo. O alvo foi um prédio de apartamentos de alto padrão, nele moravam pessoas importantes e ricas; políticos, gente do espetáculo e cantores eram os donos das propriedades. Depois de um tempo de observação selecionou a residência de um conhecido político da cidade. Sabia que o valor dos produtos roubados de pessoas importantes, não é divulgado publicamente. A frase que Victor aplicava nesses casos era: “Quem rouba a um ladrão tem cem anos de perdão”.

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Para entrar no prédio não era necessário escalar grades ou romper janelas, bastava estar bem vestido, e ter personalidade para encarar pessoas inoportunas. Era uma questão de postura.

A rotina do apartamento era a seguinte: a empregada chegava pontualmente as sete da manhã, o dono saia para trabalhar. A mulher permanecia no local até as quatro da tarde. O homem voltava aproximadamente às seis horas. Portanto durante duas horas o apartamento ficava sozinho. Nesse curto período de tempo teria que roubar espécies pequenas e valiosas, para não despertar suspeitas no momento de sair.

Com o pouco dinheiro que restava, comprou terno, sapatos, camisa, gravata e uma pasta tipo James Bond. Estava equipado conforme o planejado. Esperou pacientemente a saída da mulher para cruzar rapidamente a entrada do prédio. O porteiro o observou, mas ao ver um senhor elegante e sério, não teve coragem para fazer perguntas inconvenientes. No elevador respirou tranquilo, a primeira etapa estava cumprida.

Ao chegar na entrada do apartamento, antes de forçar a fechadura ou fazer qualquer ação invasiva, procurou a chave embaixo do pequeno tapete usado para limpar os pés, sem resultado. Posteriormente num vaso com frondosas folhagens, ligeiramente camufladas com algumas pedras, encontrou o que estava procurando. Gente rica acredita que todo o mundo é honesto, pensou enquanto entrava. O interior da residência era suntuoso, objetos grandes e caros proliferavam pelas salas, paredes e corredores, mas nada disso podia ser roubado. Procurou arduamente a caixa forte, mas nada encontrou. Nas gavetas achou alguns anéis e relógios de pouco valor. Um enorme armário localizado no quarto chamou sua atenção, no fundo encontrou uma mala coberta de roupas, ao abri-la teve uma grata surpresa, dólares e dinheiro nacional esperavam ser resgatados da tirania do político opressor. Não conseguiu colocar todo o dinheiro na pasta, por esse motivo teve que distribuir parte entre as roupas. Desceu com a missão cumprida. Ao sair cumprimentou aos porteiros que lhe retribuíram com um sorriso.

Os canais de televisão noticiaram o audacioso roubo. Mas ninguém falou do montante. Mais tarde apareceu o político fazendo diversas declarações e assegurando aos cidadãos que faria todo o possível para aumentar a segurança da população. Que ironia: não conseguiu proteger sua própria residência. Como cuidaria dos outros?

O valor roubado era suficiente para mantê-lo afastado da vida de bandido, por algum tempo. Só teria que administrar cuidadosamente os gastos para não ter que correr novos riscos.

O detetive Oscar se inteirou das particularidades do roubo, suas suspeitas estavam certas, Victor continuava cometendo crimes nessa cidade, desta vez

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não permitiria que continuasse burlando a justiça, colocou os aeroportos, terminais de ônibus e trens em alerta. Os controles rodoviários tinham fotografias e estavam com ordens de deter qualquer pessoa similar à descrição de Victor. O cerco estava fechado. Era uma questão de tempo.

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XXIV.- Natal do 72

Estava acabando o ano e os problemas políticos cresciam dia a dia, O presidente Allende recebia reclamações de todos os setores da povoação. Seus aliados queriam mais determinação nas ações, e os opositores pediam sua renuncia. Nessa época a maioria dos países latino-americanos tinham governos militares, ou simpatizantes. Chile era o único país da América Latina com governo socialista. Estávamos na contramão da história.

Estava revisando uns documentos no escritório quando me avisaram que uns senhores queriam conversar comigo. Eram dois funcionários de uma Instituição agrícola do Estado (SAG). O motivo da visita era solicitar um salto na festa de fim de ano dos funcionários. Foi uma tremenda surpresa saber que meu humilde salto do ano anterior, tinha transcendido. Aceitei de imediato. Nesse fim de ano saltei fantasiado de Papai Noel para duas empresas dependentes do Ministério de Agricultura, um para o SAG e outro para a CORA.

Da mesma forma que no ano anterior, recebi o apoio total de “Los Escorpiones” e especialmente de Alfredo. A grande diferença foi que esses dois saltos foram efetuados sob minha exclusiva responsabilidade. Alfredo ficou no grupo de apoio com o pessoal de terra. Tomei as medidas necessárias para que tudo funcionasse da melhor forma possível, lancei um marcador de vento, determinei o ponto de abertura e, finalmente abandonei a aeronave tendo a convicção de que nada poderia sair errado. Pela primeira vez era o responsável de realizar um salto difícil em terreno desconhecido e perigoso. Não podia decepcionar as crianças, que esperavam ansiosamente Papai Noel chegar do céu. Felizmente tudo funcionou conforme o planejado e depois de poucos minutos estava novamente entregando brinquedos. Sempre é gratificante brindar alegria. Esse fim de ano minha felicidade foi em dose dupla.

Estava terminando meu terceiro ano como paraquedista e depois de fazer um balanço dos últimos trinta e seis meses, compreendi que neste curto período de tempo, tinha vivido mais intensamente que todos os anos anteriores da minha vida.

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XXV.- Início de 73

Todo início de ano traz esperanças e otimismo. As pessoas confiam que dias melhores virão. Votos de prosperidade são renovados. Este começo de ano não era diferente, embora a situação interna do país era instável pelos constantes enfrentamentos, os chilenos confiavam que um ano melhor viria. O otimismo é uma virtude de nosso povo e nessa ocasião não era diferente. Ninguém imaginava que nosso destino seria violentamente mudado e banhado com sangue de gente inocente.

Apesar da situação caótica vivida em Santiago, as atividades esportivas continuavam de forma normal. Os integrantes do clube continuavam saltando e melhorando as técnicas esportivas. Em cada salto era comum formar grupos para realizar “Trabalho relativo”.

Foi nessa época que pela primeira vez, me senti discriminado dentro do meu grupo de amigos. Alfredo organizava saltos com os colegas de mais experiência e, embora fosse um deles, rara vez era convidado. As poucas oportunidades que saltei com Alfredo, aconteceu a mesma coisa;: não conseguimos o tomar-nos ou “enganchar-nos”

Acredito que o principal problema era a diferença de estruturas anatômicas. Meus sessenta quilos de peso e o metro e setenta de altura, ocasionava uma velocidade de queda notoriamente diferente da alcançada por Alfredo, com seus noventa quilos concentrados num metro sessenta de altura. Ele caía como uma pedra e eu ficava boiando. O resultado desta equação matemática anulou totalmente minha participação nesse tipo de saltos. Sendo assim, meu trabalho nos fins de semana se centralizava no preparo de alunos. Responsabilizava-me pelos equipamentos, saídas de avião, e finalmente os levava a três mil pés para que saltassem. A forma de aproveitar cada um desses voos era saltar com eles, portanto acumulei uma grande quantidade de saltos com relação aos outros companheiros. Lamentavelmente eram de pouca altura, só me serviam para compensar a falta de participação nos trabalhos de grupo. Por outro lado, preparava uma safra de esportistas com os quais futuramente, poderia recuperar o tempo perdido.

Durante a semana, quando estava reunindo material para iniciar um curso teórico descobri que apesar da grande quantidade de saltos, nunca tinha realizado um procedimento real de emergência. Meu equipamento nunca falhou.

---- Os procedimentos ensinados eram confiáveis? ---- E se não funcionassem?

Poderia estar passando instruções erradas e um aluno poderia morrer. Nesse momento me senti irresponsável, não podia brincar com a vida dos novatos. Sempre senti que eles confiavam cegamente em mim. Em cada salto, de

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alguma forma, sua vida dependia da minha experiência. A partir desse instante uma terrível sensação de culpa me embargou. Foi então que tomei a decisão de terminar com as dúvidas das emergências. No fim de semana seguinte, depois de lançar alguns alunos, preparei meu paraquedas para que não abrisse. Fiz um nó na capa que protege a cúpula, para produzir uma falha total. Não podia contar meus planos ao resto do pessoal, ninguém aprovaria os métodos didáticos que pensava aplicar, mas estava convencido que isto era necessário para testar efetivamente as normas de segurança, ensinado nas aulas teóricas.

Após lançar os alunos saltei sabendo que o equipamento falharia. O fato de conhecer antecipadamente o que vai acontecer, não causa o impacto do inesperado. Por isso quando a cúpula ficou flamejando dentro de capa sem sair, não me assustou nem um pouco, a pesar do estrondo e vibrações produzidas pelo vento. Era o momento de testar os procedimentos de emergência; a velocidade da queda era de cem quilômetros por hora, em posição vertical, devido à cúpula que servia como âncora, noutras palavras caia de pé. Esta posição facilitava enormemente as ações a realizar. Neste tipo de emergência (falha total) é necessário “cortar” ou “liberar” a cúpula para evitar um enredo com o paraquedas de reserva. Para realizar esta operação o equipamento disponibiliza duas fivelas que se encontram na altura dos ombros, elas estavam protegidas por uma capa metálica que não foi difícil abrir. O segundo passo era pressionar dois botões laterais para liberar a cúpula, mas apesar de todo o esforço, não consegui abri-los, dava a impressão de estar travados.

Enquanto fazia pressão para alcançar esse objetivo, observava crescer os campos a uma velocidade incrível. Depois de alguns segundos consegui abrir uma das fivelas, mas a outra permaneceu fechada. Como resultado desta ação, a cúpula deu início a uma sequência de giros violentos que me fizeram perder a posição original. A força centrifuga era tão forte que as imagens em terra ficavam quadriculadas. Fazendo um imenso esforço para manter a calma, com ambas as mãos consegui abrir a segunda fivela e liberar finalmente a cúpula.

Nesse momento a posição de queda era de costas (olhando o céu) A essa altura havia perdido a relação tempo e distância, noutras palavras ignorava quantos segundos faltavam para impactar. Sem a cúpula a velocidade de queda aumentou, mas em compensação o ruído e as vibrações acabaram. Puxei a alça do paraquedas de reserva, o qual funcionou perfeitamente, parando a queda e brindando-me a segurança esperada, a poucos metros do chão.

Ainda não estava tudo acabado. A reserva não tem condução, portanto a aterrissagem foi violenta e totalmente descontrolada, mesmo assim nenhum osso foi quebrado. Fiquei contente de haver realizado a primeira experiência de emergência com êxito, o segundo passo era simular uma falha parcial, e com isto, estaria completo o material didático.

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A partir dessa experiência em todos os cursos ministrados por mim, foi incluído um novo procedimento: os alunos eram pendurados usando um contêiner verdadeiro, e dessa forma abrir as fivelas. Isto simulava exatamente uma situação real de emergência. Meses mais tarde os fabricantes dos equipamentos substituíram as fivelas por anéis de aço, que facilitavam enormemente a eliminação da cúpula principal. Alguém mais descobriu que esse sistema era perigoso.

Deixei passar duas semanas para recuperar a coragem e realizar o segundo procedimento de emergência denominado “falha parcial”. A diferença entre uma e outra, é que na “falha total” a cúpula fica totalmente fechada e no segundo caso, existe uma pequena abertura que não é suficiente para sustentar ao esportista. Em ambos os casos o risco é de morte.

Preparei o equipamento para que a falha acontecesse o mais próximo da realidade. Quando saltei meus sentidos estavam concentrados em cada ação que devia realizar. A cúpula saiu do contêiner, enchendo-se parcialmente. Uma borbulha de ar produzia um giro leve e constante à direita. Estava caindo de pé. As normas indicavam pressionar com a mão esquerda, a reserva contra o corpo, antes de tirar a alça para evitar que se enrole. Posteriormente o “ápice” (estremo superior da cúpula) deveria ser lançado na direção do vento. Segui as instruções passo a passo. Profundo erro, a tela da cúpula é escorregadia, ao pressioná-la escapou ficando pendurada nas minhas pernas. Era impossível mantê-la presa contra o corpo e lançar o “ápice” na direção do vento. Tive que realizar várias acrobacias para recuperá-la e, com ambas as mãos fazê-la flamejar. Desta forma consegui abri-la e aterrissar sem problemas. Descobri novamente que os procedimentos estavam equivocados.

A partir desse dia foi trocada a frase que dizia o seguinte: “Pôr a mão esquerda SOBRE a reserva e pressionar...” por “Por a mão esquerda ABAIXO da reserva e pressionar...”.

Obviamente o leitor deve pensar que ambas as falhas causadas deliberadamente foram obra de um desequilibrado mental, não me atrevo a desmenti-lo. O importante desta história foram duas coisas: esclarecer aquelas dúvidas que me atormentavam no momento de lançar um aluno; e entre nós, foi uma excelente experiência pessoal, porque a partir dessa data, me aconteceram falhas em várias oportunidades, e já estava preparado.

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XXVI.- Um retorno inesperado Durante o tempo que Victor permaneceu em Viña del Mar, sempre manteve contato com Cristina. Ligava de diversos telefones públicos para evitar surpresas como “grampos” indesejados. Conversavam por longos minutos. A palavra mas usada era saudades. Momentos agradáveis que o deixavam feliz e com desejos de viver. Com o passar do tempo os sentimentos cresceram e solidificara. Prova de que o amor verdadeiro não morre na distância.

Depois de uma semana do roubo do apartamento as atividades de Victor eram muito discretas. Continuava morando na casa dos familiares e as poucas saídas eram ao cinema. Sabia que nesse momento a polícia o estava procurando, e não podia arriscar-se. Ao ligar para Cristina, recebeu uma notícia ruim. A mãe tinha falecido e ela solicitou que fosse a La Serena o mais rápido possível, Cristina desconhecia sua atual situação, por isso insistiu para que a acompanhasse nesses difíceis momentos que estava enfrentando.

Esse seria o trajeto mais perigoso realizado em toda sua vida. Burlar o cerco fechado dos policiais era quase impossível, teria que ocupar toda sua astúcia e inteligência para conseguir esse objetivo. A experiência dizia que as estradas estavam controladas, assim como os terminais de ônibus e aeroportos. Qual seria a forma para viajar a La Serena?

Depois de muito pensar foi ao cais do porto de Valparaíso, para conversar com alguns marinheiros. Dessa forma conheceu o destino daqueles imensos barcos ancorados no lugar. Descobriu que um deles viajaria de manhã a Coquimbo, porto vizinho de La Serena para carregar mineral. O problema estava resolvido, de noite com uma mochila nas costas, usando gorro de lã, casaco e jeans, sorrateiramente entrou na embarcação escondendo-se numa das grandes bodegas. Ao amanhecer o barco começou a movimentar-se lentamente, a sirene emitiu um demorado e ronco uivo para despedir-se do Porto de Valparaíso. A bodega onde estava escondido, não tinha janelas para observar o mundo exterior. Para saber onde se encontrava, tinha que esperar a noite e subir ao convés. A única coisa que podia fazer era dormir e esperar. Passou o dia na obscuridade, alimentando-se de biscoitos e água que havia levado na mochila. Ao cair a noite os motores da embarcação pararam de funcionar, após algumas horas a tripulação terminou as atividades. De forma sigilosa alcançou o convés, cuidando para não ser descoberto. Era uma linda noite, a lua se refletia no mar e uma brisa fresca acariciava o rosto dos marinheiros que fumavam apoiados nas sacadas do barco. Ao observar as luzes do porto, reconheceu a cidade de Coquimbo. Havia alcançado a meta, o atual problema era chegar à costa. O barco ancorou duzentos metros mar adentro. Era um longo caminho por recorrer, mas para um homem nascido nas praias do norte, nadar não era um obstáculo impossível de salvar.

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Sem perder tempo colocou as roupas e dinheiro, numa sacola plástica, para não molhar e guardou na mochila. Devagar e com muito cuidado para não fazer barulho, desceu pela corrente da âncora. Entrou na água e, nadando em silêncio, chegou à costa. Estava finalmente em Coquimbo, molhado, com fome e sede. Apesar destes problemas, seu coração batia feliz só de pensar que voltaria aos braços de sua amada Cristina. Esperou alguns minutos para secar-se na escuridão da praia, posteriormente vestiu as roupas que permaneciam secas no interior da sacola de plástico, e começou a caminhar na direção da cidade. Num posto de gasolina saciou a fome e sede acumulada durante o dia. Posteriormente solicitou carona a um caminhoneiro que conheceu no lugar.

Era aproximadamente meia noite quando desceu do táxi frente à casa de Cristina. Foi um encontro emocionante, é difícil descrever o conjunto de sentimentos que nesse momento experimentavam. Lágrimas de amor rolavam pelos rostos. Os corpos se fundiram num abraço que não tinha fim. Estavam novamente juntos e isso era o que verdadeiramente importava.

Os familiares relataram os detalhes da morte da senhora. Ainda estavam consternados com a perda. Essa noite ficou na casa de Cristina.

Em Viña del Mar o detetive Oscar continuava procurando pistas que o levassem até Victor. As casas noturnas foram inspecionadas em repetidas oportunidades. Nos terminais de ônibus, trens e aeroportos, agentes disfarçados controlavam o movimento dos passageiros. O cassino também foi estreitamente vigiado por guardas do estabelecimento, como por policiais à paisana. Alguns funcionários o reconheceram através das fotografias, existia uma grande possibilidade que retornasse a esse lugar. Lamentavelmente para Oscar, estas medidas não dariam nenhum resultado. Victor já estava muito longe.

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XXVII.- Um convite inesperado.

No início do Outono de 1973, após um fim de semana bastante agitado, me chamou Roberto para conversar. Nesse momento fiquei preocupado, pensei que alguma coisa errada havia acontecido, mal podia imaginar o motivo dessa informal reunião. Numa mesa do restaurante do clube, Roberto me surpreendeu ao oferecer-me o cargo de Chefe de Produção, na empresa onde era sócio e diretor. O salário não era nenhuma maravilha, similar ao que ganhava na Corporação, mas em compensação estaria toda a semana perto dos aviões e, principalmente de Sílvia Helena. Esses dois motivos já compensavam qualquer coisa.

Esta situação colocou meu mundo de pés para acima, tinha que reorganizar minha vida e colocar os elementos dentro de uma nova realidade. O primeiro passo foi dado na segunda-feira quando cheguei à Corporação. Fui direto ao departamento de pessoal para solicitar uma licença administrativa por seis meses, estimei que esse tempo bastasse para testar meu novo emprego. Como a chefia de RH me conhecia e sempre tive um excelente relacionamento com as pessoas que ali trabalhavam, a licença foi aceita em tempo recorde. Estava livre para mudar-me a San Felipe.

Negociei com Don Hugo Reinares um valor compatível com minha renda. Comportou-se como uma dama e me fez um preço super econômico por um quarto, café da manhã, almoço e janta. Tudo estava dando certo. Quando comuniquei a Sílvia Helena da contratação, pude ver em seus olhos um brilho de felicidade que nunca antes tinha expressado.

Assumi meu novo cargo no dia 2 de Maio de 1973. Roberto recebeu-me de braços abertos, era grato trabalhar com ele. É necessário destacar também a calorosa recepção que tive do meu amigo e aluno Rodrigo que, como já mencionei anteriormente, era o Chefe de Compras.

A fábrica era uma empresa familiar, fundada pelo pai. Após sua morte, Alberto assumiu o comando com a ajuda de dois genros: Roberto e Nicos, Diretores de Produção e Vendas respectivamente. Ambos desempenhavam as funções em perfeita harmonia. Existia um interesse comum em manter o prestígio da empresa ganho durante a administração passada. Os produtos fabricados eram de excelente qualidade.

Meu chefe direto era Roberto, se caracterizava por não falar muito, tipo introvertido, porém comigo conversava até pelos cotovelos. Inclusive depois de jantar aparecia no Hotel Reinares para jogar xadrez. Não era dos melhores jogadores, quando podia orientava suas jogadas e posteriormente ríamos das imperícias cometidas por ambos os lados.

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Os produtos manufaturados eram principalmente pêssegos e ervilhas. Rodrigo comprava as matérias primas com meses de antecedência dos agricultores locais. Fornecia os produtos agrícolas necessários para ter uma boa colheita e por último controlava sua evolução. Viajava constantemente ao interior num furgão da empresa.

Minha responsabilidade era manter os níveis dos estoques compatíveis com a produção. Para isso precisava controlar diariamente as latas, tampas, açúcar, etiquetas e petróleo. Estes eram os elementos que sempre me causavam problemas. Comprava milhares deles e duravam poucos dias. Meu trabalho não era fácil.

Apesar de todo meu empenho, em diversas ocasiões faltou algum dos itens mencionados anteriormente, nesse caso solicitava empréstimos a outra fábrica de enlatados localizada na mesma alameda, para não parar a produção. Este tipo de relacionamento entre concorrentes era inédito. Fazia anos que ambas eram vizinhas e nunca aconteceu esta situação. Meu segredo era simples; um dos adversários dos jogos noturnos de xadrez, era o diretor dessa empresa e, durante os últimos tempos havíamos construído uma amizade que permitia realizar este tipo de favores.

Para controlar o nível do açúcar líquido, subia em cima dos reservatórios metálicos de aproximadamente dez metros de altura. Eles estavam constantemente cobertos por milhares de abelhas. Para pisar nos degraus metálicos, tinha que afastá-las suavemente para não esmagá-las. Frequentemente paravam em meu rosto, entravam pela gola da camisa e caminhavam pelas costas e pescoço, enquanto subia. Não podia fazer absolutamente nada, tinha que aguentar suas patinhas circulando pelo corpo. Ao descer tirava a roupa lentamente e liberava os insetos. Felizmente nunca fui picado por nenhuma delas, sempre acreditei que este tipo de situação servia como teste de autocontrole.

A situação no país era grave, os produtos de primeira necessidade desapareceram das prateleiras dos supermercados. Os empresários pararam de produzir milhares de produtos alimentícios, gerando um descontentamento generalizado contra o governo. As manifestações realizadas no centro de Santiago eram diárias e violentas. As greves proliferavam e todos reclamavam contra todos. Um caos. Na realidade esta falta de alimentos e produtos básicos, não me afetava diretamente, minha alimentação era proporcionada pelo hotel, os produtos de limpeza pessoal eram fornecidos por Sílvia Helena e os cigarros --- nessa época era fumante --- eram abastecidos pelos sócios do clube aéreo, que tinham mercados. Embora o ambiente fosse inóspito, minha vida não foi afetada.

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XXVIII.- Uma cidade pequena.

Depois de alguns meses trabalhando na fábrica de conservas, comprei uma moto velha marca Royal Enfield. O ano de fabricação era 1955. Pouco a pouco a recuperei até causar inveja em muitos entendidos nesse tipo de veículos. Guidão alto, pintura branca, pneus e tapeçaria novos, parecia uma moto tirada de um filme antigo. Como não tinha peças de reposição no mercado, tivemos que adaptar de automóveis. As maiorias dos consertos foram feitos no hangar do clube, pelo mecânico responsável da manutenção dos aviões. Era uma excelente pessoa e gostava de máquinas antigas. Como resultado de tudo isso, fiquei com a moto mais cobiçada de San Felipe.

Esse era o último ano de colégio de Sílvia Helena e como era lógico, começava a pensar no futuro de forma mais objetiva. Uma carreira profissional era seu sonho, mas nesse momento não decidia que profissão seguir. Ainda tinha alguns meses para tomar uma decisão. Uma das características que chamou minha atenção nessa cidade foi a falta de privacidade, todo o mundo conhecia a vida dos outros, coisa que nas grandes metrópoles não acontece. A amizade também é curtida de forma mais intensa, alguns alunos que meses atrás fizeram o curso, vinham constantemente a trocar ideias, tanto na empresa como no hotel, de forma espontânea.

Foi através destes amigos que conheci Victória. De cabelo marrom claro, longo e liso, tinha uma expressão de ingenuidade. Baixinha, de aproximadamente um metro sessenta de altura e largos quadris. Seu traseiro chamava a atenção pelas belas e generosas formas anatômicas.

Mas isso não foi o que me impressionou em Victória. Soube através de um aluno que havia perdido um filho faz dois anos atrás, quando ainda tinha dezesseis anos de idade.

---- Como uma adolescente pode ter uma experiência desse tipo? --- me perguntava.

Foi então que conheci a triste história da jovem. O primeiro namorado foi um vizinho com o qual passou a infância e adolescência. As famílias se conheciam por anos, quando tiveram a primeira relação sexual, desconheciam o que estavam fazendo, era brincadeira de adolescentes. Por esse motivo os primeiros meses de gravidez não foram notados por Victória. Ela tomou conhecimento da real situação, quando a barriga começou a crescer. Conversou com amigas mais velhas que a levaram ao médico e constataram a gestação. Tudo isto não mais absoluto sigilo. Sem saber que fazer, Victória ocultava a barriga da mãe, que notou alguma coisa diferente, mas conseguiu convencê-la que tinha engordado um pouco. Foram passando os meses até que o nascimento aconteceu no quarto da adolescente. Assustada, desesperada, sozinha, depois

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de muita luta, deu á luz uma criança do sexo masculino. A dor foi tão intensa que perdeu o sentido e assim ficou por algum tempo. Quando recobrou a consciência a criança estava morta. Com enorme pesar em companhia de uma amiga lançaram o corpo no rio Aconcágua. Desta forma trágica, terminou a primeira experiência amorosa vivenciada por Victória.

Depois de conhecer a história me senti profundamente comovido com o acontecido, me invadiu um sentimento de proteção, isto não significava que meu amor por Sílvia Helena tinha acabado, pelo contrário, estava feliz que continuasse virgem.

Depois de alguns meses de morar na cidade, curiosamente os momentos que passava junto a Sílvia Helena, eram menores que quando residia em Santiago. Durante a semana era quase impossível reunir-nos, já que os pais davam prioridade aos estudos e não permitiam que nos juntássemos.

Em algumas ocasiões, depois de dar algumas voltas de moto pelo centro da cidade, cruzava com Victória, que morava na frente do hotel. A imagem que tinha dela, era de uma pessoa triste e solitária.

Alguns fins de semana os pais de Sílvia Helena viajavam a Valparaíso para visitar familiares ou realizar trâmites, ela quase sempre os acompanhava. Numa dessas oportunidades, quando terminava de jantar, apareceu Victória que sem antes haver cruzado uma palavra sequer, me convidou para a uma festa na casa de uma amiga. Para mim foi uma grande surpresa, não sabia se devia aceitar, mas como estava sozinho sem ter nada para fazer, concordei e às oito horas da noite, estávamos dançando alegremente. Depois de vários drinques parecia que nos conhecíamos há muitos anos. Através de suas palavras compreendi que a amarga experiência estava totalmente esquecida, e decidida a retomar sua vida.

Surpreendi-me ao saber que conhecia minha vida em detalhes: meu relacionamento amoroso com Sílvia Helena, minhas atividades esportivas e o lugar onde trabalhava. Sua mãe era amiga dos diretores da fábrica, em fim, minha vida era um livro aberto. Anteriormente mencionei que este fenômeno acontece nas cidades pequenas.

É difícil explicar agora o que exatamente aconteceu, a única coisa que lembro é que a primeira relação sexual com Victória foi nessa mesma noite, no banheiro da casa da amiga. Ao acordar no dia seguinte um sentimento de culpa me embargava.

---- Como explicar a Sílvia Helena o acontecido?

Por outro lado, se não contasse, outros poderiam levar a fofoca. Estava no meio de uma situação delicada, nunca devia aceitar esse convite para dançar. Apesar

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de ter esse tipo de relacionamento com Victória, a dona do meu coração era Sílvia Helena, nunca tive nenhuma dúvida a esse respeito, mas será que ela conseguiria entender meus sentimentos? Meu mundo estava desabando. Pensava que seria uma boa desculpa argumentar que Victória estava complementando nosso relacionamento amoroso, como uma válvula de escape, na questão sexual. Descartei completamente esse argumento, era muito ruim.

Ao chegar no campo aéreo contei à Rodrigo o sucedido. Este me observava desconfiado, parecia não acreditar na minha história. Na realidade esperava palavras que tranquilizassem a terrível ansiedade que me dominava. Quando abriu a boca, foi para dizer-me:

---- Não se preocupe compadre, ninguém resiste esse traseiro --- e continuou ordenando seu paraquedas tranquilamente.

Ao chegar Sílvia Helena, nos juntamos como se nada houvesse acontecido. Ela estava feliz e saímos a passear de moto e conversar com nossos amigos na praça, tudo parecia normal, até que apareceu Victória. Nesse momento queria que a terra me tragasse. Que iria comentar na frente de todos os amigos? Pensei que não fui o suficientemente corajoso para contar a Sílvia Helena, mas na realidade nem tempo tive. Victória conversou brevemente com as conhecidas, e posteriormente sorrindo foi embora. O medo que passei nesses momentos foi maior do que o experimentado nos saltos com falha total.

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XXIX.- Começar uma nova vida.

Para Victor e Cristina, o fato de estar novamente juntos, os fez compreender o importante que isso representava nas suas vidas. Não estavam a fim de ficar novamente separados, tinham certeza que um profundo amor os unia. Depois de trocar ideias, decidiram radicar-se na cidade de La Serena. Visitaram várias propriedades até encontrar a que estavam buscando: uma linda casinha cor de rosa, com um verde jardim na frente e ainda perto da praia. Era perfeita. Quase nova. Uma sala e duas suítes, ideal para começar uma vida juntos. Ganharam um considerável desconto pelo pagamento a vista, isto ajudou para comprar móveis e eletrodomésticos. Pela primeira vez tinham um lar próprio, haviam alcançado o sonho que toda família deseja, e o mais importante, estavam juntos.

As semanas passaram rápidas e o dinheiro estava chegando ao fim. Cristina sugeriu procurar trabalho na cidade. Inicialmente Victor ficou surpreso com essas palavras, era difícil para um homem que durante toda sua vida ganhou dinheiro fácil, ter que enfrentar essa nova realidade.

---- Como trocar os hábitos de tantos anos? ---- Estaria preparado para aceitar um trabalho e ficar ganhando um salário miserável?

Era difícil tomar uma decisão. Felizmente o amor falou mais alto, e nessa semana procurou um serviço. Depois de várias entrevistas, foi aceito como segurança numa casa noturna. Irônico saber que Victor trabalharia do lado da lei. A vida tem muitos imprevistos difíceis de explicar.

Diariamente ao cair da noite, se despedia com um beijo de Cristina e marchava a cumprir suas obrigações. A experiência de bandido servia para prever situações perigosas. Sabia pela forma de caminhar, quando um sujeito carregava uma arma. Conhecia muitos bandidos que se misturavam com os clientes para roubá-los. Sempre se antecipava aos fatos. Em pouco tempo seu salário aumentou, ganhando a confiança e simpatia dos chefes e companheiros. Era um bom começo.

Apesar das coisas positivas que estavam acontecendo no trabalho, o salário não era suficiente para cobrir as necessidades básicas. Era necessário realizar outra atividade para suprir a falta de dinheiro, sem que Cristina suspeitasse.

No trabalho conheceu um colega chamado Antônio. Tinham muita afinidade e em poucas semanas cimentaram uma sólida amizade. Em várias ocasiões realizaram reuniões familiares compartilhando gratos momentos. Numa oportunidade Antônio, ao reclamar do pouco dinheiro que ganhava, propôs brincando assaltar um banco. Victor olhou para ele com profunda surpresa e perguntou se sabia alguma coisa a respeito. Antônio manifestou que uns familiares fizeram esse tipo de “serviço”. Victor ficou surpreso com essa

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revelação, o colega podia ser a pessoa indicada para o trabalho que estava pensando realizar. Sabia que não podia fazer esta operação na cidade onde morava, seria um sinal para atrair a polícia. Noutra época, isto não seria um motivo de preocupação, mas todo muda quando se tem uma residência fixa e uma mulher esperando em casa. Depois de muita conversa com Antônio, confirmou que podia contar com ele para realizar um assalto numa agência bancária. Victor nunca tinha feito esse tipo de trabalho, por um grande motivo: gostava de trabalhar sozinho, mas o tempo muda os conceitos e a realidade era outra. Havia chegado o momento de fazer um trabalho em equipe.

Durante o tempo que morou em Antofagasta, observou o movimento do Banco dessa cidade. Sabia que nesse lugar se concentrava sessenta por cento das atividades econômicas da região. Estava ciente que a segurança era precária. Com uma boa equipe de profissionais, seria alvo fácil e rentável. Depois de muito pensar e fazer uma avaliação das possibilidades para viabilizar essa ideia, conversou com Antônio para escutar uma segunda opinião. Ele que estava endividado até os sapatos, aceitou de imediato, dando total apoio ao plano apresentado por Victor. Teriam que viajar a Antofagasta e verificar se as condições observadas alguns meses atrás, se mantinham da mesma forma. Contaram para as esposas que a empresa onde trabalhavam os mandou fazer treinamento profissional. Ambas as mulheres lhes desejaram uma boa viagem.

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XXX.- O Primeiro Campeonato de Paraquedismo Esportivo.

Por esses dias foi recebido um convite para participar do primeiro campeonato de paraquedismo que se realizaria no Aeródromo Militar de Colina, base dos “Boinas Negras”.

A competição consistia em acertar um círculo de dez centímetros denominado “diana”, o qual é colocado no centro do poço de aterrissagem. O esportista que fizesse a menor somatória de centímetros em dez saltos ganhava o campeonato.

Parece fácil, só que nessa época os paraquedas eram equipamentos velhos, dados de baixa pelo exército, com uma condução lenta e pouco precisa. Para conseguir uma precária condução, eram retirados dois segmentos da cúpula, que geravam avanço e produziam giros. Esses eram os elementos “técnicos”. Sabíamos que no mercado internacional existiam equipamentos com recursos avançados e, principalmente com uma aerodinâmica fabulosa. Para nós era ainda um sonho.

Foram selecionados os membros que participariam do campeonato representando o Clube Aéreo de San Felipe: Alfredo, Rodrigo, Victor Hugo, Miguel, Cláudio, César e eu. Mandamos fazer macacões brancos, e boinas da mesma cor. Com muito entusiasmo nos preparamos para participar desse evento. As semanas que antecediam ao campeonato foram dedicadas à prática de precisão. Tudo estava perfeito, até que uma semana antes do inicio, recebemos uma ligação dos “Boinas Negras” para saltar naquele fim de semana em Colina, e avaliar o novo poço de aterrissagem.

Na primeira hora do domingo decolamos de San Felipe equipados para saltar antes de aterrissar no aeródromo de Colina. Para mim foi um péssimo negócio. O poço não estava totalmente terminado, tinha um desnível de vinte centímetros em toda a beira. E foi nesses vinte centímetros onde meu glúteo esquerdo bateu com força ao aterrissar. Uma dor intensa paralisou a perna, não podia caminhar. Fiquei o dia todo sentado numa cadeira de praia, observando como o resto saltava. Até hoje tenho sequelas dessa desagradável experiência.

Para compensar, o destino me deu a companhia de duas amigas de Victor Hugo e Miguel, que ficaram comigo, e de tarde me levaram a San Felipe. Na segunda-feira fui ao médico, meu glúteo estava inflamado e caminhava com grande dificuldade. Depois de fazer várias radiografias e constatar que nada grave tinha acontecido, ganhei um repouso médico de quinze dias.

Victória foi a pessoa que cuidou de mim a semana completa. Atendia-me como se fosse uma criança. Preocupava-se com cada detalhe, fazendo de meu repouso uma delícia. De vez em quando, Sílvia Helena ligava perguntando ao

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pessoal do hotel como estava minha saúde. Seus pais preocupados com a imagem da família, não permitiam que frequentasse o hotel.

Passei a semana em cama, mas quando chegou o sábado fui um dos primeiros membros da equipe pronto para viajar a Colina. Ainda tinha algumas sequelas originadas pelo golpe da semana anterior, mas isso não apagava o entusiasmo que me dominava por participar do evento.

Fomos orientados para colocar os equipamentos numa barraca designada para nossa equipe. Bandeiras flamejando, faixas publicitárias dos patrocinadores, música através dos altos falantes alegrava o ambiente da base aérea de Colina. O roncar dos aviões decolando, não parava nem um minuto, era um espetáculo incrível.

O poço que causou meu acidente estava consertado e, não oferecia risco aos participantes. Foi uma grande alegria encontrar meu instrutor Bambi, Patrício e todos aqueles amigos que tinha convivido nos “Diablos Rojos”. Fotografias eram tiradas por simpatizantes e profissionais para posteriormente comercializá-las.

O tempo também colaborou com um lindo dia quente e ensolarado, para ninguém botar defeito. Os tons brancos, das poucas nuvens que flutuavam no céu essa manhã, brilhavam com força.

Os participantes foram sorteados para iniciar as sequências de saltos. Minha primeira participação foi com um grupo de militares que não pararam de contar piadas durante todo o voo, não consegui acertar a “Diana”, mas em compensação ri bastante.

Depois dos primeiros saltos, não conseguia movimentar as pernas. Os sintomas da semana anterior se fizeram presentes com muita força. A dor era intensa e constante. Apesar de receber atenção médica no Posto de Primeiros Socorros, instalado no local, tive que suspender a participação por não poder sequer caminhar até o avião. Não tinha condição física para continuar, vale mencionar também que estava cansado de mostrar a bunda para as enfermeiras do plantão.

Naturalmente fiquei frustrado por não ter participado em melhores condições, mas internamente sabia que no futuro essas experiências dolorosas estariam cinzelando minha personalidade para enfrentar dias realmente difíceis. Fiquei outra semana na cama sem poder movimentar-me. Em contrapartida, as enfermeiras voluntárias me brindaram os cuidados necessários para conseguir uma rápida melhora. Que campeonato!

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XXXI.- Um paraquedista chamado Hernán Pérez.

Era um fim de semana qualquer, tínhamos viajado nessa ocasião a Melipilla para realizar um mini campeonato com os “Diablos Rojos”. Estávamos de volta onde tudo começou. Um dos novos alunos era um jovem chamado Hernán Pérez Figueroa, piloto da linha aérea comercial chilena Lan-Chile. Tinha comprado um equipamento no estrangeiro e estava louco para experimentar o novo brinquedo. Durante a tarde programou um salto de altura, para realizar “trabalho relativo” com um colega e, simultaneamente testar o equipamento. Sua esposa, que o acompanhava normalmente, estava na sede dos “Diablos Rojos”, observando e comentando os saltos com as amigas.

Hernán saiu do avião com seu companheiro e conseguiram realizar um “enganche”, depois de alguns segundos de queda livre, se separaram para realizar a abertura. O colega abriu sem problema, mas a cúpula de Hernán se enredou numa das pernas. Tentou solucionar o problema puxando um dos extremos, apertando mais ainda o nó. Puxou a reserva que por sua vez, ficou presa na cúpula principal, incrementando o enredo, agora os dois paraquedas estavam entrelaçados e Hernán continuava caindo a mais de cem quilômetros por hora.

Nesta vertiginosa velocidade, a concentração do paraquedista está focada na solução do problema, perdendo a relação tempo e espaço. Quando se toma consciência do tempo transcorrido, e se observa a proximidade do chão, pode-se perder o autocontrole e entrar em desespero.

---- Falha! --- gritou alguém colocando-nos sobreaviso.

Observamos um ponto no céu seguido por uma borbulha branca. Nesse momento paramos de respirar e ansiosos esperávamos que o paraquedas de reserva entrasse em ação, mas nada acontecia. Hernán continuava caindo e, agora já conseguíamos ver claramente sua imagem lutando para solucionar o problema. Faltando alguns segundos para o impacto notamos que a queda teve um leve deslocamento na horizontal, não sei dizer se o objetivo de Hernán foi procurar algumas árvores para diminuir o impacto ou simplesmente algum elemento fez trocar a trajetória, seja qual fosse o motivo não mudou o resultado, ele caiu no final de um campo recentemente arado. O estrondo do impacto foi tão forte que pareceu atravessar nossos corpos, a poeira alcançou dez metros de altura e o buraco no chão foi de aproximadamente cinquenta centímetros.

O pessoal tratou evitar que a esposa chegasse até o lugar do acidente, mas foi em vão, ela encontrou o que restou de Hernán, uma visão comovedora. Atualmente o aeródromo de Melipilla leva seu nome: Hernán Pérez Figueroa.

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XXXII.- A ambição mata

Oscar desistiu de procurar Victor em Viña del Mar e retornou a cidade de Arica. A frustração o embargava, a presa havia escapado uma vez mais, todos os esforços foram água abaixo. Era difícil compreender como um sujeito com um claro padrão de comportamento, pudesse mudar de um momento para outro. Na longa carreira profissional sabia que cada criminoso repete inúmeras vezes a forma de atuar, é como uma impressão digital. Victor era a exceção da regra. Oscar desconhecia que o sentimento despertado por Cristina, tinha mudado quase totalmente seus costumes. Mas a caça não estava terminada ainda, Oscar permaneceria atento a qualquer erro cometido pelo fugitivo.

Por sua parte Victor e Antônio chegaram a Antofagasta. Visitaram um ex-presidiário que conhecia todas as prisões do país. Frio e de olhos penetrantes, ficou contente de recebê-los. A visita não era social, Victor apresentou o plano para efetuar o assalto ao Banco. Este foi discutido e finalmente aprovado pelo ex-convicto. Faltava reunir mais quatro integrantes e as armas. O responsável para fazer estes últimos ajustes foi o anfitrião.

Depois de várias reuniões, definiram as responsabilidades de cada membro. Esperaram até a sexta-feira, sabendo que esse dia se concentrava uma maior quantidade de dinheiro, devido ao pagamento semanal dos salários dos trabalhadores.

Dois carros roubados faziam parte da operação. O lugar da reunião depois do assalto era uma mina abandonada nos arredores de Antofagasta. Nesse lugar repartiriam o dinheiro e cada qual ficava livre para fazer o que quisesse. Não existiam normas após o roubo. Um requisito importante era ignorar o paradeiro dos outros membros, medida de segurança caso algum deles fosse capturado. O grupo era formado por sete pessoas, dois motoristas que ficariam esperando nos respectivos carros com o motor ligado, enquanto os outros cinco tomavam conta do Banco. As roupas usadas eram macacões e capacetes de segurança, com o logo de uma empresa de consertos elétricos, desta forma as armas seriam transportadas nas caixas das ferramentas.

No dia marcado para o assalto permaneceram nos carros esperando a abertura do Banco, quando finalmente isto aconteceu, se encaminharam ao interior do estabelecimento. Entraram sem despertar suspeitas. Victor se instalou detrás das caixas de atendimento, impedindo o acionamento dos alarmes. Outros dois membros desarmaram e imobilizaram os guardas, Antônio subiu em cima do balcão anunciando o assalto, mandaram ao pessoal deitar-se no chão, com as mãos cobrindo os olhos. Gritavam que qualquer movimento suspeito seria castigado com a morte.

Victor apanhou o dinheiro das caixas e posteriormente ordenou ao gerente abrir a caixa forte onde estava a maior quantia. O homem apavorado obedeceu e

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entraram no interior da agência. Depois de alguns minutos saiu carregando várias sacolas.

O trabalho estava terminado. Correram aos carros e conforme o planejado o último a sair seria Antônio, para dar cobertura. Um dos guardas tinha uma arma escondida na perna, com a qual acertou repetidas vezes as costas de Antônio. Victor escutou os tiros e ficou espantado ao ver cair o amigo na porta do Banco. Uma mancha vermelha começou a crescer arredor do corpo. Em louca carreira entrou no estabelecimento, e sem pronunciar uma palavra, arrebentou a tiros a cabeça do guarda. Posteriormente pegou o corpo de Antônio para levá-lo ao carro. Nesse momento recebeu um tiro numa perna que o fez desistir. Um policial que se encontrava nas imediações, chegou atirando. Victor sacou sua pistola e disparou várias vezes em direção do policial. Os projéteis não o acertaram, mas lhe deram tempo para entrar num carro, e fugir em alta velocidade.

Durante o caminho observou a magnitude da ferida. Felizmente era só um raspão que sangrava profusamente, a sorte ainda estava de seu lado. Depois de alguns minutos de uma vertiginosa corrida, entraram num caminho lateral, pelo qual chegaram à mina abandonada.

O plano deu certo, com exceção da morte de Antônio. O dinheiro foi repartido em sete partes iguais, cada um recebeu mais de setenta mil dólares. A parte de Antônio seria entregue a sua esposa, era a única forma de compensar sua morte. Os motoristas deixaram a cada integrante em lugares diferentes. Cada um deles procuraria o refúgio adequado.

Ao cair a tarde, parado na beira da estrada, Victor esperava um veículo que o levasse de volta à La Serena. Pendurado nas costas, um velho saco de farinha transportava mais de cento quarenta mil dólares.

A morte de Antônio comprometia seu futuro. Ao ser identificado o corpo do amigo, seria fácil relacioná-los pelo fato de terem trabalhado na mesma empresa. De novo a polícia estaria pisando seus calcanhares, e o pior de tudo, não poderia continuar morando com Cristina. Seus sonhos estavam novamente destruídos.

Ao chegar a La Serena encaminhou-se rapidamente para sua casa, sabia que em poucas horas a polícia estaria batendo na sua porta, tinha que aproveitar o pouco tempo que restava.

Ao saber do acontecido Cristina não parava de chorar. Sentia sua confiança traída por Victor, sempre acreditou que estavam começando uma vida descente. Era difícil assimilar a morte de Antônio, tudo estava muito confuso. A pior notícia era que ficaria novamente sozinha, demasiadas coisas para raciocinar corretamente.

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Victor colocou os pertences numa pequena mala, entregou o dinheiro de Antônio, deixou uma quantia considerável para enfrentar os gastos da casa, e saiu dizendo que entraria em contato numa semana.

Essa noite Cristina não conseguiu dormir, de um momento para outro sua vida foi novamente alterada. Estava sozinha e assustada. De alguma forma se sentia responsável pela morte de Antônio. Ao chegar a madrugada ainda não sabia como contar para a amiga. O café da manhã foi interrompido pelo telefone, era a esposa de Antônio. Ela foi avisada pela polícia do acontecido. Apesar do terrível impacto a voz soava tranquila e resignada. Estava ávida por conhecer os detalhes. Cristina prometeu visitá-la durante a manhã. A dor da amiga diminuía seus próprios problemas. Pelo menos Victor se encontrava vivo e de alguma forma, logo voltaria a abraçá-lo e beijá-lo. A esposa de Antônio não podia contar nem sequer com essa possibilidade. Durante a manhã se encontraram e Cristina relatou os trágicos fatos que terminaram com a vida de Antônio, e entregou-lhe o dinheiro.

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XXXIII.- Uma empresa de família

Conforme passava o tempo, me integrava com os funcionários e chefes da empresa, formando um time unido e produtivo, onde os laços de amizade contribuíam para que tudo desse certo.

O escritório onde funcionava a administração era uma casa de adobe, construção típica de San Felipe. Ela foi adaptada às necessidades comerciais da empresa. Duas salas localizadas na frente da residência eram os gabinetes de Roberto e Alberto, divididas por um corredor de entrada que terminava num grande pátio interno. Nesse lugar onde trabalhavam os funcionários administrativos, foi instalado um escritório para mim. Nunca gostei de ficar no meio de tanta gente, faltava privacidade, para ser sincero não me adaptei nesse ambiente de trabalho.

Ao manifestar meu desagrado me propuseram compartilhar a sala de Rodrigo. Era um quarto abandonado na parte posterior da residência, limitando a administração dos galpões da fábrica, servindo também para guardar materiais em desuso. Pedaços de adobe pendurados nas paredes, sol filtrando-se pelos buracos das pranchas de zinco instaladas no teto, débeis lâmpadas amarelas iluminando o ambiente eram as condições de meu novo escritório. Aceitei pensando que em algum momento poderia conversar com Rodrigo temas relacionados com paraquedismo.

Mesmo assim era difícil permanecer num local tão deprimente. Estava acostumado aos escritórios da Corporação, onde o ambiente de trabalho era de primeira classe e sumamente limpo. No passou muito tempo e solicitei ao Roberto materiais para realizar algumas melhorias. Mandei trocar as pranchas de zinco, comprei vigas de madeira para instalar um teto falso com pranchas de Isopor, o que proporcionou um aspecto de limpeza além de isolar o ambiente. Com papel decorativo cobri as paredes de adobe e instalei luminárias com tubos fluorescentes. Estes elementos deram um toque de escritório moderno e limpo. O lixo acumulado por séculos nos cantos da habitação, foi para a rua. Com o pessoal da limpeza raspamos e enceramos o piso. Ficou uma maravilha. Ninguém pensaria que essa sala era anteriormente parque de diversão de ratos e insetos. Fizemos um bom trabalho em beneficio próprio, e da empresa que ganhou uma nova área de trabalho. Para terminar instalei um ramal telefônico. É importante destacar que todo o trabalho foi feito por nós, o custo dos materiais foi insignificante.

Nessa época Alberto comprou um carro Fiat 125, um verdadeiro aviãozinho. Cada vez que vencia uma revisão técnica, me solicitava levá-lo à concessionária localizada na cidade de Los Andes. Rodrigo me acompanhava num veículo azul da empresa, para trazer-me de volta. Ao sair da cidade empurrava o furgão para ir mais rápido. Meu principal problema era a precária visibilidade, só conseguia ver a estrada através de duas pequenas janelas traseiras, mas isso não

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importava, a irresponsabilidade era tanta que em algumas ocasiões ultrapassávamos os cento cinquenta quilômetros por hora.

Numa oportunidade a polícia realizava uma blitz. Observei demasiado tarde os sinais de Rodrigo para terminar com a brincadeira, e a polícia nos deteve na beira da estrada. Sem perceber que o Fiat empurrava o furgão de Rodrigo, me permitiram continuar. Estacionei alguns metros na frente e, quando estavam fazendo o boletim da multa, expliquei para os policiais que esse veículo não tinha motor para alcançar a velocidade constatada, que era de cento e dez quilômetros por hora. Nessa época os controles eram feitos na base do cálculo entre dois pontos, não existiam aparelhos eletrônicos. Eles ficaram na dúvida, pensaram que o cálculo foi mal feito e nos liberaram.

Noutra oportunidade decidimos participar de uma competição de botes realizada anualmente no rio Aconcagua. A largada era em Los Andes e a chegada em San Felipe. Fizemos uma pequena embarcação que flutuava graças a quatro pneus atados na parte inferior, de uma pequena plataforma de madeira. Quando chegou o momento de botá-la na água, a balsa não suportou o peso de ambos e por sorteio, ganhei o direito de conduzi-la. Depois de vários minutos a baixa temperatura deixou minhas extremidades inferiores paralisadas. Finalmente um redemoinho virou a balsa arremessando-me às turbulentas águas do Aconcagua. A cabeça bateu numa pedra com força, felizmente usava o capacete de salto que ficou rachado. Aldeãos me tiraram do rio porque não conseguia caminhar. Esta aventura foi, sem dúvida, outro monumento à irresponsabilidade humana.

Cada noite ao voltar ao hotel, Victória esperava por mim, era agradável conversar sobre os acontecimentos do dia e ter relações íntimas. Dias cheios de novas emoções.

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XXXIV.- Uma corrida sem fim

Os retratos falados dos assaltantes do Banco de Antofagasta foram enviados a todos os distritos policiais do país. O detetive Oscar encontrava-se no escritório quando lhe foram entregues os cartazes. Depois de observá-los detidamente, conseguiu reconhecer três dos bandidos, entre eles Victor. Ficou surpreso por dois motivos: saber que se encontrava no norte do país e pelo fato de trabalhar em grupo.

Ao investigar os antecedentes de Antônio, soube que trabalhavam juntos em La Serena. Esse mesmo dia viajou a essa cidade para interrogar à esposa, e conhecer que tipo de vínculo existia com Victor. Tentou contatar Cristina, mas foi impossível encontrá-la, suspeitou que fugissem juntos. Depois de conhecer os fatos, conseguiu compreender os motivos que mudaram os hábitos de Victor: foram sem dúvida os frustrados desejos de começar uma vida decente. Bandido é sempre bandido, pensou Oscar.

Victor, entretanto permanecia hospedado em Santiago num hotel de terceira categoria, perto da Estação Central. Os telejornais destacavam o roubo de Antofagasta. Os retratos falados dos integrantes da quadrilha eram apresentados em âmbito nacional, inclusive o seu, que tinha o maior destaque pelos crimes realizados nos últimos tempos. Com essa publicidade, teria que procurar um lugar seguro para esconder-se e esperar que a poeira baixasse, mas não conseguia encontrar resposta para essa interrogante. Pensou em viajar a uma pequena cidade do interior, e restabelecer aquelas ideais destruídas pela ambição: formar um lar decente com seu amor Cristina, era seu maior anseio, estava cansado de ser perseguido pela lei.

No dia seguinte de manhã, usando toca de lã, óculos escuros e um casaco com gola alta, para não ser reconhecido, viajou a San Felipe. Sabia que nessa pequena cidade poderia encontrar um serviço e passar despercebido. Só precisava uma oportunidade para provar a si mesmo, que seria capaz de iniciar uma nova vida. Seu amor por Cristina era mais forte que qualquer coisa.

Ao chegar a San Felipe ficou gratamente surpreso ao conhecer a tranquila cidade selecionada para seu exílio. Pequena e altamente arborizada era a característica do novo lar. Ao recorrê-la observou uma série de construções de princípios de século, que lembrou La Serena. Todas as cidades chilenas possuem características similares que as une de forma muito especial, pensou.

Ao chegar à praça principal, consultou aos taxistas qual seria o melhor lugar para hospedar-se, lhe foi recomendado o Hotel Reinares.

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XXXV.- Trabalho noturno.

Os problemas políticos continuavam intensificando-se em todo o país. O sindicato dos caminhoneiros se somou à greve nacional, ficando o cinquenta por cento do território chileno totalmente parado. Os simpatizantes de Salvador Allende faziam manifestações apoiando ao governo, e os adversários chamavam à insubordinação, todos reclamavam por alguma coisa, o país passava por uma etapa crítica.

Empresas privadas eram invadidas por membros da extrema esquerda, para acelerar as estatizações. Na empresa onde trabalhava, prevendo este tipo de ação, organizaram uma brigada noturna para cuidar as instalações. As pessoas de confiança que comandaram este grupo foram Rodrigo e eu. Recebemos várias armas, entre as quais se destacava uma pistola alemã marca Luger, que passou a ser minha companheira dia e noite.

Durante a jornada noturna, fazíamos nossas responsabilidades, pois a empresa continuava produzindo de forma normal. Apesar da pressão vivenciada durante as horas de vigília, nunca perdemos o sentido do humor e frequentemente brincávamos dessas novas experiências com Rodrigo.

O fato de comandar esse grupo de pessoas não significava que estávamos simpatizando com alguma ideia política, era a forma de retribuir a amizade e confiança depositada por Alberto e família.

Cada manhã ao retornar ao hotel para dormir, encontrava Victória com um sorriso malicioso no rosto. Relatava-me suas atividades do dia anterior, e fazíamos um relacionamento íntimo matutino. Ficava comigo um bom tempo, tanto que em várias ocasiões tive que assinar justificativa para ser apresentado na portaria da escola.

Quando jogávamos xadrez com Roberto no hotel Reinares, um hóspede nos consultou se podia observar, aceitamos e posteriormente o convidamos para jogar, que ideia ruim! Nessa primeira oportunidade nos ganhou a ambos. A partir desse momento fez parte de nosso pequeno clube.

Numa oportunidade quando jantávamos, me contou que era do norte, seu nome era Victor e estava procurando trabalho. Conversei com Roberto e foi contratado para nos ajudar a zelar a empresa durante a noite. Victor ficou feliz.

Amanhecia quando voltávamos para o hotel, dois indivíduos nos interceptaram com facas anunciando um assalto. Fiquei paralisado, era a primeira vez que passava por uma experiência desse tipo. Victor me afastou dizendo:

---- Deixa que eu resolvo --- foram suas palavras.

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Os assaltantes o rodearam ameaçando-o e gritando palavrões. De entre suas roupas ele também tirou uma arma branca, mas isto não fez desistir os adversários, pelo contrario lançaram várias estocadas. Ele não retrocedeu, atravessou-se entre eles, cortando o braço de um, e chutando ao outro entre as pernas. Ambos ficaram de joelhos no chão. Victor guardou a arma e me convidou para continuar o percurso.

Depois de alguns minutos, decidiu contar a verdade, me disse que havia aprendido a defender-se muito jovem, quando morava numa casa de prostituição, onde sua mãe foi escravizada por muitos anos e posteriormente morta. A partir desse momento começou a relatar-me sua vida. Durante as noites que passamos juntos cuidando a empresa, conheci em detalhe as aventuras e o romance vivenciado com Cristina. Parecia um filme quando Victor relatava suas histórias. Ele não precisava trabalhar, tinha dinheiro suficiente para subsistir por vários anos no Hotel Reinares, mas não podia despertar suspeita, e um trabalho o camuflava muito bem. Nesse momento pensei que algum dia escreveria um livro com as aventuras de Victor.

Passadas algumas semanas comprou um sitio com videiras tipo exportação. Era o momento para iniciar uma atividade que lhe daria suporte econômico e começar uma nova vida.

Um dia na hora de almoço, me apresentou uma linda moça chamada Cristina. Fiquei emocionado ao saber que novamente estavam juntos, e a partir de agora, começariam uma vida longe da delinquência. Tinha tudo o necessário para dar certo, daqui em diante dependia somente deles.

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XXXVI.- 11 de Setembro de 1973.

Ao chegar no hotel sempre escutava as notícias antes de dormir, esse dia não foi diferente, só que a transmissão foi interrompida pela Canção Nacional, pensei que era uma das tantas rádios que rompia as transmissões normais para difundir notícias contra o governo, mas esta vez era diferente, anunciavam que uma junta militar estava assumindo o governo, era 11 de setembro de 1973.

Vesti-me rapidamente e corri até a empresa Encontrei o pessoal grudado nos rádios querendo conhecer detalhes do que estava acontecendo. Ao longo do dia soubemos que efetivamente uma junta militar tinha tomado o poder e que o presidente estava morto. Era o término do governo socialista de Salvador Allende, e começava um capítulo obscuro da história do Chile.

Permanecemos na empresa, caso precisassem de nós. Observamos um grande movimento de tropas deslocando-se para Santiago. Durante a tarde apareceram militares solicitando uma relação dos funcionários da empresa, e avisando que seria implantado um toque de recolher a partir das quatro da tarde. Retornei ao hotel sem saber que o destino me reservava uma surpresa muito desagradável.

Durante a semana seguinte ao golpe militar, as invasões, prisões e torturas, era coisa de todos os dias. Santiago vivia um ambiente de guerra. A televisão mostrou pela primeira vez, o Palácio de La Moneda (Casa de Governo) sendo bombardeado pelos aviões da Força Aérea. Soubemos também da morte de alguns jornalistas durante as filmagens para os telejornais.

Em San Felipe tudo era relativamente normal, não tínhamos esse ambiente de enfrentamento e nada fazia pensar que os militares atacariam civis. Por razões de segurança, todas as atividades aéreas foram suspensas. Depois da primeira semana os voos ficaram liberados.

Naqueles dias apareceu de madrugada Rodrigo e Roberto, para dar-me uma desagradável notícia: os militares queriam “conversar” comigo. As pessoas que me conheciam sabiam que nunca tive contato com extremistas ou coisa similar, mas era difícil explicar inocência a pessoas que partem batendo, torturando e muitas vezes matando. Uma suspeita, um comentário mal intencionado colocava em perigo a integridade de qualquer pessoa, independente de ter ou não, ideias de esquerda.

Concordamos que o mais adequado era esconder-me até encontrar uma solução inteligente. Levaram-me ao clube aéreo, onde fiquei com meu amigo mecânico. Este me escondeu na cauda de um avião Cessna. Para cumprir esse objetivo, tirou o banco traseiro, e fiquei oculto na fuselagem da aeronave.

Não passou muito tempo e chegaram vários veículos do exército com militares fortemente armados, perguntando por mim. A resposta foi unânime: ninguém me

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havia visto. Nunca senti tanto medo, nesse momento compreendi que minha vida não valia nada. Até hoje não sei exatamente quais foram os motivos que causaram aquele deslocamento de material e tropas. O fato de ser ex-funcionário da Corporação da Reforma Agrária pode ter sido o motivo, mesmo assim não justificava montar aquele show.

Horas mais tarde apareceu Rodrigo com meu instrutor de voo, Sr. Maurício, eles propuseram sair do país. A única forma de fazê-lo era por ar. Estavam dispostos a realizar um voo para que saltasse na Argentina, era o modo mais rápido e seguro para continuar vivo.

Concordei com eles e em poucos minutos, estava equipado e voando rumo a Mendoza --- cidade limítrofe com a Cordilheira dos Andes que divide Chile e Argentina --- apesar da tensão do momento, e do risco que eles estavam passando por minha culpa, não faltaram as piadas por parte de Rodrigo. Falava que podia organizar um clube de paraquedismo na Argentina e posteriormente realizar um campeonato, assim como uma série de besteiras que me fizeram rir constantemente.

Passamos a cordilheira e pude ver os verdes campos que circundavam Uspallata, cidade vizinha de Mendoza, era o momento de abandonar meus amigos. Um afetuoso abraço de despedida, com olhos marejados pelas lágrimas nascidas da profunda amizade que nos unia, foi nosso último contato. Fiquei parado na roda por alguns segundos e, antes de abandonar a aeronave, fiz sinal de positivo com o polegar apontando o céu.

Era um lindo dia de sol, vento suave, especial para saltar, o avião deu algumas voltas a meu redor antes de ir embora. Pude observar meus amigos abanando ainda emocionados. Enquanto descia observei a branca cordilheira e o céu azul, muitos anos passariam antes de voltar ao Chile, mas as lembranças dos amigos, amores e acontecimentos vivenciados os últimos anos, permaneceram por sempre vivos no meu coração.

FIM

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Sobre o autor:

Julio A. Sinara, nascido em Santiago de Chile, escritor, atualmente mora no litoral do Estado do Rio Grande do Sul. Durante o ano de 2005 publicou uma autobiografia titulada “Memórias de um paraquedista”, a qual foi lançada na Feira do Livro na cidade de Porto Alegre.

No ano de 2008 lançou a segunda obra “O Predador” na Bienal de São Paulo.

Entre os romances digitais encontram-se “1000 vidas”, “O Código Genético de um Assassino”, “Arturo”, “O Pergaminho”, “Vila das Sombras”, “Um conto de meia noite”, ”Lagoa dos Barros” e “Sol de Outono” Visite nossas lojas no seguinte endereço:

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