memoria historica da capitania de sp- definição e estudo do documento - renata ferreira costa

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A publicação traz informações sobre o contexto histórico, cultural e linguístico do Brasil do século 18, época em que foi publicada a Memória Histórica da Capitania de São Paulo. Além disso, contém a edição semidiplomática – ou transcrição paleográfica – da obra, produzida pelo então escriturário da Secretaria do Governo de São Paulo, Manuel Cardoso de Abreu (1750-1804).

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  • 1

  • MEMRIA HISTRICA DA CAPITANIA DE SO PAULO: EDIO E ESTUDO

    Renata Ferreira Costa

  • GOVERNO DO ESTADO DE SO PAULOGovernadorGeraldo Alckmin

    SECRETARIA DE ESTADO CASA CIVILSecretrioSaulo de Castro Abreu Filho

    ARQUIVO PBLICO DO ESTADO DE SO PAULOCoordenadorIzaias Jos de Santana

    Diretora do Departamento de Preservao e Difuso do AcervoYara Prado Fernandes Pascotto

    Diretora do Departamento de Gesto do Sistema de Arquivos do Estado de So PauloIeda Pimenta Bernardes

    Conselho EditorialAna Clia RodriguesBarbara WeinsteinClia Reis CamargoDenise Aparecida Soares de MouraFernando Teixeira da SilvaJaime RodriguesJames Naylor GreenJeffrey LesserJoo Roberto Martins FilhoJoo Paulo Garrido PimentaYara Aun Khoury

    Coordenao EditorialHaike Roselane Kleber da SilvaPreparao de Originais e Reviso de ProvasGabriel Costa de SouzaJssica Ferraz Juliano Pesquisa de ImagensKarina Gonalves de Souza de OliveiraMaria Luiza Silva CarvalhoCapaHelen Karina Teixeira BatistaProjeto GrficoHelen Karina Teixeira BatistaMaria Luiza de Alvarenga DiniDiagramaoHelen Karina Teixeira Batista

  • MEMRIA HISTRICA DA CAPITANIA DE SO PAULO: EDIO E ESTUDO

    Renata Ferreira Costa

  • NOTA EXPLICATIVA SOBRE ESTE E-BOOKOs direitos sobre todos os textos contidos neste livro eletrni-

    co (e-book) so reservados ao() seu(sua) autor(a) e esto protegidos pelas leis do direito autoral. Esta uma edio eletrnica, no co-mercial, que no pode ser vendida nem comercializada em hiptese nenhuma, nem utilizada para quaisquer fins que envolvam interesse monetrio. Este exemplar de livro eletrnico pode ser reproduzido em sua ntegra e sem alteraes, distribudo e compartilhado para usos no comerciais, entre pessoas ou instituies sem fins lucra-tivos. Em caso de uso acadmico deste e-book, todos os crditos e referncias devem ser dados ao() autor(a) e ao Arquivo Pblico do Estado de So Paulo.

    Arquivo Pblico do Estado de So PauloRua Voluntrios da Ptria, 596, 02010-000, So Paulo-SP

    PABX: (11) [email protected]

    www.arquivoestado.sp.gov.br

  • Agradecimentos

    Meus sinceros agradecimentos...

    ...a Deus, minha famlia, FAPESP, ao professor Heitor Megale e ao Arquivo Pblico do Estado de So Paulo.

  • Sumrio

    Introduo........................................................................................................11

    captulo 1 O sculo XVIII: contexto histrico.....................................................131.1 O Sculo das Luzes.............................................................................................131.2 A Era Pombal......................................................................................................141.3 O Brasil no Sculo do Ouro ..............................................................................161.4 So Paulo no sculo XVIII...................................................................................17

    1.4.1 Educao e cultura na So Paulo do sculo XVIII.................................20

    captulo 2 Manuel Cardoso de Abreu: biografia, bibliografia e autoria............232.1 Informaes Biogrficas.....................................................................................232.2 Informaes Bibliogrficas.................................................................................252.3 Memria Histrica da Capitania de So Paulo: tema e diviso temtica..........282.4 Autoria.................................................................................................................31

    captulo 3 Descrio do cdice E11571...............................................................353.1 Identificao........................................................................................................353.2 Aspectos Codicolgicos......................................................................................35

    3.2.1 Suporte material.....................................................................................363.2.2 Marcas dgua.........................................................................................393.2.3 Cadernos.................................................................................................423.2.4 Encadernao.........................................................................................43

    3.3 Aspectos Paleogrficos........................................................................................473.3.1 Classificao da escrita do cdice..........................................................493.3.2 Alfabeto..................................................................................................493.3.3 Punhos ...................................................................................................533.3.4 Grafemas e seus algrafos......................................................................553.3.5 Emprego de maisculas..........................................................................583.3.6 Abreviaturas...........................................................................................603.3.7 Sinais diacrticos.....................................................................................653.3.8 Translineao..........................................................................................70

  • 3.3.9 Separao Intervocabular......................................................................70 3.3.10 Sinais de pontuao .....................................................................................71

    3.3.11 Paragrafao...............................................................................723.3.12 Notas marginais..........................................................................733.3.13 Sinais de correo, de emenda e anotaes do escriba...............733.3.14 Sinais de escrita posterior............................................................73

    3.4 Aspectos Lingusticos.........................................................................................753.4.1 Consoantes duplicadas...........................................................................783.4.2 Alteraes grficas com possvel repercusso na fala...........................813.4.3 Sistema voclico e suas variantes grficas.............................................84

    3.4.3.1 Posio Pretnica.........................................................................................853.4.3.2 Posio Postnica.........................................................................................863.4.3.3 Ditongos em Posio Pretnica....................................................................863.4.3.4 Ditongos em Posio Tnica..........................................................................873.4.3.5 Ditongos em Posio Postnica....................................................................90

    3.4.4 Uso de por .................................................................................903.4.5 Uso de .............................................................................................92

    3.4.5.1 etimolgico............................................................................................923.4.5.2 Marcador de hiato.........................................................................................933.4.5.3 Marcador de slaba tnica............................................................................933.4.5.4 Na composio de palavras compostas.........................................................933.4.5.5 Nos grupos consonantais , e ...............................................943.4.5.6 Em antropnimos.........................................................................................953.4.5.7 Em topnimos indgenas..............................................................................953.4.5.8 Falsa regresso...............................................................................................95

    3.4.6 Grupos consonantais , , , , e ................963.4.7 Representao grfica das terminaes nasais......................................973.4.8 Posio das sibilantes.............................................................................983.4.9 Uso dos pronomes relativos cujo e o qual (e flexes).....................1023.4.10 Concordncia nominal.......................................................................103

    captulo 4 Edio semidiplomtica de Memria Histrica da Capitania de So Paulo...........................................................................................................105

    4.1 O tipo de edio................................................................................................1054.2 Normas de transcrio adotadas.......................................................................105

    captulo 5 Glossrio parcial e ndices de Memria Histrica da Capitania de So Paulo........................................................................................................108

  • 5.1 Critrios adotados na elaborao do glossrio e dos ndices..........................108Glossrio Parcial....................................................................................1105.2 ndice de Expresses Latinas.............................................................................1355.3 ndice Antroponmico......................................................................................1365.4 ndice Toponmico............................................................................................1505.5 ndice de Cargos, Dignidades e Funes ..........................................................63

    captulo 6 Consideraes Finais........................................................................169Referncias bibliogrficas..............................................................................170

  • A los manuscritos, por tanto, habr que aproximarse con conocimiento y respeto, pero no con temor, considerando que frecuentemente pueden encerrar bastante ms que un texto.

    (Manuel Mariana Snchez)

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    Introduo

    A busca de um corpus para o trabalho que deu origem a este livro, que se iniciou no Arquivo Pblico do Estado de So Paulo no ano de 2004, estava bem direcionada e deveria atender ao seguinte requisito: um documento do sculo XVIII, porque dois anos e meio de iniciao cientfica haviam mostrado que esse sculo representara um campo histrico e lingustico muito produtivo, na confluncia de um interesse pelo contedo histrico e por ricos dados lingusticos.

    Pesquisando o livro de registros do Arquivo, o ttulo de um documento chamou a ateno: Memria Histrica da Capitania de So Paulo e todos os seus memorveis sucessos desde o anno de 1531 th o prezente de 1796, por situar-se justamente em fins do sculo XVIII e compreender dados da histria de So Paulo, cidade atualmente reconhecida como importante ncleo de atividades intelectuais, polticas e econmi-cas, mas que at o sculo XVIII ocupou uma posio quase insignificante na colnia portuguesa, situao acarretada pela distncia do litoral, pelo isolamento comercial e pela carncia de uma atividade econmica lucrativa. Situao que levou o autor da obra, tomado pelo orgulho de ser paulista e indignado com as in-formaes de alguns escritores estrangeiros, particularmente espanhis, que procuravam denegrir o valor dos seus antepassados, a empreender uma busca de informaes referentes histria da Capitania de So Paulo como forma de resgatar a memria dos paulistas, exaltando suas conquistas, sua coragem e seu valor, usando-a como arma de defesa de sua ptria e de instruo dos naturais, porque a memria, segundo Le Goff (1996, p. 476-477), [...] o elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva [...] e que [...] procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.

    Diante de um documento como esse, com relevantes dados a respeito dos mais variados campos do saber, a atuao do fillogo faz-se necessria e imprescindvel, porque a funo desse estudioso justamente [...] concentrar-se no texto, para explic-lo, restitu-lo sua genuinidade e prepar-lo para ser publicado [...] tornando-o inteligvel em toda a sua extenso e em todos os seus pormenores [...] (SPINA, 1994, p. 82).

    Dessa forma, o presente trabalho, atravs da edio semidiplomtica do manuscrito oferecendo ao leitor um texto seguro, provido de esclarecimentos e informaes importantes que lhe possibilitem avaliar os critrios de transcrio e entender o texto em todos os seus pormenores tambm pretende resgatar fatos importantes e obscuros do passado histrico, cultural e lingustico brasileiro, pois o manuscrito, pela sua prpria natureza, permite explorar no s o texto em si, mas tambm a sociedade que o produziu.

    A edio semidiplomtica de Memria Histrica, alm de eliminar certo grau de dificuldade de lei-tura que se insere em um documento manuscrito do sculo XVIII, constitui contributo para os estudos de Crtica Textual, porque um manuscrito setecentista indito cuja autoria contestada; apresenta contri-buio para a Codicologia e Paleografia atravs da sistematizao do conhecimento do suporte material, das marcas dgua, do sistema de encadernao, de escrita e de abreviaturas da poca; traz informaes re-levantes Lingustica, principalmente quanto reconstruo da histria lingustica brasileira; oferece cola-borao especial Lexicografia e Onomstica, uma vez que acompanhada por um glossrio parcial e por ndices de antropnimos e topnimos; representa importante fonte para enriquecer o atual conhecimento da Histria e da Geografia, mais especificamente da Capitania de So Paulo; e constitui contribuio para

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    a realizao de uma edio crtica do cdice E11571 baseada no confronto com os testemunhos das obras de Frei Gaspar da Madre de Deus e de Pedro Taques de Almeida Paes Leme, que teriam sido plagiadas por Manuel Cardoso de Abreu.

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    captulo 1 O sculo XVIII: contexto histrico

    A edio semidiplomtica de Memria Histrica da Capitania de So Paulo, objetivo principal deste trabalho, perderia muito de seu valor se no viesse acompanhada da reconstruo do contexto histrico em que a obra foi escrita, funo transcendente da Filologia, que, segundo Spina (1994, p. 83-84), toma o texto enquanto [...] instrumento que permite ao fillogo reconstruir a vida espiritual de um povo ou de uma comunidade em determinada poca.

    Tendo-se em vista a importncia de entender melhor a sociedade brasileira de fins do sculo XVIII e lanar um olhar crtico sobre Memria Histrica, este captulo traz uma caracterizao dessa poca atravs do recorte e da reconstruo de aspectos significativos da histria brasileira ou relacionada ao Brasil de fins dos setecentos, poca de grandes mudanas polticas, econmicas, sociais, culturais e lingusticas.

    Com base nesses pressupostos, o critrio para a delimitao do assunto baseia-se em questes rela-cionadas poca em que o autor da obra viveu e que justificam sua escolha pelo tema, assim como a maneira como o abordou, questes essas relacionadas sociedade, cultura e ao pensamento da poca.

    Foram selecionados cinco tpicos, a saber: O sculo das luzes, que trata do Iluminismo, o grande acontecimento intelectual ocorrido naquele momento e que, de certa forma, parece ter influenciado o autor da obra na escolha do gnero memria histrica, baseado no mtodo crtico, na valorizao do questio-namento e da investigao1; A era Pombal, que descreve o perodo em que o Marqus de Pombal atuou como primeiro-ministro do rei D. Jos I, de Portugal, e as medidas que tomou, sob influncia dos ideais iluministas, para reerguer Portugal da difcil situao em que se encontrava; O Brasil no sculo do ouro, que aborda a poca da descoberta das primeiras jazidas de ouro em Minas Gerais, Mato Grosso e Gois, que mudou radicalmente a estrutura social e econmica da colnia brasileira e tambm da Metrpole; So Paulo no sculo XVIII, que trata especificamente da Capitania de So Paulo, ptria do autor da obra, na poca em que essa foi escrita; Educao e cultura na So Paulo do sculo XVIII, que procura compreender melhor os reflexos da reforma educacional de Pombal em So Paulo, que era orientada pelos preceitos racionalistas de Lus Antnio Verney.

    1.1 O Sculo das Luzes

    O sculo XVIII representa uma poca de importantes transformaes no campo cultural europeu. O Iluminismo, tambm chamado Ilustrao ou Filosofia das Luzes, movimento intelectual caracterizado, em linhas gerais, pela valorizao da Razo, essencialmente subjetiva e crtica, do racionalismo, essencial-mente humanista e antropocntrico (MONCADA, 1941, p. 8), e da investigao como fontes do conheci-mento, combatendo assim o absolutismo monrquico, o mercantilismo, os privilgios da nobreza e o poder do clero, trouxe grandes contribuies para o avano dos estudos relacionados s Cincias, Artes, Filosofia, Economia e Poltica, alm de, juntamente com a Revoluo Industrial, lanar os fundamentos para a profun-da mudana poltica determinada pela Revoluo Francesa (1789).

    1 Sobre esse assunto, conferir tambm a sesso 2.3.

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    Os filsofos iluministas dedicaram-se observao dos fenmenos naturais (astronmicos, biolgi-cos, geogrficos, qumicos) utilizando mtodos experimentais e buscando provas materiais, e ao exame do Estado, de questes ticas e morais, propondo explicaes baseadas na razo e no direito natural. Conforme salienta Fortes (1981, p. 27-28):

    O que prprio do sculo XVIII a postura, a atitude que se liga ao nome filsofo. Ele no mais ser visto como um especialista a debater idias no crculo fechado de seus pares. Sua ambio sair pelas ruas, ou melhor, pelos famosos sales privados mantidos por personalidades inclusive da aristocracia, onde passam interminveis noitadas a discutir. O sonho desses intelectuais engajados intervir nos acontecimentos e desenvolver uma atividade pedaggica e civilizatria.

    As grandes ideias dos pensadores do Iluminismo, propagadores da Revoluo Intelectual que aflorava na Europa de ento, foram reunidas e publicadas em um conjunto de livros conhecido como a Grande Enciclopdia, preparada entre 1751 e 1780 pelos intelectuais Denis Diderot e Jean dAlembert, [...] que pretendia ser uma suma completa dos conhecimentos filosficos e cientficos da poca [...] (BURNS, 1979, p. 553).

    Entre esses pensadores esto, conforme Burns (1979, p. 550-553): Isaac Newton, que chegou [...] concluso de que todos os acontecimentos da natureza so governados por leis universais [...]; John Locke, que lanou um dos elementos bsicos da filosofia iluminista ao combinar o sensacionismo e o raciona-lismo; Voltaire, smbolo do Esclarecimento e defensor da liberdade individual; Diderot, grande crtico do absolutismo e do poder da Igreja; dAlembert, defensor da tolerncia e da ideia de que o racionalismo e a cincia deveriam ser ensinados ao povo como nica forma de libertao; alm de Montesquieu, cujas teorias polticas sugeriam a adoo, pelos grandes pases, do despotismo esclarecido e lanaram a doutrina dos trs poderes, por meio da qual a liberdade poltica s seria garantida pela diviso do poder em trs partes: Legislativo, Executivo e Judicirio; Rousseau, que defendia a ideia de que a vontade coletiva deveria se impor sobre a vontade individual e a ideia de que a economia deveria funcionar segundo a lei da oferta e da procura; Franois Quesnay, que [...] atacava a interveno do Estado na economia e defendia a liberdade de comprar e vender [...]; e Adam Smith, defensor da diviso da sociedade capitalista em trs classes: o opera-riado, os capitalistas e os proprietrios de terra (O ILUMINISMO, [2002]).

    Com a propagao dos ideais iluministas, certos governantes absolutistas adotaram alguns de seus princpios, governando em nome da razo, com o objetivo de construir Estados prsperos. Desenvolveu-se, assim, uma forma de governo conhecida como Despotismo Esclarecido, que gerou uma srie de reformas sociais e econmicas, principalmente no campo educacional, com o incentivo educao pblica e leiga, e no campo fiscal, com o remanejamento das arrecadaes tributrias.

    1.2 A Era Pombal

    Todo o clima de renovao intelectual trazido pelo Iluminismo atingiu tambm Portugal, que, depois de um perodo turbulento marcado, principalmente, pelo terremoto seguido de um maremoto, que destruiu a cidade de Lisboa em 1755, [...] pela reduo da produo de ouro no Brasil, agravado pela queda dos preos do acar brasileiro nos mercados internacionais, [...] pela concorrncia da produo de acar das ndias ocidentais tanto britnicas quanto francesas [...] (MAXWELL, 1996, p. 144), passava por um pero-do de reestruturao econmica, poltica e cultural. Esse perodo tem incio em 1756, com a nomeao de

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    Sebastio Jos de Carvalho e Mello, o Marqus de Pombal (1750-1777), para secretrio de Estado dos Neg-cios do Reino de Portugal, equivalente atualmente ao cargo de primeiro-ministro. Suas principais medidas foram, segundo Maxwell (1996, p. 96),

    [...] a estruturao de um novo sistema de educao pblica para substituir o dos jesutas, a afirma-o da autoridade nacional na administrao religiosa e eclesistica, o estmulo a empreendimentos industriais e a atividades empresariais e a consolidao da autoridade para lanar impostos, das ca-pacidades militares e da estrutura de segurana do Estado.

    Governando com mo de ferro e plena autonomia de poder, Pombal, um dspota esclarecido, aca-bou com os privilgios da alta nobreza, primeiro ao julgar e executar brutalmente os marqueses de Tvora, o duque de Aveiro e o conde de Atouguia, acusados pelo atentado sofrido por Dom Jos I, rei de Portugal, em 3 de setembro de 1758. O que surpreendeu nessa execuo, segundo Maxwell (1996, p. 88), [...] foi a posio social das vtimas. Depois, aboliu a separao existente entre cristos-velhos e cristos-novos (MAXWELL, 1996, p. 99), reintegrando estes sociedade portuguesa, e acabou com a prtica dos casamentos fechados, o que estimulou a tolerncia com a miscigenao racial, trao caracterstico da atual sociedade brasileira.

    Em 1759, de maneira intransigente e radical, o Marqus de Pombal sequestrou todos os bens da Companhia de Jesus, fechou seus colgios, destruiu suas misses e expulsou seus padres de Portugal e suas colnias. Pombal, assim como Lus Antnio Verney, cujas ideias tiveram grande influncia sobre as refor-mas do Marqus (MONCADA, 1941, p. 124), acreditava que os jesutas, pertencentes a uma ordem religiosa completamente autnoma, viviam margem da autoridade do Estado e custa da explorao do indgena, e no respeitavam o Tratado de Madri, que visava pr fim s seculares disputas territoriais entre Espanha e Portugal, incitando os ndios resistncia por no quererem abandonar suas misses. Alm disso, a Compa-nhia de Jesus foi acusada como cmplice da nobreza no atentado contra o rei (MAXWELL, 1996, passim).

    Essa ao de Pombal contra os jesutas marcou a vitria do moderno Estado secular, livre da influ-ncia da Igreja, um dos princpios bsicos do Iluminismo, alm de ter levado ao grande enfraquecimento da influncia religiosa no campo da educao, o que incentivou os estudos cientficos e a reforma do ensino, [...] resultado inevitvel da expulso dos jesutas [...] (MAXWELL, 1996, p. 169), cuja principal e mais im-portante medida na colnia foi a implementao de uma poltica lingustica, impondo o uso do portugus e priorizando o ensino da gramtica portuguesa.

    Em 1746, Lus Antnio Verney, inspirado nas ideias racionalistas do Iluminismo, publica Verdadeiro mtodo de estudar, obra pedaggica composta por 16 cartas que se constitui num divisor de guas na cultura portuguesa do sculo XVIII. Nessa obra, Verney faz uma crtica ao ensino tradicional portugus e prope reformas para o desenvolvimento da cultura portuguesa, totalmente atrasada em relao s outras naes europeias. Moncada (1941, p. 25) salienta que a maior preocupao do autor era justamente [...] o profundo abismo que separava Portugal dos restantes pases da Europa no estado de adiantamento das cincias e das artes e no tocante aos progressos das luzes da Razo em todos os domnios da vida nacional. Dentre suas propostas, que s foram concretizadas, efetivamente, pelo Marqus de Pombal, destacam-se o ensino da gramtica em portugus, e no em latim, e a implementao dos mtodos experimentais em oposio a um sistema de debate baseado na autoridade (MAXWELL, 1996, p. 12).

    Segundo Pinto (1988, p. 17-18), o sculo XVIII representa tambm o desenvolvimento dos estudos ortogrficos, em que se destacam Lus Caetano de Lima, Joo Madureira Feij, Lus de Monte Carmelo e Antnio Jos dos Reis Lobato, e a evoluo da lexicografia portuguesa, tendo como marco inicial o Vocabu-

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    lrio portugus e latino (1712-1727), de Rafael Bluteau, a que se seguiram o Dicionrio da lngua portuguesa (1789), de Antnio de Morais Silva, e o Elucidrio das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usavam (1798-1799), de Joaquim de Santa Rosa Viterbo.

    Na literatura, surge o Arcadismo tambm conhecido como Neoclassicismo ou Setecentismo com a fundao, em Portugal, da Arcdia Lusitana em 1756. No Brasil, o estilo teve como marco inaugural a publicao de Obras, de Cludio Manuel da Costa, em 1768. Os estudos arcdicos, tambm influenciados pelos princpios iluministas, propem uma literatura mais equilibrada e racional, em oposio aos excessos do estilo barroco, baseada na [...] imitao dos modelos greco-latinos [...], elogio da vida simples, sobre-tudo em face da Natureza, no culto permanente das virtudes morais; fuga da cidade para o campo (fugere urbem) [...]; o gozo pleno da vida [...] (MOISS, 2001, p. 97).

    No campo social, ao atribuir foros de nobreza aos donos de capital, Pombal promoveu a igualdade social e poltica entre aristocratas e burgueses.

    Na esfera econmica, a ao de Pombal pautou-se pelo mercantilismo, [...] baseado principalmente no fomento produo metropolitana, na determinao de uma poltica econmica que promovesse o mo-noplio de exportao, o equilbrio da balana comercial e o reforo do pacto colonial [...] (GONALVES et al., 1998, p. 35), caractersticas que entravam em concorrncia com a empresa dos jesutas. Alm disso, es-sas medidas tomadas por Pombal, como observa Maxwell (1996, p. 144-146), estimularam a reorganizao e o estabelecimento de indstrias manufatureiras privadas [...] com proteo exclusiva ou monopolista.

    1.3 O Brasil no Sculo do Ouro

    A descoberta de lavras de ouro em Minas Gerais, no Mato Grosso e em Gois, em fins do sculo XVII e incio do XVIII, representou um dos acontecimentos mais importantes da histria econmica do Brasil, que, pela sua enorme repercusso, provocou a primeira corrida do ouro da histria moderna. Gente de to-das as partes, [...] no s da Metrpole como das capitanias vizinhas [...] (SOUZA, 2004, p. 41), ricos ou pobres, corria para as minas na esperana de enriquecer-se fcil e rapidamente.

    O afluxo de pessoas em direo s minas provocou preocupao nas autoridades, j que as capitanias ficaram quase desertas, principalmente as vilas e povoados do litoral e do planalto paulista, de maneira [...] que tiveram [os paulistas] de suportar a prpria perda da autonomia, ficando inteiramente subordinados ao governo do Rio de Janeiro por um perodo de mais de 15 anos (HOLANDA, 2001, p. 138), enquanto as reas mineradoras sofriam com o inchao populacional. Segundo Souza (2004, p. 42),

    Durante os sessenta primeiros anos do sculo XVIII, a corrida do ouro provocou na Metrpole a sa-da de aproximadamente 600 mil indivduos, em mdia anual de 8 a 10 mil indivduos. [...] Em 1709, era 30 mil o nmero das pessoas ocupadas em atividades mineradoras, agrcolas e comerciais, sem falar nos escravos da frica e das zonas aucareiras em retrao.

    Economicamente, a descoberta do ouro representou a mudana do centro econmico, ento no Nor-deste, para o Centro-sul do pas, e [...] a formao do primeiro mercado interno do Brasil colonial [...] (O SCULO..., 2002), devido necessidade que tinham os exploradores de equipamentos, alimentos e mer-cadorias de consumo dirio. Geogrfica e administrativamente, representou uma maior interiorizao do Brasil, uma vez que, medida que os metais de um determinado local iam escasseando, os exploradores

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    avanavam para outras reas em busca de novas fontes de riqueza mineral, formando assim novos ncle-os de povoamento. Ademais, assiste-se, em 1763, ao deslocamento do aparelho poltico-administrativo da Bahia para o Rio de Janeiro, objetivando, conforme salienta Mendona (1960, p. 18), [...] tornar mais eficaz e pronto o controle das aes de represso s invases castelhanas, que se vinham dando pelas bandas do sul, especialmente a partir de 1763, quando a Colnia do Sacramento foi tomada.

    Com a chegada ininterrupta de forasteiros s minas, surgiram diversos atritos com os paulistas responsveis pelas primeiras descobertas de lavras. A disputa mais emblemtica entre paulistas e forastei-ros deu-se entre 1707 e 1709 e ficou conhecida como Guerra dos Emboabas; foi motivada pelo fato de os paulistas, vendo seu direito prioridade nas reivindicaes de lavras perder-se em consequncia dos privilgios concedidos aos lusos, empunharem suas armas principalmente contra os forasteiros vindos do reino, [...] mas tambm baianos, pernambucanos e outros [...] (VITRAL, 2001, p. 311). Conforme Boxer (1969, p. 100-101):

    Os paulistas retorquiam que no podiam deixar de reclamar pessoalmente satisfaes pela afronta que tinham sofrido, pois eram os senhores daquelas minas pelo fato de as terem descoberto, e sob circunstncia alguma era conveniente que forasteiros ali vivessem; por essa razo desejavam expulsar estes ltimos e tomar posse das primeiras.

    Vendo-se derrotados pelos emboabas2, muitos paulistas deixaram as minas e emigraram para outras reas do interior do pas, onde, acidentalmente, novas jazidas de ouro foram descobertas no incio do sculo XVIII, em Mato Grosso e Gois, ou ainda dedicaram-se ao tropeirismo, atividade de conduo por terra de gado bovino, equino e muar, provenientes dos campos do sul, particularmente de Curitiba, das campinas de Viamo e da Colnia do Sacramento, e que eram vendidos principalmente na Feira de Sorocaba, que assinala, segundo Holanda (2001, p. 132), [...] uma significativa etapa na evoluo da economia e tambm da sociedade paulista.

    Apesar de a exploso do ouro ter trazido diversos benefcios para o Brasil, de acordo com Maxwell (1996, p. 43-44), os maiores beneficiados com a explorao das minas foram os portugueses, uma vez que a Coroa detinha o monoplio de muitas reas mineradoras e cobrava tributos muitas vezes exorbitantes, o que permitiu a Portugal readquirir [...] sua prpria independncia em 1640 e [...] que recuperasse a sua posio na Europa.

    1.4 So Paulo no sculo XVIII

    Durante o perodo colonial, at pelo menos o sculo XVIII, a vila de So Paulo de Piratininga viveu margem da economia brasileira, constituindo-se na regio mais pobre da Amrica portuguesa. Tal situao

    2 Conforme Souza e Bicalho (2000, p. 66), como poca da Guerra dos Emboabas a maior parte da populao da Ca-pitania de So Paulo falava tupi, no seria estranho apelidarem nessa lngua os forasteiros, chamando-os emboabas. De acordo com Pizarro (1908, p. 527, nota 8 apud SILVEIRA, 1997, p. 63) e Boxer (1969, p. 84), os paulistas designavam de emboabas as galinhas ou outras aves de pernas emplumadas. Como os forasteiros sempre usavam botas ou [...] coberturas protetoras para as pernas e ps, ao contrrio dos paulistas, que andavam descalos e de pernas nuas pelo matagal (BOXER, 1969, p. 84), recebe-ram esse designativo depreciativo pela semelhana com essas aves ou por causa de seus hbitos europeus refinados diante dos modos rsticos dos paulistas de ento. De acordo com Taunay (1948, p. 475-478), emboaba ou imbuaba, amboaba, embuava, buaba, boava, imboaba, boyaba, emboyaba, ambuava, variantes encontradas nos documentos da poca, poderia designar ainda o estrangeiro entre os indgenas, feito homem ou como homem, homem de botas ou agressor, provocador.

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    era causada pela distncia do litoral, pelo isolamento comercial e pela carncia de uma atividade econmica lucrativa como a do cultivo da cana-de-acar no Nordeste (VITRAL, 2001, p. 341-342).

    As atividades praticadas pelos paulistas, como a criao de animais e a agricultura, serviam para sua prpria subsistncia e no para o comrcio exterior. Dessa forma, como no possuam riquezas para serem exploradas e produzidas em larga escala, empreenderam como principal atividade comercial a busca e o aprisionamento do negro da terra.

    Desde o final do sculo XVI, comearam a formar bandos de homens armados com o objetivo de embrenhar-se nos sertes desconhecidos e capturar os indgenas para vend-los ou us-los como mo de obra escrava para tocar seus empreendimentos agrcolas, alm de atacar as prsperas misses jesutas do Paraguai (MAXWELL, 1996, p. 39). Essas expedies ficaram conhecidas como bandeiras e eram com-postas por ndios, brancos e mamelucos. As bandeiras podiam ser de aprisionamento, que escravizavam os ndios, ou de contrato, que capturavam negros fugitivos, tendo como consequncia o despovoamento de So Paulo e a ampliao das fronteiras do Brasil. Alm da caa aos indgenas, adotaram como atividade mais ou menos suplementar, conforme Boxer (1969, p. 54), a procura de jazidas de metais preciosos.

    Foram justamente a busca de amerndios, a ambio do ouro e a liberdade pessoal dos paulistas os estmulos responsveis pela descoberta das minas, segundo Boxer (1969, p. 280-281). A partir da descoberta das primeiras lavras, no final do sculo XVII, em Minas Gerais, depois, no incio do sculo XVIII, no Mato Grosso e em Gois, os paulistas tornaram-se os grandes desbravadores do interior brasileiro, fundando no-vos ncleos de povoamento por onde passavam.

    Um aspecto interessante da sociedade brasileira de ento, confrontado com sua economia, obser-vado por Novais (2005, p. 25) como um paradoxo, j que

    [...] a sociedade mais estvel, permanente, enraizada, est voltada para fora a economia auca-reira organiza-se para a exportao; e a economia de subsistncia (como a de So Paulo, ou a pe-curia nordestina), que est voltada para dentro, d lugar a uma formao social instvel, mvel, sem implantao.

    Uma sociedade como a de So Paulo, voltada para o isolamento, a desolao e a permanente mo-bilidade, e em contato com a cultura indgena e com situaes adversas, desenvolveu hbitos prprios, tri-butrios, conforme Souza (2005, p. 46), [...] dos indgenas e incorporados mesmo por aqueles que ha-viam nascido na Europa [...], entre eles o seminomadismo, que, por meio da constante mobilidade, visava encontrar novos recursos, a luta contra a mata para provimento da comida necessria para sustento nas incurses pelo serto, o reconhecimento dos vestgios deixados na mata pelos animais, o hbito de andar descalo, com o peso lanado sobre a planta dos ps, [...] de manusear no apenas armas de fogo, mas as armas do ndio, mais eficazes no emaranhado da floresta. De aprender a vasta farmacopeia do serto [...](SILVA, 2004, p. 66).

    A presena do ndio permeia toda a histria da Capitania de So Paulo, constituda de uma popula-o mestia, mameluca, sem a qual no seria possvel o efetivo conhecimento do serto, do cultivo da terra e de tantas outras atividades. Os mamelucos, nascidos da miscigenao de ndios e brancos, representavam para os europeus, [...] os lnguas da terra (intrpretes) e guias para as entradas na mata, devido aos pro-fundos conhecimentos que tinham do serto: da geografia, dos moradores indgenas e dos recursos naturais que proporcionavam a alimentao [...] (ZEQUINI, 2004, p. 50). Alm disso, a presena mameluca moldou o carter do homem paulista, nascido de seu semi-isolamento e da peculiaridade de seu modo de viver,

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    cujas principais caractersticas so a autonomia e certa insubordinao em relao administrao colonial, porque, como salienta Monteiro (2005, p. 57),

    [...] ao contrrio da sua contrapartida senhorial do litoral, os paulistas deram as costas para o circuito comercial do Atlntico e, desenvolvendo formas distintivas de organizao empresarial, tomaram em suas prprias mos a tarefa de constituir uma fora de trabalho.

    Alm do bandeirantismo, os paulistas dedicaram-se s navegaes fluviais, conhecidas como mon-es, que se firmaram com a abertura das minas em Cuiab, no incio do sculo XVIII, [...] para o abas-tecimento da regio aurfera de Mato Grosso e no comrcio do gado muar do Rio Grande at a Regio das Minas Gerais [...] (BELLOTTO, 1979, p. 33 apud CASTILHO, 2001, p. 343). As mones, que partiam de Araritaguaba, atual Porto Feliz, em direo s minas do Cuiab, a partir do rio Tiet, e que, segundo Ho-landa (2001, p. 138), [...] no se consumiam menos de cinco meses de jornada [...], podiam ser, conforme Silva (2004, p. 77),

    [...] oficiais, chamadas reinas, e se destinavam conduo de autoridades designadas pela Coroa ou ao transporte de tropas de linha e apetrechos de guerra para a nova provncia mineral, alm do esco-amento dos impostos reais. Outras, a maioria delas, estabeleciam simplesmente a ligao entre dois pontos da colnia e se destinavam ao inevitvel trnsito de pessoas [...], de manufaturados e gneros que as minas no produziam. E outras, ainda, a partir da dcada de 1760, supriam de homens e armas a colnia militar de Iguatemi [...].

    O tropeirismo tambm foi outra atividade econmica praticada pelos paulistas como medida de um novo impulso explorador, j que, como j foi dito, devido a perda do seu monoplio sobre as jazidas das Minas Gerais, tiveram que buscar novos recursos econmicos. Os muares vendidos pelos paulistas provi-nham das reas que compreendem o atual Uruguai e o Rio Grande do Sul. Segundo Silva (2004, p. 83-84), o mercado tropeiro teve um grande crescimento com a abertura das novas minas em Mato Grosso e Gois e, mesmo com a decadncia da produo aurfera, o interesse pelos muares no se modificaria, principalmente na segunda metade do sculo XVIII, com o renascimento agrcola, sobretudo em So Paulo, com a cultura canavieira a exigir lombos para o transporte do acar.

    Em 1748, com a extino da Capitania de So Paulo, seus habitantes ficaram sob a jurisdio do go-vernador do Rio de Janeiro, situao que durou 17 anos, at a nomeao de Luiz Antnio de Souza Botelho e Mouro, o Morgado de Mateus, para governador da Capitania (1765-1775).

    Com a incumbncia, dada pelo Marqus de Pombal, de proteger o sul do pas contra os espanhis sendo que [...] So Paulo tinha um papel estratgico na defesa dessas fronteiras [...] (GROPPI, 2001, p. 376) , expandir as fronteiras da Capitania para o oeste e mandar recursos para a reconstruo de Lisboa, destruda pelo terremoto de 1755, o Morgado de Mateus trouxe ao Brasil uma equipe de cartgrafos, fun-dou novas povoaes, forneceu subsdios para a urbanizao, reestruturou o militarismo, fortaleceu a or-ganizao burocrtica e administrativa, deu incentivos agricultura paulista, visando a exportao de seus produtos, com apoio especial ao cultivo da cana e fabricao do acar, tambm empreendeu uma poltica de povoamento e uma reforma no ensino, medidas que marcaram o incio do progresso econmico, poltico e social de So Paulo (GONALVES et al., 1998, passim).

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    1.4.1 Educao e cultura na So Paulo do sculo XVIII

    A histria da educao no Brasil tem incio em 1549, com a chegada dos primeiros padres jesutas, os quais, como nicos representantes da Igreja naquele momento, detinham o monoplio do ensino. Segundo Gonalves (et al., 1998, p. 6), os principais objetivos do trabalho pedaggico exercido pela Companhia de Jesus na colnia eram [...] a converso do gentio e a ampliao dos seus quadros regulares [...] por meio do ensino da lngua e da doutrina crist.

    Baseada na punio fsica, justificada como elemento fundamental para a manuteno da discipli-na, da concepo e da represso dos sentidos, pois, como salienta Del Priore (1991, p. 13), [...] os vcios e pecados deviam ser combatidos com aoites e castigos [...], a prtica pedaggica adotada pelos inacianos recebeu, desde o sculo XVIII, crticas severas de seus opositores, entre eles os filsofos ilustrados, que se apoiaram nessa pedagogia de medo, inadequada idade da razo, conforme Maxwell (1996, p. 12), como um dos argumentos para justificar a necessidade de uma reforma pedaggica.

    Em 1554, assiste-se ao estabelecimento de um colgio na vila de So Paulo de Piratininga, o pri-meiro do Brasil, que, em 1556, estava em plena atividade sob o comando dos jesutas. Esse colgio, co-nhecido como Colgio dos Jesutas, foi, durante todo o perodo colonial, o centro principal de instruo em So Paulo.

    Apesar de a Companhia de Jesus deter o monoplio sobre o ensino no Brasil, [...] existiram as esco-las vinculadas s ordens dos beneditinos, dos franciscanos e dos carmelitas [...] (VILLALTA, 2005, p. 347) e h que se considerar tambm, segundo Gonalves (et al., 1998, p. 16), que

    a presena, desde tempos remotos, de um ensino particular, pago e exercido por mestres leigos, se fez sentir no s na Capitania de So Paulo, mas em algumas das principais vilas da colnia. [...] No entanto, presume-se que o ensino dispensado por estes mestres particulares atingia uma restrita e seleta camada da populao, ficando longe de substituir o extenso e abrangente trabalho pedaggico dos inacianos.

    Desde o incio da colonizao, a Igreja, que, no Brasil, era representada principalmente pela Compa-nhia de Jesus, teve grande participao em vrios setores da sociedade. Essa influncia dos jesutas, aliada aos privilgios de que gozavam na colnia, foram os motivos dos diversos conflitos entre os colonos e os padres, que, alm de controlar a mo de obra indgena, [...] contavam com iseno alfandegria e se nega-vam a pagar os dzimos de suas propriedades. (GONALVES et al., 1998, p. 42). Esses conflitos, aliados aos argumentos expostos anteriormente, contriburam para a expulso dos jesutas de Portugal e suas colnias em 1759, medida que exigiu do Marqus de Pombal uma importante reforma educacional.

    O Alvar de 28 de junho de 1759, anterior expulso dos jesutas, que se deu em setembro, teve como medidas preliminares a extino de todas as escolas reguladas pelos jesutas, [...] a nomeao de um Diretor de Estudos ao qual todos os professores estariam subordinados [...] (GONALVES et al., 1998, p. 53), a imposio do ensino da lngua portuguesa aos ndios e a proibio do uso de sua prpria lngua, como salienta Maxwell (1996, p. 104).

    Na Capitania de So Paulo, a reforma do ensino s teve incio em 1768, no governo do Morgado de Mateus, porta-voz da poltica pombalina. At ento, a Capitania encontrava-se em um estado educacional deplorvel, marcado pela generalizao do analfabetismo e a falta de pessoas instrudas nos cargos pblicos.

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    Diante de tal situao, o Morgado de Mateus empreendeu uma reforma consoante s novas prticas pedag-gicas que vigoravam no reino, inspiradas especialmente nas recomendaes de Lus Antnio Verney.

    No seu estatuto, entre outras medidas, encontram-se: a preocupao com a evaso escolar, o apren-dizado da Lngua Portuguesa anterior ao da Lngua Latina, diferentemente do que acontecia no ensino jesutico, e a implantao das cadeiras de Matemtica e Geometria, disciplinas fundamentais para os mili-tares, de modo que [...] a freqncia naquelas aulas e o pleno domnio daquela cincia passariam ento a ser requisito fundamental para aqueles soldados que almejassem ascender na rgida hierarquia militar [...] (GONALVES et al., 1998, p. 64). No entanto, apesar do esforo do Morgado de Mateus com o ensino de Matemtica e Geometria em So Paulo, o que demonstrava sua preocupao em ter um funcionalismo qua-lificado e capacitado, na passagem do sculo XVIII para o XIX, conforme Gonalves (et al., 1998, p. 73-74), [...] observa-se a total ausncia das ditas cincias na capitania.

    Embora a reforma do ensino, implementada pelo Morgado de Mateus, pretendesse estar de acordo com as diretrizes esclarecidas presentes na reforma empreendida por Pombal, alguns pontos do seu esta-tuto no se encaixavam nessas propostas, como a manuteno dos castigos aplicados pelos mestres e a utili-zao de um mtodo de ensino cujas ideias tinham mais proximidade com as prticas jesutas: a obra Nova Escola para aprender a ler, escrever e contar, escrita em 1718 por Manuel de Andrade Figueiredo, conhecida como Livro do Andrade, como observa Gonalves (et al., 1998, p. 61).

    Segundo Bruno (1991, p. 394; 396), no sculo XVIII havia algumas poucas bibliotecas particulares, nas quais figuravam obras da literatura religiosa, pouca literatura profana e alguns livros didticos. As livra-rias dos conventos, ao longo do sculo, formaram-se e enriqueceram-se um pouco graas s doaes feitas por particulares. Entretanto, a primeira biblioteca pblica s surgiu no primeiro quartel do sculo XIX.

    So Paulo ainda no tinha condies, no sculo XVIII, de desenvolver uma cultura intelectual e uma literatura considervel, como aconteceu em Minas Gerais, na Bahia e no Rio de Janeiro, devido, conforme observa Bruno (1991, p. 397), preocupao com as atividades bandeirantes exercidas por seus habitantes. O que se pode considerar como relevante naquele perodo so as obras de alguns historiadores como Pedro Taques de Almeida Paes Leme e Frei Gaspar da Madre de Deus, [...] os dois nicos picos proeminentes na depresso profunda da vida intelectual de So Paulo (TAUNAY, 1925, p. 155 apud BRUNO, 1991, p. 412).

    Alguns paulistas, que estudaram em Coimbra ou em outros centros europeus de cultura, escreveram obras considerveis, como Jos Arouche de Toledo Rendon, autor de [...] memrias sobre as aldeias de ndios, a cultura do ch e o estado da agricultura na capitania de So Paulo [...]; seu irmo Diogo de Toledo Lara e Ordonhes, [...] autor de memria sobre a ornitologia brasileira, de que existem apenas restos mutila-dos [...], como salienta Bruno (1991, p. 413); alm de Jos Bonifcio Andrada e Silva, Jos Feliciano Fernan-des Pinheiro, Francisco Jos de Lacerda e Almeida, e Antnio Rodrigues Vellozo de Oliveira. So relevantes tambm, segundo Bruno (1991, p. 413-414), as obras de Teotnio Jos Juzarte, autor do manuscrito Dirio de navegao do rio Tiet, rio Grande, Paran e Guatemi, Manuel Cardoso de Abreu, autor de Divertimento Admirvel, e Frei Miguel Arcanjo da Anunciao, irmo de Frei Gaspar.

    A histria da administrao do Marqus de Pombal em Portugal e nas colnias portuguesas, em especial no Brasil, teve influncia direta das ideias iluministas que surgiram na Europa no sculo XVIII. Por isso, fazer uma incurso, ainda que breve, pelos preceitos do Iluminismo e pela poltica de Pombal foi essencial para se entender com clareza o contexto histrico e os motivos que levaram o autor de Memria Histrica, um brasileiro nascido em So Paulo, a escrever a obra e o modo como a escreveu.

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    Influenciado, provavelmente, pelos ideais racionalistas, escreve uma obra que se baseia na busca por fatos histricos por meio da investigao e da explicao racional para as questes que envolviam o passado de sua ptria, de onde saram importantes desbravadores do serto inspito e os pioneiros da descoberta das minas de metais preciosos, mas que, naquele momento, sofria com as opinies de alguns autores, como Charlevoix e Vaissete, que, segundo o autor da Memria Histrica, manchavam o passado dos paulistas com falsas verdades ou misturavam informaes errneas, dizendo que os habitantes de So Paulo, todos de ori-gem mameluca, viviam um sistema de repblica ou que j no mostravam a mesma bravura e valentia dos seus antepassados.

    Essa dvida racional baseada na recusa a acreditar, na necessidade de evidncias e na preocupao em s aceitar os acontecimentos passados aps grande nmero de fatos prpria do sculo XVIII e consti-tui-se na principal caracterstica da obra. Segundo Fortes (1981, p. 20), justamente no sculo XVIII, com a ideia de progresso e civilidade trazida pelo Iluminismo, que [...] uma nova cincia comea a se impor: a Histria [...], pois por meio do estudo de seu passado que os homens percebem [...] que a massa de co-nhecimentos adquiridos pode ser utilizada e posta a servio do seu prprio bem-estar.

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    captulo 2 Manuel Cardoso de Abreu: biografia, bibliografia e autoria

    2.1 Informaes Biogrficas

    Manuel Cardoso de Abreu nasceu em 1750, na freguesia de Araritaguaba, atual Porto Feliz (SP), po-voao ento pertencente a Itu, conhecida como a vila das mones, pois de l partiam as expedies fluviais que desciam o rio Tiet em direo a Cuiab, no Mato Grosso. Primognito dos dez filhos do portugus Domingos da Rocha de Abreu natural de So Martinho do Outeiro, em Braga, que veio para So Paulo na primeira metade do sculo XVIII, estabelecendo-se posteriormente em Araritaguaba, onde era considerado um dos cinco homens mais abastados e da paulista Francisca Cardoso de Siqueira, Manuel Cardoso, au-xiliando o pai nos negcios para Cuiab, tomou parte nas mones desde muito jovem, o que fez de 1765 a 1773, como relata em sua crnica Divertimento Admirvel, de 1783.

    Conforme as informaes contidas em Leme (1904, p. 517-518), foi possvel construir a seguinte rvore genealgica de Manuel Cardoso:

    Figura 1: rvore genealgica de Manuel Cardoso de Abreu construda a partir das informaes contidas em Genealogia Paulistana, de Luiz Gonzaga da Silva Leme.

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    Seus estudos foram feitos em So Paulo, onde recebeu instruo limitada, j que, segundo ele prprio confessa, no havia, como em Portugal, educao secundria de boa qualidade [...] nem na freguesia de Araritaguaba, de onde sou natural, nem nos sertes que pisei, que a minha obra refere, haviam escolas em que me pudesse instruir na cincia e melhor letra; [...] (ABREU, 1977, p. 59-60).

    Depois de trabalhar nas mones por oito anos, passou a dedicar-se, conforme salienta Bruno (1977, p. 57), ao comrcio de tropas de muares, que eram trazidas dos Campos de Curitiba para serem vendidas na Feira de Sorocaba. Em 1773, foi nomeado guarda-mor das jazidas de minrios da vila de Nossa Senhora dos Prazeres de Itapetininga (SP) pelo ento governador de So Paulo, o general Lus Antnio de Sousa Botelho Mouro. Trs anos depois, em 1776, devido a sua prtica de longas viagens pelo serto, foi nomeado coman-dante de uma expedio encarregada de abastecer com mantimentos, munies e pagamento as tropas da guarnio do presdio de Iguatemi:

    A distncia que tem da barra do Rio Pardo para baixo at a barra do rio Iguatemi de cinco dias de viagem, que tanto gastei no ano de 1776, quando fui ao mesmo presdio levar socorro e pagamento s tropas da sua guarnio, de mandado do Exmo. Martim Lopes Lobo e Saldanha, que ento era general em So Paulo. (ABREU, 1977, p. 79).

    A 4 de abril de 1777, devido ao bom resultado de sua misso no Iguatemi e por ocasio da marcha dos 6 mil homens, foi investido no cargo de feitor comissrio do provimento das tropas que se organizaram em So Paulo para a defesa do Rio Grande do Sul, ameaado de invaso pelas tropas castelhanas comanda-das por D. Pedro Ceballos, em virtude da guerra entre Portugal e Espanha:

    Das particularidades das povoaes da capitania tambm muito conto porque tenho verdadeiro co-nhecimento delas, como nacional do pas, e com especialidade das que se compreendem na estrada de Viamo, porque no ano de 1777 fui por elas, mandado do Exmo. Martim Lopes Lobo de Saldanha, aprontar e pagar mantimentos, gado e cavalgaduras para o transporte de 6.000 homens que foram de Minas Gerais para a Capitania de So Paulo em socorro do exrcito do Sul, na ocasio em que tomaram os espanhis a ilha de Santa Catarina; [...] (ABREU, 1977, p. 87).

    Desempenhada com xito a misso com o armistcio no sul do Brasil, Manuel Cardoso de Abreu voltou a exercer a funo de tropeiro, comercializando rebanhos de gado e tropas de muares que trazia do sul para vender no Rio de Janeiro, em So Paulo e Minas Gerais.

    Sob a acusao de contrabandista de diamantes, foi preso em 1779 na cadeia de So Paulo, conse-guindo, por meio da reviso do processo na Relao do Rio de Janeiro, provar erro judicirio e, em 1785, sua inocncia, alm de lograr do seu delator, Loureno dos Reis Galvo, uma indenizao por perdas e danos. Essa informao constitui, para Taunay (1925, p. 168), uma das provas do carter inescrupuloso de Manuel Cardoso:

    Homem muito intelligente, mas consummado velhaco, estivera quatro annos preso sob a inculpao de contrabandista de diamantes, havendo no entanto conseguido que a Relao do Rio de Janeiro o innocentasse. Devorado de ambio, havendo obtido mediocre cargo burocratico, vivia a importu-nar os ministros portuguezes com multiplos pedidos de promoo.

    Em princpios de 1784, regressando a So Paulo, sem recursos financeiros depois de sua priso, acei-tou o cargo de enfermeiro do Hospital Militar. Em maro do mesmo ano, moveu um processo por injria e calnia contra o capito-mor de Sorocaba, Cludio de Madureira Calheiros, mas perdeu a demanda.

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    Manteve-se solteiro at os 35 anos de idade, quando se casou, a 2 de dezembro de 1786, com Escols-tica Maria Joaquina de Oliveira, com quem teve duas filhas, Maria e Francisca3.

    Em 1789, passou a escriturrio da Secretaria do Governo de So Paulo. Em 1792, foi promovido oficial-maior, cargo que desempenhou at o seu falecimento em So Paulo, a 14 de julho de 1804, com 54 anos de idade, vtima de congesto cerebral, havendo registro de seu bito nesse ano na S de So Paulo4.

    2.2 Informaes Bibliogrficas

    Escreveu a crnica Divertimento Admirvel: para os historiadores observarem as mquinas do mundo reconhecidas nos sertes da navegao das Minas de Cuiab e Mato Grosso, em 1783, enquanto esteve preso no Rio de Janeiro, e dedicou-a a Martinho de Mello Castro, ento secretrio de Estado da Ma-rinha e dos Domnios Ultramarinos, como forma de angariar sua poderosa proteo, como salienta Taunay (1925, p. 211). Eduardo Prado, encontrando em Lisboa o manuscrito original do Divertimento Admir-vel, mandou-o copiar e ofereceu tal cpia ao Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo, em 18995. Sua primeira publicao saiu em 1902, no volume 6 da Revista do Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo, pginas 253 a 293. Mais tarde, em 1914, na Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, volume 77 (parte segunda), pginas 125 a 156, sem declarao de procedncia, e, em 1977, na coletnea de artigos sobre So Paulo colonial Roteiros e Notcias de So Paulo Colonial: 1751-1804, com introduo e notas de Ernani Silva Bruno, pginas 53 a 87. Esse artigo, considerado documento geogrfico de vulto, relativo s viagens fluviais no sculo XVIII, um registro das observaes feitas por Manuel Cardoso de Abreu em suas viagens como sertanista s minas de Cuiab e Mato Grosso, em que descreve a exuberncia da fauna e da flora s margens do Tiet, as populaes ribeirinhas, alm dos perigos encontrados durante o percurso. O motivo que o levou a escrever tal crnica foi

    [...] satisfazer o desejo destes curiosos com as notcias de um dilatado serto, como o da navegao das minas do Cuiab e Mato Grosso, declarando todas as diversidades dos efeitos que nele encontra-ram, como so a produo das frutas, a criao das aves, animais quadrpedes, os nomes dos rios da navegao, as naes dos gentios que habitam na sua extenso e, finalmente, tudo o mais que pode compreender a curiosidade das suas notcias, [...] (ABREU, 1977, p. 61).

    3 Cf. o livro de Registros de Casamentos de Brancos e Livres (1782-1794) da S de So Paulo, cota 01-02-16, pgina 108 verso, presente no Arquivo Metropolitano de So Paulo. 4 Cf. o livro de Registros de bitos (1802-1810) da S de So Paulo, cota 02-02-25, pgina 78 retro, presente no Arqui-vo Metropolitano de So Paulo. 5 No se sabe, at o momento, em que arquivo de Lisboa se encontra o manuscrito original do Divertimento Admir-vel, mas h dois apgrafos no Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, Lata 50, doc. 2 e Lata 50, doc. 3.

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    Figura 2: Fac-smile da primeira pgina de Divertimento Admirvel, 1783, de Manuel Cardoso de Abreu, publi-cado em Roteiros e Notcias de So Paulo Colonial.

    Segundo Taunay (1924, p. 73), o Divertimento Admirvel representa um dos primeiros relatos cronolgicos da cidade paulistana, e Manuel Cardoso de Abreu, com essa obra, o precursor dos guias da cidade de So Paulo no sculo XVIII, [...] o reprter e o fotgrafo de uma vasta regio, preocupado com o registro daquilo que observara em suas andanas, sem se descuidar das mincias significativas [...] (BRUNO, 1977, p. 9).

    Manuel Cardoso de Abreu teria escrito tambm o texto Continuao das Memrias de Frei Gaspar da Madre de Deus, publicado em 1861 na Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, no volume 24, pginas 539 a 616. Esse texto gerou grande polmica porque havia muito tempo que se cogitava encon-

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    trar o terceiro livro das Memrias de Frei Gaspar, prometido no final do segundo livro e reputado perdido. Entretanto, verificou-se que o texto, oferecido ao Instituto pelo brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, no era da lavra de Frei Gaspar e constitua-se da reunio de trechos da Histria da Capitania de So Vicente, de Pedro Taques, e da [...] transcripo de diversos documentos do archivo da Camara de S. Paulo e uma lista de ouvidores de So Paulo, varios dos quaes posteriores ao fallecimento de frei Gaspar [...] (TAUNAY, 1925, p. 173), fato que no foi levado em conta pela redao da Revista.

    Alfredo de Toledo, no dia 25 de maio de 1916, publica um artigo no jornal Dirio Popular, intitula-do Um problema bibliogrfico, no qual declara que tal Continuao das Memrias no passava de uma cpia das 44 ltimas folhas da Memria Histrica da Capitania de So Paulo, de Manuel Cardoso de Abreu, com a diferena de que a Memria apresenta uma lista dos 19 primeiros ouvidores de So Paulo, enquanto a Continuao refere os nomes de 24. Esse acrscimo de ouvidores lista, que vai at os anos da Indepen-dncia, certamente foi feito por pessoa annima, porque, segundo Toledo, bem posterior ao falecimento de Manuel Cardoso, [...] tanto que [lista] dos primeiros ouvidores se acrescentou, entre outros, o nome de Joo de Medeiros Gomes, cuja posse data de 1823. Terminada a lista de ouvidores, o texto traz o sub-ttulo Notcias sobre a vinda dos primeiros governadores at o presente capito general, que na Memria Histrica intitula-se Mostra-se a vinda do primeiro governo e os mais subsequentes th o prezente capito general da capitania, em que o autor declara ser oficial maior da secretaria do governo: No descrevi nada a respeito dos tres generaes primeiros antes do referido Rodrigo Cesar porque nesta secretaria de S. Paulo (onde sirvo de official-maior della) no existem os livros de seus governos [...]6, fato que levantou em Tau-nay a suspeita de que o texto era falso.

    Rodrigues (1979, p. 155) salienta que Slvio Romero j havia denunciado que a Continuao das Memrias no era obra de Frei Gaspar, mas tinha por certo que o texto verdadeiro estivesse na Biblioteca Nacional (BN) do Rio de Janeiro, devido indicao, no Catlogo da Exposio de Histria do Brasil pre-sente nos Anais da Biblioteca Nacional, de 1881, volume 9, pgina 471, de que haveria no arquivo da BN um manuscrito de 134 flios com letra do sculo XVIII,

    [...] a esta indicao levou Sylvio Romero a declarar que encontrada fra a continuao authentica, ardentemente procurada, o terceiro livro das Memorias para a Historia da Capitania de S. Vicente. [...] sem que, comtudo, haja cotejado o manuscripto com algum exemplar impresso da obra do chro-nista vicentino.[...]O manuscripto da Bibliotheca Nacional pertenceu colleco dos marquezes de Castello Melhor, em cujo catalogo est mencionado sob o n. 162 como inedito e authographo. (TAUNAY, 1925, p. 185-186).

    Assim, a Continuao das Memrias de Frei Gaspar da Madre de Deus representaria mais um pl-gio de Manuel Cardoso de Abreu, que, conforme Taunay (1925, p. 169), seria tambm o responsvel pelo desaparecimento do livro terceiro da obra de Frei Gaspar.

    Taunay credita ainda a Manuel Cardoso um outro provvel plgio da Nobiliarquia Paulistana Hist-rica e Genealgica, de Pedro Taques: um volumoso cdice intitulado Genealogia das famlias paulistas, que foi localizado em Londres por Eduardo Prado,

    6 Cf. CONTINUAO das Memrias de Frei Gaspar da Madre de Deus. Revista do Instituto Histrico Brasileiro, 1861, tomo 24, p. 582. H na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN) um manuscrito que traz o ttulo Continuao das Memrias de Frei Gaspar da Madre de Deus, anexo ao livro das Memrias para a Histria da Capitania de So Vicente, cota 09, 03, 008, mas a matria diferente da que foi publicada na Revista do Instituto. O manuscrito que realmente traz a matria da Continua-o encontra-se no Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, cota DL 167.4.

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    [...] que leu um anncio da venda [...] de um manuscrito sobre esta matria, obra de Manuel Cardoso de Abreu, e, procurando comunicar-se com a capital inglesa para efetuar a compra daquela preciosi-dade histrica, teve o desprazer de verificar que j tinha ela sido adquirida por pessoa desconhecida. (PISA, 1902, p. 292).

    Somando-se aos seus outros dois plgios a informao de que, ao casar-se com Escolstica de Olivei-ra, declarou ao vigrio que desconhecia os apelidos de seus avs maternos7, Taunay conclui que plausvel suspeitar de um novo caso de plgio.

    2.3 Memria Histrica da Capitania de So Paulo: tema e diviso temtica

    de 1796 a obra manuscrita intitulada Memria Histrica da Capitania de So Paulo e Todos os seus Memorveis Sucessos desde o anno de 1531 th o prezente de 1796. Essa obra dedicada a Luiz Pinto de Souza Coutinho, capito-general em Mato Grosso entre 1769 e 1772, e elevado a visconde de Balsemo em 1801, que Manuel Cardoso de Abreu conhecera em Cuiab e a quem desejava lisonjear, almejando, conforme Taunay, um cargo elevado narra a histria da Capitania de So Paulo, antes Capitania de So Vicente, com o objetivo de reabilitar o valor dos paulistas e defender a honra de So Paulo, segundo declara o autor no prembulo da obra.

    O autor serve-se da escrita como arma de defesa de sua ptria, porque s assim seria possvel [...] abordar os problemas do tempo e da histria [...] (LE GOFF, 1996, p. 426). Empreende uma busca por tes-temunhos fiis da histria da Capitania de So Paulo e, s ento, comea a escrever sua obra, tingida com certa tintura pica, pois sua matria justamente a lembrana e exaltao do passado. interessante notar que o gnero pico e o gnero memorialstico, por serem artes narrativas por excelncia, esto intimamente ligados. Essa ligao, conforme Aguiar (1998, p. 25-26), provm do fato de que,

    [...] semelhante ao gnero clssico, o memorialismo exige a presena de um narrador apresentando os acontecimentos e os personagens neles envolvidos e pressupe sempre dois tempos: o presente em que se narra e o passado em que ocorrem os eventos narrados.

    A obra salienta que a Capitania de So Paulo, com tantas histrias fantsticas e grandiosas, resul-tado do enorme esforo de homens corajosos, que, embrenhando-se pelas incultas matas de um mundo at ento desconhecido, a construram e a moldaram segundo seu valor, constitudo a partir de uma viso de superioridade em relao aos outros povos e prpria Natureza, porque tem como fora motriz, alm dos atos de bravura, seus sentimentos, suas emoes e suas paixes.

    Por intermdio da escrita, Manuel Cardoso faz toda uma poca ressurgir e seus mortos reviverem. No entanto, h que se considerar que a busca do passado nunca o reencontra de modo inteiro, pois o que retorna no o passado propriamente dito, mas suas imagens gravadas na memria individual ou coletiva. Nesse sentido, Manuel Cardoso de Abreu, na tentativa de reconstituir o tempo perdido, nada mais do que um memorialista.

    Memria histrica e histria so dois temas que perpassam toda a obra, mas que constituem g-neros diferentes, ainda que tenham pontos de contato.

    7 Cf. o livro de Registros de Casamentos de Brancos e Livres (1782-1794) da S de So Paulo, cota 01-02-16, pgina 108 verso, presente no Arquivo Metropolitano de So Paulo.

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    Memria histrica , segundo Silva (1986, p. 29), uma forma de escritura historiogrfica que ser-ve como matria-prima para a elaborao da histria, havendo nela [...] lugar para a controvrsia, para a disputa, para a argumentao crtica [...], caracterstica que a diferencia do gnero histria, marcado [...] por uma total ausncia de polmica [...]. Dessa maneira, o autor de Memria Histrica pode ser considerado um memorialista e no um historiador, pois, enquanto tal prope-se a contestar de modo crtico e racional, como recomendavam os iluministas, algumas notcias sobre a Capitania de So Paulo at ento tidas como verdadeiras, ao mesmo tempo em que trata com parcialidade alguns assuntos e passagens do texto. Por isso, o memorialista tem um p na histria e outro na fico, porque, alm de verificar a verdade do acontecimen-to, reivindicando a objetividade da qual o memorialista est dispensado, traduz direta ou indiretamente suas opinies sobre os fatos, o que desprezvel para o historiador.

    O autor da obra no foi testemunha pessoal dos fatos comunicados, ele se serviu de fontes diretas e indiretas, como documentos de arquivo, cartas, alvars, alm de obras histricas de autores conhecidos, como Pedro Taques, Charlevoix, Rocha Pita, Vaissete, Jaboato, entre outros.

    Memria Histrica pode ser dividida, grosso modo, em quatro partes: intitulao, prembulo, desen-volvimento e concluso.

    A intitulao compreende o contedo da folha de rosto do cdice, constitudo do ttulo da obra, da dedicatria e do nome do autor. O ttulo traz o gnero a que pertence a obra: gnero memria histrica; o assunto tratado: a histria da Capitania de So Paulo e todos os seus notveis sucessos; sua delimitao cro-nolgica: de 1531 a 1796, e a data do manuscrito: 1796. A obra dedicada a Luiz Pinto de Souza Coutinho, visconde de Balsemo. O nome do autor aparece ao p da pgina.

    Figura 3: Folha de rosto de Memria Histrica da Capitania de So Paulo.

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    No prembulo, o autor apresenta o assunto da obra, informando os motivos que o levaram a escrev-la:

    Eu Paulista, na podia certamente tolerar as opinioenz detantos homenz dou| tos, canonizadas por verdades, nahistoria doDescobrimento, eFundao desta dita | Capitania. E por isso, como natural della, eapaixonado contra a informao | dealguns Estrangeiros, particularmente Espanhoes, que ainda doidos, emagoa=| dos dovalor dos primeiros Paulistaz, procuraro denegrir, escurecer, eaviltar | acoens dignas damelhor fortuna:

    Flio 2r, linhas 20-24)

    os mtodos utilizados:

    Andei, Excelentissimo Senhor, como deporta emporta, | mendigando memoriaz as mais firmez, e revolvendo os Archivos dasCamaraz, | Provedoria Real, eoutros desegura perpetuidade damesma-Capitania, para | afianar as minhas provaz, eo testemunho daverdade, que ta lealmenteexponho | emtudo quanto escrevo nesta informao.

    (Flio 2r, linhas 24-28)

    e a sua finalidade:

    Confesso que foi disvelo daminha | aplicao, para Soccorro damemoria, esaber deffender mais se-guidamente aminha | Patria em algum cazual encontro, que setratasse destamateria, eainda para is=| truir os meuz mesmos naturaez.

    (Flio 2r, linhas 28-31)

    Alm de declarar-se um dos mais antigos navegantes do rio Paraguai em direo a Cuiab e Mato Grosso, encarecendo, assim, a importncia da obra:

    Ecreya-me VossaExcelencia que sendo | eu hum dos antigos Navegantes daquella Carreira, eigual-mente indo | nova Colonia do Yguatem emServio deSua Magestade alevar, como levei, Soccor=| ro deviverez, epagamento Tropa dasua Guarnio, onde aprendi, com meus olhos, | adireco da-quelles Rios vezinhos, eaque sepodia continuar por outros, eoPara=| guay ath oMatoGrosso:

    (Flio 2v, linhas 48-53)

    para depois, ao confirmar a oferta da obra ao visconde de Balsemo, colocar-se na posio de rendido cati-vo e diligente orador, com palavras de falsa modstia:

    Agora vejo que aminha experiencia foi menor, que | oexaminado discurso deVossaExcelencia. Por isto, que eu mais aprendi, beijo as=| maons aVossaExcelencia, pedindo operda domeu arrojo em ta pequena offerta, eain=| da mais pequena pela pouquidade dotalento doseu Autor. VossaExcelencia pode | melhorar-lhe afortuna, que lhefalta, se afelecidade, que aeleva aconstitui=| la inseparavel dos-pez deVossaExcelencia, tiver oprivilegio, deque algum dia a | passe pelos olhos.

    (Flio 2v, linhas 53-58)

    No desenvolvimento, discriminam-se as seguintes divises temticas:

    Capitania de So Vicente: aspectos geogrficos e histricos. Do descobrimento da Amrica em 1492 at chegar a Martim Afonso de Souza, fundador de So Vicente;

    Fundao da Vila do Porto de Santos;

    Fundao de So Paulo;

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    Fundao da Vila de Nossa Senhora da Conceio de Itanham;

    Fundao da Capitania de Santo Amaro: seus limitados progressos enquanto foi governada por Pedro Lopes de Souza e seus descendentes; contendas que houve sobre os seus limites e ttulo; motivo pelo qual passou para a Coroa;

    Cidades e vilas que existem dentro das 55 lguas ao norte de Cabo Frio e acabam no rio Curupa-c da doao do primeiro donatrio Martim Afonso de Souza;

    Vilas que existem dentro das 45 lguas de costa que comeam no rio de So Vicente, brao do norte, e acabam 12 lguas ao sul da Ilha de Cananeia, com que se ajustam as 100 lguas con-cedidas a Martim Afonso de Souza, seu primeiro donatrio;

    Cidade de So Paulo e vilas de sua comarca, as da costa da marinha como as do centro da mesma cidade, todas dentro das 45 lguas do rio de So Vicente at 12 lguas ao sul de Cananeia;

    Vinda do primeiro governo: dos mais subsequentes governadores at o atual Capito General da Capitania.

    A obra termina com a descrio do governo de Francisco da Cunha e Menezes, dcimo General da Capitania de So Paulo, e com a notcia da posse do ento Capito-general da Capitania, o dcimo primeiro, Bernardo Jos de Lorena, que j tinha sido despachado para governar a Capitania de Minas Gerais.

    2.4 Autoria

    Depois da escolha, no Arquivo do Estado de So Paulo, de Memria Histrica da Capitania de So Paulo como corpus para este trabalho, empreendeu-se a recolha e posterior leitura de obras que contri-bussem para o seu embasamento terico. Dentre essas obras, destacou-se Memrias para a Histria da Capitania de So Vicente hoje chamada de So Paulo, cujo ttulo muito semelhante ao do corpus e a sua leitura trouxe uma informao curiosa, objeto de importante contribuio para este trabalho e para uma futura edio crtica da obra: a suspeita de que Manuel Cardoso de Abreu seria um usurpador da obra de Frei Gaspar da Madre de Deus, conhecido historiador da Capitania de So Paulo. Essa notcia dada por Afonso dEscragnolle Taunay, historiador especialista no bandeirantismo paulista, na introduo das Memrias, de Frei Gaspar.

    Capistrano de Abreu foi o primeiro a dar a notcia de que a Memria Histrica seria um plgio das obras de Frei Gaspar da Madre de Deus e de Pedro Taques de Almeida Paes Leme, em carta a Pandi Calge-ras, datada de 25 de outubro de 1916 (RODRIGUES, 1954, p. 400). Mas foi Afonso Taunay que empreendeu uma investigao apurada da biografia de Manuel Cardoso, levando a cabo uma campanha em favor da honra intelectual de Frei Gaspar e de Pedro Taques.

    Cotejando a Memria Histrica de Manuel Cardoso com as obras de Frei Gaspar e de Pedro Taques, Taunay chegou concluso de que a obra se trata realmente de um plgio das Memrias para a Histria da Capitania de So Vicente, do frei beneditino, e de trechos da Histria da Capitania de So Paulo, da Notcia Histrica da Expulso dos Jesutas do Colgio de So Paulo e da Nobiliarquia Paulistana e Genealgica, de Pedro Taques. Conforme Taunay (1925, p. 223), o nico pargrafo original seria uma reproduo de vrios tpicos de sua crnica Divertimento Admirvel, quando enumera as igrejas e capelas de So Paulo. No

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    entanto, Rodrigues (1979, p. 154) diz que tambm so originais os tpicos referentes [...] paz de Holanda, fundao da Colnia do Sacramento, aos descobrimentos das minas e fundao da ouvidoria de So Paulo. Alm disso, ter-se-ia valido da obra de Marcelino Pereira Cleto quando tratou do governo de Lus Antnio de Sousa Botelho Mouro, destacando principalmente a figura de Lus Pinto de Sousa Coutinho.

    Segundo Taunay (1920, p. 64), Manuel Cardoso, de maneira inescrupulosa, teria usurpado os ma-nuscritos das Memrias do monge beneditino, copiando-os quase integralmente:

    Subindo ao poder o visconde de Balsemo, a quem conhecera em Cuyab, renovou insistente, os pe-didos de promoo e melhoria de emprego. Foi ento que lhe occorreu a ida de pedir a frei Gaspar, emprestado para o ler, o manuscripto das suas Memorias, copia-lo e offerece-lo ao ministro, como obra de sua lavra. Assim o fez; deu-lhe outro titulo: Historia da Capitania de So Paulo, annexou-lhe pomposa dedica-toria em que se jacta do immenso trabalho causado pela obra e enviou-o a Balsemo, certo de que jamais se lhe descobriria o furto.

    As Memrias de Frei Gaspar, cuja edio princeps data de 1797, na Academia Real de Cin-cias de Lisboa, no foram impressas integralmente, faltando a terceira parte, prometida pelo monge no fim do seu livro:

    Em virtude deste contracto se reunra, como era justo, Cora as 50 legoas de Pedro Lopes, cons-titutivas da Capitania de Santo Amaro: ellas motivra grandes discordias, e fra cauza de nada possuirem os herdeiros de Martim Affonso, at que a Rainha nossa Senhora foi servida concederlhes hum equivalente pela Capitania de 100 legoas de Costa, chamada de S. Vicente, como se ver em outro Livro, que destinamos ainda publicar sobre estas materias. (MADRE DE DEUS, 1797, p. 242, grifo nosso).

    Taunay (1953, p. 20-23) salienta ainda que essa continuao das Memrias pode no ter sido redigi-da ou os seus manuscritos podem ter se perdido. Outra hiptese a de que Manuel Cardoso tivesse copiado e desaparecido com os manuscritos originais. No tomo XXIV da Revista do Instituto Histrico Brasileiro (1861, p. 539-616), informao dada por Taunay (1920, p. 84) e confirmada pela leitura da dita revista, foi publicado um texto chamado Continuao das Memrias de Frei Gaspar da Madre de Deus, que foi repu-tado, segundo Taunay (1920, p. 84), inteiramente falso, j que, do seu exame, verificou-se que era uma

    [...] indigesta serzidura de trechos, copiados, interpolados e deturpados, da Historia da Capitania de S. Vicente de Pedro Taques e do resumo, muito mal feito e annotado, de outros pedaos da mesma obra. Como annexos se addicionam diversos documentos do archivo da Cmara de S. Paulo e uma lista de ouvidores, em que se mencionam magistrados muito posteriores morte do beneditino! Rematando este acervo de apocryphos surgem as Noticias sobre a vinda dos primeiros governadores at o presente Capito-General, obra de Manuel Cardoso de Abreu, official maior da Secretaria da Capitania de S. Paulo em 1797, como elle proprio declara e facto que, inexplicavelmente, escapou vigilancia da commisso de redaco da Revista.

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    Figura 4: Fac-smile da 1 pgina de Continuao das Memrias de Frei Gaspar da Madre de Deus, na Revista do Instituto Histrico Brasileiro, tomo XXIV.

    Mais tarde, quando da leitura de Nobiliarquia Paulistana Histrica e Genealgica, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme, obra que serviria de orientao para a compreenso histrica de So Paulo no s-culo XVIII, uma informao preciosa dada na introduo intitulada O Historiador das Bandeiras: Pedro Taques e a sua Obra, feita por Afonso Taunay: Manuel Cardoso de Abreu, alm de plagirio das Memrias de Frei Gaspar, tambm teria plagiado trechos da Nobiliarquia e da Histria da Capitania de So Vicente, de Pedro Taques:

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    Levou este fato ao cotejo de sua obra indita pertencente ao Arquivo do Estado de So Paulo, com as Memrias do beneditino, verificando ento que Abreu no passava do mais imprudente plagirio, acaso nascido no Brasil. Notou-se tambm que se apropriara de trechos inteiros de Pedro Taques. (TAUNAY, 1980, p. 47-48).

    A faanha de Manuel Cardoso de usurpar os manuscritos de Pedro Taques explicada por Taunay (1980, p. 48) da seguinte maneira:

    [...] como era ntimo amigo do genro deste, Manuel Alves Alvim, com certeza pde, com a maior liberdade, utilizar-se do esplio manuscrito do infeliz linhagista; da os furtos que realizou.

    Na introduo de Divertimento Admirvel, Bruno (1977, p. 57) diz que a Manuel Cardoso tambm atribudo um trabalho intitulado Genealogia das famlias paulistas, que Taunay (1980, p. 48) supe ser tambm um plgio da Nobiliarquia de Pedro Taques:

    Soube certa vez Eduardo Prado que em Londres se vendera volumoso cdice da autoria de Cardoso de Abreu e referente genealogia paulista. Quando quis adquiri-lo, perdeu-lhe a pista. Este cdice no certamente seno uma nova ladroice literria do velhaco Oficial-Maior da Secretaria da Capita-nia de So Paulo. Em matria de genealogia era Cardoso de Abreu to versado que, ao casar-se, quase aos 40 anos, declarava ao vigrio de So Paulo ignorar quais eram os apelidos de seus avs maternos!Assim haja, porm, o refinado tratante plagiado mais uma vez a Pedro Taques!

    Todas as acusaes de plgio feitas a Manuel Cardoso de Abreu tm apenas um ponto de parti-da: Afonso dEscragnole Taunay, referncia de quem voltou ao assunto, como Bruno. Taunay, de maneira totalmente parcial, coloca-se em todos os momentos como um defensor das qualidades morais e intelec-tuais de Frei Gaspar da Madre de Deus e de Pedro Taques de Almeida Paes Leme, ou como um veraz inimigo de Manuel Cardoso, disposto a desmascar-lo de qualquer maneira, o que pode ser observado nestas suas palavras:

    [...] resta-nos a esperana de que um dia ou outro possa surgir-nos uma nova cpia da Nobiliarquia Paulistana e esta aplicao paulistana do sic vos non vobis voltar-se contra o plagirio de Araritagua-ba. (TAUNAY, 1980, p. 48).

    Da leitura das obras de Frei Gaspar da Madre de Deus e de Pedro Taques de Almeida Paes Leme, assim como do breve cotejo de algumas passagens dessas obras com Memria Histrica da Capitania de So Paulo, de Manuel Cardoso de Abreu, verificou-se que existem realmente muitos pargrafos e trechos copia-dos integralmente, mas o provvel plgio no pode ser considerado um decalque, j que muitas palavras e expresses foram substitudas por sinnimos e algumas informaes no foram encontradas em nenhuma das obras consideradas plagiadas.

    O objetivo deste trabalho, no entanto, no comprovar o plgio de Manuel Cardoso de Abreu ou provar o contrrio, mas trazer tona essas informaes de extrema importncia para a construo da bio-grafia e bibliografia do autor, assim como para futuros estudos de crtica textual que, por meio do levanta-mento de argumentos plausveis e do cotejo da obra de Manuel Cardoso e dos testemunhos das obras de Frei Gaspar e Pedro Taques, ser possvel chegar a resultados mais precisos.

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    captulo 3 Descrio do cdice E11571

    3.1 Identificao

    O cdice E11571 do Arquivo do Estado de So Paulo um manuscrito autgrafo intitulado Memria Histrica da Capitania de So Paulo e Todos os seus Memorveis Sucessos desde o anno de 1531 th o prezente de 1796, de autoria de Manuel Cardoso de Abreu.

    Datado de 1796, fim do sculo XVIII, o manuscrito traz um levantamento da histria da Capitania de So Paulo, antes chamada Capitania de So Vicente, desde sua fundao at o ano de 1796.

    Sobre a histria do cdice, sabe-se que foi dado de presente por Manuel Cardoso de Abreu ao viscon-de de Balsemo, Lus Pinto de Sousa Coutinho, que o anexou sua biblioteca em Lisboa. Alguns anos de-pois, foi comprado pelo baro de Rosrio, em Portugal, [...] ao se dispersar a antiga biblioteca do Visconde de Balsemo [...] (TAUNAY, 1943, p. 52) devido sua morte em 1804, e, sendo incorporado biblioteca do baro, voltou ao Brasil com uma bonita encadernao e em timo estado de conservao. Segundo Taunay (1925, p. 229), depois da morte do baro de Rosrio, o manuscrito foi adquirido, em 1915, por ordem de Altino Arantes, ento secretrio do Interior, para o Arquivo do Estado de So Paulo, onde se encontra at hoje sob a cota E11571. A obra permaneceu indita at o ano de 2007, quando apresentei uma edio semi-diplomtica publicada em minha dissertao de mestrado, defendida na Universidade de So Paulo.

    3.2 Aspectos Codicolgicos8

    Os livros no so somente o suporte de ideias, culturas e conhecimentos, eles existem tambm em sua materialidade, em sua concretude. Dessa forma, pode-se afirmar que os escritores no escrevem livros, eles escrevem textos que devem ser objetos escritos (manuscritos, impressos, informatizados), pois, enquan-to objeto material, o uso do livro est associado a gestos, atitudes e comportamentos.

    A partir do sculo XVI, poca em que o livro deixa de ser privilgio de poucos e comea a estender--se a um pblico laico, h um aumento rpido da publicao de obras. Essa difuso do livro mobilizou toda uma sociedade. Se considerarmos os aspectos materiais, o livro favoreceu, segundo Martin (2000, p. 61), o desenvolvimento de fbricas de mveis especficos para a arrumao e a consulta fcil e para a leitura. Alm disso, transformou profundamente numerosos domnios da vida pblica e privada, da existncia espiritual e material. Martin (2000, p. 61) salienta que o exemplo mais importante dessas transformaes o nascimen-to, durante a Idade Mdia e, sobretudo depois do sculo XV, da leitura silenciosa pelos olhos e individual-mente, que rompeu com a leitura oral pelas orelhas e coletivamente. A leitura tornou-se um ato individual e os livros, em razo de sua maior acessibilidade, objetos banais.

    Com a banalizao do livro, surgiu uma preocupao com sua conservao e seu transporte; dessa forma, foram confeccionadas encadernaes que protegiam o texto contido no livro ao mesmo tempo em 8 Este estudo foi realizado tomando-se como modelo a descrio codicolgica atualizada do Livro de Isaac feita por Cambraia (2000, p. 64-76).

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    que lhe davam beleza. Alm disso, o formato do livro tambm sofreu transformaes ao longo do tempo, at chegar atualmente s chamadas edies de bolso, que o tornaram um objeto ordinrio consultvel em qualquer lugar.

    Antes do aparecimento da imprensa no sculo XV, o antepassado do livro impresso era o cdice, do latim codex, placas de madeira ou tabuinhas cobertas de cera para que pudessem receber a escrita, e articu-ladas por dobradias, constituindo uma espcie de livro, e, mais tarde, o livro feito de pergaminho ou papel. Atualmente, cdice um livro escrito mo, por isso conhecido como manuscrito, da designao latina manu scriptus, de pergaminho ou papel, cuja importncia est ligada facilidade de manuseio e comodi-dade de leitura.

    A cincia que estuda os aspectos materiais dos livros manuscritos, uma ramificao da Paleografia, a Codicologia, cincia auxiliar da Filologia que tem como objetivo situar os cdices no tempo e no espao. Esse estudo abrange, segundo Spina (1994, p. 28),

    [...] a qualidade e a preparao do pergaminho, a natureza e a origem do papel, a composio das tintas e das cores utilizadas na decorao, os mnimos detalhes da encadernao (dimenso, compo-sio dos cadernos), modos de numerao, entrelinhamento, colunas, margens, reclamos, dimenses das letras, motivos iconogrficos, a prpria escritura.

    Podemos, pois, tomar a Codicologia como a cincia que busca entender a histria do cdice em toda a sua amplitude material: quais foram as tcnicas utilizadas para a sua confeco, como era a integrao do livro no universo bibliogrfico de ento, como era levado de um lugar a outro, qual a sua origem e a intencio-nalidade de consumo-leitura. Alm disso, se o cdice no traz indicaes explcitas quanto a datas, escribas e local de elaborao, s por intermdio de um estudo codicolgico aprofundado torna-se possvel levantar algumas hipteses ou concluses.

    3.2.1 Suporte material

    Antes da criao do papel os materiais mais utilizados para a escrita eram o papiro e o pergaminho. Os antigos egpcios inventaram o papiro, confeccionado com o talo do vegetal de mesmo nome, [...] planta cipercea semelhante ao junco de cujo caule se tiravam lminas de sua largura, que justapostas e sobrepos-tas perpendicularmente, depois comprimidas e alisadas, formavam a folha [...] (SPINA, 1994, p. 29), que depois eram coladas sucessivamente. Com a escassez do papiro pela dificuldade de importao, propagou-se o uso do pergaminho, surgido em Prgamo, cuja matria-prima a pele curtida de animais como a ovelha, a cabra e o bezerro.

    A inveno do papel, atribuda a TSAI LUN, deu-se na China, na provncia de Hunam, mas sua data, fixada por alguns tericos no ano de 105 d.C., ainda continua controvertida. Contudo, sabe-se que por volta do sculo V o uso do papel j estava generalizado na China. Levado Europa pelos rabes em meados do sculo VIII, o papel logo ganhou um terreno propcio ao seu desenvolvimento. Segundo Motta e Salgado (1971, p. 20), na Espanha, nas cidades de Toledo e Valena, foram instauradas, por volta de 1150, as primei-ras manufaturas de papel. Provavelmente em 1270, como salienta Mcmurtrie (1969, p. 69), foi construdo o primeiro moinho de papel do mundo cristo em Fabriano, cidade italiana onde, tambm, deu-se incio a identificar o papel por meio da marca dgua, j em 1293.

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    No Brasil, a primeira fbrica de papel s foi construda entre 1809 e 1810 no Rio de Janeiro, e teve sua produo iniciada entre 1810 e 1811. Dessa forma, todo o papel usado na Colnia at essa data era im-portado da Europa e s possvel reconhecer sua origem por meio do exame de seus pontusais, vergaturas e marcas dgua.

    Devido sua aparente fragilidade, o papel foi recebido inicialmente com desconfiana. Desse modo, era usado ordinariamente, enquanto o pergaminho era o suporte preferido para a escrita de documentos importantes. Entretanto, com a inveno da imprensa por Gutenberg, por volta de 1450, multiplicou-se a demanda de papel, fato que definiu completamente sua importncia enquanto instrumento de difuso e vulgarizao (MELO, 1926, p. 10).

    Os chineses fabricavam o papel manualmente com restos de redes, fibras de cnhamo, de algodo ou cascas de rvores, principalmente a amoreira. Na Europa, primitivamente, o papel continuava a ter fabrico manual, mas, at o sculo XVII, era feito de tecidos velhos, da, conforme salienta Motta e Salgado (1971, p. 37), a designao de papel de trapo, um papel bastante duradouro, de excelente textura e vivacidade de cor, porque feito de fibras longas e no contm substncias nocivas como os papis atuais, feitos de pasta de madeira. No entanto, a tima qualidade do papel no garantia de que no ser vtima da ao de agentes internos e externos a ele, como os elementos usados em sua fabricao, o tempo, o ambiente e os insetos. Segundo Motta e Salgado (1971, p. 61), o papel frequentemente destrudo por elementos como a resina usada em seu fabrico, a umidade contida na atmosfera, que, combinados com o calor, constituem um am-biente favorvel ao desenvolvimento de insetos e fungos, os chamados papirfagos ou biblifagos. Os insetos podem deixar o papel com um rendilhado que torna difcil seu manuseio e leitura. A presena dos fungos identificada quando se encontram no papel manchas escuras de carter esponjoso.

    O cdice E11571 compe-se de 163 flios escritos em frente e verso, com exceo da folha de rosto e do flio final. Embora escritas nos dois lados, as folhas so numeradas apenas no recto, no canto superior da margem direita, apesar de essa ser uma prtica que j no fim da Idade Mdia estava suplantada pela noo de pgina (MARTINS, 2001, p. 68). Sua dimenso de 30 cm x 21 cm. O suporte parece ser composto de papel de trapo, de colorao amarelada, quase castanha, caracterstica adquirida com o passar do tempo devido no utilizao de corante azul na sua fabricao, como salienta Silveira (2004, p. 51). um papel de textura fina e de tima qualidade. As folhas de guarda, mais escuras que as folhas internas e de menor qualidade, so pouco maleveis e quebradias, devido provavelmente aos produtos qumicos utilizados em sua restaurao, fato que ocasionou a soltura da primeira guarda.

    possvel encontrar nos flios 158 e 159 defeitos no papel. Parecem marcas de pequenas sementes de algodo que, ao serem retiradas de onde estavam, em data posterior da escritura do livro, foram subs-titudas por pedaos de papel de seda da mesma cor da folha e com o mesmo formato das ditas sementes, a que se seguiu a reconstituio das palavras anteriormente escritas, tinta preta, o que contrasta com a tinta castanha do texto.

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    Figura 5: Defeitos no papel nos flios 159 recto e verso.

    O primeiro flio escrito, que contm o ttulo da obra, a dedicatria e o nome do autor, um papel de colorao mais escura que os demais, colado prximo lombada por uma fina tira de papel, alm de ser escrito tinta preta por outro punho. Alm disso, apresenta um carimbo oval de cor avermelhada, medindo 1,4 cm x 2,7 cm, com a inscrio Rosrio, que identifica ter pertenci