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& Sabedoria Memória

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  • &SabedoriaMemria

    Jos Pedro SerraHelena Carvalho BuescuAriadne NunesRui Carlos Fonseca

    COORDENAO

  • &SabedoriaMemria

    Jos Pedro Serra

    Helena Carvalho Buescu

    Ariadne Nunes

    Rui Carlos Fonseca

    COORDENAO

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    A POESIA HERI-CMICA E A MEMRIA DE BAGATELAS: A CELEBRAO PICA DE TRIVIALIDADES NO HISSOPE DE CRUZ E SILVA

    Rui Carlos Fonseca*

    O canto, no mbito da tradio oral em Homero, , a rma Scodel, the most powerful form of memory (1998, 183). No tarefa difcil com-provar a validade desta a rmao com exemplos retirados dos poemas homricos. Reunidos os Aqueus em assembleia, Agammnon considera o fracasso da campanha contra Tria uma vergonha de que iro ouvir falar os vindouros (Ilada 2, 119). No combate entre Aquiles e Heitor, o prncipe troiano, apercebendo-se da fatalidade da sua morte, pro-fere as seguintes palavras: , [Que eu no morra de forma passiva e inglria, mas por ter feito algo de grandioso, para que os vindouros de mim oiam falar!] (Ilada 22, 304-305)1. Ora, os heris que povoam o universo ilidico tm plena conscincia de que as suas aces sero transmitidas posteridade, resistindo s condicionan-tes inevitveis do tempo e do esquecimento. Essa perdurabilidade da memria de feitos gloriosos torna-se possvel graas ao canto dos aedos. precisamente um dos poetas representados na Odisseia, Demdoco, que propaga a fama alcanada pelos Aqueus na guerra de Tria ao can-tar na corte do rei Alcnoo o episdio do cavalo de madeira (Odisseia 8, 499-521).

    Os poemas homricos integram, portanto, no tecido narrativo evi-dncias do processo oral de transmisso potica a que as suas origens esto associadas. a voz hbil e poderosa do aedo o meio atravs do qual os heris do passado alcanam renome, passando pstuma mem-ria como protagonistas das mais notveis faanhas. Porm, enquanto a epopeia celebriza em tom solene a memria de um passado glorioso, a poesia heri-cmica, que nasce da imitao pica e que se caracteriza

    1 As tradues dos poemas homricos apresentadas neste trabalho so da autoria de Frederico Lou-reno. O texto original citado segue as edies de Page et al.

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    pelo contraste entre a expresso elevada e o tema vulgar, torna objecto de canto incidentes triviais.

    No mbito deste estudo, re# ectirei sobre a subverso do valor enco-mistico da poesia pica antiga em O Hissope de Cruz e Silva, poema heri-cmico portugus, composto em 1769 e apenas publicado em 1802. O poema em causa glori ca, de forma pardica e satrica, aces grosseiras e insigni cantes, inserindo a realidade social no num pas-sado herico mas num presente vicioso e ordinrio. Na verdade, a imi-tao dos recursos picos (marca fundamental do gnero pardico) no visa, neste texto, imortalizar feitos gloriosos, mas preservar a memria de bagatelas do quotidiano social da poca. Tendo em conta esse pressu-posto, organizarei o estudo que se segue em torno de dois grandes eixos temticos: um referente celebrao de trivialidades, cujo referente herico (histrico e mitolgico) vem omisso ou sugerido no poema (procedimento incomum no estudo de obras ditas pardicas uma vez que a pardia s funciona com o reconhecimento do texto paro-diado naquele que parodia , mas nem por isso menos pertinente para o que me proponho tratar); outro que consistir na anlise intertextual de alguns episdios deste poema com os referentes literrios que lhe servem de modelo, pois, sendo o poema heri-cmico um reverso da epopeia, nele naturalmente abunda material pico, que todavia trans -gurado e aplicado a um novo contexto, de modo a que do deslocamento e da reutilizao desse material resulte um efeito subversivo, onde justa-mente a pardia reside.

    O assunto de que se ocupa O Hissope consiste na querela entre os dois membros mais prestigiados da hierarquia eclesistica de Elvas, o Bispo D. Loureno de Lancastro e o Deo Jos Lara, por causa de um asperges que um deseja receber e o outro se recusa a entregar. Esta disputa eclesistica, que adquire nesta obra de Cruz e Silva contornos risveis, despertou a curiosidade pblica, no passando, contudo, refere Cerqueira Moreirinhas, de um incidente quase insigni cante em com-parao com outros con# itos de que est repleta a histria do cabido elvense (Moreirinhas 1962, 116 e 126).

    Coadjuvados ou contrariados pelo arbtrio de entidades superiores, governadas pelo Gnio Tutelar das Bagatelas, Bispo e Deo enredam-se nos meandros da burocracia jurdica: Lancastro manda lavrar um acr-do para repor a norma de cortesia entretanto interrompida; Lara apela

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    a uma gura conceituada de Elvas para no ter de cumprir o obsquio anterior de honrar o Bispo com o bento hissope.

    No incio do canto 5, Lara dirige-se, ento, ao Convento dos Capuchos, a m de solicitar ao padre guardio que suspenda os efeitos do acrdo assinado pelos partidrios do Bispo. A localizao do con-vento descrita nestes modos:

    Sobre uma montanheta que se estende Em piquena distncia dos soberbos Guerreiros muros da triunfal Elvas O clebre convento se levanta.(O Hissope 5, 24-282)

    O uso dos eptetos guerreiros (aplicado aos muros do convento) e triunfal (que quali ca a cidade) no seno uma forma de se aludir memoranda Batalha das Linhas de Elvas, que ops as tropas portugue-sas, comandadas pelo conde de Cantanhede, ao exrcito lipino, che- ado por D. Lus de Haro. A aluso a esta batalha, ocorrida em 1659 no contexto da Guerra da Restaurao, torna-se signi cativa precisamente por constituir no mais do que uma breve referncia indirecta, sem direito a um excurso textual mais desenvolvido. Este con# ito travado nos campos de Elvas e que implicou um cerco ao convento da cidade foi, segundo o historiador Verssimo Serro, decisivo para o futuro do pas, na medida em que a derrota portuguesa signi caria a entrega de Lisboa ao inimigo espanhol. Mas Elvas foi palco da primeira grande vitria da Restaurao (Serro 1996, 44-45).

    Seria de esperar que um poema que tem Elvas como cenrio hist-rico celebrasse o passado glorioso da cidade. O momento do canto 5 em que se refere a ida do Deo ao convento seria sem dvida oportuno para um relato mais amplo da vitria elvense. No entanto, o poema heri- -cmico caracteriza-se no pelo assunto grandioso mas pelo contedo baixo e trivial, razo pela qual recusa celebrar a fama e a glria passadas, fazendo assim passar despercebido qualquer evento histrico de mrito nacional.

    Aguardando ser recebido pelo padre guardio, Lara passeia no jar-dim conventual, observando as esttuas e bustos que representam per-

    2 As citaes de O Hissope transcritas no presente trabalho seguem a edio crtica de Ana Mara Garca Martn e Pedro Serra.

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    sonagens mitolgicas. Curioso e ignorante, o farfante Deo (assim designado no poema) trava um longo dilogo com um outro padre pro-vincial, questionando-o sobre a identidade dessas guras. A ltima das esttuas observadas, a que tem representado o semblante de Hracles, leva o padre capucho a contar os admirveis trabalhos deste heri, refe-rindo a limpeza s cavalarias de Augias e a captura do leo de Nmea (O Hissope 5, 405-437). O relato dos trabalhos de Hracles , todavia, interrompido pela chegada do padre guardio, que consente em redigir a certido solicitada. Assim, dos doze feitos executados pelo lho de Zeus apenas dois so dados a conhecer ao Deo.

    Hracles talvez o mais popular e o mais clebre de entre todos os heris que povoam a mitologia greco-romana (Grimal 2004, 205) e no entanto a gura mitolgica que, neste canto 5 de O Hissope, no v celebrados nem metade dos prodigiosos trabalhos que teve de cumprir por imposio de Hera. Depois de criada expectativa em torno dos fei-tos que executou, o poema como que opera um apagamento deste heri, que nem sequer identi cado pelo nome que o tornou famoso, mas pelo nome original, menos conhecido, Alcides (patronmico de Alceu, av paterno de Hracles). Enquanto no incio do canto 5 se deixa no esquecimento um evento histrico de importncia nacional, agora, no nal do mesmo canto, as faanhas mitolgicas do famoso heri grego cam igualmente por contar.

    Numa verso pouco conhecida de O Hissope, em que o poema con- gurado em nove cantos, o padre capucho no chega a ser interrompido e relata cinco outras aventuras protagonizadas por Hracles, ainda que apenas trs delas integrem o ciclo dos doze trabalhos: a hidra de Lerna, as mas de ouro das Hesprides e a cora de Cerineia. O manuscrito 3047 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra contm um trecho de 175 versos, que constitui uma das maiores interpolaes da verso de nove cantos. O texto de O Hissope foi massivamente divulgado entre os sculos XVIII e XIX, tendo sofrido sucessivas reelaboraes at ser publicado na sua verso de nitiva de oito cantos. No possvel asse-verar, reconhece Garca Martn, que a metamorfose do poema tenha obedecido a uma interveno autoral directa (Garca Martn 2004, 42). No entanto, no mbito que aqui nos interessa, importa notar que um excerto textual de longa extenso contendo informao pertinente sobre o famoso heri grego, lho do soberano dos deuses, no foi contemplado

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    na verso de nitiva deste poema. Mais uma vez, a poesia heri-cmica rejeita celebrar feitos grandiosos, dignos de memria e de louvor.

    Conseguida a apelao, o Deo organiza em sua casa um lauto ban-quete, para o qual convida os membros mais prestigiados da alta socie-dade elvense. O festim acompanhado de um espectculo musical, cujo clmax se atinge com a actuao do padre Francisco Vidigal, msico da S, que, em duros berros, louva a cara ptria, comeando o seu canto da seguinte forma:

    grande Elvas, cidade em todo o tempoPor teus famosos filhos memoranda!Hoje at s estrelas meus acentosTeu nome levaro e tua fama,Mas donde minha lngua a teus louvoresDar princpio? Tu, brinco Baco,Como tens por costume, tu me inspira.Mil em silncio deixarei sucessosEm mais remotos tempos celebrados,Que tua glria ilustram, pois no podeUm ingenho mortal todas as cousas [...].(O Hissope 7, 245-255)

    A afamada cidade vai ser ento celebrada em canto, mas no pela memria de feitos ancestrais. O padre cantor a rma categrico que dei-xar em silncio os grandes sucessos em mais remotos tempos celebra-dos, optando assim por glori car a terra ptria com o relato musical de trs incidentes triviais nela ocorridos. Um sino rachado, uma inscrio ilegvel e um espectculo de tourada so os trs casos do quotidiano social da cidade recitados por Vidigal para entretenimento dos convivas.

    Segundo a edio crtica de Garca Martn e Pedro Serra (Silva 2006, 146), no ano de 1750 ou 51, foi proposta pelos vereadores da Cmara a fundio de um novo sino municipal, uma vez que o antigo se encon-trava rachado. A m de se evitarem maiores despesas para a cidade, o Senado da Cmara decidiu que no se haveria de fundir um sino novo, podendo-se remendar com quatro malhetes de ferro aquele que estava lascado (O Hissope 7, 256-268). O estupendo caso que se segue respeita ilegibilidade de uma inscrio lapidar, mandada gravar por cima da porta Esquina, uma das trs portas da forti cao de Elvas. Vidigal refere-se a esta famosa inscrio de leitura imperceptvel como mais

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    escuro enigma do que aquele que a monstruosa Es nge propunha aos viandantes s portas de Tebas (O Hissope 7, 269-277). Por m, o clrigo ocupa-se com nimo renovado do relato de um evento popular ocorrido num passado histrico recente. Trata-se do combate de touros de 1760 a que o povo de Elvas assistia divertido, no decorrer do qual comeou a circular um rumor ainda incerto do casamento entre os futuros reis de Portugal, D. Pedro III e D. Maria I. Esta notcia no o cial espalhou-se rapidamente entre as gentes, que a celebraram com vivos aplausos e enrgicos movimentos de bandeiras, seguindo-se ainda uma distribui-o de doces. Este ltimo episdio cantado por Vidigal no s evidencia a lealdade exagerada por parte do vulgo elvense, como tambm assinala o incio da ceia em casa do Deo, h muito aguardada pelos convidados esfomeados (O Hissope 7, 291-305).

    No contexto da sociedade homrica, o aedo como voz de uma tradio antiga difundida atravs do tempo e qual se tem acesso por inspirao divina (Scully 1981, 78) transmite, ensina e preserva os cdigos de conduta social. Cabe-lhe no s celebrar aces gloriosas, mas tambm assegurar e construir para o futuro o nome e a fama dos homens e dos deuses (Goldhill 1991, 59). No dbil o poder da voz adica. Graas a ela, Fmio (o aedo que entretm os pretendentes em casa de Ulisses) poupado do massacre nal levado a cabo pelo heri regressado terra ptria (Odisseia 22, 344-453).

    Vidigal desempenha no banquete em casa do Deo um papel seme-lhante queles de Demdoco em Esquria e de Fmio em taca. Mas enquanto estes dois aedos homricos deleitam a assistncia com o relato de clebres faanhas protagonizadas por heris famosos, contrariamente o padre cantor imortaliza em canto aces banais e populares, subver-tendo deste modo o valor encomistico da poesia pica ao torn-la lauda-tria de bagatelas. Enquanto na epopeia o canto adico causa admirao pela heroicidade do gesto praticado, um gesto nobre, no poema heri--cmico a admirao produzida pela vulgaridade temtica celebrada em estilo elevado. O canto de Vidigal est assim intrinsecamente rela-cionado com o enredo principal desenvolvido em O Hissope: um sino rachado, uma inscrio ilegvel e um espectculo de tourada revelam-se temas to insigni cantes como uma questo mnima entre clrigos.

    A mock-heroic poem should, in as many respects as possible imi-tate the true heroic. * e more particulars it copies from them, the more

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    perfect it would be (Cambridge apud Broich 1990, 50). Na qualidade de poema heri-cmico, O Hissope reaproveita os recursos da epopeia, o que no implica, porm, uma cpia exacta dos mesmos mecanismos temticos e/ou formais, mas antes uma adaptao ao novo contexto, como, alis, o tratamento do canto adico acima exposto comprova. A invocao s Musas (O Hissope 1 e 7), o conclio dos deuses (O Hissope 1 e 8), a interferncia divina (O Hissope, passim), o uso de eptetos (O Hissope, passim e.g.: o farfante Deo, o gordo Bispo), as descries ecfrsticas e catalgicas (O Hissope 7) constituem outros exemplos de expedientes tradicionais da poesia pica de que Cruz e Silva se serve para epopeizar a questincula entre o Bispo e o Deo.

    A aplicao heri-cmica desses mecanismos que caracterizam a magni cncia pica serve neste poema um propsito trivial. As Musas Olmpias invocadas para a enumerao das naus e dos comandantes dos Aqueus no canto 2 da Ilada cedem lugar s deusas do Parnaso, entidades s quais se solicita inspirao no canto 7 de O Hissope para celebrao condigna dos nomes e manhas dos altos vares que vo chegando ao banquete oferecido em casa do Deo. O catlogo das naus o recurso pico imitado, aqui transmutado num rol de convidados da alta socie-dade elvense, insignes no pelas gestas hericas, mas pelos vcios por que so conhecidos. Des lam nesse festim tipos sociais, como o agiota ava-rento, o dalgo galante e namoradeiro e o gluto. Estes e outros vares, que coroam com a sua presena o vistoso salo onde decorre a festa organizada por Lara, so considerados dignos todos de fama e mara-vilha (O Hissope 7, 165), expresso que corresponde a um verso de Os Lusadas (10, 73, 2) e que proferida por uma Ninfa, quando se refere aos futuros navegadores portugueses, guerreiros triunfantes que alcanaro honras e glrias pelas rduas empresas a que se iro aventurar. Cruz e Silva elenca, portanto, personalidades da alta estirpe elvense, vrias guras do mundo provinciano de Elvas, num misto de simpatia e troa (Saraiva e Lopes 2005, 610), e, denunciando os vcios que lhes so pr-prios, imortaliza-as, neste poema, quais guerreiros aqueus e navegadores portugueses, dignos de passarem memria das geraes vindouras.

    Procedimento semelhante (a sublimao de caracteres viciosos) se toma em relao ao heri deste poema, o Bispo, personagem heroi -cada pelos deuses por se dedicar a cousas vs, ridculas e fteis, por desprezar o cuidado das funes mais piedosas e ainda por ostentar

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    publicamente o pecado da luxria (O Hissope 1, 105-121). Na verdade, o gro prelado, agraciado pelo soberano dos deuses, exibe uma indu-mentria e acessrios ricamente ornamentados: cala sapatos de veludo, usa uma vela esmaltada de pedras preciosas e traz consigo uma linda caixa envernizada. O retrato de Lancastro desenha-se assim sob os con-tornos de um anti-Eneias, de um Eneias que celebrado pela vaidade luxuriante (como alis retratado no palcio de Dido, em Cartago, no canto 4 da Eneida3) e no pelo sentimento de dever ptrio e familiar (este heri sobrevivente da guerra de Tria identi cado no poema latino como o pius Aeneas). Desde o incio de O Hissope que se assiste, portanto, a uma subverso do iderio pico: a exaltao de feitos memo-rveis corresponde a nal glori cao de bagatelas. Nesse sentido, ao fazer-se uso dos expedientes cannicos da epopeia, os mesmos so des-titudos, no poema heri-cmico, da magni cncia que os caracteriza, uma vez que servem para engrandecer um assunto baixo, a trivialidade eclesistica.

    Alm do reaproveitamento dos recursos acima mencionados, O Hissope procede igualmente imitao pardica de episdios picos concretos. Quando o Deo incumbe Gonalves de ir citar ao Bispo o documento da apelao, a esposa do notrio, cheia de um pnico ter-ror por conhecer a ira do prelado, tenta dissuadi-lo de executar a tarefa para que fora designado. Este sossega-a com palavras afectuosas, no deixando, contudo, de se sentir obrigado a cumprir os deveres pro s-sionais. Este dilogo entre o escrivo Gonalves e a esposa partilha com o episdio homrico da despedida entre Heitor e Andrmaca aspec-tos temticos e estruturais relevantes. Apesar de algumas variaes, os esquemas a seguir apresentados do conta dessas semelhanas que possvel estabelecer-se entre as falas das personagens femininas e entre as respostas das guras masculinas de ambos os poemas.

    3 [A]tque illi stellatus iaspide fulva ensis erat, Tyrioque ardebat murice laena demissa ex umeris, dives quae munera Dido fecerat, et tenui telas discreverat auro [Tinha uma espada cravejada de jaspe amarelo e o manto que dos ombros lhe caa ardia em prpura tria, presentes que lhe fizera a rica Dido, ponteando o tecido com finos fios de ouro] (Eneida 4, 261-4). A citao da Eneida segue a edio de Warmington. A traduo de Lus Cerqueira et al.

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    Fala da tmida consorte (O Hissope 6, 113-180)

    A. Pedido implcito para Gonalves no ir citar o Bispo (113-120).a) Esfera pessoal (113-115).b) Esfera social (116-120).

    B. Exempla de figuras outrora condena-das pelo Bispo (121-166).a) Milheira (121-141).b) [Castigo divino (142-145).]c) Charlato do mdico (146-166).

    A. Pedido explcito para Gonalves no ir citar o Bispo (167-180).a) Esfera pessoal (167-180).b) Esfera social (172-178).

    Fala de Andrmaca (Ilada 6, 407-449)

    A. Pedido implcito para Heitor no ir combater (407-413).a) Esfera pessoal (407-408, 410-413).b) Esfera social (409).

    B. Exempla de figuras outrora conde-nadas por Aquiles (417-428).a) Ecion, pai de Andrmaca (414-420).b) Sete irmos de Andrmaca (421-424).c) [Castigo divino (425-428).]

    A. Pedido explcito para Heitor no ir combater (429-439).a) Esfera pessoal (429-432).b) Esfera social (433-439).

    Fala de Gonalves (O Hissope 6, 187-211)

    A. Consolao da esposa. Promessa implcita de regresso (187-189).

    B. Demonstrao de bravura (189-191).

    C. Dever de ofcio (192-202).a) Esfera social masculina (192-195).b) Esfera pessoal feminina (196-202).

    B. Demonstrao de bravura (203-208).

    A. Consolao da esposa. Promessa explcita de regresso (209-211).

    Fala de Heitor (Ilada 6, 441-465, 476-481, 486-493)

    A. Consolao da esposa (441).

    B. Demonstrao de bravura (441-446).

    C. Dever de ofcio (444-481).a) Esfera social (444-449).b) Esfera pessoal (450-65, 476-81).

    A. Consolao da esposa (486).

    B. Demonstrao de bravura (487-489).

    C. Dever de ofcio (487-489).a) Esfera pessoal feminina (490-492).b) Esfera social masculina (492-493).

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    A tcnica da composio em anel (sob a qual se constroem trs dos quatro discursos), o registo afectivo (patentes nos vocativos carinhosos e nas frequentes exclamaes e interrogaes) e o ambiente de fatalidade iminente (devido ao perigo da empresa que o marido teima em realizar e da qual a mulher o tenta dissuadir) comprovam tratar-se com efeito de duas verses de um mesmo episdio, a despedida forada de cnjuges apaixonados. As palavras proferidas pelo casal do poema homrico no so repetidas com exactido textual pelo casal do poema heri-cmico, mas o sentido no deixa de ser equivalente. Re ra-se, a ttulo de exem-plo, os seguintes passos dos discursos de Heitor e Gonalves sobre o cumprimento das respectivas obrigaes pro ssionais (blicas no caso de um, burocrticas no caso de outro), em que ambos demonstram um esprito corajoso para a execuo de tarefas arriscadas:

    , , , , .

    [Todas essas coisas, mulher, me preocupam; mas muito eu meenvergonharia dos Troianos e das Troianas de longos vestidos,se tal como um cobarde me mantivesse longe da guerra.Nem meu corao tal consentia, pois aprendi a ser sempre corajoso e a combater entre os dianteiros dos Troianos,esforando-me pelo grande renome de meu pai e pelo meu.](Ilada 6, 441-446)

    Vou fazer meu ofcio, bem conheo A quanto me abalano e me aventuro.Mas que dir o mundo se vir hojeQue eu fujo dos trabalho com o corpo?(O Hissope 6, 192-195)

    A diferena quando estruturao arquitectural dos discursos de Heitor (composio paralelstica: ABCABC) e Gonalves (compo-sio em anel concntrico: ABCBA) pode ser explicada tendo em conta os resultados das misses executadas, mais tarde relatadas nos poe-mas: o prncipe troiano perder a vida no duelo com Aquiles, deixando Andrmaca viva, enquanto o notrio elvense regressar triunfante para

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    os braos da esposa, aps o encontro com o Bispo. A aplicao de um esquema composicional diferente na fala do notrio marca uma inver-so pardica quanto ao modelo utilizado, na medida em que derrota da personagem homrica Cruz e Silva faz corresponder a vitria da gura heri-cmica4.

    No mbito da intertextualidade entre O Hissope e o modelo pico, outros recursos e episdios poderiam ser aqui tomados como objecto de anlise, como por exemplo a interveno da Discrdia (O Hissope 2, Ilada 11) e do Sono (O Hissope 4, Ilada 14) na guerra, a teicoscopia (O Hissope 5, Ilada 3, Os Lusadas 8), a aco veloz da Fama (O Hissope 6, Odisseia 24, Eneida 4), o orculo funesto de um animal falante (O Hissope 7, Ilada 19) e a anbase (O Hissope 8, inverso da catbase, Odisseia 11, Eneida 6). Os aqui referidos e analisados so su cientes, creio, para demonstrar a reutilizao e os deslocamentos do material pico operados neste poema heri-cmico.

    A imitao pardica pode, segundo Dentith, assumir formas diver-sas (Dentith 2000, 2), ao que acrescento que tais formas podem conter um elevado grau de disparidade entre si ou at mesmo de manifesta oposio. Assim, no presente estudo, pretendi analisar os efeitos da pardia, suscitados pela leitura de O Hissope, por duas vias: a omisso do referente srio (histrico e mitolgico) e o reaproveitamento do modelo pico. Apesar de aparentemente contrrias, estas duas formas de imita-o con# uem num mesmo sentido, ambas resultando na subverso do valor encomistico da poesia pica, na medida em que Cruz e Silva se serve da epopeia e seus recursos para celebrar trivialidades como se se tratasse de feitos soberbos, comparveis queles executados pelos heris antigos. Em suma, o autor transpe para a realidade literria um inci-dente trivial da realidade social da poca, moldando-o sob a forma de poesia heri-cmica. Ao escolher este gnero potico anti-pico, o autor no procura perpetuar atravs do canto proezas militares da histria nem faanhas prodigiosas do mito, mas somente preservar, em estilo altissonante, acontecimentos quotidianos de Elvas, sendo a questin-cula entre o Bispo e o Deo (ainda que farto motivo da galhofa popular elvense) a mais insigni cante dessas bagatelas.

    4 A separao de Dido e Eneias (Eneida 4), o lamento de uma mulher pelo marido que parte nas naus portuguesas (Os Lusadas 4) e o dilogo entre o cabeleireiro Amour e a esposa (Le Lutrin 2) consti-tuem exemplos de outras verses adaptadas do mesmo episdio ilidico.

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    Scodel, Ruth. 1998. Bardic Performance and Oral Tradition in Homer. # e American Journal of Philology 2 (119): 171-194.

    Scully, Stephen. 1981. = e Bard as the Custodian of Homeric Society: Odyssey 3, 263-272. Quaderni Urbinati di Cultura Classica 37 (8): 67-83.

    Serro, Joaquim Verssimo, 1996. Histria de Portugal. Volume IV: A Restaurao e a Monarquia Absoluta (1640-1750). Pvoa de Varzim/Cacm: Editorial Verbo.

    Silva, Antnio Dinis da Cruz e. 2006. O Hissope. Poema Heri-Cmico. Edio crtica de Ana Mara Garca Martn e Pedro Serra. Coimbra: Angelus Novus.

    Verglio. 2003. Eneida. Traduo de Lus Cerqueira et al. Lisboa: Bertrand.

    Warmington, E. H., ed. 1967. Virgil I: Eclogues, Georgics, Aeneid I-VI. Londres/Cambridge: William Heinemann Ltd/Harvard University Press.

    Rui Carlos Fonseca

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    NDICE

    Nota prvia 7

    I. MEMRIA, SABEDORIA E PARADIGMAS FILOSFICOS

    Das memrias da sabedoria a uma sapincia diferencial 11Carlos H. do C. Silva

    O romance como factor de educao e memria em La Nouvelle Hlose 103 de Jean-Jacques RousseauCustdia Alexandra Almeida Martins

    As guas turvas do conhecimento em Job, Moby-Dick e 115Mau Tempo no CanalGonalo Cordeiro Transmissores subtis 125Francisco Serra Lopes

    A sabedoria da incerteza: imaginao literria, utopia ps-metafsica 135e o riso de DeusRicardo Gil Soeiro

    Pierre Hadot: askesis espiritual e vida 3 los3 ca 145Bruno Bu de Carvalho

    Um homem na sua humanidade: Fidelino de Figueiredo 153e a questo do sentidoMaria Graciete Gomes da Silva

    A Consolao da Filoso a de Bocio, da cultura sabedoria 163Lus M. G. Cerqueira

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    II. MEMRIA, SABEDORIA E HISTRIA

    Onde est a sabedoria medieval? 181Jos Mattoso

    A sabedoria de Petosris: um repositrio condensado de memria e de moral 199Jos das Candeias Sales

    Historia magistra vitae (variaes nos tempos de um conceito antigo) 241Joana Duarte Bernardes

    Escrever para a imortalidade: praecipuum munus annalium 253Ricardo Nobre

    O saber do texto 269Teresa Amado

    Experiencia, memoria y sabidura en el Libro del Caballero Zifar 279Cristina Almeida Ribeiro

    Sermo de Antnio (Lobo Antunes) aos peixes: 291sapincia e memria no ps-colonialNorberto do Vale Cardoso

    III. MEMRIA, SABEDORIA E HERANA GRECO-LATINA

    Mmoire et sagesse dans le noplatonisme grec: 307quelques r0 exions partir de la Vie de Pythagore de Jamblique Jean-Marie Flamand

    A memria que herdmos dos gregos: da poesia, histria e 3 loso3 a 331Martinho Tom Martins Soares

    O homem grego e a sua memria 349Maria Mafalda Viana

    Musa, testemunho e textualidade 365Henrique Carvalho

    O philosophos e a politeia em Plutarco 377Joaquim Pinheiro

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    Beatus ante mortem nemo Creso, Slon e o conceito de felicidade 389Cristina Abranches Guerreiro

    Traduo como memria: a traduo do Pro Archia 397por Matias Viegas da Silva Joana Sera m

    Tpicos da sabedoria monstica em Cassiano 405Maria Joo Toscano Rico

    A escada de Electra: de Sfocles a Richard Strauss 419Pedro Braga Falco

    IV. MEMRIA, ORALIDADE E SABEDORIA POPULAR

    Romanceiro e memria 435Pere Ferr

    O canto como anagnorisis e identi3 cao 459em romances de Tradio Oral Moderna Portuguesa Ana Sirgado

    Um discurso signi3 cante sobre o incesto na Literatura Oral e Tradicional 471(Silvana e Delgadinha)Ana Maria Paiva Moro

    O Cancioneiro Popular: da voz potica memria 483Lina Santos Mendona

    Once upon a time there was a country 509Photography, travel and knowledge Susana S. Martins

    A imagtica animal no discurso poltico: 523a tradio popular em Demstenes Contra AristogtonNelson Henrique da Silva Ferreira

    A poesia heri-cmica e a memria de bagatelas: 533a celebrao pica de trivialidades nO Hissope de Cruz e SilvaRui Carlos Fonseca

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    MEMRIA & SABEDORIA

    Coordenao: Jos Pedro Serra | Helena Carvalho Buescu Ariadne Nunes | Rui Carlos Fonseca

    Capa: Antnio Pedro

    Reviso: Marta Pacheco Pinto, Rui Carlos Fonseca, Ariadne Nunes e Edies Hmus

    EDIES HMUS, 2011End. postal: Apartado 7097 4764-908 Ribeiro, V. N. FamalicoTel. 252 301 382 / Fax 252 317 555E-mail: [email protected]

    Impresso: Papelmunde, SMG, Lda. V. N. Famalico1.a edio: Setembro de 2011Depsito legal: 333261/11ISBN 978-989-8139-89-4

  • o contributo de autores oriundos

    de mltiplas reas, incidindo sobre a loso a, as tradies religiosas e sapienciais, a histria, a literatura, a lingustica, a literatura oral, a obra que agora se publica, sob a gide do Centro de Estudos Clssicos e do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, constitui uma viso plural sobre a sabedoria, sobre o lugar da memria na compreenso sbia da realidade, en m, sobre o modo como sabedoria e memria se cruzam.

    REUNINDO

    ISBN 978-989-8139-89-4

    9 7 8 9 8 9 8 1 3 9 8 9 4