memória empresarial: interesse utilitarista ou responsabilidade

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES SARA BARBOSA DE SOUSA Memória Empresarial: interesse utilitarista ou responsabilidade histórica? São Paulo 2010

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO ESCOLA DE COMUNICAES E ARTES

    SARA BARBOSA DE SOUSA

    Memria Empresarial: interesse utilitarista ou responsabilidade histrica?

    So Paulo 2010

  • SARA BARBOSA DE SOUSA

    Memria Empresarial: interesse utilitarista ou responsabilidade histrica?

    Dissertao apresentada a Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Cincia da Informao

    rea de Concentrao: Cultura e Informao Linha de Pesquisa: Ao Cultural Orientadora: Profa. Dra. Maria Christina Barbosa de Almeida

    So Paulo 2010

  • Catalogao na Publicao

    Sousa, Sara Barbosa de Sousa Memria Empresarial: interesse utilitarista ou responsabilidade

    histrica? / Sara Barbosa de Sousa. - - So Paulo: S. B. de Sousa, 2010. 130p. Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Cincia da

    Informao / Escola de Comunicaes e Artes / Universidade de So Paulo.

    Orientadora: Almeida, Maria Christina Barbosa de. Bibliografia 1. Histria e Memria 2. Histria empresarial 3. Cultura organizacional I. Sousa, Sara Barbosa de II. Ttulo

    CDD 659.2

  • FOLHA DE APROVAO

    Sara Barbosa de Sousa Memria Empresarial: interesse utilitarista ou responsabilidade histrica?

    Dissertao apresentada a Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Cincia da Informao

    rea de Concentrao: Cultura e Informao Linha de Pesquisa: Ao Cultural Orientadora: Profa. Dra. Maria Christina Barbosa de Almeida

    Aprovado em: ___/___/___ Banca Examinadora Prof (a.) Dr(a.) Maria Christina Barbosa de Almeida (orientadora)

    Assinatura: _________________________________________

    Instituio: Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo

    Prof (a.) Dr(a.) _______________________________________

    Assinatura: _________________________________________

    Instituio: _________________________________________

    Prof (a.) Dr(a.) _______________________________________

    Assinatura: _________________________________________

    Instituio: _________________________________________

    Prof (a.) Dr(a.) _______________________________________

    Assinatura: _________________________________________

    Instituio: _________________________________________

  • minha famlia, pelo apoio incondicional e

    pelo que representa em minha vida.

  • AGRADECIMENTOS

    professora Dra. Maria Christina Barbosa de Almeida, pela orientao, incentivo, motivao e, especialmente, por acreditar em mim.

    Profa Dra. Helosa Bellotto e Profa. Dra. Johanna Smit, pelas pertinentes e importantes observaes durante o Exame de Qualificao.

    Profa. Dra. Asa Fujino, pela ateno e apoio em momento decisivo.

    Ao Mrcio, companheiro e amigo em todos os momentos.

    Ao meu irmo Marcos, pelo apoio e planto de informtica.

    s minhas queridas amigas Adriana Abro, Andreza Cavalcante, Cssia

    Guimares, Isabela Silva e Viviane Santos pelo incentivo, apoio, compreenso e presena em minha vida.

    querida amiga Alessandra Sousa pela amizade, companheirismo, apoio e incentivo.

    s amigas da Camargo Corra Marisa Berti e Sunara Avamilano pela amizade, incentivo, compreenso, apoio e por sempre acreditarem em meu potencial.

    Ao Pastor Alessandro Silva pela ateno e palavras de incentivo.

    Jocelene Lacerda de Oliveira, pela verso em ingls do resumo.

    E a todos aqueles que, direta ou indiretamente, colaboraram para a elaborao deste trabalho.

  • A memria o segredo da histria do modo

    pelo qual se articulam o presente e o passado, o indivduo e a coletividade.

    O que parecia esquecido e perdido logo se revela presente, vivo, indispensvel.

    Octavio Ianni (1926-2004)

  • RESUMO

    SOUSA, Sara Barbosa de. Memria Empresarial: interesse utilitarista ou responsabilidade histrica? 2010. 130p. Dissertao (Mestrado) - Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010.

    A pesquisa tem por objetivo refletir o papel desempenhado pela memria empresarial, analisando sua atuao estratgica no reforo da imagem institucional e na construo ou fortalecimento da identidade corporativa. A reflexo engloba ainda as motivaes das empresas para a construo de espaos de memria e o uso da memria pelas organizaes. A anlise envolve a discusso de conceitos de reas multidisciplinares do conhecimento: histria, administrao, arquivologia e biblioteconomia e documentao. Aborda os conceitos de histria bem como sua associao com o passado e sua valorizao por setores da sociedade e como efeito do processo de globalizao. Apresenta a conceituao de memria, abordando sua valorizao e busca generalizada feita por diversos setores sociais, destacando o interesse e importncia pelas organizaes, repercutindo em eventos comemorativos ou no resgate da histria da empresa. Aborda a conceituao do termo cultura expressando sua complexidade conceitual e ampla significao, dando nfase para a cultura organizacional e analisando seus principais componentes: valores, heris, mitos e ritos para a compreenso de seu imaginrio. Analisa a empresa alm da produo de bens e servios, como parte integrante da sociedade, enfatizando sua atuao frente aos seus pblicos de relacionamento: consumidores, clientes, fornecedores, colaboradores, comunidade. Avalia os mercados de memria empresarial, abordando a temtica dos trabalhos produzidos, destacando-se a importncia do rigor cientfico e a legitimidade das fontes de pesquisa nos projetos de memria, objetivando a veracidade da histria. Analisa os projetos de memria empresarial para identificar se estes constituem estratgia de marketing para valorizao da imagem institucional ou so resultantes da conscincia da responsabilidade histria da organizao. Palavras-Chave: histria e memria; memria de empresas; cultura organizacional; centros de documentao e memria; responsabilidade histrica.

  • ABSTRACT

    SOUSA, Sara Barbosa de. Corporate Memory: utilitarian interest or historical responsibility? 2010. 130p. Dissertation (Master) Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010. The research aims to reflect the role played by the corporate memory, analyzing its strategic importance in enhancing the institutional image and building or strengthening the corporate identity. The reflection also encompasses the motivations of the companies for the construction of memory spaces and memory usage by organizations. The analysis involves the discussion of concepts of multi-disciplinary areas of knowledge, such as: history, management, archivology and librarianship, and documentation. Comprises the concepts of history and their association with the past, and their recovery by the sectors of the society, and as an effect of the globalization process. Introduces the concept of memory, encompassing its recovery and generalized search made by various social sectors, highlighting the relevance and importance by organizations, resulting in celebratory events or in the recovery of the companys history. It broads the definition of the term culture, expressing its conceptual complexity and wide-ranging significance, with emphasis on organizational culture and analyzing its major components: values, heroes, myths and rituals to the understanding of its imagery. Analyzes the company beyond the production of goods and services as an integral part of the society, emphasizing its actions before its stakeholders: customers, clients, suppliers, cooperators, community. Evaluates the markets of corporate memory, by addressing the thematic produced works, highlighting the importance of the scientific rigor and the legitimacy of the research sources on memory projects, aiming at the truth of the history. Analyzes the corporate memory projects in order to identify whether they are of marketing strategy for the institutional memory enhancement or whether they are the result of the awareness on the companys historical responsibility. Keywords: history and memory, companies memory, organizational culture, documentation and memory centers; historical responsibility.

  • S U M R I O

    1. INTRODUO ___________________________________________ 1

    2. HISTRIA E MEMRIA ____________________________________ 7

    2.1 CONCEITUAO DE HISTRIA _________________________________ 9 2.2 CONCEITUAO DE MEMRIA ________________________________ 14 2.3 HISTRIA E MEMRIA: APROXIMAES E TENSES __________________ 19 2.4 OS ARQUIVOS E A HISTRIA DE EMPRESAS _______________________ 23 2.4.1 OS ARQUIVOS EUROPEUS _________________________________ 24 2.4.2 OS ARQUIVOS NORTEAMERICANOS ___________________________ 25 2.5 HISTRIA EMPRESARIAL ___________________________________ 27 2.6 HISTRIA EMPRESARIAL NO BRASIL ___________________________ 34

    3. CULTURA E EMPRESAS ___________________________________ 42

    3.1 O CONCEITO DE CULTURA ___________________________________ 42 3.2 A CULTURA ORGANIZACIONAL: UM DEBATE DE CONCEITOS _____________ 48 3.3 ELEMENTOS DA CULTURA ORGANIZACIONAL _______________________ 53 3.3.1 VALORES ___________________________________________ 53 3.3.2 HERIS ____________________________________________ 60 3.3.3 MITOS ____________________________________________ 66 3.3.4 RITOS _____________________________________________ 71

    4. OS USOS DA MEMRIA EMPRESARIAL _______________________ 75

    4.1 INSTITUCIONALIZAO DA MEMRIA NAS EMPRESAS _________________ 80 4.2 TRABALHOS DE MEMRIA: MOTIVAES E OBJETIVOS ________________ 91 4.3 MERCADOS DE MEMRIA EMPRESARIAL: REFLEXES A CERCA DO MARKETING INSTITUCIONAL E DA RESPONSABILIDADE HISTRICA __________________ 107

    5. CONSIDERAES FINAIS ________________________________ 115

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ____________________________ 121

  • 1

    1. INTRODUO

    A memria tema de estudos desde as primeiras civilizaes. Sua retomada na

    contemporaneidade por diversos setores sociais revela a preocupao da sociedade

    com a recuperao, preservao, disseminao e acesso s inmeras informaes

    disponveis.

    O rpido e incessante crescimento informacional transmitido de forma efmera no

    mundo contemporneo particularmente pela Internet - tem sido determinante para

    a acelerao da histria, processo responsvel pela sensao de ruptura e de

    destruio dos registros documentais tradicionais da memria coletiva.

    A acelerao do tempo provoca a hegemonia da efemeridade o surgimento e a

    durao do novo ocorrem num piscar de olhos. Nesse ambiente gil e em constante

    movimento, as relaes so baseadas no presente, no momento atual, culminando

    com o risco de perda da prpria identidade.

    Nesse contexto, a valorizao da memria e a busca generalizada por sua

    recuperao esto diretamente relacionadas ao medo do esquecimento e ao

    processo de construo de identidade conduzido por diversos setores sociais e

    encontram-se inseridas no contexto mundial de globalizao que interfere em

    culturas, impe mudanas de impacto e determina a tomada de aes em um

    reduzido espao de tempo.

    Assim, a nova dinmica social caracteriza-se pela diluio das fronteiras, fragilidade

    dos laos interpessoais e mudanas nas vises de mundo, nos comportamentos,

    produzindo um sentimento de insegurana e a necessidade de ser afirmar ou

    construir uma identidade. nesse cenrio que ocorre a chamada proliferao de

    memrias, entendida como sintoma de um mundo repleto de memrias, mas com

    relaes rompidas com o passado. Nessa nfase ao momento instantneo, o

    indivduo submetido a um processo de desenraizamento, sendo impulsionado a

    busca sua prpria identidade em instituies de memria.

  • 2

    Como fenmeno social, a memria no vem sendo retomada unicamente como

    elemento-chave de constituio de identidade e de evocao do passado para

    preservar a histria, mas tambm como base de reflexo crtica de erros,

    interpretaes e equvocos cometidos pela sociedade. Dessa forma, o estudo da

    memria empresarial tem sido valorizado dentro de um processo de construo de

    identidade conduzido por diversos setores sociais.

    A memria ganhou importncia e espao alm do campo acadmico e tem sido

    valorizada como instrumento para a preservao de experincias vividas, do

    conhecimento acumulado (intangvel) e da identidade de indivduos e grupos sociais

    que buscam a recuperao e divulgao de suas memrias com a utilizao de

    diferentes formas de resgate do passado expressas em diversos suportes

    portadores de uma plasticidade atraente como exposies, livros, fotografias dentre

    outros componentes.

    A atuao e importncia da memria tambm esto tm sido reconhecidas no setor

    empresarial como reforo ou consolidao da imagem pblica de uma empresa,

    podendo repercutir de maneira positiva em sua credibilidade junto ao pblico

    consumidor e sociedade como um todo, alm de ter-se tornado fator de

    competitividade, em um mercado caracterizado pela velocidade de fluxos, aes e

    decises e pela acirrada concorrncia.

    Dentre as vrias manifestaes do interesse relativamente recente pela memria

    encontram-se as iniciativas de construo e preservao da memria das empresas,

    ressaltando-se que a empresa passou a ser objeto de estudo das Cincias

    Humanas, ocupando um lugar de destaque junto s demais instituies sociais.

    importante que se desenvolva um novo olhar acerca do papel da empresa na

    sociedade que v alm do conceito que a apresenta como um sistema de recursos

    que visa concretizar objetivos. Na verdade, a empresa encontra-se integrada em

    todas as relaes sociais e apresentando uma estrutura complexa que envolve

    pessoas, processos, decises, documentos, valores, smbolos, conhecimentos e

    outros elementos que podemos caracterizar como culturais.

  • 3

    No boom da histria e das memrias, ganham destaque o crescimento e o interesse

    das organizaes pelo resgate de suas trajetrias. O desenvolvimento do campo da

    memria empresarial tem revelado que as empresas podem e devem ir muito alm

    da celebrao de datas e marcos importantes. O resgate e a organizao da histria

    das empresas constituem ferramentas estratgicas que podem ser aplicadas no

    planejamento e o direcionamento dos negcios, na consolidao da imagem

    institucional da organizao com seus pblicos de relacionamento e com a

    sociedade, da qual parte integrante.

    Apesar de a rea de memria empresarial despertar um interesse crescente tanto no

    dia-a-dia das organizaes, quanto no meio acadmico, como o desenvolvimento de

    pesquisas, verifica-se que ainda so poucos os estudos realizados nessa rea.

    Ressalte-se que os projetos de recuperao da memria de empresas envolvem

    aspectos conceituais, organizacionais e tcnicos, mas tambm definem estratgias

    de apropriao e uso da memria e, naturalmente, questes ticas.

    Cabe, assim, analisar as finalidades das iniciativas voltadas para o resgate da

    memria empresarial, bem como os princpios pelos quais se pautam e as formas de

    fazer. importante avaliar se essas iniciativas so fundamentais e se desenvolvem

    com rigor cientfico, compromisso social e responsabilidade histrica, ou se so

    utilizadas apenas como evento comemorativo, ou como marketing institucional ou de

    produtos e servios, como alavanca para os negcios.

    A responsabilidade histrica um conceito novo e seu significado ainda pouco

    difundido e/ou compreendido no mbito empresarial. Sua conceituao envolve o

    conhecimento do papel histrico e do compromisso que uma organizao tem com a

    sociedade, com a comunidade onde opera suas atividades e com seus integrantes,

    sendo imprescindvel nessa relao a coerncia entre discurso e prtica.

    Esta pesquisa tem como objetivo principal a anlise do papel social da memria

    empresarial, de suas articulaes com os processos de criao e afirmao da

    cultura organizacional e da identidade corporativa, alm de uma reflexo sobre as

  • 4

    motivaes das empresas para a construo de seus espaos de memria e os

    sobre os usos da memria nas empresas.

    Este estudo constitudo por trs captulos, os quais apresentam subdivises. O

    primeiro captulo Histria e memria - aborda os conceitos de histria e questiona

    sua associao ao passado, sem vnculos com o presente, e ainda sua valorizao

    observada no incremento do mercado editorial com publicaes que abordam essa

    temtica e como efeito da globalizao.

    O captulo inicial engloba tambm a complexa conceituao, aproximao e tenso

    entre os termos histria e memria, tendo por base pesquisas de reconhecidos

    historiadores e renomados estudiosos. Aborda, ainda, questes relacionadas aos

    arquivos, com destaque para a criao dos arquivos empresariais. Por fim, trata da

    histria empresarial no mundo e no Brasil, desde o seu surgimento at os dias

    atuais.

    O segundo captulo Cultura e Empresas aborda a conceituao do termo

    cultura, expressando sua ampla significao em diferentes contextos histricos como

    atividade manual (agricultura), referncia ao culto, ao intelectual, conotao

    imperialista, como parte integrante de uma organizao ou identidade de um povo

    ou raa dentre outros, o que compreende uma tarefa rdua e complexa.

    Ainda nesse captulo, aps a tentativa de apresentar a complexidade que envolve o

    termo cultura, o estudo aborda a noo de cultura organizacional, tema que tem sido

    objeto de discusses e trabalhos publicados. Em seguida so analisados os

    conceitos e os principais componentes da cultura de empresa como: valores, heris,

    mitos e ritos, o que permite analisar a questo da identidade e contribui para

    desvendar a histria de uma organizao.

    Os valores so formados por idias, crenas e filosofias partilhadas por membros de

    uma empresa e que guiam seus comportamentos. Os mitos reportam-se aos

    fundadores ou lderes carismticos ou podem ser transmitidos por meio de histrias.

    Os smbolos, atravs da representao, do sentido percepo e imaginao;

  • 5

    so, portanto, elementos visuais importantes e relacionados identificao da

    empresa; nessa relao encontram-se os ritos ou rituais que, por sua vez, so

    alimentados pelos smbolos e apresentam funes mltiplas. Por sua vez, os heris

    so personificados e idealizados em pessoas como fundadores, lderes carismticos

    ou colaboradores dedicados, indissociavelmente ligados evoluo e ao

    desenvolvimento das organizaes.

    O terceiro captulo Os usos da memria empresarial aborda a relao entre

    empresa e sociedade, com destaque para a responsabilidade histrica por meio do

    relacionamento de uma organizao com seus diversos pblicos seja cliente,

    consumidor, colaborador, fornecedor ou comunidade.

    Esse captulo engloba as motivaes e os objetivos que levam as organizaes a

    desenvolveram projetos de memria, voltados, particularmente ao resgate de sua

    histria. So apresentados cases de organizaes que implementaram aes na

    rea de memria empresarial, observando-se os resultados obtidos. Tambm so

    apresentados os principais eventos relacionados a memria empresarial que foram

    realizados no pas.

    O captulo procura mostrar como se d a institucionalizao da memria nas

    organizaes e identificar os motivos que conduzem a essa ao que de maneira

    geral, podem ser sintetizados em dois conjuntos, no obrigatoriamente excludentes,

    mas complementares: aqueles relacionados s comemoraes (aniversrio de

    fundao ou marco histrico) ou aqueles que refletem a percepo ou conscincia

    do valor de sua histria.

    O captulo se encerra com uma reflexo sobre os mercados de memria

    empresarial, abordando as temticas dos trabalhos produzidos no campo de histria

    das empresas pelo vis acadmico ou destinados ao mercado. Nessa abordagem

    questionada a realizao de estudos com rigor cientfico e a legitimidade das fontes

    de pesquisa. Discute-se at que ponto a memria de empresas constitui apenas um

    elemento do marketing institucional para a promoo da imagem da organizao ou

  • 6

    se de fato a empresa desenvolve um projeto de resgate de sua histria como

    resultado da sua responsabilidade histrica na sociedade.

    A metodologia aplicada no desenvolvimento deste estudo tem como base uma

    reviso da literatura em reas multidisciplinares do conhecimento, utilizadas em sua

    fundamentao, a saber: histria, administrao, arquivologia e biblioteconomia e

    documentao. As consideraes expostas tambm sero fundamentas em debates

    e informaes obtidas a partir de cursos e seminrios na rea de memria

    empresarial e no conhecimento adquirido a partir da experincia profissional de

    implantao do centro de documentao e memria na empresa em que esta autora

    trabalha.

  • 7

    2. HISTRIA E MEMRIA

    Habitualmente o termo histria conceituado como o estudo de fatos e/ou

    acontecimentos ocorridos no passado, que no foram vivenciados por quem os

    descreve e, por isso, no apresentam ligaes com o presente. Esse conceito reflete

    uma falsa viso da histria com interesse exclusivo pelo passado. O fato de ser vista

    apenas como algo pertinente ao passado demonstra o espao irrelevante que ocupa

    socialmente, onde permanece margem, distante e sem vnculo com a realidade.

    A associao da histria ao passado como um conhecimento do que j se passou e

    perdeu a importncia, oculta uma srie de possibilidades que mostram que a histria

    vai alm do estudo do passado. Nesse sentido, fundamental uma viso da histria

    como uma cincia que lida com eventos humanos, que no se resume a um simples

    relato de acontecimentos passados que perderam sua essncia ou validade. Ao

    contrrio, ela discute, analisa e interpreta os acontecimentos e as experincias

    humanas e possibilita a explicao do universo social em que vivemos.

    Todavia, o interesse pelo conhecimento da histria, geralmente restrito a livros

    didticos e ao meio acadmico, tem sofrido alteraes que corroboram para a sua

    popularizao. Como exemplo, temos o lanamento de obras voltadas para pessoas

    no especialistas em histria e muitos livros cujos autores no tm formao

    acadmica em Histria, mas escrevem sobre diversos temas histricos ou ainda

    obras de histria. Ressalta-se aqui a importncia do questionamento do contedo

    expresso assim como a veracidade das fontes, para evitar distores de

    acontecimentos e pontos de vista, particularmente no caso das obras no

    especializadas.

    Outro aspecto, positivo, mas tambm a exigir ateno, a recente publicao de

    revistas de Histria no Brasil destinadas ao grande pblico. Essas revistas tm como

    proposta editorial apresentar uma viso estimulante, dinmica e esclarecedora de

    histria, visando o entendimento dos grandes temas da atualidade com rigor

    cientfico e em linguagem clara, moderna e acessvel - xito que deriva da

    competncia de seus autores para tornar o discurso simples, mas correto. Os

  • 8

    primeiros ttulos, Histria Viva e Nossa Histria, conquistaram espao e pblico que

    foram rapidamente disputados com uma massa de publicaes surgidas na esteira

    de ambas.

    Ressalte-se, entretanto, que o interesse pela histria, que atingiu o grande pblico

    no Brasil e em outros pases, no se limita a publicaes de temtica histrica. Nota-

    se que o interesse pela histria amplo, de repercusso mundial: reflete o

    fenmeno da globalizao que interfere nos processos e prticas culturais, impe

    mudanas de impacto em um reduzido espao de tempo.

    Observamos, nesse cenrio, que a sociedade contempornea tem sido

    caracterizada por mudanas significativas, num cenrio rapidamente transformado

    pela velocidade e pelo volume de informaes, por novos cdigos e

    comportamentos, alteraes que tm causado a impresso de incapacidade de

    absorver, com a mesma rapidez, todos os acontecimentos.

    Nesse contexto, Pierre Nora (1993, p. 07-08) identifica como fator determinante a

    acelerao da histria, que provoca uma oscilao cada vez mais rpida de um

    passado definitivamente morto, a percepo global de qualquer coisa como

    desaparecida uma ruptura de equilbrio.

    A sensao de vivermos um presente acelerado, que brevemente transforma-se em

    passado, tambm relatada por DAlssio (1997, p. 97). A historiadora observa que

    a alterao do tempo provoca a acelerao da histria, caracterizando um contexto

    em que o passado perde o lugar para o presente e h uma iminente ameaa de

    perda da identidade:

    " a histria se torna mais rpida, a durao do fato a durao da notcia, o novo produzido incessantemente conduz as vidas criando a sensao de hegemonia do efmero. A histria torna-se eternamente contempornea.

    Em constatao semelhante, Pinto (2001, p. 296-298) observa que a ameaa de

    esquecimento, gerada pelo presente, provocou a sensao de perda de identidade e

    a nsia de recuperao do passado, encontrando-se nesse trajeto a memria e a

  • 9

    necessidade de lembrar. A memria atua como (re)conexo do homem

    contemporneo ao passado como fonte de identidade:

    "[A memria] o espao possvel de culto ao passado como forma possvel de no perd-lo no caos da histria acelerada da modernidade."

    Desse modo, a obsesso criada pela sociedade contempornea em torno do

    passado e, consequentemente, do resgate da memria, est diretamente

    relacionada ao medo do esquecimento e ao processo de construo ou

    reconstituio de identidade conduzida por diferentes setores sociais, afetados pelo

    rompimento de laos decorrentes do processo de globalizao.

    2.1 Conceituao de histria

    A palavra histria tem origem no grego antigo historie e significa investigao,

    informao. Le Goff (2003, p. 18) apresenta uma anlise da conceituao do termo: a

    forma historie deriva da raiz indoeuropia wid-, wied (ler). O snscrito vettas e o

    grego histor significam testemunha no sentido de aquele que v e aquele que sabe.

    Em grego antigo, historien significa procurar saber, informar-se.

    Para os historiadores, o termo histria apresenta uma ambiguidade fundamental por

    significar, ao mesmo tempo, acontecimentos passados (processo histrico) e o

    estudo desses acontecimentos (conhecimento produzido). Os historiadores

    distinguem histria-acontecimento, referindo-se aos acontecimentos histricos, ou

    seja, o processo de transformao das sociedades humanas, e histria-

    conhecimento referindo-se ao conhecimento histrico que permite compreender a

    realidade. Borges (1984, p. 4445) esclarece que os dois sentidos da palavra histria

    so interligados, pois os acontecimentos histricos so o objeto de anlise do

    conhecimento histrico. Nesse sentido, Vieira; Peixoto; Khoury (1998, p. 29) afirmam:

    A histria deve ser pensada no duplo sentido do termo: como experincia humana e como sua prpria narrao, interpretao e projeo.

    Em lngua romnica, segundo Le Goff (2003, p. 18), o termo histria exprime dois

    conceitos diferentes: (1) a procura pelas aes realizadas pelos homens e (2) o

    objeto das aes humanas realizadas. Contudo, ressalta a ambiguidade do termo

  • 10

    que pode ainda ter o sentido de narrao (histrica ou fbula). Paul Veyne (1995, p.

    08-11) apresenta uma viso original de histria ao defini-la como uma narrao, um

    conto de acontecimentos verdadeiros. Argumenta que a histria um romance real,

    no qual os historiadores so os narradores dos fatos reais que tm o homem como

    ator. Em suma, compreende a histria como uma narrativa de eventos.

    Carr (1982, p. 13) argumenta que a histria consiste num corpo de fatos verificados,

    que esto disponveis para os historiadores sob a forma de documentos, inscries

    dentre outros, como os peixes na tbua do peixeiro. Portanto, cabe ao historiador

    seu levantamento e anlise, de acordo com seu objeto de pesquisa:

    "deve reuni-los, depois lev-los para casa, cozinh-los, e ento servi-los da maneira que o atrair mais.

    Por muito tempo a histria foi concebida equivocadamente como a descrio de

    acontecimentos memorveis ou o levantamento de dados ou fatos, concepo

    endossada pela influncia dos positivistas. Rodrigues (1981, p. 16-18) critica a "idia

    popular e ingnua" de que a histria seria uma simples descrio de realidades pr-

    existentes ou uma simples reproduo de fatos. Conceitua a histria como um

    processo racional, composto no unicamente de fatos, mas de sentido e razo:

    "a histria s muda e sem significao para aquele que ou incapaz de aprender o que ela quer dizer ou para aquele que deseja deliberadamente sonegar o seu sentido."

    Carr (1982, p. 13-14) esclarece que um fato em si no oferece estrutura suficiente

    para sustentar um determinado acontecimento; como um saco vazio que no para

    de p enquanto no se coloque algo dentro. Por essa razo, fatos isolados ou

    desprovidos de carter explicativo e de relaes entre si no constituem histria. A

    esse respeito, Carr (1982, p. 20) enfatiza:

    Naturalmente, os fatos e os documentos so essenciais ao historiador. Mas que no se tornem fetiches. Eles por si mesmos no constituem a histria; no fornecem em si mesmos resposta pronta a esta exaustiva pergunta: Que histria?

  • 11

    Para Becker (1955, p. 327), a histria uma ramificao respeitvel do

    conhecimento, ligada ao pensamento e ao de homens e mulheres que viveram

    no passado. Para Marc Bloch (1965, p. 25-29), a definio de histria como cincia

    do passado equivocada, sendo absurda a ideia do passado como objeto de cincia.

    O historiador define a histria como a cincia dos homens no tempo, que deve

    permitir a compreenso do presente pelo passado bem como do passado pelo

    presente. Por fim, Le Goff (2003, p. 25) argumenta que a histria a cincia do

    passado, com a condio de saber que este passado se torna objeto da histria num

    processo de construo e reconstruo permanente.

    Seguindo a mesma linha de anlise, Chesneaux (1995, p. 78) alega que a histria

    pode ser o vaivm entre teoria e prtica se estiver em contato com o presente. Cabe

    histria conhecer o passado a partir de uma relao intrnseca com o presente. Seu

    posicionamento remete aos historiadores gregos, que acreditavam que a histria

    poderia ser aceita como o estudo do passado desde que em funo de um presente.

    Lucien Fbrve (1970, p. 29) afirma que a histria a cincia do homem, cincia do

    passado e cincia dos fatos, mas dos fatos humanos. Argumenta que s existe a

    histria do homem que, por sua vez, constitui-se no nico objeto de estudo da

    disciplina, de modo que os fatos e os textos (incluindo os documentos, que se

    apresentam em diferentes suportes) estudados pela Histria so essencialmente

    humanos, sendo constitudos por substncia humana, o que nos conduz ao

    pensamento de Heller, tambm apresentado nesta dissertao.

    Em sntese, Febvre (1970, p. 55) compreende a Histria como a cincia do acordo

    que se realiza, da harmonia estabelecida perptua e espontaneamente, em todas as

    pocas, entre as condies diversas e sincrnicas de existncia dos homens, sejam

    elas materiais, tcnicas ou espirituais.

    Heller (1972, p. 02) aponta a histria como substncia da sociedade, contendo esta

    substncia o essencial e a continuidade de toda a estrutura social:

  • 12

    "a sociedade no dispe de nenhuma substncia alm do homem, pois os homens so os portadores da objetividade social, cabendo-lhes exclusivamente a construo e transmisso de cada estrutura social."

    De acordo com essa concepo, a histria uma substncia estruturada e

    heterognea, constituda por esferas diferentes (produo, relaes de propriedade,

    moral, poltica, vida cotidiana, cincia, arte dentre outras), que apresentam uma

    relao de alteridade entre si. Heller (1972, p. 15) observa ainda que a aparncia de

    finalidade objetiva e "sentido" da histria deve-se ao carter substancial da prpria

    histria, construo de valores sobre a base de outros valores. Compreende,

    portanto, a histria como a explicitao da essncia humana, constituindo-se num

    processo de construo e desconstruo de valores.

    Pereyra (1984, p. 18) ressalta duas vises da histria: a primeira afirma que foi

    concebida com a tarefa de manter viva a recordao de acontecimentos memorveis

    segundo critrios variveis em distintas formaes culturais. A segunda reduz a

    histria a uma coleo de feitos exemplares e de situaes paradigmticas cuja

    compreenso prepara os indivduos para a vida coletiva.

    Dentre as inmeras definies, uma das que melhor consegue sintetizar o conceito

    de histria a de Carr (1982, p. 29): um processo contnuo de interao entre o

    historiador e seus fatos, um dilogo interminvel entre o presente e o passado. A

    histria constitui, assim, uma das formas de conhecimento da realidade, investigando

    o movimento contnuo de transformaes vivenciadas pelas sociedades humanas, a

    partir da interpretao de fatos e/ou acontecimentos nas diferentes culturas e nas

    diferentes pocas.

    A tentativa de conceituar histria constitui-se numa tarefa complexa, pois envolve

    cenrios diferentes (contextos e pocas) e atores reais (os homens), cujo desenrolar

    estudado, escrito e interpretado por autores, ou seja, historiadores, que so

    homens e sofrem influncia de acontecimentos, ideologias e da poca em que vivem.

    A histria tem como objeto de estudo a substncia humana e busca a compreenso

    da realidade, dos atos praticados pelos homens, numa relao incessante com o

    passado. Nesse sentido, compreendemos a histria como substncia social e cincia

  • 13

    dos homens no tempo que desempenha a tarefa de analisar os acontecimentos e as

    experincias humanas, investigando os fatos ocorridos e possibilitando sua

    compreenso na relao com o presente.

    A problemtica que envolve a histria no se limita sua conceituao; envolve

    ainda sua percepo pelo cidado comum que, geralmente, no se percebe como

    parte integrante do processo, como ator principal da prpria histria. Essa

    dificuldade permeada tanto pela falta de conhecimento do que e do que trata a

    histria, como tambm pela ideia reducionista de histria como passado morto,

    constituda por fatos memorveis e grandes heris ou, ainda, como referncia como

    disciplina escolar.

    Para se alterar esse quadro irreal, faz-se necessrio que a sociedade se coloque

    como sujeito histrico, como o fio condutor da trama histrica: o homem quem

    constri a histria. O conhecimento histrico deve propiciar a compreenso das

    relaes entre os grupos humanos e das aes praticadas pelo homem como sujeito

    histrico, ao apontar os desdobramentos de seus atos e expor a irregularidade das

    aes humanas.

    Rodrigues (1981, p. 41) enfatiza que a histria pode conscientizar politicamente os

    homens, mostrando-lhes os processos sociais e econmicos em que esto

    envolvidos. A conscincia histrica do indivduo um processo lento e gradual que

    no ocorre unicamente no espao escolar, antes envolve sua participao social e

    poltica; deve permitir ao homem o seu prprio (re)conhecimento, seja pela

    semelhana, seja pelo conflito, seja, ainda, pela diferena.

    Ressalte-se que as diferentes conceituaes e inmeras discusses sobre a histria

    so empobrecidas na histria como disciplina escolar. Rodrigues (1981, p. 44)

    argumenta que o menosprezo histria ocorre quando se diz que ela no passa de

    uma memorizao, de uma decoreba. Habitualmente, o contedo da disciplina

    ensinada na escola ainda privilegia uma srie de eventos organizados

    cronologicamente, concepo que a reduz ao estudo de um passado enfadonho e

    distanciado da realidade. Prevalece, em muitas unidades educacionais, o ensino de

  • 14

    histria baseado em frmulas repetitivas, limitado reproduo e memorizao de

    datas e fatos histricos.

    essa preocupao de Caimi (2005), que reitera o predomnio de uma viso

    tradicional baseada no estudo do passado com nfase nos feitos histricos, alm de

    uma concepo de professor-transmissor e de aluno-receptor no processo de

    aprendizagem da disciplina. A autora ressalta, ainda, que o mtodo de ensino de

    Histria baseado na memorizao de datas e na repetio oral de textos escritos, que

    predominou na maioria das escolas brasileiras, resultou em uma histria linear e

    cronolgica, e na falsa premissa de que a Histria conhecimento pronto e acabado.

    Chesneaux (1995, p. 71) confirma essa tendncia e ressalta que a mania da

    periodizao reforada pela prtica pedaggica, que reduz o objetivo da histria a

    um quadro neutro da sequncia do tempo", fixando referncias, recortando fatias

    dos acontecimentos, dividindo e subdividindo a histria. Franco Jr. (1996, p. 11)

    tambm questiona o modelo tradicional da periodizao da histria:

    ... naturalmente, sendo a Histria um processo, deve-se renunciar busca de um fato que teria inaugurado ou encerrado um determinado perodo.

    Em sntese, podemos afirmar que a histria contempla o estudo das aes humanas

    com base nos processos de mudana ocorridos nas estruturas sociais, econmicas,

    polticas e culturais ao longo do tempo. Nesse contexto, se faz necessrio rever a

    conceituao da histria e sua aplicao por diferentes setores sociais.

    2.2 Conceituao de memria

    Segundo Bosi (1979, p. 9), para se chegar origem da palavra memria, faz-se

    necessrio partir da etimologia do verbo lembrar-se; se souvenir em francs,

    significa um movimento que vem de baixo; que traz tona o que estava submerso.

    Rodrigues (1981, p. 42) relata que lembranas o sentido formal da palavra

    memria, cuja significao bsica relembrar. Afirma ainda que, arcaicamente,

    memria significa "cerimnia de comemorao, ou um servio dedicado aos mortos,

  • 15

    ou o registro biogrfico". Por fim, relata que o termo pode ainda ser empregado no

    sentido de "escrito para que a memria seja guardada".

    A memria objeto de estudo de filsofos e cientistas h muitos sculos. Para os

    antigos gregos, a memria tem origem divina, a deusa Mnemosine, fonte de

    imortalidade. A deusa da Memria a me das nove musas protetoras das artes e

    da histria, cabendo-lhe conceder aos poetas e adivinhos a lembrana do passado e

    sua transmisso aos mortais.

    Para os romanos, a memria desempenha, alm dessa funo, a de desenvolver a

    arte da retrica, usando a linguagem para persuadir e emocionar os ouvintes. Com a

    memria, o bom orador deveria conhecer as regras fundamentais da eloquncia e

    ser capaz de pronunciar longos discursos sem o auxlio da leitura de registros.

    Durante muito tempo as narrativas orais foram utilizadas pelas sociedades humanas

    para a preservao da experincia social e cultural, a socializao da memria e a

    transmisso de valores.

    Nas sociedades sem escrita, que apresentavam uma estrutura organizacional mais

    simplificada, a fala (linguagem articulada) e a memria eram suficientes para a

    transmisso de saberes e para a construo da histria e da identidade dos grupos

    humanos. Segundo Le Goff (2003, p. 427), nessas sociedades a memria coletiva

    estava centrada em trs grandes interesses: (1) na idade coletiva dos grupos (mitos

    de origem), (2) no prestgio das famlias dominantes (genealogia) e (3) na

    transmisso do saber tcnico.

    O aparecimento da escrita provocou transformaes na memria coletiva, alterando

    o processo de guardar e socializar a experincia humana. De acordo com Le Goff

    (2003, p. 427-428), os registros levaram ao desenvolvimento de duas formas de

    memria: a comemorao (onde a memria assume a forma de inscrio e utiliza

    instrumentos como pedra e mrmore) e o documento escrito (utilizando, inicialmente,

    suportes como osso e pele e, posteriormente, papiro, pergaminho e papel).

  • 16

    Na recusa ao registro e elemento essencial ao aprendizado da memria, foram

    desenvolvidos mtodos de memorizao. Os gregos desenvolveram a mnemotecnia,

    conjunto de tcnicas usadas para auxiliar a memria. A importncia de se exercitar a

    memria justificava-se pelo seu enfraquecimento causado pelo registro escrito.

    Segundo Le Goff (2003, p. 436), a inveno da mnemotecnia atribuda ao poeta

    Simnides, que teria fixado dois princpios da memria artificial: a lembrana das

    imagens e o recurso da organizao.

    Plato (2007, p. 118) aponta a problemtica da escrita em Fedro (274-275). Por

    intermdio da fala de Scrates, narra a lenda do deus egpicio Thoth, inventor dos

    nmeros, do clculo, da geometria, da astronomia e da escrita. A divindade egpcia

    apresentou ao rei Tamuz do Egito a escrita como a cincia que tornaria os egpcios

    mais sbios e fortaleceria a memria, em suma, a descoberta do "remdio" para a

    memria e a sabedoria. Por meio da resposta do rei egpcio, Plato (2007, p. 119)

    ressalta que a inveno de Thoth contribuiria mais para o enfraquecimento da

    memria do que para seu desenvolvimento; entendia que o triunfo da escrita

    representava a morte da memria:

    " Tal coisa [a escrita] tornar os homens esquecidos, pois deixaro de cultivar a memria; confiando apenas nos livros escritos, s se lembraro de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e no em si mesmos."

    Segundo Le Goff (2003, p. 425), rememorar era a funo do velho nas civilizaes

    tradicionais, nas quais representa o guardio da memria do grupo, o depositrio do

    saber da comunidade. Nas sociedades sem escrita, havia os guardies dos cdices

    reais, chefes de famlias idosos, sacerdotes que tinham o importante papel de

    manter a coeso de seu grupo social. Bosi (1979, p. 35) argumenta que existem

    sociedades onde o ancio o maior bem social e ocupa um lugar honroso. Ilustra

    essa idia com o relato de uma antiga lenda balinesa que fala de um lugar longquo

    onde outrora os velhos eram sacrificados e, com o decorrer do tempo, no restou

    nenhum para contar as tradies; todos haviam perdido a experincia, a lembrana.

    A comunidade foi salva por um av que havia sido escondido por seu neto e nunca

    mais um velho foi sacrificado.

  • 17

    A transmisso oral no foi bruscamente substituda pela escrita; ao contrrio, a

    mudana ocorreu por meio de um processo lento pelo qual a escrita se tornou um

    objeto de maior valorizao que a oralidade. Meihy (1996, p. 21) ressalta que, desde

    a Antiguidade, com os egpcios, a palavra oral perdeu valor para a escrita. O

    trabalho dos escribas, encarregados da superviso da administrao pblica, exigia

    o uso da escrita, sobretudo no estabelecimento de leis e na cobrana de impostos.

    Com base na teoria do conhecimento, Chau (2002, p. 130) argumenta que a

    memria desempenha quatro funes essenciais: (1) reteno de um dado

    (percebido, experimentado ou conhecido); (2) reconhecimento e produo de um

    dado que pode estabelecer relao com o conhecido e gerar novos conhecimentos;

    (3) recordao de algo pertencente ao passado e (4) evocao do passado. O

    desempenho dessas funes torna a memria essencial no processo de elaborao

    da experincia e do conhecimento provenientes da cincia, da filosofia e da tcnica

    e no processo de criao e desenvolvimento de novos conhecimentos.

    Alguns estudiosos j defenderam a memria como um fato biolgico, reduzindo-a ao

    registro cerebral ou gravao automtica de fatos, acontecimentos, pessoas e

    relatos pelo crebro. No entanto, aspectos biolgicos e qumicos no sustentam a

    memria como um todo, pois no explicam o fenmeno da lembrana e do

    esquecimento. Nem todos os registros e as gravaes feitas pelo crebro constituem

    memria; apenas o que foi gravado com sentido ou significado para o indivduo.

    Chau (2002, p. 130) alerta que a memria no constitui uma simples lembrana ou

    recordao; antes, revela a relao com o tempo e no tempo, com o passado:

    A memria o que confere sentido ao passado como diferente do presente (mas falando ou podendo fazer parte dele) e do futuro (mas podendo permitir esper-lo e compreend-lo).

    Ecla Bosi (1979, p. 31) chama a ateno para o fato de que nossa memria

    composta tanto por fatos que vivenciamos, quanto por fatos que aconteceram muito

    antes de nascermos. Nossos antecessores nos transmitem uma bagagem de

    memria. Todos estes fatos, vivenciados ou no, ajudaro a escrever nossa histria

    de vida. A autora esclarece que a criana recebe do passado os dados da histria

  • 18

    escrita e tem suas razes mergulhadas na histria sobrevivida das pessoas mais

    velhas que participaram de sua sociabilizao. Sem a participao dessas pessoas,

    a criana teria somente uma competncia abstrata para lidar com os dados do

    passado, mas no teria memria.

    O filsofo francs Henri Bergson (1999, p. 88-89) aponta a existncia de duas

    memrias: a memria-hbito e as lembranas puras. A memria-hbito adquirida

    atravs do esforo repetitivo de gestos ou palavras; ocorre pelo processo de

    socializao e faz parte do adestramento cultural do indivduo. A lembrana pura

    registra os acontecimentos da vida cotidiana sob a forma de "imagens-lembranas" e

    independe de quaisquer hbitos, trazendo tona da conscincia um momento que

    nico que no se repete e irreversvel. Refere-se a uma situao j definida,

    individualizada.

    Halbwachs (1990, p. 53-55) estuda os quadros da memria e observa que o

    indivduo participa de duas espcies de memrias: a memria individual (pessoal ou

    autobiogrfica) e a memria coletiva (social ou histrica). Avalia que a memria do

    indivduo est relacionada com seus grupos de convivncia e grupos de referncia.

    A memria individual, portanto, encontra-se amarrada memria do grupo que, por

    sua vez, ligada memria coletiva de cada sociedade.

    Atualmente a memria ganhou importncia e espao alm do campo acadmico e

    tem sido valorizada como instrumento para a preservao de experincias vividas e

    a construo da identidade de indivduos e grupos sociais. DAlssio (1993, p. 97)

    ressalta que, h pelos menos duas dcadas, a memria est em moda no Brasil,

    evidenciando a necessidade de se preservar o passado, lugar de construo da

    identidade. Meneses (1992, p. 09) concorda com essa afirmao: "o tema da

    memria est em voga, hoje mais do que nunca". justamente em momentos de

    ruptura da continuidade histrica, de destruio das marcas da experincia coletiva

    que se volta o olhar para a memria, responsvel por recompor a relao do

    passado com o presente.

  • 19

    Como fenmeno social, a memria no tem sido retomada unicamente como

    elemento-chave de constituio de identidade e de evocao do passado para

    preservar a histria e como base de reflexo crtica de erros, interpretaes e

    equvocos cometidos pela sociedade. Sua atuao e importncia tambm esto

    sendo reconhecidas no setor empresarial como reforo ou consolidao da imagem

    pblica de uma instituio, podendo repercutir de maneira positiva em sua

    credibilidade junto ao pblico consumidor e prpria sociedade. A memria tambm

    oferece subsdios competitividade das organizaes, num mercado veloz e de

    acirrada concorrncia. Nesse sentido, Ferreira (2004, p. 98) ressalta:

    A iniciativa de diferentes setores da sociedade para recuperar e divulgar suas memrias, atravs de livros, exposies, inaugurao de monumentos e criao de centros de memria, tem como objetivo reelaborar identidades, difundir uma determinada viso sobre o passado, e reforar a imagem pblica de grupos ou personagens.

    2.3 Histria e memria: aproximaes e tenses A relao entre histria e memria tem despertado o interesse dos historiadores pelo

    passado como elemento fundamental para a compreenso do presente. Essa

    relao traz tona debates com grandes discusses tcnicas, j que os conceitos

    de histria e memria apresentam semelhanas, mas diferem entre si.

    Muito se tem discutido sobre as fronteiras que ligam e separam histria e memria.

    A identificao entre histria e memria ocorre a partir da utilizao da mesma

    matria-prima o substrato comum entre ambas o passado - que remete tanto

    construo da memria quanto operao histrica e tem sido causa de

    questionamentos de muitos especialistas desde a primeira metade do sculo XIX.

    Ainda no sculo XIX, Pinto (2001, p. 297) relata o aparecimento de trabalhos

    relacionados ao estudo da memria em diferentes reas do conhecimento e destaca

    trs registros: Bergson, na Filosofia (indagaes filosficas), Freud, na Psicologia

    (personalidade psquica) e Proust, na Literatura (produo literria).

  • 20

    Pinto (2001, p. 293-294) observa que muito se fala de memria e ressalta a

    necessidade de uma definio precisa do que se entende por histria e o que se

    concebe por memria. Nesse debate, Le Goff (2003, p. 08-11) conceitua a memria

    como produo do passado que deve ser transportada para o presente, enquanto

    designa a histria como a cincia que faz o elo entre passado e presente.

    Rodrigues (1981, p. 42-47) apresenta uma crtica feroz confuso dos conceitos de

    memria e de histria. Define memria como "lembrana, a reminiscincia, a

    recordao, como a relao, o relato, a narrao" e histria como "disciplina de

    anlise e crtica". Sua posio claramente favorvel histria, a que se refere

    como "clssica, social e humana"; por sua vez, a memria sintetizada a uma

    "palavra latina do sculo XII, de significao modesta, humilde". Questiona o uso

    indevido e inadequado das duas palavras e acentua o uso generalizado da memria

    e a campanha desfavorvel contra a histria. Finalmente, denomina por desapreo o

    emprego da palavra memria no lugar de histria e enfatiza que as palavras

    apresentam significados diferentes e, por isso, devem ser usadas com propriedade.

    Freitas e Braga (2006) enfatizam que a memria no pode ser reduzida a um

    processo parcial e limitado de lembrar fatos passados; o que seria de valor auxiliar

    para as cincias humanas. A memria apoia-se na construo de referncia de

    diferentes grupos sociais sobre o passado e o presente, com base em tradies e

    mudanas culturais. Os autores citados argumentam que a histria no tem o poder

    de estabelecer como os fatos aconteceram, coexistindo, na verdade, vrias leituras

    sobre a utilizao da memria para a interpretao da histria. Observam ainda que

    a histria apresenta-se diante de uma realidade baseada no testemunho e no relato.

    Destacam a crescente revalorizao da memria, na esfera individual e nas prticas

    sociais, enquanto a histria convive com uma insuficiente reflexo historiogrfica.

    Halbwachs (1990, p. 80-82) alega que a memria coletiva ou social (tambm

    denominada memria histrica) no pode ser confundida com a histria, criticando a

    escolha infeliz da expresso memria histrica porque associa dois termos

    opostos em vrios pontos. Em sua opinio, a histria, sem dvida, uma

    compilao dos fatos que ocuparam o maior espao na memria dos homens

  • 21

    enquanto a memria retm do passado somente aquilo que ainda est vivo ou

    capaz de viver na conscincia do grupo que a mantm.

    Analisando os aspectos tericos da relao histria-memria, DAlssio (1993, p. 98-

    99) argumenta que a memria um elemento vivo, fsica ou afetivamente, que

    permanece no tempo, renovando-se. O pr-requisito para a existncia da memria

    o sentido de continuidade que deve estar presente no indivduo ou grupo que se

    lembra. A permanente renovao das lembranas um dos elementos que

    diferencia histria e memria:

    A histria no memria porque h descontinuidade entre quem a l e os grupos, testemunhas ou atores dos fatos ali narrados. H, portanto, uma relao entre a exterioridade ou distanciamento da Histria em relao aos grupos e a diviso do tempo histrico em fatos pontuais.

    Pinto (2001, p. 300) ressalta que, na memria, o passado recriado como histria

    vivida, como experincia humana; na histria, o passado estudado racionalmente

    e transformado em conhecimento:

    "A memria desconhece os rituais significadores que a histria tenta atribuir ao passado e, rebelde, subverte a ordem que o presente desejaria impor ao passado, descartando a unicidade que o passado costuma receber em suas representaes."

    Halbwachs (1990, p. 82-83) critica os historiadores que permanecem presos

    sucesso de acontecimentos ocorridos, utilizando-se de esquemas didticos de

    diviso dos fatos. Para ele, o historiador atua como um espectador que no faz parte

    dos grupos que observa, deixando os fatos agrupados em conjuntos sucessivos e

    separados e considera cada perodo como um todo, ou seja, com comeo, meio e

    fim. Na memria, no existe uma segmentao dos fatos, pois estes so vistos sob a

    tica dos grupos que realmente viveram esses acontecimentos.

    A opinio do historiador Pierre Nora (1993, p. 09) identifica-se com a do socilogo

    Halbwachs na questo das diferenas entre histria e memria. Nora argumenta que

    a histria pode ser definida como registro, distanciamento, problematizao, crtica e

    reflexo, enquanto a memria mais humana: um processo vivido e, portanto,

    sempre atual, conduzido por grupos vivos, encontrando-se em permanente estado

  • 22

    de evoluo e sendo vulnervel a mecanismos de manipulao. Em seu conceito, a

    histria, enquanto operao intelectual, dessacraliza a memria.

    Meneses (1992, p. 11) concorda que a memria constitui um processo permanente

    de construo e reconstruo, mas ressalta que sua elaborao ocorre no presente

    para responder to somente a solicitaes do presente:

    A memria enquanto processo subordinado dinmica social desautoriza, seja a idia de construo no passado, seja a de uma funo de almoxarifado desse passado.

    Meneses (1992, p. 22-23) considera imprpria qualquer coincidncia entre histria e

    memria. Enfatiza que a memria, como construo social, essencialmente uma

    operao ideolgica que refora a identidade individual, coletiva ou nacional,

    enquanto a histria uma operao cognitiva, uma forma intelectual de

    conhecimento. Acredita ser possvel fixar fronteiras para evitar a substituio da

    histria pela memria, e refora a funo crtica do historiador e o tratamento da

    memria como objeto de anlise e estudo da histria.

    Bellotto (2004, p. 273-274) tambm defende a distino entre histria e memria.

    Encara a histria como o resultado de uma interao entre documento, documentado

    e historiador e a memria como matria documental, um substrato bruto, a ser

    trabalhado pelo historiador. Recorre a Rodrigues (1981, p. 48), que define a memria

    como um banco de dados e a histria como uma anlise crtica interpretativa:

    "a memria depsito de dados, naturalmente esttica, pois configura um princpio de conservao; s a histria a anlise crtica, dinmica, dialtica, julgadora do processo de mudana e desenvolvimento da sociedade."

    Para alguns historiadores, as diferenas entre histria e memria representam uma

    questo ultrapassada. A razo alegada para tal afirmativa que no faz sentido opor

    a reconstruo historiogrfica do passado (histria) s reconstrues mltiplas de

    indivduos ou grupos (memria), pois fundamental ao trabalho do historiador

    estabelecer verdades histricas com base numa diversidade de fontes de informao.

  • 23

    Novas abordagens tm demonstrado interesse pelo dilogo construtivo entre os

    meios usados para dar sentido ao passado, de tal modo que os campos da histria e

    da memria atuem como processos interligados e complementares. Um exemplo a

    relao da histria oral com a memria: ambos utilizam o mesmo objeto de estudo

    depoimentos e permitem o compartilhamento de experincias e a explorao de

    aspectos vivenciados, mas raramente registrados.

    Hoje em dia, histria e memria constituem elementos importantes da recente

    estratgia adotada pelas organizaes para delinear sua identidade com aes de

    valorizao e preservao do passado, base da sua trajetria de crescimento e

    consolidao no mercado, posicionamento que ser exposto nesta pesquisa.

    2.4 Os arquivos e a histria de empresas

    Por sculos, as narrativas orais foram utilizadas pelas sociedades humanas para a

    preservao da experincia social e cultural, socializao da memria e transmisso

    de valores. O aparecimento da escrita provocou transformaes na memria coletiva,

    alterando o processo de guardar e socializar a experincia humana.

    O registro de atos pblicos e privados remonta Antiguidade, destacando-se o

    trabalho desenvolvido pelos escribas. Na Idade Mdia era comum o registro de

    transaes comerciais simples como emprstimos, acordos entre pessoas e

    encomendas simples.

    No sculo XI ocorreu a multiplicao de documentos como anais, crnicas, atos

    pblicos e privados e obras literrias. Entre os sculos XII e XV, observou-se a

    abundncia documental proveniente da inveno da imprensa, da difuso da escrita

    e do crescimento de instituies administrativas e jurdicas. Ressalte-se que o

    nascimento dos Estados modernos contribuiu fortemente para a consolidao da

    burocracia e proliferao dos documentos administrativos, conforme salienta

    Glnisson (1979, p. 147):

  • 24

    ... a burocracia triunfante em todos os regimes, seja qual for sua ideologia, multiplicou em propores inimaginveis os papis conservados nos escritrios pela necessidade prtica ou por simples esprito de rotina.

    O aumento substancial dos papis gerados pela administrao burocrtica no foi

    acompanhado pelo acesso aos arquivos, que permaneceram restritos at o sculo

    XVII h registros da existncia de grandes arquivos financeiros europeus, em sua

    maioria, intactos ou consultados de forma insignificante. A Revoluo Francesa deu o

    primeiro passo para mudar esse cenrio, com a criao dos Arquivos Nacionais

    Franceses (1790) e a consequente disponibilidade dos documentos da memria

    nacional. A documentao francesa que evocava o passado nacional assumiu a

    funo de memria e fonte para a histria bem como foi considerada um patrimnio a

    ser preservado.

    Entretanto, a abertura dos arquivos franceses no representa o todo. At o sculo

    XIX a multiplicao dos arquivos e o acesso aos documentos no foi to significativa,

    na medida em que a maioria dos arquivos, museus e bibliotecas ainda no eram

    abertos ao pblico. Glnisson (1979, p. 153) ressalta que os arquivos constituam-se

    em reservatrios do estatuto poltico, econmico e social, uma espcie de arsenal de

    provas e justificativas usadas conforme necessidade e que seu valor histrico era

    ignorado por seus detentores. O panorama arquivstico passa de fato por alteraes

    no sculo XX, com a criao de escolas para estudos documentais em diversos

    pases, o crescimento significativo da produo documental, a diversidade de fontes

    produtoras e de suportes, a ampliao do pblico usurio e a busca incessante por

    novas informaes.

    2.4.1 Os arquivos europeus

    Na rea empresarial a arquivstica ganha espao com os estudos realizados no

    campo da histria das empresas, cujo incio data da primeira dcada do sculo

    quando da criao dos primeiros arquivos empresariais histricos na Europa.

    Segundo Gagete e Totini (2004, p. 113), dentre as empresas pioneiras que

    organizaram arquivos histricos esto a Krupp (1905) e a Siemens (1907), ambas

    alems. Nessa mesma linha, Glenisson (1979, p. 158) comenta que a iniciativa alem

    na criao de arquivos de empresa foi seguida por uma srie de pases europeus,

  • 25

    dentre eles a Sua, que fundou o Arquivo Regional Suo de Empresas e o Arquivo

    para a Indstria (1910) e a Holanda, que criou o Arquivo para a Histria Econmica

    (1914).

    Ainda na Europa, vale ressaltar os exemplos dos bancos italianos (os arquivos do

    Banco de Npoles datam do sculo XVI) que, conscientes de seu valor histrico,

    publicaram inventrios contendo artigos e o histrico de instituies bancrias,

    conforme aponta Glnisson (1979, p. 158-160)

    Em 1932, surgiu na Inglaterra a British Records Association e em 1934, sob influncia

    norte-americana, os ingleses criaram o Business Archives Council que realiza um

    importante trabalho de sensibilizao, mantendo contato direto com banqueiros e

    empresrios visando preservao de arquivos empresariais. Esta instituio

    desempenha tambm a tarefa de assessorar as empresas na organizao de seus

    arquivos.

    A criao de arquivos empresariais foi seguida posteriormente por outros pases

    europeus como a Frana e a Itlia. O campo de histria de empresas foi

    impulsionado em 1944 com a fundao do Centro de Histria Empresarial de

    Harvard, cujos estudos enfatizavam a insero das empresas no campo social e

    econmico.

    Freitas Filho (1989, p. 169) relata a publicao da Histria da Unilever (1954), de

    Charles Wilson, na Frana, que apresenta o estudo da companhia e sua relao com

    fatores estruturais e o desempenho econmico; o lanamento do jornal Business

    History (1958) e a criao de uma cadeira universitria destinada ao ensino da

    histria empresarial (1959). A Frana destaca-se pela publicao de estudos na rea

    de histria de empresas ou de setores econmicos (sobretudo os bancos)1 e de

    revistas especializadas.

    2.4.2 Os arquivos norteamericanos

    1 Apesar de os bancos estarem entre as mais importantes e mais antigas empresas do mundo, ocupando um lugar chave na histria financeira e poltica, pouco se sabe a respeito da documentao de interesse histrico nacional da qual so portadores e mantenedores.

  • 26

    At o incio do sculo XX, no se constata interesse dos Estados Unidos por seus

    arquivos empresariais e nem por seu uso nos estudos de histria econmica. A

    preocupao do empresariado americano com a preservao da histria surge ainda

    em fins dos anos 20 do sculo XX, quando passa a disponibilizar a documentao de

    suas empresas para pesquisas de historiadores.

    Na Amrica do Norte, o exemplo da colaborao de empresas nos arquivos

    empresariais a Companhia Ford que organizou um servio de arquivos (Ford Motor

    Company Archives), com a produo de um boletim. Freitas Filho (1989, p. 169)

    destaca o impulso dado aos estudos e ao ensino sistemtico da histria dos negcios

    nos Estados Unidos, cuja difuso foi favorecida com os arquivos e a documentao

    econmica das empresas, fontes mantidas sob a guarda de bibliotecas universitrias

    e de sociedades histricas.

    Ainda nos Estados Unidos, destaca-se a atuao da Business History Society, que

    editava manuais destinados a arquivos de empresas e ainda publica resumos de

    documentos econmicos de empresas norte-americanas em seu boletim. J a

    Universidade de Harvard dispe do Baker Library - o mais rico depsito de arquivos

    econmicos de empresas dos Estados Unidos, constitudo por documentos de

    inmeras firmas industriais e comerciais e que so destinados aos estudos de alunos

    e investigadores da rea e oferece ainda mtodo de triagem e conservao de

    documentos.

    Os anos 50 do sculo XX expressaram dois momentos distintos da histria

    empresarial. A histria empresarial foi influenciada negativamente pela viso da New

    Economic History ao defender que as mudanas tecnolgicas e a eficincia do

    mercado ocorriam independentes da participao do empresariado. Positivamente

    ocorreu a afirmao da Business History fora dos Estados Unidos e foram

    desenvolvidos na Frana e Inglaterra os primeiros estudos sobre histria empresarial,

    fundamentada na perspectiva social, com nfase da rea para a atuao do

    empresrio condicionada a fatores estruturais e conjunturais.

  • 27

    Nos anos 70 do sculo XX - perodo do bicentenrio da independncia dos Estados

    Unidos - foi constatada a maior identificao das empresas com sua histria e sua

    cultura. As grandes empresas americanas detentoras de uma poltica de conservao

    e organizao de seus arquivos perceberam as vantagens e a grande utilidade dessa

    documentao.

    Essa nova percepo foi responsvel pela abertura de campo de trabalho, na

    estrutura organizacional das empresas, para historiadores que puderam avaliar o

    potencial informativo e a importncia histrica dos arquivos. Reconhecia-se, ento,

    que esta documentao - em geral desconhecida ou ignorada, poderia ser til no

    processo de valorizao da histria das empresas e servir como importante

    instrumento auxiliar na administrao, para embasar a tomada de decises e o

    planejamento de novas estratgicas empresariais.

    Ressalte-se que, somente em meados do sculo XX, a comunidade empresarial

    passou a ter conscincia da necessidade de conservar seus documentos. As razes

    so diversas, destacando-se: a falta de interesse ou ignorncia dos proprietrios, a

    ausncia de profissionais especializados, a destruio massiva de documentos, as

    condies precrias de conservao do material e dificuldades de acesso aos

    pesquisadores.

    importante enfatizar que a produo e o arquivamento de registros documentais

    so atividades integradas ao cotidiano das empresas, de modo que no podem ser

    descuidadas pela gesto administrativa. Os arquivos, como parte significativa da

    existncia das organizaes, so elementos-chaves da sua histria e memria e um

    marco referencial na constituio de sua identidade.

    2.5 Histria Empresarial O incio do sculo XX revelou um vasto panorama dos estudos histricos. Dentre os

    campos de investigao e linhas de pesquisas encontrados, est a Histria

    empresarial, que constitui um importante ramo da historiografia contempornea, cuja

    investigao est ligada conjuntura econmico-social. Sua linha de pesquisa est

  • 28

    voltada para o levantamento da origem, finalidade e atuao de empresas e

    instituies ligadas ao mundo empresarial. Engloba a trajetria de empresas, a

    atuao de empresrios e de trabalhadores.

    A histria de empresas est ligada intrinsecamente histria econmica; a primeira

    constitui um dos objetos de interesse de estudo da segunda. uma rea promissora

    do conhecimento histrico, sendo uma disciplina integrante dos grandes centros de

    estudos de pases como Estados Unidos, Inglaterra e Frana.

    A histria de empresas constitui uma rea disciplinar de inegvel importncia, mas

    ainda pouco desenvolvida no campo terico e nas pesquisas empricas. O ensino da

    disciplina ainda limitado e deficiente, integrando apenas os programas de Histria

    econmica ou constituindo-se em matria optativa ou em cursos oferecidos por

    escolas de administrao.

    Historiadores do ramo empresarial estimam que as primeiras pesquisas na rea de

    histria de empresas datam da primeira dcada do sculo XX. Freitas Filho (1989, p.

    169) relata os marcos que deram origem histria dos negcios norte-americana: a

    formao da Business History Society (1926), o estabelecimento da ctedra de

    Histria dos Negcios na Universidade de Harvard (1927) e o lanamento do Journal

    of Economic Business History (1928), sob a figura do historiador N.S.B. Grs. Esses

    marcos, de cunho histrico, sociolgico e econmico, foram determinantes na

    influncia da Histria empresarial sobre empresrios e executivos norte-americanos.

    A disciplina de Histria dos Negcios apresentava em seu programa curricular o

    estudo de biografias de empresrios e o processo evolutivo de instituies a partir da

    anlise de seus arquivos, visando o aprendizado de tcnicas administrativas do

    empresariado na conduo de seus negcios. Deve-se destacar o papel atuante da

    Business History na difuso da histria empresarial, mas convm evidenciar que seus

    representantes estudavam as empresas de forma isolada, desvinculada de fatores

    scioeconmicos, abordagem que prejudicou os estudos realizados na rea. A

    desvinculao do estudo da empresa de sua relao com a sociedade ou de seu

  • 29

    contexto no se restringe aos Estados Unidos; tambm observada na historiografia

    brasileira.

    Ao abordar os marcos no desenvolvimento da histria de empresas, deve-se

    destacar a importante atuao do historiador e socilogo Alfred D. Chandler,

    considerado o principal representante da histria empresarial nos Estados Unidos.

    Nos meios acadmicos um dos mais respeitados estudiosos e pesquisadores do

    tema, ressaltando-se que seus estudos no campo da histria de empresas foram

    relevantes para o desenvolvimento da rea e conduziram a alteraes na forma de

    entendimento, investigao e anlise das empresas.

    Ferreira (2002, p. 34) ressalta que os estudos de histria empresarial realizados

    antes da chamada "Era Chandler" eram, em sua maioria, trabalhos de cunho

    apologtico, objetivando to somente a divulgao da empresa, ou seja,

    desenvolvidos para atuar como instrumentos de marketing. A obra de Chandler,

    Strategy and Structure, Chapters in the History of the Industrial Enterprise (1962), que

    utiliza fatos e acontecimentos do passado para realizar ajustes na estrutura

    organizacional da empresa, constitui, at hoje, um dos marcos nos estudos de

    histria de empresas, ainda citada por professores universitrios, estudantes de

    graduao, empresas de consultoria e por outras reas do saber como Sociologia,

    Economia e Histria. Chandler influenciou tambm o surgimento de centros de

    estudos como a Sociedade de Histria Empresarial do Japo e o Centro de Histria

    Empresarial da London School of Economics.

    O campo de abrangncia da memria empresarial sofreu alteraes no perodo entre

    os anos 40 e 60, sobretudo em funo das inovaes tecnolgicas e da importncia

    atribuda ao mercado, que geraram novas estratgias que englobaram produtos,

    parcerias e processos estruturais corporativos.

    A partir dos anos 70, na Europa, debates acadmicos revolucionaram o campo da

    pesquisa historiogrfica, originando a chamada Nova Histria, caracterizada pela

    introduo de novos objetos de investigao histrica e pela incorporao de novas

    fontes de pesquisa alm da documentao tradicional.

  • 30

    De acordo com a corrente europia da Nova Histria, a empresa passou a ser

    analisada com base em dois vieses: como unidade de produo de bens e de

    servios e como geradora de significados sociais. Essa viso impulsionou o

    processo de construo da imagem dos empresrios e da identidade das empresas.

    Foram produzidas novas interpretaes acerca do papel desempenhado pelas

    organizaes na sociedade que, de acordo com Mendes (2002), deram origem a

    diferentes iniciativas de administradores e gestores que passaram a recorrer

    histria para a comemorao de datas e homenagens a fundadores, para a

    divulgao da imagem corporativa e para a obteno de um conhecimento mais

    completo e aprofundado da organizao.

    Nesse quadro, a empresa passou a ser um dos novos objetos de anlise, no se

    limitando viso da teoria econmica ortodoxa, que a concebia como mera unidade

    coordenadora de produo na economia capitalista, ou viso marxista, que a

    compreendia como palco do conflito social travado nas lutas de interesse entre o

    empresariado e os operrios. Ressalte-se ainda a viso negativa criada em torno da

    figura do empresrio na maioria das vezes identificada ganncia ilimitada e ao

    impulso pelo ganho e pelo lucro, conforme aponta Marcovitch (2003, p. 14), ao

    abordar a definio do termo empresrio na acepo capitalista: certamente no

    apenas aquele capaz de ganhar dinheiro, o que v a empresa como um fim em si.

    Ainda segundo Marcovitch (2005, p. 09), os empresrios j foram vistos, de forma

    reducionista, apenas como donos do capital, mas enfatiza que esses homens

    marcaram grande presena no universo do trabalho:

    [Os empresrios] ultrapassaram a condio de meros patres. Seus negcios geraram, alm de lucros, empregos; e alm de empregos, novas idias, novos conceitos de negcio, novas formas de gesto e novos produtos e servios.

    A partir do final dos anos 80, podemos observar tanto na Europa como nos Estados

    Unidos e tambm no Brasil, a atuao de historiadores ligados a universidades que

    se especializaram em desenvolver projetos de memria empresarial para a iniciativa

    privada. Na dcada seguinte, surgiram os servios de consultoria de historiadores

    que, em parceria com profissionais de diferentes reas - como arquivistas,

  • 31

    bibliotecrios, documentalistas e muselogos - realizavam estudos e desenvolviam

    projetos multidisciplinares para setores estratgicos das empresas tais como:

    comunicao, marketing, recursos humanos e gesto administrativa.

    Hoje, a pesquisa em Histria empresarial apresenta um desenvolvimento positivo na

    maioria dos pases. O atual panorama da historiografia empresarial pode ser

    apresentado em trs grupos principais, conforme explicita Erro (2003, p. 32-33):

    1o. grupo: (Estados Unidos, Gr Bretanha e Alemanha) - apresenta uma larga

    tradio em pesquisa na rea de Histria Empresarial;

    2o grupo: (Japo, Frana e Itlia) - apresenta uma tradio menor que o

    primeiro grupo, ocupa uma posio intermediria, mas considerada positiva;

    3o grupo: (Espanha e Amrica Latina) - Mxico, Brasil e Argentina

    apresentam uma evoluo superior dos pases andinos (Venezuela, Chile,

    Colmbia e Peru) que tm uma situao positiva, apesar da

    heterogeneidade. Destaca-se o dinamismo nos ltimos quinze anos,

    considerado fundamental para o desenvolvimento da Histria empresarial.

    A dificuldade de expanso que ainda se verifica na rea de Histria empresarial est

    diretamente relacionada ao acesso a acervos documentais privados. Ainda so

    poucos os empresrios que demonstram interesse real pela Histria empresarial, seja

    na tomada de decises ou em relao a sua prpria empresa. Frente a esse

    panorama, Erro (2003, p. 02) pondera que a cultura empresarial de uma organizao

    se consolida com o tempo, ao longo de sua histria, e que, por esse motivo, a

    Histria empresarial pode gradualmente se afirmar como um instrumento importante

    de gesto.

    Nesse contexto, cabe apontar as vantagens oferecidas pela Histria empresarial,

    conforme exposto por Valdaliso e Lpez (2003, p. 39-41):

    1. um patrimnio gentico hbrido e diverso integrado por trs disciplinas

    bsicas: Histria, Economia e Gesto Estratgica;

    2. fornece a perspectiva histrica e temporal que contribui para a formao

    geral dos estudantes e que pode facilitar o processo de tomada de deciso

    nas empresas, com base em experincias j vivenciadas;

  • 32

    3. permite o reconhecimento de que a realidade plural, diversa e

    dinmica (h uma troca contnua de tecnologias e mercados nas empresas);

    4. possibilita a prtica de exerccios de histria comparada tanto

    transversais (comparao da realidade de uma empresa, setor ou pas com a

    de outros iguais em um mesmo perodo) como longitudinais (anlise das

    diferenas e semelhanas de uma ou vrias empresas ou setores em

    diferentes perodos);

    5. permite dissecar ou desconstruir os discursos elaborados a posteriori

    pelas prprias empresas, por tericos do management e por alguns

    historiadores;

    6. demonstra a pluralidade de prpria realidade, a existncia de diferentes

    alternativas e diferentes solues e a importncia da Histria e da perspectiva

    histrica para melhor compreenso do mundo dos negcios.

    Atualmente o conceito de memria empresarial no se restringe ao status de

    celebrao do passado ou de homenagem a fundadores ou personagens ilustres,

    reverenciados em eventos comemorativos. Quando desenvolvida com base em

    mtodos cientficos e sob a responsabilidade de profissionais especializados de

    mltiplas reas disciplinares, a memria empresarial tem-se consolidado como

    ferramenta de suporte a decises e como instrumento relevante nas estratgias de

    comunicao e marketing das empresas.

    A primeira dcada do sculo XXI tem sido fortemente marcada pela preocupao

    com a responsabilidade social no meio corporativo, sendo a responsabilidade

    histrica um de seus segmentos. Nesse panorama contemporneo observa-se uma

    participao crescente das organizaes empresariais na vida social tanto na

    dimenso scioeconmica como no meio poltico e cultural. Podemos afirmar que o

    principal desafio do setor empresarial hoje a conduo dos negcios atendendo os

    requisitos de competitividade e contemplando os conceitos do desenvolvimento

    sustentvel; em outras palavras, uma gesto administrativa socialmente responsvel

    e em permanente dilogo com a sociedade. Nesse sentido, importante conceituar

    responsabilidade social:

  • 33

    " Responsabilidade social empresarial a forma de gesto que se define pela relao tica e transparente da empresa com todos os pblicos com os quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais compatveis com o desenvolvimento sustentvel da sociedade, preservando recursos ambientais e culturais para as geraes futuras, respeitando a diversidade e promovendo a reduo das desigualdades sociais." 2

    H uma crescente tendncia de publicao de relatrios intitulados balanos sociais

    que buscam explicitar coerncia entre a gesto de negcios e prticas de

    responsabilidade social empresarial. Analisando alguns desses relatrios de

    prestao de contas, constatei que, muitas vezes, a busca incessante pelo

    reconhecimento pblico e o cuidado com a imagem institucional levam essas

    publicaes a excederem na descrio de boas aes e prticas sustentveis

    esquivando-se de aspectos e resultados negativos.

    A nfase aos aspectos positivos pode levar ao questionamento da veracidade das

    informaes divulgadas. Faz-se necessria tica, transparncia, neutralidade e

    consistncia nos fatos apresentados a sociedade e a adoo de um discurso

    coerente com as prticas e objetivos das empresas.

    Nesse contexto, Damante (2004, p. 28-29) pondera que, num momento em que ser

    socialmente responsvel virou quase um hino obrigatrio, muitas empresas esto

    voltando os olhos para sua prpria histria, que pode ser utilizada de forma positiva,

    quando visa o resgate da memria empresarial, ou negativa, quando seu objetivo

    to somente a promoo da imagem institucional. Portanto, essa prtica, dita

    sustentvel, deve ser minuciosamente avaliada pelas empresas que no podem ser

    levadas pela seduo do discurso em voga. Nassar (2004b, p. 38) critica a utilizao

    indevida da responsabilidade social corporativa como marketing social:

    ... [a] responsabilidade social, quando no existe compromisso com a histria, , por via de regra, um acidente esttico (geralmente embalado em publicaes extremamente luxuosas) na paisagem da empresa.

    Hoje em dia as empresas esto voltadas para a cultura, sobretudo por interesses

    relacionados sua imagem frente ao cliente, consumidor e comunidade, colocando

    em prtica a cidadania corporativa. Nesse contexto, a responsabilidade social e o

    2 Empregou-se o conceito de responsabilidade social do Instituto Ethos.

  • 34

    desenvolvimento sustentvel passaram a ocupar um importante e significativo espao

    nas agendas empresariais, buscando harmonizar seu crescimento com uma atuao

    responsvel e um bom relacionamento com a comunidade, destacando-se

    patrocnios culturais e apoio a atividades sociais.

    As organizaes tm estimulado a prtica de atividades culturais e artsticas, visando

    a promoo do desenvolvimento humano e social das comunidades locais, prximas

    de suas instalaes. So realizados investimentos em espaos destinados a

    espetculos culturais, produo e exibio de eventos de cultura e arte, estmulos a

    projetos culturais e favorecimento do acesso programao cultural da comunidade,

    utilizando-se em grande parte recursos oriundos das leis de incentivo cultura.

    Nesse contexto, Barbosa (2002, p. 48) explicita que as organizaes fizeram uma

    nova percepo da agenda social e poltica da sociedade contempornea. O cenrio

    atual das empresas integrado por temas antes pouco debatidos como cultura, tica,

    responsabilidade social, viso holstica do ser humano, empresa ambientalmente

    responsvel que atuam como tecnologias gerenciais que tm impacto concreto e

    substantivo, viabilizando a sobrevivncia das organizaes no mundo

    contemporneo.

    2.6 Histria empresarial no Brasil

    No Brasil, a histria empresarial uma rea ainda pouco conhecida e difundida, mas

    que se encontra em pleno processo de expanso e desenvolvimento. Integra o

    grupo de pases latino-americanos como Mxico, Argentina, Venezuela, Chile,

    Colmbia e Peru, representantes com pouca tradio, mas que tm apresentado

    uma expanso considervel nos ltimos anos.

    Mesmo estando em boa posio na Amrica Latina, a histria empresarial ainda um

    campo de estudo recente e pouco sedimentado na historiografia brasileira.

    Constatam-se dois fatores para o atraso no incio dos estudos sobre a evoluo das

    empresas brasileiras. O primeiro decorre da industrializao tardia, resultado de uma

    economia dependente de tecnologia, matria-prima e bens de capital provenientes de

    pases industrializados. E o segundo, cujas causas no so exclusivas do Brasil, mas

  • 35

    mundiais, incluem os fatores que dificultam o desenvolvimento e desestimulam os

    estudos na rea empresarial brasileira e esto relacionados ao estado de abandono

    das fontes empresariais, a saber: a falta de valorizao da documentao das

    empresas, destruda ou arquivada sem critrios de coleta e classificao e/ou sem

    condies adequadas de preservao e a postura de alguns empresrios e gestores,

    que dificultam o acesso aos arquivos das organizaes resultante da ausncia de

    polticas para esses arquivos.

    O reduzido nmero de estudos realizados sobre a temtica histria empresarial no

    Brasil ou a pouca explorao do tema por parte de historiadores, administradores e

    pesquisadores brasileiros resulta em escassa produo cientfica em nosso meio.

    Ferreira (2002, p. 03) aponta algumas caractersticas da produo sobre o tema:

    (a) a produo de trabalhos comemorativos, sob rtulos de histria

    empresarial, como instrumentos de marketing para a divulgao de

    empresas;

    (b) a escassez de trabalhos com caractersticas histricas e econmicas,

    decorrente do grande nmero de empresas administradas por famlias, onde

    a transmisso da histria feita de forma emprica;

    (c) a necessidade de profissionalizao das empresas familiares que conduz

    ao aumento da preocupao com a histria e as experincias vivenciadas

    pelas instituies.

    Os primeiros trabalhos sobre Histria Empresarial surgiram na dcada de 60,

    seguindo a tendncia manifestada anteriormente nos Estados Unidos e em pases

    europeus. A iniciativa partiu de acadmicos, cuja anlise abordava os aspectos

    estrutural e evolutivo das empresas. Lobo (1997, p. 223) aponta que os primeiros

    trabalhos sobre histria empresarial no Brasil tinham como temtica a dependncia

    econmica, a industrializao, a bolsa de valores ou monografias que abordavam a

    administrao interna da unidade de produo ou a exaltao do fundador da

    empresa.

    Antes da influncia da Nova Histria nos estudos de histria empresarial brasileira,

    nota-se um problema que j era registrado nos Estados Unidos: o estudo das

  • 36

    empresas desvinculado do contexto scioeconmico. O historiador portugus Jos

    Amado Mendes (2002, p. 05) observa que o estudo de histria de empresas no

    pode ser realizado isoladamente, separado do ambiente em que as empresas esto

    inseridas; antes, deve ser integrado e compreendido em suas relaes com o meio

    local, num determinado contexto.

    Na mesma linha de pensamento, Lobo (1997, p. 218) expressa o alerta do historiador

    Ciro Flamarion Cardoso sobre a necessidade de reformulao do conceito de

    empresa e sua utilizao em histria. A empresa deve ser analisada com base na

    estrutura social em que est inserida, levando-se em considerao as relaes

    internas entre o sistema econmico de uma sociedade e sua estrutura social.

    Maria Brbara Levy (1994, p. 27), um dos maiores expoentes na rea de histria

    empresarial brasileira, criticou o estudo de empresas sem vinculo com a sociedade,

    ressaltando que as empresas so parte da sociedade e, por isso, no podem ser

    estudadas sem levar em conta articulaes entre as relaes sociais e prticas

    empresariais.

    Kunsch (2007, p. 14) salienta que as organizaes, mais do que unidades

    econmicas, so unidades sociais e integram o macrosistema social. Ressalto, ainda,

    que as organizaes so agentes sociais que integram o processo de

    desenvolvimento humano e so, portanto, essenciais na sociedade.

    O trabalho desenvolvido nos anos 60 por Jos de Souza Martins, Conde Matarazzo,

    o empresrio e a empresa, considerado pioneiro por inserir a biografia de um

    empresrio no contexto socioeconmico, de forma a analisar o desenvolvimento

    industrial brasileiro. Freitas Filho (1997, p. 184) ressalta que, como modelo de estudo

    na rea de histria empresarial, resultante de um minucioso trabalho de pesquisa que

    no se limitou figura do empresrio ou da empresa, essa obra:

    ... inaugurou uma forma original, ou seja, no apologtica e atomizada, de se estudar o empresariado nacional, na gnese da indstria brasileira.

  • 37

    Os anos 70 do sculo XX so marcantes nas mudanas sofridas nos trabalhos

    tericos de histria empresarial. Nesse perodo de expanso da histria empresarial,

    as principais influncias sofridas e as linhas de pesquisa desenvolvidas pelos

    pesquisadores brasileiros foram:

    1. Escola dos Annales ou da Nova Histria cujo processo de redefinio

    terica e metodolgica conduziu a uma nova abordagem das empresas;

    2. Escola norte-americana representada por Alfred D. Chandler, professor

    emrito da Harvard Business School, cujo estudo, apresentado na obra

    Strategy and Structure, sistematizou mdulos de evoluo organizacional em

    setores industriais;

    3. Desenvolvimento de trabalhos sobre memria empresarial por

    historiadores, economistas, admini