memÓria e criaÇÃo no sertÃo da bahia

Upload: alanabraun

Post on 04-Apr-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA

    1/15

    1230

    19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas

    Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil

    MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA:RELATO DE UMA EXPERINCIA COM PROFESSORES EM FORMAO

    Giovana DantasInstituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia da Bahia

    RESUMO

    Este artigo relata a construo e a aplicao da oficina Processos Criativos, que foirealizada com professores da rede estadual de ensino da cidade de Senhor do Bonfim eregies vizinhas, que esto cursando Licenciatura em Artes pelo PROESP um programada Universidade do Estado da Bahia para qualificao docente. Existiam princpios eobjetivos especficos a serem cumpridos, mas o xito do trabalho dependeria tambm deativar nos alunos fatores como percepo, sensibilidade, imaginao criativa, acolhimento

    dos acasos, ateno s pr-disposies internas e pesquisa de materiais disponveis. Oobjetivo era fazer com que cada professor em formao vivenciasse seu prprio processode criao e desenvolvesse um produto artstico. Todos os trabalhos foram individualmenteorientados.

    Palavras-chave: professor-formao-processo criativo

    ABSTRACT

    This article reports on the construction and implementation of the workshop "Creative

    Processes" for teachers in state schools in the city of Senhor do Bonfim and neighboringareas who are pursuing a Bachelor in Arts from PROESP a program of the University ofBahia for teaching qualification . There were principles and specific goals to be achieved, butthe successful outcome also depended on the development of perception, sensitivity,creative imagination, openness to contingent events, emotional self-awareness, and theability to explore available materials. The goal was to help every teacher in training live his orher own process of creation and develop an artistic product. All projects were individuallysupervised.

    Keywords: teacher-training-creative process

    INDAGAES SOBRE UMA OFICINA DE CRIAO

    Viajei algumas vezes ao serto da Bahia em 2009, especificamente para a cidade de

    Senhor do Bonfim. Levava na bagagem a tarefa de ministrar o mdulo Processos

    Criativos para uma turma de Licenciatura em Artes do PROESP um programa de

    qualificao de professores da Universidade do Estado da Bahia, que possibilita a suagraduao, fazendo com que se atualizem nas suas respectivas reas de atuao.

    Pelo caminho de asfalto cortando a terra seca, ia refletindo sobre o perfil da turma que

  • 7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA

    2/15

    1231

    19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas

    Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil

    me aguardava. Mirava a paisagem buscando uma justa e necessria aproximao com

    as diversas cenas, da natureza, ou de pessoas que iam mostrando seus afazeres,

    enquanto passavam por mim. A construo da metodologia de uma disciplina como

    esta, tambm concebida como processo. Existiam princpios e objetivos especficos a

    serem cumpridos no programa, mas o xito do trabalho dependeria de conseguir ativar

    nos alunos fatores como percepo, sensibilidade, imaginao criativa, acolhimento

    dos acasos, ateno s pr-disposies internas e pesquisa de materiais disponveis.

    Naquele momento, eu viajava e refletia sobre esta tarefa. Resolvi, ento, que a

    abordagem dos contedos deveria acontecer atravs de uma linguagem simples e

    precisa, criando inicialmente um campo de compreenso sobre os possveis caminhos

    a se seguir para a construo da obra de arte, e isto implicava tambm conhecer umpouco da sua histria, dos seus conceitos, tcnicas, elementos construtivos, sua leitura

    e suas manifestaes contemporneas etc. Esbocei uma ementa inicial, que

    propiciaria uma reflexo acerca do processo de criao como uma rede de relaes,

    cujo percurso englobaria diferentes fases. O objetivo era fazer cada professor em

    formao vivenciar o seu prprio processo, de modo que desenvolvesse um produto

    artstico, ao mesmo tempo em que deveria refletir sobre os conceitos relativos ao tema,

    investigar autores, estudar alguns casos. Vi que seria importante focar uma atenoespecial nas possibilidades tcnicas, materiais e simblicas que se ofereciam ao

    trabalho que seria desenvolvido naquela regio. Outro ponto a ser observado era a

    experincia pessoal de cada pessoa do grupo, como tambm as suas imagens

    coletivas. Ainda inseri no programa o exerccio da reflexo sobre a experincia do

    processo criativo atravs da elaborao de um memorial, e aulas expositivas para a

    compreenso da emergncia de sistemas artsticos. Lembrei da necessidade de

    abordar questes relativas transdisciplinaridade, s motivaes poticas vindas deoutras reas de conhecimento, e constatei que estava diante de um desafio. Sabia que

    parte do contedo viria no fluxo da prpria construo do conhecimento que se daria

    ao longo daqueles dias, por isso deixei um espao de tempo em aberto, algumas

    pginas em branco neste caderno de anotaes.

    O PERFIL DA TURMA

    A turma era formada por professores do estado, que atuavam nas escolas deSenhor do Bonfim e de regies vizinhas. Estes no possuam qualquer referncia de

    contedo artstico, com raras excees. No conheciam museus, galerias de arte;

  • 7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA

    3/15

    1232

    19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas

    Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil

    no possuam repertrio em arte, nem noes do sistema no qual circula a produo

    artstica. Tive que partir quase do zero.

    Minha primeira ao foi tentar descobrir o que seria arte na sua viso. Percebi que amaioria deles tinha uma nica resposta o objeto de arte como algo bonito e agradvel.

    Muitos falavam do artesanato. Nada sabiam sobre processo criativo e, na verdade,

    esperavam que o curso oferecesse algumas novas tcnicas para aplicao imediata em

    sala de aula, compondo o contedo passado para seus alunos, como vem ocorrendo

    nos programas de qualificao de docentes em arte, nos quais o aprendizado se d de

    forma fragmentada, sendo centrado exclusivamente na prtica, ou na tcnica, sem

    nenhum tipo de reflexo. Para estes professores em formao, a concepo do

    produto artstico dependeria da famosa inspirao, da habilidade conquistada ou de um

    dom divino. Percebi que havia resistncia em relao proposta, pois os objetivos do

    curso estavam bem distantes das expectativas ali reveladas. No entanto, alguns alunos

    afirmaram compreender a arte como sendo uma possibilidade de expresso de idias e

    sentimentos, e a tive um ponto de partida. Pedi que falassem mais sobre o que seria

    arte. Discutimos a no necessidade da obra acabada, ou que agradasse. Falamos

    sobre a obra que no se enquadrava nos padres tradicionais de beleza, sobre a

    instituio que a abriga, sobre o no compromisso do uso utilitrio ou decorativo da

    obra de arte. Vi muitos olhares surpresos ao se depararem com exemplos da arte

    contempornea durante as projees de imagens. Procurei, ento, diversificar o modo

    de passar os contedos aplicando aulas expositivas com material visual, propondo a

    discusso de textos previamente indicados para leitura, promovendo uma exposio

    participativa, abordando tpicos relativos linguagem artstica passando por diferentes

    pocas e contextos culturais. Como prioridade da exposio do contedo geral, tive o

    cuidado de trazer para discusso a questo da espacialidade na pintura e,

    posteriormente, das novas configuraes espaciais da arte contempornea, como

    tambm questes relativas percepo visual e ao processo criativo em especial.

    DIRECIONAMENTOS INICIAIS

    A experincia da arte no processo de ensino aprendizagem contempla aes que

    passam pela fruio e construo da obra, e pela sua reflexo, integrando diversos

    aspectos que devem ser abordados atravs de conexes mltidirecionais, com

    interpenetrao de contedos, que no se alinham necessariamente nesta ordem,

  • 7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA

    4/15

    1233

    19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas

    Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil

    mas estabelecendo ligaes em rede. Lembro que na leitura da obra de arte certas

    aes so convocadas, como: a apreciao livre da obra; a investigao dos seus

    elementos e tcnicas; o contexto no qual aquela manifestao est inserida; a

    relao da obra visual com textos literrios, msica, teatro, e outras reas do

    conhecimento, sem permitir, claro, que a obra seja usada apenas como ilustrao.

    Quanto construo artstica (processo criativo), pode ter seu ponto de partida nas

    provocaes poticas, estmulos de curiosidade, em situaes de estranhamento.

    Pode-se tambm promover o estabelecimento de relaes, causais ou no, que

    incluam situaes do campo da arte, tomando referncia de imagens do cotidiano e

    da experincia vivida pelo aluno. necessrio incentivar a experimentao de

    materiais, a liberao da imaginao criativa, colher informaes, permitir sensaesque colaborem com o agenciamento do processo criativo.

    O memorial descritivo do trabalho, por sua vez, tambm deve ser concebido como

    processo. Na verdade, ele um texto autnomo, cujos parmetros estticos de sua

    construo e fruio podem at estar desvinculados da obra realizada. Como objeto

    em processo, sua escrita no pode ser concentrada aps a finalizao do trabalho.

    Alm de possuir significado prprio, o memorial colabora com a compreenso tanto

    do resultado individual quanto do resultado em grupo daquela realizao, revela

    como se conectou contedos diversos no decorrer do processo. Tambm vale a

    pena refletir sobre os modos de exposio do trabalho realizado, o planejamento da

    expografia, o projeto do material grfico de divulgao etc. Todos os links possveis

    vm colaborar com a expanso do conhecimento, com o contexto de aplicao dos

    processos criativos no ambiente de ensino e aprendizagem. Todos esses pontos

    significavam um diferencial, pois a oficina se destinava a um grupo de professores,

    que deveria saber reproduzir em sala de aula no s o conhecimento adquirido, mas

    todo o aprendizado da construo.

    CONTEDOS ABORDADOS

    A maior parte das questes levantadas nas diversas reas que discutem aspectos e

    conceitos das artes visuais est relacionada ao envolvimento do espectador com o

    objeto artstico. Conhecer as variaes existentes na concepo da espacialidade no

    campo da arte colabora com a sua compreenso e a sua leitura, proporciona o

    conhecimento de seus novos artistas e obras, alimentando um repertrio artstico.

  • 7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA

    5/15

    1234

    19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas

    Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil

    Por este vis tambm possvel entender as mudanas que vieram com as

    modificaes tcnicas, a questo do belo na arte, a valorizao do processo e do

    inacabado. Esta base de conhecimento tambm incentiva o projeto criativo, pois

    esclarece sobre as novas formas expressivas da contemporaneidade. Segue um

    breve resumo do contedo central dado e discutido no curso, e que foi

    acompanhado por um extenso material visual, para exemplificar a diversidade das

    produes artsticas e promover uma introduo histria da arte.

    O espao plstico na pintura, na escultura, na instalao, na fotografia e no cinema, ou

    seja, no campo das artes visuais em geral, tem sido concebido com o propsito de

    envolver o espectador, fazendo-o interagir com a obra e modelando, assim, a

    qualidade da experincia que emerge da sua relao com esta. Por este motivo, o

    estudo do espao vem sendo alvo de constantes reformulaes nas prticas e teorias

    estticas contemporneas. Ao se abordar o termo "pintura", no entanto, devem ser

    consideradas todas as modificaes que sofreu e sua hibridizao com outros gneros

    artsticos. A pintura, como meio de expresso simblica, alm de ter cdigos

    diferenciados nas vrias culturas do planeta, ao longo da histria, no permaneceu

    esttica nas suas concepes tcnicas e estticas. A construo de uma espacialidade

    na pintura j se verifica a partir do seu nascimento, ou seja, no Paleoltico Superior da

    Pr-Histria (30.000 a 10.00 a.C.). O desenho da "mo em negativo" nas paredes das

    cavernas, uma das primeiras manifestaes da imagem na histria da humanidade,

    possui a sua referncia de espacialidade. O contato direto do corpo do artista com o

    suporte ( a pedra) deixa documentado no s a imagem, mas tambm o gesto. Essa

    experincia, que entrelaa o sujeito criador e a obra, se aproxima, em termos de

    conceitos espaciais, da prpria arte moderna e contempornea, em que o valor

    esttico do objeto depende, e muito, do processo e do mtodo da sua construo. O

    envolvimento corporal que o artista mantm com seu objeto nesse tipo de pintura, nos

    remete a procedimentos da arte do sculo XX, como por exemplo, ao trabalho de

    Jackson Pollock. Ele pinta atravs de movimentos impetuosos, anda sobre a tela,

    aplicando a tinta num ato quase dramtico, utilizando-se do seu deslocamento corporal

    sobre esse suporte, onde ele, o seu corpo e a sua emoo influenciam os resultados

    da sua pintura. O contato dos alunos com o trabalho de Pollock acentuou a velha

    indagao: Isto arte? Foi um bom incio, e uma brecha para falarmos deperformance, pintura gestual, arte abstrata, processo etc.

  • 7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA

    6/15

    1235

    19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas

    Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil

    A idia da pintura como representao mimtica da realidade, que oculta as

    convenes de sua construo, faz parte de uma tradio que se inicia no

    Renascimento e se estende at o sculo XIX. Essa idia vai ser contestada pela arte

    moderna. A representao espacial na pintura, que tem como princpio a perspectiva

    geomtrica, passa por significativas transformaes no incio do sculo XX. Iniciar o

    aluno no exerccio de ver a pintura e no s o que ela representa uma das grandes

    dificuldades na formao de professores em arte. Em geral, a disciplina solicitada

    para ilustrar outros assuntos como de histria, geografia, sem haver o mnimo de

    esforo para que se concretize a leitura da imagem, de modo que este texto visual

    possa colaborar com a construo do conhecimento. De fato, a perspectiva confere ao

    espao a iluso do real, mas no podemos esquecer que se trata de uma visohistrica, ou seja, uma mera conveno para compreenso do espao naquele

    determinado contexto social. A criao da perspectiva linear no Renascimento italiano

    foi um processo complexo, que se estendeu por sculos. Cada perodo desenvolve seu

    prprio mtodo de "ver" o mundo, seja sob influncia cientfica, tecnolgica ou religiosa.

    A arte barroca, por exemplo, abandona o esquema de viso esttico, racionalizado e

    preso a um ponto central e fixo, quando introduz o princpio formal da concha como

    possibilidade compositiva. O ponto de fuga se desloca para fora do centro, fora doquadro, ou at se multiplica, criando assim instabilidade e ambigidade na composio.

    O universo torna-se assimtrico, irregular, dinmico e autnomo. Para exemplificar

    estes dois conceitos de espacialidade, apresentei aos alunos duas pinturas citadas por

    Fayga Ostrower (1991), que mostram as imagens da ltima Ceia, de Leonardo da Vinci

    e a de Jacopo Tintoretto. Nesta, a posio de Cristo entre os discpulos, deslocado para

    a lateral, dinmica, faz parte de uma viso geral em que Tintoretto descentraliza todo o

    espao figurado, introduzindo eixos diagonais, e desloca os pontos de fuga para oslados, submetendo assim o espao a uma movimentao transversal. Se nos quadros

    de Leonardo da Vinci o universo visto como um invlucro simtrico e regular, cujas

    tenses espaciais so contrabalanadas por ritmos, em Tintoretto o universo assume

    forma assimtrica, irregular, acelerando-se em recuos diagonais e fortes tenses.

    Partindo da leitura destas imagens, consegui abrir um espao de curiosidade e

    investigao da arte nos perodos do Renascimento e do Barroco. Mesmo que eles

    ainda no dominassem este contedo, a pedra de curiosidade havia sido lanada.

  • 7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA

    7/15

    1236

    19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas

    Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil

    A representao do espao com base na perspectiva geomtrica alcana sua

    automatizao com o advento da fotografia, quando a pintura perde a sua funo

    primordial de retratar o mundo e comea a sofrer uma profunda modificao nas

    suas bases estticas, comparvel s mudanas que a perspectiva linear dos sculos

    XV e XVI tambm provoca na forma de perceber o universo. Neste momento,

    introduzi na explanao os trabalhos de Czanne e Van Gogh, preparando os

    olhares para a arte moderna. A pintura moderna no mais opera com a iluso de

    profundidade, mas emprega vrios meios que indicam outros princpios de

    espacialidade, como o uso constante das superposies, rebatimentos,

    transparncias, deformaes, gradao de tamanho, de tonalidade, diluio da

    figura. No sculo XX tambm aparecem as instalaes, performances, land art,intervenes, e as mais diversas maneiras de inserir o espao na construo

    artstica. Apresentei para a turma alguns artistas e obras.

    As aulas aconteceram sempre com espao aberto para as indagaes, e no foram

    poucas. Houveram muitos estranhamentos, mas no final, perceberam que naquele

    momento se abria um mundo de possibilidades na construo do objeto artstico.

    Seus olhos brilharam.

    O PROCESSO ARTSTICO

    No terceiro dia de aula iniciei a orientao para a construo de um trabalho prtico,

    que seria finalizado no prximo encontro. Conversei individualmente com cada um

    deles, com o objetivo de fazer aflorar experincias, imagens, incmodos que

    pudessem ser transformados em ganchos poticos. Os alunos foram incentivados

    elaborao de um produto artstico, acompanhado de memorial, como trabalho final.

    Ao longo das prticas criativas, surgiram novos questionamentos e outros contedos

    foram sendo inseridos. Conhecimento implica construo, ao, trabalho. Por isso,

    todo contedo inicial oferecido nos primeiros encontros estava compondo um terreno

    aprazvel para o incio do processo criativo. Procurei, assim, valorizar o repertrio

    pessoal de cada indivduo, suas referncias e imagens, vocabulrio, diferentes ritmos,

    na busca de motivaes internas e possveis ligaes que pudessem deflagrar a

    tenso criativa, a vontade de realizar, ou melhor, os devaneios da vontade, to bem

    discutidos por Gaston Bachelard. Em A terra e os devaneios da vontade, ele nos

    oferece um espao confortvel de reflexo quando nos possibilita compreender que

  • 7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA

    8/15

    1237

    19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas

    Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil

    Experimentando no trabalho de uma matria esta curiosa condensao das imagens

    e das foras, viveremos a sntese da imaginao e da vontade. E complementa:

    Mas, evidentemente, a realidade material nos instrui (2008:21). Entendo, neste caso,

    que as materialidades se concretizam no plano das coisas e no plano simblico

    Bachelard coloca o indivduo em posio de construtor em ao. Solicitei, ento, a

    leitura do texto A potica do espao (1993), o que gerou nos alunos um misto de

    incompreenso, surpresa e estranhamento, mas tambm de aproximao e

    identificao. Lanar um olhar diferente para tudo que pudessem ver foi uma

    solicitao ou provocao posta para a turma. Alguns processos de trabalho tiveram

    a o seu ponto de partida. Durante a oficina, foram abordados tpicos como: o

    processo criativo e a construo da obra de arte; criao como rede; fases doprocesso criativo; a intuio e a tenso criativa; memria e referncias pessoais; os

    primeiros ganchos poticos; a funo dos erros e acasos. Para exemplificar o

    resultado desta oficina, selecionei trs obras, de diferentes linguagens, que

    evidenciam o caminho percorrido pelos alunos. So elas: o trabalho de Raimunda de

    Souza (Runas do Passado), que desenvolveu uma instalao ao ar livre, no meio da

    caatinga; o ensaio fotogrfico de Ailton Ribeiro e Euzilar Cedraz (Bom incio e fim de

    feira), que registrou flagrantes da feira de Senhor do Bonfim, realizando a partir desteolhar, um texto de cordel; e as esculturas de Maria Cerilene e Celeste Duarte (A

    mulher e o barro), que juntas vivenciaram a tcnica de manufatura da cermica local,

    tirando desta experincia o seu objeto de arte. Todos os trabalhos foram orientados

    individualmente. Acompanhei o processo de cada um e tentei suprir as necessidades

    de informaes sobre tcnicas ou referenciais tericos, exemplificando aes

    similares realizadas por outros artistas. Acompanhava-os de perto, encorajando-os.

    RUNAS DO PASSADO

    No trabalho de Raimunda, as primeiras imagens (lembranas da infncia na caatinga,

    a casa de taipa em runas) conduziam o processo para uma instalao. Passei-lhe

    alguns conceitos desta forma de expresso, bem como de artistas e obras. Senti sua

    inquietude ao compreender as possibilidades que existiam para a construo do

    objeto de arte. Trazia com ela uma forte carga da sua histria, de sua memria.

    Percebi um desejo, anterior mesmo a qualquer tipo de instruo, de dar um novosignificado quelas imagens que faziam parte da sua vida. Para isso, Raimunda foi

    em busca de todas as relquias (utenslios, objetos, ferramentas, fragmentos de cartas

  • 7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA

    9/15

    1238

    19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas

    Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil

    e documentos) do passado, s quais pudesse ter acesso, muitas vezes emprestadas

    dos velhos parentes, e com estas lembranas materiais montou uma instalao,

    tomando como suporte a runa da casa onde ela havia morado quando criana. O

    trabalho foi registrado em fotografias e ficou por alguns dias exposto no meio da

    caatinga, interagindo com os passantes daquele local. Relata Raimunda:

    Para chegar at o local, convenci os meus familiares a me acompanharem,pois para eles no era interessante esse processo de criao artstica.Chegando l, fiz toda uma preparao do trabalho nas paredes querestaram da minha antiga casa. Montei uma instalao ao ar livre, tomandocomo espao a velha runa. Foi um trabalho muito emocionante, pois revivitodos os momentos marcantes do passado, e as lembranas afloraram emminha mente. Lembrei-me de um papagaio sabido e fofoqueiro, que contavapara a mame tudo que aprontvamos na sua ausncia; o mesmo morreu

    de uma forma muito trgica, raptado pelo gato-do-mato, gritando socorro,Z... Z. O silncio, o vento, a natureza passa uma paz que me levou arefletir e perceber que as coisas mais singelas da vida me deixam muitofeliz. Atrs da minha antiga casa velha tinha uma pedra, em que meu pai,ao chegar do trabalho, sentava comigo no colo e cantava essa cano: Emcima daquela serra, passa boi, passa boiada. Tambm passa aRaimundinha dos cabelos cacheados. Tudo isso so lembranas quejamais vo se apagar. (Raimunda de Souza, 2009)

    Raimunda de SouzaRunas do passado Instalao, 2009Senhor do Bonfim - Bahia

  • 7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA

    10/15

    1239

    19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas

    Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil

    BOM INCIO E FIM DE FEIRA

    Ailton e Euzilar investigaram princpios da linguagem fotogrfica, noes de

    enquadramento, figura e fundo. Selecionamos artistas de referncia na arte dafotografia. Trabalharam juntos, e ambos j possuam experincia como artistas e

    produtores culturais. Logo compreenderam a proposta e iniciaram os trabalhos de

    pesquisa, observao, recorte do tema escolhido a feira livre da cidade. Por fim,

    produziram um cordel e o ensaio fotogrfico veio acompanhado deste texto popular,

    to freqente nas feiras do interior do nordeste. No memorial elaborado por Ailton e

    Euzilar, pode-se perceber a sua preocupao em valorizar a cultura local, quando

    decidem observar e registrar, com recortes especiais, o cotidiano da feira. O seu

    memorial diz:

    Surge a partir da (dos conceitos abordados) a idia deste trabalho, no qualbuscamos registrar cenas pitorescas do cotidiano sertanejo revelados nafeira. O trabalho foi realizado sob duas perspectivas: uma viso fotogrfica euma viso descritiva cordelista dos personagens e daquele ambiente. Ocordel fala por si como uma linguagem da cultura popular. Estar com acmera na mo pela primeira vez para realizar um trabalho como este nostrouxe, por um lado, receio, preocupao e angstia, mas, por outro lado,muito prazer. (Ailton Ribeiro e Euzilar Cedraz, 2009).

    Ailton Ribeiro e Euzilar Cedraz, 2009Bom incio e fim de feira fotografia

    Senhor do Bonfim - Bahia

  • 7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA

    11/15

    1240

    19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas

    Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil

    Semi-rido bonfinense

    Tem uma singularidade

    No grande Serto baiano

    Terra sem gua e vaidade

    Inda produz resistncia

    Sertanejos de verdade

    Criando bode e galinha

    Produz o seu necessrio

    No campo ou na cidade

    Trabalha de modo vrio

    Indstria ou manufaturaOu patro ou operrio.

    Se esfora, faz fora, vai a roa

    Na tenda ou, ainda na fazenda.

    Pega tudo traz pra venda

    Pem a roupa se remenda

    Traz o ovo e a galinha

    O feijo e a farinha

    De jerico ou de carroa

    Traz goiaba, traz umb

    Aipim bolo de puba

    Tapioca traz beiju,

    Traz o coco, traz corante,

    O azeite e o urucum

    Tem gente j na festana

    Bebendo pinga ou cerveja

    Vivendo na contradana

    De fazer o que deseja

    Se de trabalhar se cansaNa hora de beijar beija

    J outros na vaidade

    Faz o que muitos queria

    Trs vestidos pra Joana

    Duas calas pra Malaquias

    Cavalo bom para Alfredo

    Arreios pra montaria

    Jegues pastam ao fim da feira

    Ajudando na limpeza

    Cachorros em baixo de bancas

    Gatos em cima das mesas

    Se a feira findar desse jeitoPosso dizer foi beleza

    Assim o povo faz compras

    Sem pensar no j pensado

    Que o homem que fez a feira

    Volta pra casa, cansado.

    Pra cuidar do seu oficio

    E retomar o pesado

    Ailton Ribeiro e Euzilar Cedraz, 2009Bom incio e fim de feira Cordel (fragmento)

    Senhor do Bonfim - Bahia

    Ailton Ribeiro e Euzilar Cedraz, 2009Bom incio e fim de feira fotografiaSenhor do Bonfim - Bahia

  • 7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA

    12/15

    1241

    19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas

    Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil

    A MULHER E O BARRO

    A ao foi realizada na cidade de Jaguarari, prxima a Senhor do Bonfim. Neste

    pedao de cho, Dilssa, uma das poucas mulheres que preserva a cultura damanufatura em cermica, desenvolve este trabalho na sua prpria casa,

    cultivando um saber que foi herdado dos povos indgenas que viveram na

    regio, onde a produo de artefatos usando esta tcnica vem desaparecendo.

    Este recorte da cultura local chamou a ateno de Cerilene e Celeste, que

    buscaram a vivncia com o barro, praticando juntamente com Dilssa. A idia era

    conhecer o trabalho desta ceramista na sua essncia, conhecer o material e

    buscar a sua relao com o corpo feminino. No seu memorial, elas escrevem:

    Expomos a idia do trabalho que era confeccionar peas, sendo que ela(Dilssa) seria nossa modelo. Ela se mostrou bastante feliz com a idia,ainda mais quando dissemos que iramos tirar o molde de seu prpriocorpo. Ela sempre se preocupou em fazer algo de barro querepresentasse sempre outras coisas e agora ns iramos represent-la.No dia combinado estvamos l entusiasmadas para realizar tal tarefaque aos nossos olhos era muito fcil. A idia do trabalho perpassava ouso dos quatros elementos da natureza, o que j proporciona muitoprazer. A terra seca ganha um elemento essencial: a gua, fundamentalpara tornar o barro algo malevel, passvel criao de novas formas,alm de possibilitar o alisamento das peas produzidas. Depois vem o ar

    e o fogo. (Cerilene e Celeste, 2009)

    Imediatamente apresentei-lhes artistas do barro, escultores como Rodin e

    outros, ps-impressionistas, com suas esculturas inacabadas, e a possibilidade

    expressiva na representao do corpo. Elas se empolgaram com as imagens e

    resolveram experimentar o barro na sua essncia.

    Todo esse processo, da retirada do barro da lagoa at a queima dapea, foi difcil de ser executado, pois nos exigiu no s tempo, mas

    muita criatividade, pacincia, persistncia, amor, dedicao e o maisimportante, inspirao, principalmente se a pea no for apenas umaarte utilitria, como potes, vasos etc, peas que seguem um modelo. Sefor algo que transcende, mais complicado, pois a inspirao se faznecessria, e a pea torna-se impar. O nosso desejo de fazer do barronosso instrumento de trabalho foi por ele ser passvel de transformao.Possibilitou-nos erros e acertos sem preocupaes, alm do mesmofazer parte de nossas vivncias e ser bem presente em objetos denossa comunidade. (Cerilene e Celeste, 2009)

  • 7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA

    13/15

    1242

    19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas

    Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil

    Maria Cerilene e Celeste Duarte, 2009

    A mulher e o barro EsculturasJaguarari Bahia

  • 7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA

    14/15

    1243

    19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas

    Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil

    CONCLUSO

    Por muito tempo, a criatividade foi entendida como um dom, um talento divino.

    Porm, sabe-se que todos podem desenvolver-se criativamente no seu cotidianoou pela educao. Envolver os alunos em um clima de estranhamento foi

    essencial para o comeo de uma compreenso acerca do que seria trabalhar na

    escola aderindo a esta prtica. E isto se deu atravs da vivncia do processo de

    criao. Estamos falando do afloramento da viso mltipla, necessria a

    qualquer rea do saber. No ambiente da escola, refletir sobre a educao e a

    criatividade afeta diretamente a qualidade das aes pedaggicas. No entanto,

    nos deparamos com a precariedade das prticas artsticas que so aplicadas no

    processo de ensino, o que colabora para ofuscar a importncia da arte no

    currculo. O professor pede aos alunos que faam releituras de artistas

    consagrados; repassa tcnicas artesanais descontextualizadas do seu ambiente

    de origem; coloca seu trabalho a disposio das festinhas de calendrio e

    apresentaes estereotipadas, criando representaes bonitinhas e vazias da

    fora que poderiam ter se houvesse a busca das motivaes internas, pessoais

    e coletivas. Expresses contemporneas como performances, objetos,

    instalaes, arte tecnolgica raramente participam deste repertrio. Por isto,

    entendo que, para haver uma mudana de cenrio, necessrio que o professor

    tenha conhecimento do que seja uma construo em processo. Ele mesmo deve

    vivenciar esta experincia, e este foi o principal objetivo desta oficina.

    Referncias

    BACHELAR, Gaston.A terra e os devaneios da vontade. Ensaio sobre a imaginao dasforas. So Paulo: Martins Fontes, 2008.

    BACHELARD, Gaston.A potica do espao. So Paulo: Martins Fontes, 1993.

    BURKE, Peter. Testemunha ocular. Histria e imagem. Bauru, SP: EDUSC, 2004.

    COUCHOT, Edmond. Da representao simulao: evoluo das tcnicas e das artes dafigurao. In: PARENTE, Andr (Org.). Imagem-mquina: a era das tecnologias do virtual.

    Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. p. 44.

  • 7/29/2019 MEMRIA E CRIAO NO SERTO DA BAHIA

    15/15

    1244

    19 Encontro da Associao Nacional de Pesquisadores em Artes Plsticas

    Entre Territrios 20 a 25/09/2010 Cachoeira Bahia Brasil

    FRANZ, Teresinha Sueli. Educao para uma compreenso crtica da arte. Florianpolis:Letras Contemporneas, 2003.

    FUSARI, M. F. de Rezende e FERRAZ, M. H. C.Arte na educao escolar. So Paulo:Cortez, 1992.

    OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criao. Petrpolis: Vozes, 1987.

    OSTROWER, Fayga. Universos da arte. Rio de Janeiro: Campos, 1991.

    SALES, Ceclia de Almeida. Redes de criao. Construo da obra de arte. So Paulo: Ed.Horizonte, 2006.

    SALES, Ceclia. Gesto inacabado. Processo de criao artstica. So Paulo: FAPESB:Annablume,1998.

    OSTROWER, Fayga. Universos da arte. Rio de Janeiro: Campus, 1991.

    VRIOS. Memoriais produzidos pelos alunos do mdulo: Processos Criativos- PROESP,relatando a sua experincia. Senhor do Bonfim, 2009.

    Giovana Dantas

    Explora fotografia, objetos, instalaes. Trabalha com materiais orgnicos como couro de

    porco retirados da Feira de S. Joaquim, e tambm do mar, resultado da sua passagem pelaResidncia Artstica, Instituto Sacatar, ilha de Itaparica, cujo resultado foi apresentado noMAM-BA (abril/20080). Graduada em Artes Visuais e Doutora em Artes Cnicas pela UFBA.Professora do Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnolgica da Bahia.