memÓria social e criaÇÃo - uma abordagem para alÉm do modelo da representaÇÃo.pdf

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH Programa de Pós-Graduação em Memória Social MEMÓRIA SOCIAL E CRIAÇÃO: UMA ABORDAGEM PARA ALÉM DO MODELO DA REPRESENTAÇÃO. Danilo Augusto Santos Melo. Orientador: Prof. Dr. Miguel Angel de Barrenechea. Linha de Pesquisa: Memória, Subjetividade e Criação. Rio de Janeiro, fevereiro de 2010.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO UNIRIO

    Centro de Cincias Humanas e Sociais CCH Programa de Ps-Graduao em Memria Social

    MEMRIA SOCIAL E CRIAO: UMA ABORDAGEM PARA ALM DO MODELO

    DA REPRESENTAO.

    Danilo Augusto Santos Melo.

    Orientador: Prof. Dr. Miguel Angel de Barrenechea. Linha de Pesquisa: Memria, Subjetividade e Criao.

    Rio de Janeiro, fevereiro de 2010.

  • DANILO AUGUSTO SANTOS MELO

    MEMRIA SOCIAL E CRIAO: UMA ABORDAGEM PARA ALM DO MODELO

    DA REPRESENTAO.

    Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Memria Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) como parte dos requisitos necessrios para obteno do ttulo de doutor.

    Orientador: Prof. Dr. Miguel Angel de Barrenechea

    Rio de Janeiro, fevereiro de 2010.

  • DANILO AUGUSTO SANTOS MELO

    MEMRIA SOCIAL E CRIAO: UMA ABORDAGEM PARA ALM DO MODELO

    DA REPRESENTAO.

    Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Memria Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) como parte dos requisitos necessrios para obteno do ttulo de doutor.

    Aprovada em:

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________

    Prof. Dr. Miguel Angel de Barrenechea (orientador)

    _______________________________________

    Profa. Dra. J Gondar (UNIRIO)

    _______________________________________

    Profa. Dra. Anna Hartmann Cavalcanti (UNIRIO)

    _______________________________________

    Prof. Dr. Auterives Maciel Jnior (PUC/RJ)

    _______________________________________

    Prof. Dr. Walter Kohan (UERJ)

    Rio de Janeiro, fevereiro de 2010.

  • Melo, Danilo Augusto Santos. M528 Memria social e criao: uma abordagem para alm do modelo da repre- sentao / Danilo Augusto Santos Melo, 2010. 236f.

    Orientador: Miguel Angel de Barrenechea. Tese (Doutorado em Memria Social) Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

    1. Halbwachs, Maurice, 1877-1945. 2. Bergson, Henri, 1859-1941. 3. Tarde, Gabriel, 1843-1904. 4. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 5. Deleuze, Gilles, 1925-1995. 6. Guattari, Flix, 1930-1992. 7. Criao. 8. Memria social. I. Barrenechea, Miguel Angel de. II. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003-). Centro de Cincias Humanas e Sociais. Programa de Ps-Graduao em Memria Social. III. Ttulo.

    CDD 302

  • Dedico este trabalho a Joel Teles de Brito, cuja vida o exemplo de que o impossvel apenas uma porta a caminho da superao e da mudana.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Miguel Angel de Barrenechea, pela amizade, pela orientao dedicada e precisa, e pela aposta em minhas derivas filosficas no decorrer da elaborao desta tese.

    Ao Camille Dumouli, pelas crticas, comentrios e sugestes no momento crucial de definio do projeto que resultou nesta tese, e por proporcionar as condies de realizao do sejour em Paris, cuja experincia foi extremamente enriquecedora para mim e para o meu percurso acadmico.

    J Gondar, pela generosidade de acolhimento no programa de memria social, cujo encontro e as inmeras trocas me incentivaram, quando do momento da qualificao, a expandir o projeto de pesquisa do qual resultou esta tese.

    Ao Auterives Maciel, pela amizade e pelas inmeras contribuies a este trabalho que se fizeram no somente no exame de qualificao, mas tambm pelos diversos esclarecimentos nos momentos em que a clareza conceitual se obscurecia para mim no percurso de elaborao da tese.

    Anna Hartmann, por ter acompanhado desde o princpio a elaborao deste trabalho e pelas contribuies e incentivos quando do exame de qualificao, e sobretudo pela disposio e ajuda incansvel no processo de pedido da bolsa sanduche para a Frana.

    Ao Walter Kohan, pelas questes colocadas a este trabalho quando da banca de defesa, me fazendo refletir e perceber de um outro modo a abrangncia e importncia dos temas abordados nesta tese.

    minha me, pelo afeto sempre presente, mesmo quando tnhamos um oceano nos separando.

    minha famlia carioca, Sandra Morethe, Joel Teles, Joo Vitor e Paulo Henrique.

    Aos amigos Chico, Bruna e Thiago, que me acompanharam no momento final e decisivo desta pesquisa.

    Ao Ricardo Pimenta e Janana Dutra, pela amizade valiosa e pelo refgio em Praia Seca, onde parte deste trabalho foi gerado.

    Wanessa Canellas e Paulo Cordeiro, pela acolhida generosa e carinhosa em meu retorno desterritorializado.

    s amizades construdas no doutorado sanduche em Paris, em especial Cristiano Sales, Gustavo Ferraz, Jane Freitas, Rodrigo Ielpo, Irene Plattek, Lucas Melgao, Mariana Barbosa e Camilo Venturi.

    Bianca Savietto, pela amizade de toda hora e especialmente pelas leituras e sugestes de partes deste trabalho.

    CAPES, pelo apoio financeiro para a realizao desta pesquisa no Brasil e na Frana.

    E a todos aqueles que contriburam de alguma maneira para a produo desta tese.

  • RESUMO

    MELO, Danilo Augusto S. Memria social e criao: uma abordagem para alm do modelo da representao. Orientador: Miguel Angel de Barrenechea. Rio de Janeiro: UNIRIO/PPGMS; CAPES, 2010. Tese (Doutorado em Memria Social).

    Esta tese tem por objetivo trazer para o campo de estudos em memria social o problema da criao, uma vez que esta problemtica no abordada pelo autor central e fundador desta disciplina, o socilogo Maurice Halbwachs. Assim, mostramos que o ponto de vista em que se apia sua teoria, fundado sobre o modelo da representao, no permite a compreenso dos processos de criao que so imanentes memria social. Isso porque a perspectiva de Halbwachs, derivada da sociologia de mile Durkheim, compreende a memria a partir de quadros estticos e no considera os processos pelos quais estes se constituem. Com base na apresentao desta perspectiva, nossa tese pretende, inicialmente, pr em relevo os limites da abordagem de Halbwachs e Durkheim para pensar os processos de criao que se articulam com a memria. Em seguida, passamos ento ao desenvolvimento de uma concepo da memria social que nos possibilita compreender os processos por meio dos quais ela se constitui. A partir da, nos dirigimos a uma elaborao conceitual que ultrapassa a simples compreenso dos processos de criao da memria, visando pensar como a prpria memria social constitui-se como vetor de criao e transformao sociais. Nossa pesquisa, enfim, pautada na filosofia da diferena, segue um percurso que vai da criao da memria social memria social como veculo de criao e transformao.

    Os autores que escolhemos tm em comum a caracterstica de pensar os processos de criao sob uma tica centrada na noo de diferena, e assim compartilham um ponto de vista que est para alm do modelo da representao. Inicialmente, com Henri Bergson, compreendemos a memria e o tempo em sua dimenso ontolgica a fim de apreendermos os dados da realidade a partir dos movimentos que constituem seu devir. Com Friedrich Nietzsche, questionamos o modelo transcendente do pensamento de Durkheim e Halbwachs, apresentando sua concepo de realidade como campo de foras imanente sempre em variao e criao. Com a microssociologia de Gabriel Tarde a memria social pensada, em contraposio s elaboraes de Durkheim, como decorrente dos movimentos de imitao e inveno, atravs de uma lgica social imanente que ultrapassa a lgica dicotmica que separa e ope indivduos e sociedade. Por fim, com Gilles Deleuze e Flix Guattari, apresentamos uma perspectiva que abarca as abordagens de Bergson, Nietzsche e Tarde, nos permitindo pensar no apenas como a memria social se constitui por meio dos agenciamentos coletivos, mas como ela possibilita processos de abertura criadora capazes de produzir mutaes nos modos de vida concretos e nos campos sociais.

    Palavras-chave: memria social, criao, Maurice Halbwachs, Henri Bergson, Gabriel Tarde, Friedrich Nietzsche e Gilles Deleuze & Flix Guattari.

  • ABSTRACT

    MELO, Danilo Augusto S. Social memory and creation: an approach beyond the model of representation. Advisor: Miguel Angel de Barrenechea. Rio de Janeiro: UNIRIO/PPGMS; CAPES, 2010. Thesis (Ph.D. in Social Memory).

    This thesis aims to bring to the field of studies in social memory the problem of creation, since this issue is not addressed by the main author and founder of this discipline, the sociologist Maurice Halbwachs. Thus, we show that the point of view that support his theory, based on the model of representation does not allow the comprehension of the creative processes that are immanent to social memory. This is because the prospect of Halbwachs, derived from the sociology of Emile Durkheim, comprises the memory from the still frames and does not consider the processes by which they are formed. On presentation of this perspective, our thesis intends to initially highlight the limits of the approach of Halbwachs and Durkheim to think about the creative processes that articulate with the memory. Then we then to develop a conception of social memory that enables us to understand the processes by which it is made. From there we headed to a conceptual strategy that goes beyond the simple understanding of the creative processes of memory in order to think as the very social memory constitutes a vector of creation and social transformation. Our research, in short, based on the philosophy of difference, following a route that goes from the creation of social memory to a social memory as a vehicle for social development and transformation.

    The authors that we choose to have the common characteristic of thinking about creative processes in a perspective centered on the notion of difference, and so share a view that is beyond the model of representation. Initially, with Henri Bergson, we understand the memory and time in its ontological dimension in order to grasp the reality data from the movements that are its becoming. With Friedrich Nietzsche, we are facing the transcendent model of the thought of Durkheim and Halbwachs, with its conception of reality as immanent field of forces always changing and creating. With the micro-sociology of Gabriel Tarde social memory is thought, in contrast to the elaborations of Durkheim, as a result of the movement of imitation and invention, through a immanent social logic that goes beyond the logic and dichotomy that separates between individuals and society. Finally, with Gilles Deleuze and Flix Guattari, we present a perspective that embraces the approaches of Bergson, Nietzsche and Tarde, allowing us to think not only how the social memory is constituted through the collective assemblages, but as it enables the opening-up creativity that can produce changes in lifestyles and in specific social fields.

    Keywords: social memory, creation, Maurice Halbwachs, Henri Bergson, Gabriel Tarde, Friedrich Nietzsche and Gilles Deleuze & Flix Guattari.

  • SUMRIO

    Introduo. 1

    Primeiro Captulo: MEMRIA E VIRTUALIDADE 9 1 A NATUREZA DA DURAO E AS QUALIDADES SENSVEIS. 11

    Diferenas de perspectiva sobre o tempo e a memria. 12 A diferena de natureza entre o espao e o tempo. 15 Durao e heterogeneidade. 18 Matria, contrao e coexistncia virtual. 21

    2 SOBREVIVNCIA E RECUPERAO DO PASSADO: MEMRIA E RECONHECIMENTO. 24

    O corpo e a memria-hbito. 24 O Esprito e a Memria-Lembrana. 25 Halbwachs e a memria coletiva. 26 Princpio utilitrio e memria. 31 As formas do reconhecimento no espao e no tempo. 32 Reconhecimento-Ao. 34 Reconhecimento Atento. 35

    Tempo e memria para alm da sociedade. 39

    3 O NASCIMENTO DA LEMBRANA PURA E A CONSERVAO EM SI DO PASSADO. 41

    Simultaneidade entre percepo e lembrana. 41 Os jatos simtricos do instante. 42 Os paradoxos do passado e a memria pura. 44 Representao e memria ontolgica. 47

    4 A REMEMORAO OU O PROCESSO DE ATUALIZAO DAS LEMBRANAS. 53

    Os nveis de coexistncia do passado. 54 Os modos de localizao das lembranas. 57 Memria social e temporalidade. 60 Virtualidade e memria social. 66

  • Segundo Captulo: MEMRIA SOCIAL E DIFERENA 74 1 O PENSAMENTO SOCIAL DE DURKHEIM E HALBWACHS. 76

    A necessidade de uma cincia do social. 76 Delimitao de um domnio especificamente sociolgico. 76 Definio do objeto exclusivo da sociologia. 77 O mtodo sociolgico. 79 O domnio transcendente do social. 80 O novo durkheimismo de Halbwachs. 82 Ponto de vista e problemas herdados. 84

    2 ONTOLOGIA DA RELAO E AFUNDAMENTO DO MUNDO. 85

    A imanncia e o primado da relao. 85 Perspectivismo e crise dos fundamentos. 87 A natureza como pluralidade de foras. 88 Vitalismo das foras: a realidade como Vontade de Potncia. 89 Afeto e vitalidade no-orgnica: ressonncias Nietzsche e Tarde. 94

    3 A GENEALOGIA DA MEMRIA SOCIAL. 106

    O procedimento genealgico e a destituio do ponto de vista da metafsica. 106 A emergncia da memria social. 108 A atividade formadora do homem na pr-histria da cultura. 111 Crueldade e Memria Social: o socius inscritor. 113 Cultura e obedincia aos costumes. 115 Evoluo e sociedade. 116

    4 IMITAO E MEMRIA SOCIAL. 124

    As leis universais dos fenmenos. 124 A repetio universal. 125 A tendncia ao infinito. 127 Imitao e inveno. 128 Crenas e desejos: as quantidades sociais. 131 Memria social e imitao. 133 Monadologia e superao da dicotomia indivduo-sociedade. 135 Lgica social: organizao da imitatividade, sonambulismo e criao. 138

  • Terceiro Captulo: A MEMRIA: UMA VIDA... 146 1 DO DRAMA DA HESITAO TRAGDIA DO ACONTECIMENTO. 146

    Memria e vida. 146 Memria fechada e Memria aberta. 148 Criao e repetio: movimentos imanentes Memria Social. 151 Os esquemas sensrio-motores. 154 O intervalo de Tempo. 157 Imagem sensrio-motora do mundo: o Clich. 159 Crise do sistema representativo: a condio negativa da Criao. 163 tica e afirmao da vontade: o Acontecimento para alm do Ressentimento. 166 Mutao afetiva e criao de novos modos de existncia: a contra-efetuao.169

    2 A ABERTURA COMO RELANAMENTO DA CRIAO. 172

    Prtica, memria e devir. 172 Por uma compreenso dinmica do social. 174 Memria e multiplicidade. 177 As trs dimenses do real e da memria social: a teoria das linhas. 178 Linha de segmentaridade dura (corte). 182 Linha de fuga (ruptura). 186 Linha de segmentaridade flexvel (fissura). 189 Riscos e perigos das linhas. 193 Experimentao e prudncia: avaliao dos riscos e dos fatores de criao. 195 Teoria das multiplicidades, memria e criao. 198 Campo social e criao: coexistncia e remisso contnua entre os planos. 199 Micropoltica e segmentaridade. 200 Norma social e resistncia: dos padres majoritrios aos devires minoritrios.201 Devir e memria social. 203 Espaos lisos da criao: para uma memria social aberta... 204

    Concluso: DA CRIAO DA MEMRIA MEMRIA CRIADORA. 209

    Referncias bibliogrficas. 229

  • 1

    INTRODUO

    Na primeira metade do sculo XX, o socilogo francs Maurice Halbwachs fundou a disciplina Memria Social a partir da publicao de Les cadres sociaux de la mmoire, de 1925. Com esta perspectiva, o autor pretendia trazer sociologia uma renovao do campo, propondo um ponto de vista original tanto para as cincias sociais quanto para os estudos sobre memria, at ento abordada apenas pela psicologia. Herdeiro do pensamento de mile Durkheim, o projeto de Halbwachs dava continuidade aos princpios da sociologia de seu mestre, mais precisamente expressos pela necessidade de se definir por oposio a outro campo de estudo, sobretudo o da psicologia, e por procurar analisar e compreender todo e qualquer aspecto da realidade humana a partir do social. Assim, a originalidade da disciplina fundada por Halbwachs consistia em criar uma perspectiva sociolgica para explicar a memria e seu

    funcionamento, o que o levaria imediatamente a se opor ao campo de estudos da memria j consagrado pela psicologia, cuja abordagem se limitaria ao indivduo. A partir desta oposio, sua disciplina estabeleceu uma separao dicotmica entre memria social e memria individual e atribuiu uma superioridade e prevalncia da primeira sobre a segunda.

    Para isso, entretanto, Halbwachs erigiu sua concepo de memria coletiva ou social em oposio concepo de memria de Henri Bergson, julgada pelo socilogo como de carter exclusivamente individual. A escolha de Halbwachs no foi arbitrria, j que ele havia sido aluno de Bergson antes de se filiar sociologia e ao grupo de Durkheim. Assim, vemos em Les cadres sociaux de la mmoire Halbwachs desfilar uma srie de crticas e acusaes ao pensamento de Bergson a fim de demonstrar a importncia e validade de seu sistema sociolgico de compreenso da memria.

    Ora, a filosofia de Bergson se caracteriza como um pensamento do devir, do movimento e da criao, e, em nossa tica, sua concepo de memria ultrapassa qualquer perspectiva individual ou social, estando antes orientada compreenso das condies de emergncia do novo, da criao de uma novidade ou de uma mudana no plano da realidade concreta. No entanto, nenhuma destas caractersticas fundamentais do pensamento de Bergson levada em conta na leitura que Halbwachs faz do filsofo, cuja perspectiva consiste em considerar a teoria da memria de Bergson como uma

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    abordagem individualista qual o socilogo contrape sua concepo social da memria.

    Este combate da sociologia da memria de Halbwachs ao pensamento de Bergson nos permitiu, entretanto, colocarmos o problema da criao em articulao com a memria social. Nossa pesquisa tem como ponto de partida, portanto, a constatao da ausncia deste problema na concepo de memria social de Halbwachs. Nesta perspectiva, a memria tratada a partir de uma noo espacial e esttica, os quadros sociais. Tais quadros, por sua vez, so sempre compreendidos como dados, de modo que Halbwachs no aborda os processos pelos quais eles se constituem, e muito menos a possibilidade de pensar como estes quadros podem ser funo de uma transformao social. exatamente esta abordagem da memria social atravessada pelo problema da criao que orienta a presente tese. No entanto, para abordarmos esta articulao, preciso que compreendamos a memria para alm da concepo da sociologia de Halbwachs, isto , a partir de um ponto de vista onde a memria no se limite a uma representao que fazemos do passado ou a um conjunto de referncias fixas que se sustentam em quadros sociais inertes.

    Dessa forma, a primeira questo que nos colocamos : como a memria se

    articula aos processos temporais de criao, isto , como ela pode ser pensada fora da concepo de uma mera faculdade conservadora e se revelar como condio mesma da mudana e da criao? A partir da compreenso deste aspecto ontolgico da memria e da coexistncia de sua dimenso virtual imanente aos dados atuais da realidade, levantamos outra questo: por meio de quais processos a memria social se constitui e compe o plano da realidade social em que indivduos e grupos se co-produzem numa processualidade imanente? Por fim, a ltima questo a que fomos levados assim se pe: como a memria social pode ser criadora e agir em funo da mudana e da transformao dos modos de vida e do campo social?

    Neste sentido, pretendemos definir os processos de criao como imanentes prpria memria, mas para isso preciso que a compreendamos conforme uma perspectiva que no se limite mera representao. Assim, buscaremos conceber a memria como uma multiplicidade ou um conjunto de multiplicidades, em que planos que se distinguem em natureza se remetem uns aos outros continuamente e dessa forma possibilitam uma compreenso dinmica e criadora da memria. Nesta perspectiva, portanto, a memria social se expressa por dois movimentos ou tendncias que se

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    distinguem, mas que no podem ser pensados separadamente, isto , dois movimentos imanentes prpria memria: a repetio e a inveno, ou ainda, a conservao e a criao. a partir do jogo contnuo entre estas duas tendncias que podemos compreender a memria no mais por suas referncias fixas ou por sua inrcia conservadora, mas por seu dinamismo criador.

    Esta perspectiva no tem sido abordada explicitamente por aqueles que trabalham conceitualmente o campo de estudos da memria social, de modo que justificamos a importncia de nossa pesquisa por este recorte que realizamos a partir do atravessamento crtico da sociologia de Halbwachs e Durkheim com a filosofia da diferena. Assim, a fim de trazer para este campo de estudos uma nova abordagem da memria social, onde os processos de criao so tomados como um de seus aspectos essenciais, escolhemos para alavancarmos nossa investigao autores cuja preocupao filosfica tem como foco principal o problema da criao, e que de alguma maneira abordam tambm o tema da memria.

    Sem dvida, o filsofo mais prximo aos temas da criao e da memria Henri Bergson, de modo que abordamos sua perspectiva ontolgica da memria cuja natureza virtual ultrapassa qualquer tipo de distino entre memria social e memria individual e tem por finalidade introduzir o problema do novo, do devir e da criao. Nietzsche, por sua vez, oferece-nos uma perspectiva genealgica que nos permite

    compreender como a memria social se constitui inseparavelmente do processo de inscrio do homem no socius a partir da criao e imposio de regras e valores coletivos, os quais emergem juntamente com a linguagem e asseguram a manuteno da coeso e organizao sociais. Em Gabriel Tarde encontramos uma abordagem sociolgica atravessada pela filosofia que define conceitualmente a memria social, mesmo antes da fundao da disciplina por Halbwachs, como uma construo dinmica que se opera entre os indivduos por meio dos processos de imitao e inveno, pelos quais se constituem os valores e significaes coletivas que se difundem no campo social e formam o conjunto da diversidade cultural. Finalmente, com Deleuze, juntamente com Guattari, encontramos as ferramentas conceituais para compreendermos no s o processo pelo qual a memria social se cria, mas sobretudo os meios de pens-la como vetor de mutao dos modos de vida concretos e de transformao dos campos sociais dados, inserindo a memria social numa discusso poltica que nos permite avaliar os pontos de resistncia que impedem os processos de

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    criao e demanda um questionamento tico sobre aquilo que a memria social constri no presente em vistas do futuro.

    Por fim, cabe considerar que nossa abordagem conceitual, ancorada na filosofia da diferena, no nos limita ao campo estritamente terico da memria social, j que o problema da criao est intimamente ligado s aes de recuperao do passado realizadas pelos diversos agentes implicados nos trabalhos de memria. Assim, a partir da abordagem dos conceitos tematizados no decorrer da tese, ser possvel perceber como a perspectiva que compreende os processos de criao imanentes memria social no se limita apenas ao plano terico, mas repercute tambm no campo da prtica, no qual a memria social efetivamente produzida.

    * * * * *

    Nossa tese est organizada em trs captulos. O nosso primeiro captulo se caracterizar, de um modo geral, como uma espcie de avaliao crtica que pretender esclarecer os limites e equvocos da leitura que Halbwachs faz da obra de Bergson, sobretudo no que diz respeito sua teoria da memria. Neste sentido, nosso esforo a consistir em questionar as crticas de Halbwachs ao mesmo tempo em que expusermos as teses de Bergson. Salientaremos que os objetivos e pontos de vista dos dois autores divergem e no geral so inconciliveis, contudo a compreenso dos aspectos temporais da memria ontolgica de Bergson nos permitir perceber que a reduo desta perspectiva a uma memria individual impedir que a concepo da memria social de Halbwachs possa esclarecer o problema da criao. Assim, o mais importante a ser compreendido no pensamento de Bergson so as noes de virtualidade e de coexistncia, sem as quais no poderemos conceber a articulao da memria com os processos de criao. Veremos como ambas esto implicadas no conceito de durao, a partir do qual Bergson nos possibilitar apreender a memria e a realidade segundo sua dimenso varivel, isto , como devir. Atravs desta noo temporal seremos conduzidos compreendermos a natureza paradoxal do tempo, que consiste num dos interesses vitais na tese bergsoniana da memria ontolgica. pelo desenvolvimento da noo de durao que Bergson expe as condies de compreenso da natureza movente do tempo em que o presente no cessa de passar, e da conservao do passado em si mesmo como fenmenos distintos, mas intimamente interligados e mesmo solidrios. Ser, portanto, a partir destes dois processos coexistentes que explicaremos

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    como as lembranas se constituem e podem ser recuperadas em nosso presente atual, seja nos fenmenos de reconhecimento seja nos casos de rememorao.

    A memria ontolgica na teoria de Bergson consiste, enfim, na forma do passado em geral que se conserva a si mesmo e assim libera o tempo de sua forma espacializada. Esta perspectiva distingue-se substancialmente das noes de memria individual e memria coletiva definidas por Halbwachs, pois o conceito central a partir do qual este as concebe de natureza exclusivamente espacial, os quadros da memria. A virtualidade que caracteriza a memria em Bergson se diferencia a da temporalidade recortada em perodos mais ou menos distantes que Halbwachs atribui s diversas formas de organizao dos grupos e por meio da qual ele concebe as diferentes memrias coletivas que operam em um indivduo. Veremos que no se trata, para Bergson, de negar os aspectos espaciais da realidade, mas que a partir da relao entre estes e a dimenso virtual desta realidade que se operam os processos de criao que garantem a emergncia do novo e da mudana. Assim, a condio para compreender o devir da realidade pensada pelo filsofo a partir destes planos distintos que coexistem e se relacionam. Do mesmo modo, a memria ser abordada por seus planos, ou melhor, como uma multiplicidade de planos em relao, na qual a compreenso de seus elementos ultrapassa a noo de representao, tal como Halbwachs as concebe a partir da noo de quadros sociais.

    No segundo captulo, analisaremos as bases sobre as quais a teoria de Halbwachs se apia, isto , a sociologia de mile Durkheim. Assim, vamos abordar os principais aspectos desta sociologia que tm grande influncia na teoria da memria social de Halbwachs, sobretudo a lgica dicotmica e o carter transcendente do social, e em seguida os submeteremos a uma crtica. Veremos como a sociologia da memria de Halbwachs representa, deste modo, uma espcie de releitura da teoria do fato social de Durkheim, e constitui mesmo uma tentativa de fundar um novo durkheimismo em que se aplicam uma lgica dicotmica e um princpio transcendente do social. Na seqncia, iniciaremos a crtica a este ltimo aspecto da sociologia de Durkheim a partir do pensamento de Friedrich Nietzsche.

    Partindo da perspectiva filosfica de Nietzsche, opera-se uma crtica radical a toda concepo que recorra a uma instncia transcendente para explicar os fenmenos do mundo. Assim, vamos esclarecer como a realidade se constitui para este autor a partir de uma pluralidade de foras em constante relao, e que toda determinao

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    resulta deste plano dinmico ao invs de derivar de um elemento anterior e transcendente. A perspectiva de Nietzsche pe, dessa forma, o problema da criao como imanente prpria realidade, na medida em que esta compreendida em seu aspecto movente e varivel, isto , em seu devir. Neste sentido, veremos que no h para Nietzsche nenhum aspecto da realidade que possa ser considerado como algo essencial que venha sobredeterminar o conjunto da vida e dos fenmenos humanos, pois toda realidade, todo fenmeno, criado e no preexiste s determinaes atuais. Por outro lado, este modo de abordar a realidade a partir das relaes de foras, nos permitir apreender a determinao das formaes sociais e dos indivduos para alm da lgica dicotmica e do aspecto transcendente sustentados por Durkheim. Ser, portanto, a partir desta perspectiva imanente apresentada por Nietzsche, que buscaremos compreender os processos por meio dos quais a memria social se constituir.

    Veremos assim que Nietzsche compreende a formao dos valores morais como inseparvel de uma genealogia da memria social, atravs da qual estes valores se criam, se perpetuam e se modificam a partir das presses do meio social. , portanto, pela relao das foras sociais que este processo no cessa de se operar e de produzir a memria social. Assim, constataremos que esta operao se deu atravs da necessidade de inscrio do homem no socius, submetendo suas inclinaes pessoais e instintivas aos interesses coletivos. Numa interpretao que se aproxima desta tese de Nietzsche, encontraremos em Bergson uma abordagem que compreende a formao social do homem a partir de duas tendncias, a subordinao e o progresso. A primeira coincide com o processo de assujeitamento do homem vida em sociedade, e a segunda revela-se como imanente e explica o aspecto dinmico da vida e das sociedades.

    Por fim, em nosso segundo captulo, encontraremos em Gabriel Tarde uma abordagem destas duas tendncias imanentes que constituem sua concepo dinmica da memria social. Tarde pensa a vida social como se determinando continuamente a partir das foras sociais em relao, produzindo os hbitos e costumes sociais, assim como as pequenas modificaes que permitiro as sociedades progredir. Veremos que estas foras se constituem como diferenas atravs dos dois processos imanentes, a repetio e a criao, que em sua linguagem sociolgica se definem pelos movimentos de imitao e inveno. A imitao a forma da propagao de uma diferena, cujo encontro com outra diferena propagada resulta na inveno de outra diferena e de outra srie imitativa. a partir deste aspecto dinmico que Tarde define a memria

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    social como o conjunto das diferenas que se tornaram costumes sociais, em funo do seu alcance imitativo, assim como pelo processo imanente atravs do qual novas diferenas se constituem e modificam os elementos j consolidados do campo social. Neste sentido, com Gabriel Tarde, a memria social se apresenta como expresso destes dois movimentos imanentes, a repetio e a criao, a partir dos quais se tornar possvel compreender os processos de mudana dos modos de vidas e as transformaes do campo social. Este modo de conceber a memria social nos conduzir, por fim, a perceb-la como possuindo uma espcie de abertura por meio da qual os processos criadores se operam. Ser em busca de uma concepo que permita compreender a memria social aberta que nos encaminharemos ao nosso terceiro e ltimo captulo.

    Os processos de subordinao e progresso em Bergson, assim como os movimentos de repetio e criao em Tarde, nos levaro a compreender as duas tendncias imanentes memria social que se expressaram, respectivamente, por movimentos de fechamento e abertura. Assim, em nosso terceiro captulo, perseguiremos as condies de emergncia de uma memria social aberta, que nos permita pensar os processos de criao e transformao dos modos de vida e das sociedades. Enfim, aps compreendermos como a memria social criada, nossa ltima empreitada consistir em pensar como ela pode se tornar criadora atravs de seus movimentos de abertura. Ser a partir da tenso entre estas duas tendncias, de fechamento e abertura, que compreenderemos como a memria social reflete o movimento dinmico da vida, tal como apresentado por meio do pensamento de Bergson em nosso primeiro captulo, o qual lhe assegura a continuidade de sua transformao, o seu devir.

    Para isso, deveremos conceber a vida e a memria social a partir do modelo da multiplicidade de planos e tendncias em relao, e no mais atravs do modelo esttico e invarivel da representao. Assim, poderemos conceber a tendncia ao fechamento da memria social como responsvel pelos processos de subordinao e organizao sociais em que os valores so compartilhados e os costumes institudos, submetendo os indivduos ao modelo da identidade social e demandando obedincia s prescries coletivas. Neste movimento, perceberemos que os modos de existncia se adaptam ao mundo atravs da conformao s maneiras de perceber, sentir, agir e pensar recortadas a partir das necessidades da coletividade, e assim se constituem como impeditivos ao devir dos modos de vida. Entretanto, veremos que estes movimentos no

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    se fazem sem que, ao mesmo tempo, tendncias de abertura relativas e mesmo de rupturas venham produzir pequenas variaes ou ainda dissolues em nossos modos de vida habituais que nos demandam mutaes ou criaes radicais dos modos de existncia concretos e da organizao social.

    Ser inicialmente atravs da obra de Gilles Deleuze, e posteriormente em conjunto com Flix Guattari, que buscaremos analisar a memria social como uma multiplicidade que a princpio seria composta por trs dimenses cuja relao nos assegura a compreenso da realidade em seu devir. Neste percurso, o que se apresentar em questo sero os movimentos de fechamento ou de recorte til da experincia do mundo, e os movimentos de abertura que nos relanam a esta experincia, a fim de que possamos constituir novos modos de relao com o mundo. Veremos que estes processos de abertura, co-extensivos aos de fechamento, podem ser relativos ou absolutos, isto , flexveis ou disruptivos, porm, ambos possibilitam que se efetuem novas formas de conexo com o mundo para alm dos modos j recortados e reconhecidos pelo hbito e o costume. Trataremos, enfim, de verificar como se caracterizam e se relacionam as dimenses da memria social que se expressam pelos processos de fechamento, de abertura relativa e de ruptura, tendo por objetivo procurar apreender as condies de mutao dos modos de vida e das configuraes sociais dadas.

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    PRIMEIRO CAPTULO

    MEMRIA E VIRTUALIDADE

    Maurice Halbwachs, socilogo francs, ex-aluno de Henri Bergson e discpulo de mile Durkheim, elaborou na primeira metade do sculo XX uma teoria da memria em revelia teoria bergsoniana, a partir da incorporao dos ensinamentos da sociologia clssica. Contra a concepo da memria virtual de Bergson, cuja preocupao consiste em pensar as condies ontolgicas da passagem e da conservao do tempo a fim de compreender os processos de rememorao e reconhecimento, Halbwachs v a necessidade de opor uma memria coletiva ou sociolgica, dando nfase aos contedos mnmicos adquiridos pelo homem em sua cultura, como aquilo que garante a coeso e o ordenamento da vida em sociedade. A partir desta oposio, Halbwachs deu origem disciplina Memria Social.

    Assim, o objetivo inicial de Halbwachs em Les cadres sociaux de la mmoire1 (1994) consiste no apenas em acusar Bergson de haver elaborado uma teoria da memria de carter estritamente individual e totalmente destacada da sociedade, mas buscar explicar o funcionamento mesmo da memria e do processo de rememorao a partir do campo social. Neste sentido, para o socilogo, as nossas lembranas conservam-se nos grupos, isto , na memria dos outros, nos objetos que nos circundam e nos lugares onde os acontecimentos se do. Rememorar significa, para Halbwachs, ou colocar-se do ponto de vista dos outros com os quais compartilhamos uma determinada experincia, ou nos colocarmos diante dos objetos e lugares a partir dos quais nossa memria ser ativada. Sua concepo de memria parte da idia simples de que o homem adquire suas lembranas na sociedade, de modo que seria na prpria sociedade que ele encontraria as condies de lembr-las, localiz-las e reconhec-las. Assim, o conjunto das lembranas compartilhadas entre os membros de um grupo e as coisas e os

    1 Optamos por utilizar, no caso dos autores estrangeiros cuja parte da obra possui traduo para o

    portugus, o material na lngua original, com exceo das obras publicadas e dos fragmentos pstumos de Nietzsche, retomados a partir das edies em portugus e francs, respectivamente. Para todas as referncias de obras e textos em lngua francesa aqui utilizadas, a traduo para o portugus nas citaes de nossa responsabilidade.

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    espaos fsicos constitui o que Halbwachs chamou de Quadros Sociais da Memria. Seria por meio destes quadros, portanto, que ns nos lembraramos.

    A motivao de Halbwachs em dar primazia ao aspecto social da realidade, seguindo a herana de pensamento de seu mestre Durkheim, o afastou da necessidade de compreender a natureza mesma da memria em relao temporalidade2 e, por outro lado, perceber como a temporalidade est inserida na prpria dimenso social da realidade. Na sua crtica ao pensamento bergsoniano, o problema do tempo tratado pelo filsofo foi interpretado por Halbwachs como sendo aplicvel apenas na perspectiva individualista. No entanto, veremos que a abordagem desenvolvida por Bergson se dirige antes ao aspecto ontolgico do tempo e da memria, ultrapassando e condicionando tanto a compreenso psicolgica e individual do tempo, quanto a categorizao sociolgica da memria. Assim, a noo de virtualidade vai ter uma importncia muito grande na obra de Bergson, pois identifica o virtual com o real, dando um estatuto ontolgico a esta noo3.

    Se o filsofo e o socilogo desenvolvem suas anlises sobre planos que so, primeira vista, inconciliveis, isto no inviabiliza que os problemas filosficos relativos natureza do tempo possam ser aplicados a uma disciplina que tenha como tema o problema da memria, seja a sociologia ou a psicologia, ou as neurocincias, ou a histria etc. No se trata apenas de fazer confrontaes, mas antes situar o ponto de vista a partir dos quais as perspectivas filosficas ou cientficas desenvolvem suas anlises, e marcar as diferenas de natureza4 que as constitui.

    2 Veremos no final do captulo que Halbwachs desloca suas anlises do espao para o tempo, porm, a

    sua noo de temporalidade permanece presa ao modelo extensivo do tempo, caro ao senso comum e cincia. A concepo de temporalidade trazida por Bergson, ao contrrio, remete ao aspecto ontolgico do tempo, caracterizando-o como devir e criao. 3 Trata-se, no pensamento bergsoniano, de distinguir duas realidades: uma objetiva ou atual, e outra

    ontolgica ou virtual. No entanto, o real pressupe esta dupla natureza, atual e virtual, a partir da qual os processos de criao ou mudana podem ser compreendidos. De um lado, o real no pode ser simplesmente atual, j que se assim fosse, ele jamais mudaria e nada de novo surgiria; do outro, o virtual o que no possui atualidade, ele no dado nem dvel, embora possua uma certa realidade. Veremos adiante que o virtual real sem ser atual, isto , aquilo que cria ao se atualizar. 4 Bergson (1948) distingue as diferenas de natureza das diferenas de grau, atribuindo s primeiras uma

    mudana na qualidade daquilo que se distingue, enquanto que nas segundas, opera-se to somente uma distino entre uma maior ou menor diferena na mesma qualidade, ou seja, trata-se de uma mudana numrica, quantitativa.

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    1 A NATUREZA DA DURAO E AS QUALIDADES SENSVEIS.

    Partimos da noo geral que a memria consiste numa categoria primordialmente temporal, antes mesmo de ser atribuda a um determinado meio ou matria de ancoragem, e que o problema do tempo, tal como ele vai comparecer na filosofia de Bergson, equivale ao problema da Criao. Pois, se considerarmos a memria como ndice da passagem do tempo, isto , daquilo que se conserva ao mesmo tempo que passa e abre caminho ao que est em vias de passar, ser preciso compreender sob quais condies isto que passa subsiste e coexiste com o presente atual, assim como este presente atual passa e cria alguma coisa de novo. Assim, enquanto forma geral da passagem, o tempo consiste em conservar o que passa e criar o futuro. Criar , portanto, fazer advir algo de novo e fazer o novo durar, mas durar consiste em guardar o que foi no que , ou seja, o passado no presente. O conceito chave compreenso de todo o pensamento de Bergson desdobra-se desta formulao e diz respeito ao mote principal de nossa tese, que consiste em pensar como a memria se articula a um plano imanente de criao, isto , o conceito de Durao.

    Neste captulo, pretendemos mostrar como as noes de tempo e memria se unificam atravs do conceito de durao, e como a partir da se desenvolvem as funes da memria: reconhecimento e rememorao. Assim, ao longo da exposio, apresentaremos os problemas principais referentes ao tema da memria, isto : a diferena entre as perspectivas espacial e temporal relativas memria e ao prprio tempo, o problema da conservao e da recuperao do passado, o reconhecimento e a rememorao, os paradoxos do tempo e o problema de sua passagem. A partir de cada item apresentado, pontuaremos os aspectos do pensamento de Bergson que colocam novos problemas e trazem contribuies ao conjunto da concepo de memria social de Halbwachs, justificando as oposies de perspectiva e pondo em relevo as possveis aproximaes e complementaes entre as concepes filosfica e sociolgica da memria. Com isso, o nosso objetivo consiste em construir um plano conceitual onde as noes de tempo, memria e criao se articulem sob o aspecto ontolgico e nos permitam avanar em direo a uma concepo de Memria Social que incorpore a temporalidade enquanto movimento.

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    Diferenas de perspectiva sobre o tempo e a memria.

    O conjunto da teoria da memria social de Halbwachs repousa sobre uma perspectiva que d primazia aos aspectos estticos e imveis da realidade social e que ele denominou de quadros sociais da memria. Esta concepo foi desenvolvida por Halbwachs a partir de algumas idias apresentadas por seu mestre Durkheim em Les formes lmentaires de la vie religieuse, obra de 1912, onde o socilogo trata as categorias do entendimento aplicadas ao fato social como quadros slidos que encerram o pensamento, e como a ossatura da inteligncia (1968, p. 20). A partir desta concepo de quadro social, Durkheim pretende encontrar princpios universais e permanentes de classificao, e argumenta que esta noo poder tornar-se uma categoria da cincia. Porm, apesar de se tratar em ambos de uma estrutura que unifica um pensamento comum, a noo de quadro em Halbwachs diz respeito s noes ou representaes que os diversos grupos portam, sem a pretenso de uma estrutura universal, como em seu mestre. De outra forma, Halbwachs compreende que o ponto de vista de Durkheim sobre os quadros, principalmente no que concerne ao fenmeno religioso, alm de se constituir como uma transcendncia, incompleto. Neste sentido, todo o esforo de Halbwachs em Les cadres sociaux de la mmoire, obra de 1925, tem como objetivo fazer uma releitura das principais concepes do seu mestre sobre a base da sociologia da memria, fundando um novo durkheimismo5 (Namer, 1994).

    Nesta nova construo, os quadros sociais da memria vo se relacionar aos mais diversos grupos, ao invs de determinar a sociedade como um todo. Em Les cadres, Halbwachs pe em relevo trs quadros principais que constituem a base da sociedade: os quadros religiosos, os quadros familiares e os quadros das classes sociais. De um modo geral, os quadros constituem um conjunto de referncias estveis que determinam a existncia e manuteno de toda formao social. Segundo Halbwachs, neles esto compreendidos o conjunto das lembranas compartilhadas por um grupo, e o sistema de convenes que nos constituem enquanto indivduos sociais, nos conformando a idias e valores que determinam nossas percepes, nossas lembranas e nossos pensamentos e que permitem com que os homens se comuniquem e se entendam sobres os dados comuns da realidade. Assim, o que chamamos de quadro de memria uma cadeia de idias e julgamentos (Halbwachs, 1994, p. 282).

    5 Veremos de modo mais detalhado, no captulo seguinte, como a teoria da memria de Halbwachs,

    sobretudo em Les cadres, atualiza os princpios da sociologia clssica de Durkheim.

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    Esta concepo vai compreender, portanto, que a percepo, a lembrana ou o pensamento esto sempre acompanhados de uma noo ou de uma palavra cujo sentido e significao so determinados socialmente por um sistema de convenes e, assim, permitem que os homens compartilhem, por um mesmo cdigo, aquilo que vem, lembram e pensam. Deste modo, para Halbwachs, no h vida e nem pensamento social concebvel sem um ou vrios sistemas de convenes (1994, p. 278). Detendo-se to somente no nvel da significao ou da representao, Halbwachs fundamenta seu argumento com a idia de que toda significao, seja dos objetos percebidos, das pessoas com quem nos relacionamos, ou de qualquer qualidade que discernimos, nos dada e definida por outros homens e impostas a ns durante o processo de socializao. neste sentido que os quadros sociais constituem uma releitura da noo de fato social de Durkheim6, mantendo suas caractersticas bsicas de exterioridade, anterioridade ou independncia e coero.

    Trata-se, no entanto, de uma perspectiva que se assenta sobre os aspectos convencionados ou institudos da realidade social, na medida em que as anlises partem de categorias j formadas de antemo, e cujos desenvolvimentos e concluses servem to somente a compreender a ordem e a manuteno dos pensamentos e valores j estabelecidos. Porm, o que no levado em conta nesta perspectiva so os processos atravs dos quais estas convenes de significaes se constituem e como determinados pensamentos e valores se tornam dominantes num meio social qualquer7. Ou seja, ao se interessar to somente pelos aspectos j constitudos da realidade, a abordagem sociolgica vira as costas criao e aos processos de transformao, partindo, em suas anlises, de dados pressupostos e inquestionveis.

    Esta perspectiva, ou este modo de abordar a realidade, no entanto, no o nico. verdade que toda a cincia, ou toda disciplina que se pretenda cientfica, necessita definir de antemo as categorias e o percurso esperado em suas anlises. Herdeira do pensamento de Kant (2001), a maneira de conhecer da cincia deve partir de categorias a priori a partir das quais a realidade possa ser pensada como um todo fechado e passvel de classificao. Se Halbwachs critica e ignora a maneira como o filsofo aborda a realidade (ao adotar uma perspectiva que busca conhecer a partir do

    6 A noo de fato social em Durkheim se define como o processo de socializao dos indivduos a fim de

    determinar os modos de agir, sentir e pensar comuns maior parcela da sociedade atravs da imposio. Trabalharemos mais detalhadamente o pensamento social de Durkheim no prximo captulo. 7 O problema da produo e propagao dos valores e pensamentos no campo social vai constituir o mote

    de nosso prximo captulo.

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    meio, isto , dos processos e movimentos, que a prpria realidade para o filsofo), exatamente por que Bergson desenvolve sua filosofia das multiplicidades e da diferena a partir do horizonte crtico do pensamento racionalista ao qual a sociologia se filiou, o de Kant. Enfim, de acordo com Lazzarato (2002), Halbwachs percebeu o perigo que a filosofia da diferena pode representar para o racionalismo implicado na sociologia de Durkheim, para o kantismo que povoa sua prpria teoria da memria (p. 238).

    como alternativa descontinuidade e imobilidade das categorias kantianas, e ao privilgio dado ao entendimento na anlise destas categorias, que o pensamento que prioriza o devir, o movimento e a experincia se impe. Sem negar o aspecto imvel da realidade, mas, ao contrrio, buscando pensar como a imobilidade um caso da variao, Bergson parte da distino entre duas maneiras de abordar a realidade que diferem em natureza. Assim, o interesse inicial de Bergson (1965) desfazer uma iluso prpria ao ponto de vista do senso comum referente percepo dos dados da realidade. Ele pretende mostrar que as qualidades bem definidas do mundo e dos objetos que nos cercam so criadas a partir da experincia da durao. Ao mesmo tempo, esta experincia ir produzir um deslocamento do modo de anlise da realidade ao incorporar a temporalidade como aquilo que condiciona nossa percepo e nossa memria.

    A iluso do senso comum consiste em considerar os dados de conscincia, seja da percepo dos objetos exteriores, seja dos prprios estados de conscincia que se sucedem interiormente, como estados inertes e acabados, isto , como blocos que se justapem uns ao lado dos outros. Propondo uma anlise mais atenta, Bergson (1965) aponta a dificuldade em determinar quando um estado acaba e outro comea, como se eles se continuassem uns nos outros. De outro lado, esta continuidade indica uma imbricao dos elementos que se sucedem, como se fossem as cores de um arco-ris cujo limite entre cada uma delas se continuasse e a passagem de uma a outra fosse imperceptvel.

    Dessa forma, para o senso comum, a realidade do mundo e da conscincia apresenta-se como descontnua e divisvel, os estados desfilando uns ao lado dos outros; e do outro lado, de acordo com a experincia do tempo, o mundo e a vida interior se desenvolveriam numa continuidade indivisvel e irrepresentvel. Da, Bergson (1965) apresentar duas espcies de multiplicidade, ou duas maneiras diferentes de abordar o

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    tempo e a realidade. A, encontraremos uma distino de princpio em que as anlises de Bergson e de Halbwachs iro se situar.

    A diferena de natureza entre o espao e o tempo.

    Em seu primeiro livro, Essai sur les donnes immdiates de la conscience, obra de 1889, Bergson lana mo de um dualismo provisrio relativo ao tempo que est implicado na anlise da experincia imediata da conscincia. Assim, para o filsofo, a vida consciente se distinguiria em duas apreciaes bem diferentes da realidade, em dois tipos de multiplicidades: de um lado, portanto, haveria uma multiplicidade que representa o espao e se expressa por smbolos ou nmeros, que se d pela justaposio de estados no exterior e possui diferenas de grau, que homognea e descontnua: isto , trata-se de uma multiplicidade quantitativa. Por outro lado, haveria uma multiplicidade que representa o que Bergson denominou de durao pura, ou seja, que temporal e da ordem do interior, possui diferenas de natureza, heterognea e contnua: enfim, trata-se de uma multiplicidade qualitativa. Ser esta ltima que Bergson ir privilegiar em sua anlise da experincia imediata e que ir acompanhar toda a sua obra8, desdobrando-se em suas concepes de Memria e lan Vital.

    Dessa forma, Bergson definir a durao-qualidade como uma multiplicidade que se faz pela interpenetrao dos momentos heterogneos numa continuidade temporal. A durao real uma continuidade indivisvel de mudana, um devir que dura, ou seja, o que faz com que algo dure ao mesmo tempo em que muda, fazendo coexistir o momento presente com o momento passado numa s espessura de tempo. A rigor, o tempo consiste numa continuidade indecomponvel, ou que muda de natureza na medida em que se decompe, onde o que dura no pra de mudar, isto , onde o novo no cessa de se fazer. Na durao assim compreendida, as mudanas se continuam umas nas outras e no chegam a tomar uma forma com contornos bem definidos, de modo que a h apenas mudana, e no coisas que mudam (Bergson, 1966, p. 167).

    8 Neste primeiro trabalho, Bergson pensa a durao vinculada conscincia e ao esprito, como signo da

    experincia psicolgica. Porm, na evoluo de sua obra, Bergson ir estender a durao a toda a matria, pensando graus de durao e distenso na natureza. No entanto, estes graus de durao e distenso s podero ser pensados quando concebermos a existncia de uma memria virtual, ontolgica, que comporta diversos graus de durao coexistentes, como veremos mais adiante.

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    Dessa forma, a mudana , antes de sua exteriorizao espacial, de ordem temporal, na medida em que no espao percebemos apenas os pontos sucessivos pelos quais passamos, mas atravs dele no damos conta de como passamos de um a outro destes pontos. Assim, a natureza da mudana no nos fornecida pela extenso, mas pela durao pura, pelo tempo. No espao, portanto, percebemos apenas a quantidade dos pontos sucessivos, mas no tempo, sentimos a qualidade da mudana constituda pela apreenso dos estados pelos quais passamos, como uma espcie de continuidade meldica. Desse modo, sob as sucessivas mudanas que se exteriorizam e ganham um aspecto espacial, h uma continuidade movente, que a mudana em seu aspecto contnuo e indefinido, onde a qualidade uma variao que resulta da fuso dos elementos heterogneos.

    Assim, enquanto Bergson se posiciona do lado da durao pura e da multiplicidade qualitativa, veremos que Halbwachs assenta sua anlise do lado da multiplicidade numrica e quantitativa. Estas duas posies distinguem-se por natureza e as conseqncias de suas apreciaes so decisivamente distintas. Enquanto a durao revela a processualidade prpria constituio dos elementos que se destacam, a anlise quantitativa detm-se sobre os elementos j destacados, conhecendo-os to somente em sua exterioridade ou em seu elemento abstrato. Seguindo este ltimo modo de abordagem, destacaramos o social, o grupo, o indivduo, a memria, os objetos e os lugares como elementos que se relacionam exteriormente na perspectiva adotada por Halbwachs. Do ponto de vista da durao pura, resta compreender como estes elementos se constituem e se relacionam interiormente, como eles esto imbricados uns nos outros e modificam-se continuamente, na medida em que eles fazem parte de um todo movente que a temporalidade ela mesma, e que Bergson nomear Memria.

    O esforo de Bergson consiste, ento, em mostrar como isto que se destaca exteriormente sob a forma de quantidades justapostas provm de uma continuidade de interpenetrao, onde os elementos so determinados e ganham emergncia enquanto qualidades. neste sentido que a relao entre quantidade e qualidade, analisada por Bergson na experincia pr-subjetiva, ir definir a durao como memria, isto , como uma fora capaz de reter os instantes sucessivos numa qualidade. A durao real ser definida, portanto, como

    memria, mas no memria pessoal, exterior quilo que ela retm, distinta de um passado do qual ela asseguraria a conservao; memria que prolonga o antes no

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    depois e os impedem de serem puros instantneos aparecendo e desaparecendo em um presente que renasceria sem cessar (Bergson, 2007, p. 41).

    Imediatamente, o que operado pela durao a relao entre o passado e o presente. Para compreender essa operao preciso supor de antemo que a continuidade do tempo seja dividida em presente, passado e futuro. Se nos situarmos no instante em que o presente passa, o que vemos o tempo recomear a todo o momento. O que nos permite acompanhar a continuidade do tempo a durao que liga o presente que passa com o presente atual. Ou seja, preciso compreender que a durao essencialmente uma continuao disto que no mais nisto que (Bergson, 2007, p. 46). Neste sentido, impossvel distinguir durao e memria nessa operao, isto , imaginar e conceber um trao de unio entre o antes e o depois sem um elemento de memria (Bergson, 2007, p. 46). Dessa forma, sem a durao no teramos a experincia do tempo como movimento contnuo em que passado e futuro se constituem no instante da passagem. Assim, segundo Bergson,

    seria preciso reter apenas a continuao do que precede no que segue e a transio ininterrupta, multiplicidade sem divisibilidade e sucesso sem separao, para enfim encontrar o tempo fundamental. Tal a durao imediatamente percebida, sem a qual no teramos nenhuma idia do tempo (2007, p. 42).

    Ao contrrio, os instantes que se repetem fora de ns seriam sempre um a cada vez e viveramos eternamente no presente caso no dispusssemos dessa capacidade inconsciente de acumulao do antes no depois. Isto , sem uma memria elementar que religa os dois instantes haver apenas um ou outro dos dois, por conseqncia, um instante nico, sem antes e depois, sem sucesso, sem tempo (Bergson, 2007, p. 46). Enfim, de acordo com Bergson, sem esta penetrao mtua e este progresso de alguma maneira qualitativo, no haveria adio possvel (1948, p. 92). Dessa forma, s podemos formar um nmero qualquer ou ter a noo subjetiva de um nmero se fundirmos um elemento que se apresenta no elemento seguinte, formando a a noo do nmero 1 e do nmero 2 ao mesmo tempo, e a partir da com outros elementos, modificando a qualidade numrica 3, 4, 5.... e assim sucessivamente.

    Disso, conclui-se que a qualidade se faz pela fuso da quantidade, mas que a quantidade ela mesma s se funda por que a durao capaz de discernir um em relao aos outros os nmeros distintos, isto , por que a durao quem d a qualidade dos nmeros. Logo, no h multiplicidade numrica sem a durao pura que a qualifica. o

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    tempo que aqui tem primazia sobre o espao, de modo que uma anlise que no leve em conta a durao necessita de um esforo de abstrao capaz de determinar as qualidades distintas como dados a priori.

    Durao e heterogeneidade.

    Em seus dois livros dedicados aos estudos sociolgicos da memria, Les cadres sociaux de la mmoire (1925) e La mmoire collective (1950), Halbwachs insiste em criticar Bergson sob vrios aspectos, sobretudo em relao sua concepo de tempo como durao, qual o socilogo faz equivaler o tempo linear, homogneo e nico da Histria.

    A concepo da noo de durao em Bergson, que inaugurada em sua primeira obra Essai sur les donnes immdiates de la conscience (1889), o conceito chave de toda a sua filosofia posterior, que se desenvolve em seu pensamento e evolui para os conceitos de Memria, em Matire et mmoire (1896), e lan Vital, em Lvolution cratrice (1907). Sem dvida, o conceito de durao consiste numa noo cuja compreenso determina a entrada no pensamento bergsoniano, no que ele trs de novidade e crtica em relao s concepes cientificistas desde o final do sculo XIX at os nossos dias.

    Por outro lado, a necessidade da Sociologia de se distinguir como cincia autnoma e se opor Psicologia no sculo XIX, acabou por constitu-la e mant-la dentro de um horizonte de pensamento do qual derivaram o cientificismo e o senso comum, a saber, o horizonte kantiano. Se nestas trs obras Bergson se ocupa em discutir com a cincia da sua poca, por que ele pretende pensar uma alternativa de perspectiva que possa ser incorporada pela cincia e leve em considerao os processos de constituio e mudana da realidade, isto , que insira a temporalidade e alcance a durao em suas investigaes.

    Tal a diferena de perspectiva entre Halbwachs e Bergson. Suas anlises se fazem a partir de pontos de vista que se distinguem por natureza. No entanto, Halbwachs no tem a preocupao em pensar esta distino e trata o pensamento de Bergson a partir do seu prprio ponto de vista, limitado ao positivismo incorporado pela sociologia clssica (Namer, 2000). Da ele no compreender a heterogeneidade e a variao contnua que caracterizam a durao, associando-a, ora a um tempo puramente subjetivo e individual da Psicologia, ora ao tempo linear e homogneo da Histria.

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    Assim, em sua observao da realidade, as qualidades pelas quais Halbwachs distingue os grupos e as coisas, os quadros e os lugares, existem nelas mesmas como dados anteriores experincia dos indivduos e constituio dos grupos sociais.

    De outro modo, para Bergson, as qualidades sensveis que discernimos resultam da contrao que a durao opera na repetio dos elementos que constituem a matria do mundo. Nesta operao, os momentos contrados se fundem e mudam ao se interpenetrarem uns nos outros. Assim, a acumulao9 que a contrao produz ao realizar a fuso dos momentos d sempre lugar composio de novas qualidades que se conservam numa multiplicidade que se complica perpetuamente. Com isso, Bergson nos diz que a qualidade que se produz pela contrao constitui-se como criao de uma nova sensibilidade, isto , como um poder de sentir a repetio daquilo do que procedeu. Dessa maneira, uma vez criada, a sensao conta com sua repetio e muda, na medida em que acumula novas sensaes nela mesma. porque os elementos a partir dos quais procede a sensao se repetem e se organizam na durao, que ela muda constantemente de natureza. Considerando que eles se interpenetram mutuamente, os momentos no aparecem como distintos, embora se tornem realmente heterogneos em razo de sua interpenetrao mesma. Da a sentena bergsoniana: toda sensao se modifica ao se repetir (Bergson, 1948, p. 98).

    Em seu artigo sobre os msicos, presente em La mmoire collective (2007), e que se concentra sobre os dispositivos sociais da memria, Halbwachs no leva em considerao esta fora de reteno, sem a qual nenhum som possvel. Da mesma maneira ele trata a linguagem, considerando-a como uma instituio que conserva o passado. No entanto, a questo que se coloca : como um som ou uma palavra pronunciada podem ser apreendidos numa continuidade que nos permite reunir seus momentos contguos ou suas slabas numa sensao ou palavra? Ora, por qual virtude os instantes sonoros sucessivos, dos quais um deixou de ser quando o outro comeou a ser, se combinam entre eles? Ou ainda, quando pronunciamos uma palavra qualquer, por mais curta que ela seja, qual autmato hbil trabalha em ns retendo as slabas que so pronunciadas nos instantes diferentes e sucessivos? Enfim, por qual dispositivo

    9 A acumulao no se define aqui como uma soma, mas antes pela coexistncia dos elementos

    heterogneos contrados na durao. A noo de coexistncia central para compreendermos o conceito de durao e a maneira como Bergson (1948/1965) vai pensar a conservao em si do passado, como veremos a seguir.

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    conservamos o que no mais no que , de maneira a distinguirmos um som ou compreendermos uma palavra?

    , portanto, a durao, isto , a memria, esta fora que liga as sensaes, que as impede de desaparecer e que as conserva e as acumula. Mas esta fora de ligao e de conservao no dada pelos quadros sociais da memria, nem pela linguagem nem pelas instituies. Assim, o que Halbwachs (1994) deixa de compreender na filosofia de Bergson que sem esta memria as instituies sociais no passam de instituies mortas, tal como se diz que uma lngua morta quando no h mais pessoas para fal-la. Ou seja, sem esta fora afetiva de reteno, todas as sensaes se reduziriam a uma simples excitao e o mundo seria constrangido a recomear de novo a cada instante, repetindo-se indefinidamente e sempre igual a ele mesmo. Portanto, se em cada momento do tempo a sensao fosse idntica a ela mesma, seria porque esses momentos que se sucedem so exteriores uns aos outros, um j tendo desaparecido quando o outro aparece, isto , eles seriam distintos e homogneos por que apresentariam a cada vez a mesma sensao. Mas, por que os momentos da durao se fundem, eles exercem positivamente uma influncia uns sobre os outros, j que a durao retm os momentos passados no momento presente. Neste sentido, Bergson (1948) afirma que a verdadeira durao se caracteriza como uma fora ou um poder a partir do qual uma experincia se torna eficaz e cria uma nova tendncia. Por tendncia, devemos compreender a emergncia de uma qualidade que se continua na medida em que muda, isto , na medida mesma em que contrai novas sensaes. Em suma, toda sensao qualidade e eficcia, uma multiplicidade que dura. Disto resultam as duas caractersticas fundamentais da durao: Continuidade e Heterogeneidade.

    Desta forma, devemos compreender que a experincia da qual derivam as qualidades sensveis constitui-se pela contrao de uma multiplicidade de elementos heterogneos fundidos, isto , se produz como sensao a partir de uma experincia do tempo, na medida em que exprime a coexistncia virtual do passado com o presente, do antes com o depois.

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    Matria, contrao e coexistncia virtual.

    Neste sentido, a nossa conscincia experimenta uma durao cujo ritmo10 determinado e difere essencialmente da concepo ordinria de tempo da qual falam os fsicos, j que a nossa durao capaz de reter num certo intervalo uma quantidade to grande quanto se queira de fenmenos repetitivos. Assim, de acordo com Bergson, quando percebemos contramos numa qualidade sentida milhes de vibraes ou de tremores elementares, mas o que ns contramos, o que ns tensionamos matria,

    extenso. Bergson nos oferece um exemplo a fim de esclarecer esta operao. Ele diz:

    No espao de um segundo, a luz vermelha realiza 400 trilhes de vibraes sucessivas. () O menor intervalo de tempo vazio de que temos conscincia igual a 2 milsimos de segundo; ainda assim duvidoso que possamos perceber um aps outros vrios intervalos to curtos. () Assim, essa sensao de luz vermelha experimentada por ns durante um segundo corresponde, em si, a uma sucesso de fenmenos que, desenrolados em nossa durao com a maior economia de tempo possvel, ocupariam mais de 250 sculos de nossa histria. () Ou seja, enquanto milhes de fenmenos se sucedem contamos apenas alguns deles (1965, p. 230-232).

    Isso equivale a dizer que discernimos, no ato da percepo, algo que ultrapassa a prpria percepo, sem que, no entanto, o universo material se diferencie ou se distinga essencialmente da representao que temos dele. Dessa maneira, perceber consiste em condensar perodos enormes de uma existncia infinitamente diluda em alguns momentos mais diferenciados de uma vida mais intensa, e em resumir uma histria muito longa (Bergson, 1965, p. 233). Com isso, os dados que percebemos de momento em momento ao nosso redor, correspondem a efeitos descontnuos de uma infinidade de repeties e evolues interiores condensadas numa qualidade sensvel, cuja continuidade restabelecida pelos movimentos relativos que atribumos a objetos no espao (Bergson, 1965).

    Com isso, a caracterstica da durao consiste em fazer coexistir, pela contrao, o passado no presente. A contrao opera, portanto, uma ligao entre o plano da percepo e o plano da lembrana11, ou seja, do presente com o passado.

    10 Veremos mais adiante que a nossa durao corresponde a apenas um dos infinitos ritmos da durao

    que se estende a toda a matria (Bergson, 1965). 11

    Esta ligao entre os planos do presente e do passado pela contrao um dos aspectos fundamentais do pensamento de Bergson em Matire et Mmoire (1965). Da ir derivar os processos do reconhecimento atento, do nascimento das lembranas puras e da conservao em si do passado em geral, da atualizao das lembranas e dos nveis de coexistncia virtual na memria ontolgica.

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    Assim, a contrao produz uma elevao da repetio material a uma coexistncia temporal. Esta elevao a operao fundamental pela qual uma imagem se produz para a conscincia, produzindo uma mudana de natureza em relao ao objeto referido, isto , produzindo a passagem de uma disperso material para uma sobrevivncia temporal. Dessa forma, a imagem de um objeto que ocupa a nossa conscincia possui uma natureza distinta em relao ao prprio objeto material. Isto , enquanto em nossa conscincia os objetos possuem uma durao que corresponde contrao de sua variao oscilatria material em uma sensao, na matria eles existem to somente neste estado de variao/repetio. So dois estados que possuem uma diferena de natureza, mas que, a rigor, no podem ser pensados como instncias separadas, um se relacionando com o outro, porm, sem coincidirem. Com efeito, a contrao faz convergir os casos de repetio para um lugar onde eles se interpenetram, se ligam e onde aparece uma diferena que qualifica a multiplicidade destes casos como uma sucesso temporal determinada. Esta diferena a diferena entre o passado e o presente que coexistem virtualmente na durao.

    Mas por que motivo Bergson insiste em falar desta coexistncia virtual, desta fuso do antes e do depois como se se tratasse de uma sucesso pura, sem a distino dos momentos, uma sucesso puramente interna? Porque a coexistncia do antes com o depois inseparvel da produo do novo, ela o lugar da criao. O que surge como novidade a diferena, que expressa pela nossa conscincia como qualidade sensvel. De outro modo, se os dados bem definidos que ocupam a nossa conscincia e a nossa percepo sob a forma de qualidades sensveis fossem supostos como dados homogneos e j prontos, deixaramos de compreender todo este processo temporal pelo qual eles se constituem.

    Assim, se Bergson fala da coexistncia virtual porque ele visa a diferena como princpio de constituio dos dados imediatos da conscincia. Ao invs de partir da compreenso de uma realidade inteiramente pronta de antemo, sua concepo da durao lhe permite pensar a realidade como resultado de um processo que se continua. no se fazendo que Bergson fixa sua ateno. O que o filsofo ganha em alcance conceitual ao se apoiar nesta perspectiva corresponde exatamente ao que a sociologia da memria perde, ou negligencia, ao considerar a realidade to somente por seu aspecto j feito atravs de seus contedos institudos, isto , a Criao.

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    Se para Halbwachs (1994) os quadros sociais da memria so um sistema rgido e imvel, inteiramente dado a priori como princpio de organizao e manuteno dos grupos no qual as lembranas se adquam, porque ele ignora a diferena e a novidade que participam de sua composio. Ao desconsiderar a dimenso processual da realidade, o socilogo deixa de lado as diferenas de natureza entre os aspectos materiais da percepo e as lembranas que deles decorrem, compreendendo apenas as diferenas de grau que compem os diversos quadros da memria. Enfim, ao ignorar a coexistncia virtual dos dados contrados na durao, Halbwachs acaba por negar a heterogeneidade da memria e a natureza do tempo, terminando por atribuir a conservao/manuteno das lembranas aos aspectos estticos e objetivos do mundo.

    A perspectiva substancialista de Halbwachs sobre a memria12, a partir da qual atribui ao presente e ao passado apenas uma diferena de grau, o impede de compreender como Bergson pensa a sobrevivncia do passado em dois nveis que diferem por natureza, mas que nem por isso deixam de se relacionar, isto : o corpo e o esprito. Por sua vez, Halbwachs se apia apenas na linha objetiva da realidade, que espacial e exterior, e qual ele atribui a sobrevivncia do passado em quadros rgidos e imveis. Neste sentido, ao ignorar as diferenas de natureza entre o presente e o passado, o socilogo trata as lembranas apenas por seu aspecto j atualizado, isto , presente, como se o processo de atualizao no produzisse qualquer transformao em sua natureza. Mesmo quando distingue e ope memria individual e memria coletiva, Halbwachs (1994) no aponta qualquer diferena de natureza entre ambas, importando to somente enfatizar a primazia da memria coletiva frente memria individual.

    Ao contrrio de Halbwachs, todo o esforo de Bergson em Matire et Mmoire consiste em pensar exatamente como estas duas dimenses da realidade entram em circuito e, por fim, no podem ser pensadas de modo separado. No entanto, fora de uma necessidade exclusivamente didtica, Bergson comea por tratar as duas memrias separadamente, para, em seguida, mostrar como elas se mantm ligadas por uma tenso contnua.

    12 A teoria da memria social ou coletiva de Halbwachs compreende que a memria coletiva e a memria

    individual possuem ou derivam da mesma substncia, caso contrrio elas jamais poderiam se relacionar. a partir do mesmo argumento que Halbwachs critica a teoria da memria de Bergson, pois este compreende que a percepo e a memria diferem em natureza, isto , no procedem da mesma substncia, mas so pensadas sempre em relao.

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    2 - SOBREVIVNCIA E RECUPERAO DO PASSADO: MEMRIA E RECONHECIMENTO.

    Segundo Bergson, o passado sobrevive sob duas formas distintas: de um lado, sob a forma de mecanismos motores no corpo e, de outro, sob a forma de lembranas independentes no esprito. Para cada uma dessas duas formas de memria, Bergson ir atribuir um tipo de reconhecimento, um que se faz de modo automtico ou por aes, e outro que atualiza imagens na conscincia.

    O corpo e a memria-hbito.

    Do lado do corpo, temos o que Bergson chamou de memria-hbito. Trata-se de uma memria fixada no organismo, concernindo ao conjunto dos mecanismos inteligentemente montados que asseguram uma rplica conveniente s diversas interpelaes possveis. Esta memria permite que

    nos adaptemos situao presente, e que as aes sofridas por ns se prolonguem por si mesmas em reaes ora efetuadas, ora simplesmente nascentes, mas sempre mais ou menos apropriadas. Antes hbito do que memria, ela desempenha nossa experincia passada, no exigindo a evocao de qualquer imagem (Bergson, 1965, p. 168).

    Neste sentido, no se trata de uma representao, mas de uma ao. Nela, a lembrana adquirida pela repetio de um mesmo esforo, e exige inicialmente a decomposio e depois a recomposio da ao total como, por exemplo, no ato de aprender uma lio. Repetimos cada parte da lio (decomposio) um determinado nmero de vezes at que possamos repeti-la inteiramente (recomposio). A, a lembrana da lio, enquanto aprendida de cor, ter todas as caractersticas de um hbito e, dessa forma, ela se armazenar num mecanismo, num sistema fechado de movimentos automticos que iro se suceder na mesma ordem e cuja execuo exigir um tempo determinado que necessrio para desenvolver um a um todos os movimentos de articulao, isto , cada parte que compe a lio inteira (Bergson, 1965).

    Percebemos, ento, que uma vez aprendida uma lio, ela faz parte do meu presente da mesma forma que meu hbito de caminhar ou de escrever; dessa forma, ela vivida, ela agida, mais que representada (Bergson, 1965, p. 85). A ao aprendida

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    se apresentar, portanto, como uma seqncia de movimentos coordenados em uma ordem determinada e dar a rplica mais eficaz s interpelaes do mundo exterior. Por outro lado, as representaes que marcam cada repetio, cada momento de sua produo so independentes da lio enquanto hbito, tanto que este pode passar sem elas (Bergson, 1965).

    Mas como toda percepo se prolonga normalmente em ao nascente e, na medida em que as imagens, uma vez percebidas, se fixam e se alinham na memria, os movimentos que as continuam acabam por modificar o organismo, criando no corpo disposies novas para agir, novos hbitos, referentes s novas experincias (Bergson, 1965). Assim se deposita no corpo uma experincia de ordem bem diferente, sob a forma de mecanismos inteiramente montados, numa srie de reaes cada vez mais numerosas e variadas s excitaes exteriores. So estes mecanismos que formam uma memria-hbito, memria sempre voltada para a ao, assentada no presente e visando apenas o futuro; memria que retm das experincias passadas somente os movimentos inteligentemente coordenados que representam seu esforo acumulado pela repetio; memria que no representa nosso passado, mas que o encena, prolongando um efeito til adquirido no momento presente (Bergson, 1965).

    O Esprito e a Memria-Lembrana.

    Coextensiva conscincia, esta memria retm e alinha uns aps outros

    todos os nossos estados na medida em que eles se produzem, dando a cada fato seu lugar e, conseqentemente, marcando-lhe sua data. Diferindo da memria-hbito, que no sai do presente e que recomea a todo instante, a memria-lembrana se move efetivamente no passado (Bergson, 1965).

    sob a forma de imagens-lembranas que a memria-lembrana registra todos os acontecimentos de nossa vida cotidiana na medida em que se desenrolam, atribuindo a cada fato seu lugar e sua data13. No possuindo segunda inteno de utilidade prtica, ela acaba por armazenar o passado pelo mero efeito de uma necessidade natural (Bergson, 1965, p. 86), de forma que seria somente atravs dela

    13 Veremos adiante, quando Bergson tratar da conservao das lembranas, que ele falar de uma

    Memria Ontolgica e no mais de uma memria-lembrana. No entanto, o contexto em que se situa a memria-lembrana o do reconhecimento atento, e falaremos de uma memria ontolgica quando tratarmos do problema da conservao das lembranas puras.

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    que se tornaria possvel o reconhecimento de uma percepo j experimentada e a evocao de lembranas passadas14 (Bergson, 1965).

    Ocorre, entretanto, que o registro de fatos e imagens nicos em seu gnero pela memria-lembrana se processa em todos os momentos da durao15; mas como as lembranas aprendidas so mais teis ou dizem respeito s necessidades do momento atual, repara-se mais nelas, colocando os hbitos em primeiro plano e tomando-os como modelo de lembrana (como aquilo que responde imediatamente). No entanto, esse hbito s lembrana pelo fato de que me lembro de t-lo adquirido, e s me lembro de t-lo adquirido por que recorro memria-lembrana, memria que data os acontecimentos e s os registra uma vez (Bergson, 1965).

    preciso compreender que a ao se desenrola sempre no presente e que as imagens sobrevivem no passado. Estas duas dimenses do tempo diferem por natureza: uma referente matria, e a outra como marca da memria. Tal diferena de natureza no levada em considerao pela perspectiva sociolgica da memria, na qual Halbwachs substancializa o presente e o passado sob a forma de quadros imveis constitudos por representaes. Sob esta perspectiva, a concepo de memria vai repousar sobre uma outra distino.

    Halbwachs e a memria coletiva.

    Em sua perspectiva sociolgica da memria, Halbwachs vai operar a distino entre uma memria individual e uma memria dos grupos, que a memria coletiva. Nesta concepo, a memria individual seria, a rigor, definida como uma mnada16, como uma unidade de memria fechada em si mesma, sem relao com outras memrias, isto , justo o oposto da memria coletiva. No entanto, o esforo de Halbwachs visa demonstrar que toda lembrana individual j um fenmeno coletivo, na medida em que preciso remeter aos quadros sociais para poder represent-la17. Neste sentido, a memria individual

    14 Mais adiante veremos que a memria-lembrana, mesmo no se produzindo em funo da tarefa

    adaptativa, auxiliar a ao do corpo oferecendo as lembranas que facilitem a atitude mais eficaz. 15

    Constataremos mais adiante como percepo e lembrana surgem simultaneamente ao abordarmos o problema do nascimento das lembranas puras. 16

    Halbwachs (1994) compreende a mnada no sentido em que Leibniz define este conceito, como uma unidade fechada, e que difere do modo como Tarde ir retom-lo em sua microssociologia, como veremos no prximo captulo. 17

    Veremos no captulo seguinte que Tarde (1999a) compreende toda coisa como uma sociedade, de maneira que no haveria fenmeno simples na natureza, logo, que a memria individual seria j um

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    como uma parte e como um aspecto da memria do grupo, j que toda impresso e todo fato, mesmo o que lhe concerne o mais exclusivamente, guarda apenas uma lembrana durvel na medida em que se a ligou aos pensamentos que nos vem do meio social (Halbwachs, 1994, p. 144).

    Dessa forma, entre a memria individual e coletiva haveria apenas uma diferena de grau, j que ambas seriam formadas da mesma substncia. Para Halbwachs, todavia, o que viabiliza que estas duas memrias entrem em relao, englobando-as exteriormente numa mesma esfera, a memria social, isto , os quadros sociais. So estes quadros que vo permitir a interao da memria individual e da memria coletiva, como uma totalidade que as liga. Assim, participando da mesma substncia, Halbwachs considera que as nossas lembranas so, ao mesmo tempo, lembranas dos outros, na medida em que portam vestgios de cenas compartilhadas por outros, inserindo-se num quadro espacial e temporal comum (Halbwachs, 1994).

    Em oposio a Bergson, ao qual Halbwachs atribui uma concepo de memria psicolgica e individual, Les cadres sociaux de la mmoire tem como objetivo pr em evidncia que a memria essencialmente um fenmeno coletivo. De modo geral, com a noo de quadro social Halbwachs pretende substituir a teoria das duas memrias extremas de Bergson. A, o pensamento sociolgico de Halbwachs se sustenta a partir da idia de uma primazia da memria coletiva sobre a memria individual, na medida em que considera que no h memria que se produza fora de um contexto social. Ou seja, em seu conceito de memria social, Halbwachs pe o acento e concerne uma superioridade ao segundo termo do sintagma, elegendo o social como um aspecto transcendente em sua teoria da memria. Disto decorre que no seria possvel lembrar-se de algo sem se colocar de incio no ponto de vista dos outros com os quais compartilhamos experincias, uma vez que na sociedade onde, normalmente, o homem adquire suas lembranas, que ele se lembra delas e que ele as reconhece e as localiza (Halbwachs, 1994, p. VI).

    Neste sentido, para nos lembrarmos de algo preciso antes que possuamos os quadros que asseguram a sobrevivncia das lembranas, a partir dos quais devemos

    fenmeno coletivo. Porm, apesar desta suposta proximidade com Halbwachs, Tarde no estabelece qualquer superioridade de sobredeterminao dos fenmenos coletivos aos fenmenos individuais e que no h qualquer dicotomia entre ambos, mas antes visa mostrar como estes termos emergem de um mesmo processo. Ao contrrio do socilogo, onde a relao entre indivduo e sociedade se faz exteriormente, Tarde compreende que a emergncia de ambos de um mesmo processo denota que eles se relacionam internamente, de modo que no podem ser pensados como instncias separadas e opostas, tal como o faz Halbwachs.

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    nos remeter memria de outros homens com os quais compartilhamos situaes e informaes. Neste sentido, de acordo com Halbwachs, no existe memria possvel fora dos quadros dos quais os homens que vivem em sociedade se servem para fixar e reencontrar suas lembranas (1994, p. 79). Os quadros sociais so um conjunto de pontos de referncia externos aos indivduos, isto , um sistema esttico (imvel), coercitivo e compartilhado nos quais as nossas lembranas so dispostas numa ordem imutvel e que se impem a ns de fora (Halbwachs, 1994, p. 20). Neles est compreendido o individual, o coletivo, o conjunto das pessoas prximas, o meio material e os costumes. Estes quadros espaciais, temporais e sociais correspondem, portanto, ao conjunto de representaes estveis e dominantes que nos permite lembrar vontade os acontecimentos essenciais de nosso passado (Halbwachs, 1994, p. 101). Por fim, os quadros sociais vo se constituir como os instrumentos a partir dos quais a memria e o pensamento individual dependero para recuperar as imagens do