memória e justiça de transição: um estudo à luz da filosofia de henri

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Murilo Duarte Costa Corrêa MEMÓRIA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: UM ESTUDO À LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON Universidade de São Paulo Faculdade de Direito Programa de Pós-graduação em Direito São Paulo 2013

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  • Murilo Duarte Costa Corra

    MEMRIA E JUSTIA DE TRANSIO:

    UM ESTUDO LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON

    Universidade de So Paulo Faculdade de Direito

    Programa de Ps-graduao em Direito

    So Paulo

    2013

  • Murilo Duarte Costa Corra

    MEMRIA E JUSTIA DE TRANSIO:

    UM ESTUDO LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON

    Tese apresentada como requisito parcial

    obteno do grau de Doutor no Programa de

    Ps-Graduao em Direito, rea de Filosofia

    e Teoria Geral do Direito, da Faculdade de

    Direito, do Setor de Cincias Jurdicas, da

    Universidade de So Paulo, sob orientao

    do Prof. Dr. Guilherme Assis de Almeida.

    Universidade de So Paulo Faculdade de Direito

    Programa de Ps-graduao em Direito

    So Paulo

    2013

  • MEMRIA E JUSTIA DE TRANSIO:

    UM ESTUDO LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON

    por

    MURILO DUARTE COSTA CORRA

    Tese aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Filosofia e Teoria

    Geral do Direito no Programa de Ps-Graduao em Direito da Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo pela comisso formada pelos seguintes professores:

    Orientador: Prof. Dr. Guilherme Assis de Almeida

    Programa de Ps-Graduao em Direito, USP

    Membro: Prof Associada Elza da Cunha Pereira Boiteux

    Programa de Ps-Graduao em Direito, USP

    Membro: Prof Associada Deisy de Freitas Lima Ventura

    Instituto de Relaes Internacionais, USP

    Membro: Prof. Titular Jos Antnio Peres Gediel

    Programa de Ps-Graduao em Direito, UFPR

    Membro: Prof. Dr. Eladio Constantino Pablo Craia

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia, PUC-PR

    So Paulo, _______ de ________________ de 2013.

  • para Maria,

    devoraes para outros devires...

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    A experincia da escrita uma espcie de atletismo que cria um pedao de concreto

    ao mesmo tempo em que interroga os limites das foras imaginativas e conceituais em

    relao a ele. Essa pequena passagem que se tentou produzir dos afetos da ordem para

    uma outra ordem dos afetos teria sido seno impossvel por certo v sem os

    encontros intensivos que a experincia de escrev-la proporcionou. Essas pequenas

    devoraes de Bergson teriam sido muito menos saborosas sem a presena doce de minha

    amada Maria Fernanda Battaglin Loureiro, a quem dedico cada uma dessas por vezes

    longas, hermticas e, com sorte, voluntariosamente joycianas linhas. sua companhia

    amvel e inquieta dedico, tambm, tantas outras todas as outras! , porque no se escreve

    se no for para penetrar o amor com a alma e a alma com o amor.

    minha famlia (Mirian, Camile), e famlia de Maria (Clia, Wilson, Otvia,

    Joo), agradeo por toda amabilidade e aconchego de sempre; pelas conversas de almoos

    de domingo. Estar com vocs sempre domingo.

    Ao orientador deste trabalho, Prof. Dr. Guilherme Assis de Almeida, agradeo pela

    orientao, mas sobretudo pela inspirao que representa: raro professor, digno de

    admirao por aliar erudio criativa, sensibilidade terica e preocupao concreta com a

    efetividade dos direitos humanos marca indelvel de sua orientao, da qual este trabalho

    no poderia pretender ser mais do que um singelo legado.

    Ao Professor Associado Eduardo Carlos Bianca Bittar, agradeo por ter me

    apresentado ao Prof. Guilherme, mas tambm pela ateno que sempre dispensou a minhas

    dvidas e inquietaes terias; tambm, por toda a Teoria e Crtica dos Direitos Humanos

    que aprendi consigo aprendizado indispensvel formulao dos problemas que se

    seguem.

    Professora Associada Elza da Cunha Pereira Boiteux, agradeo pelas aulas, pelo

    apoio e pelo incentivo nesses anos de doutorado. Sobretudo, pelo exemplo de simplicidade,

    sensibilidade e saber.

    Aos Professores Associados Samuel Barbosa e Deisy Ventura, agradeo por todas

    as sugestes e por todo o auxlio que, na etapa de qualificao deste trabalho, foram

    determinantes para o seu aperfeioamento.

    Professora Associada do Departamento de Antropologia Social da Universidade

    de So Paulo, Fernanda Aras Peixoto, agradeo pela gentil acolhida, por todas as

  • 5

    discusses francas sobre o sentido dos quadros socias da memria, a partir de Halbwachs e

    Bergson, e por tudo o que pude aprender junto a suas aulas e aos colegas da ps-graduao

    em Antropologia em As Artes da Memria. Algumas questes que a professora Fernanda

    nos franqueou so, ao menos incidentalmente, retomadas aqui.

    Professora Maria Adriana Camargo Capello, da Ps-Graduao em Filosofia da

    UFPR, renovo minha gratido por ter me conduzido aos fabulosos textos de Bergson em

    2009. Ainda que insensivelmente, ela e o amigo Marcelo Barbosa so, tambm, credores

    desses aprofundamentos na filosofia bergsoniana da diferena.

    Ao Prof. Dr. Eladio Constantino Pablo Craia, do Programa de Ps-Graduao em

    Filosofia da PUC-PR, pela amizade simples e leve, pelos cafs e pela conversa infinita e

    para sempre inacabada sobre a Filosofia Francesa Contempornea, suas consequncias

    ontolgicas e polticas. Sobretudo, por sua atenciosa e sempre enriquecedora

    disponsibilidade em ler alguns dos originais.

    Ao Prof. Titular da Faculdade de Direito da UFPR, Jos Antonio Peres Gediel,

    meus agradecimentos e minha admirao por ter sido um dos mais eruditos professores de

    meus tempos de graduao; por ainda hoje servir-me de exemplo de que o rigoroso e

    radical questionamento do Direito se faz com um p dentro dele e com outros dois fora.

    Tambm por aceitar com generosidade minhas participaes sempre descontnuas em seu

    grupo de pesquisas sobre o corpo.

    Aos amigos Abili Lzaro Castro de Lima, Alexandre Morais da Rosa, Benedito

    Costa, Bruno Cava, Cleverson Leite Bastos, Christina Miranda Ribas, Cristiano Knapp,

    Deisy Ventura, Eduardo Sterzi, Felipe Augusto Vicario de Carli, Gabriel Merheb Petrus,

    Gilson Bonato, Giuseppe Cocco, Guilherme Roman Borges, Gustavo Chaves, Helosa

    Fernandes Cmara, Idelber Avelar, Jos Roberto Vieira, Laurent de Sutter, Leonardo

    Dvila de Oliveira, Maria de Ftima S. Tecchio, Miguel Gualano de Godoy, Pdua

    Fernandes, Ricardo Prestes Pazello e Vernica Stigger, agradeo pelas amizade e pelas

    oportunidades formais e informais de discusso de alguns desses estudos e ideias. Aos

    alunos, orientandos e professores da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de

    Ponta Grossa, agradeo pela presena geradora de ideias alegres e inconstantes. Estas

    pginas tambm so dedicadas a vocs.

  • 6

    O tempo insiste porque existe

    um tempo que h de vir.

    Vinicius de Moraes

  • 7

    RESUMO

    O presente estudo tem por objeto investigar a gnese dos potenciais

    transformativos geralmente atribudos memria pelos modernos tericos da Justia de

    Transio. A partir de sua relao gentica com o Direito Internacional dos Direitos

    Humanos, elucidaram-se os contornos do conceito de memria na Teoria da Justia de

    Transio demonstrando-se tanto a centralidade da memria na efetuao das prticas

    transicionais como uma constante atribuio de potenciais transformativos memria.

    Uma vez diagnosticada a lacunaridae dessa relao jamais explicada em sua dinmica

    prpria entre os tericos da Justia de Transio , formulou-se a hiptese de que um

    conceito ontolgico, dinmico e metaindividual de memria, tal como registrado pela

    filosofia de Henri Bergson, poderia abranger os heterogneos conceitos de memria dos

    tericos da Justia de Transio com a vantagem analtica de permitir integrar a lacuna

    terica encontrada, explicando-se como se podem atribuir potenciais transicionais

    memria. Para tanto, foi necessrio demonstrar que a filosofia bergsoniana da durao

    instaura um vnculo entre ontologia e poltica, durao real, memria e variao das formas

    de vida. Em seguida, buscamos derivar dessa ontologia poltica bergsoniana as

    consequncias subjetivas, morais e institucionais correlatas a dois grandes referenciais que

    Bergson e a Teoria da Justia de Transio possuem em comum: a democracia e os direitos

    humanos. Dessa forma, pretendeu-se estabelecer um problema ainda no investigado no

    mbito da Teoria da Justia de Transio e oferecer-lhe uma soluo original luz de sua

    interlocuo com a filosofia de Henri Bergson, seu conceito de memria e suas

    implicaes polticas.

    Palavras-chave: Memria; Justia de Transio; Henri Bergson.

  • 8

    ABSTRACT

    The present essay aims to investigate the genesis of transformative potencies

    generally assigned to memory by modern Transitional Justices theorists. Starting on its

    genetic relationship with International Human Rights Law, this essay have clarified the

    patterns of memory in Transitional Justice proving the central role played by memory in

    the field of transitional practices as well as it has demonstrated the constant assignment of

    transformative potencies to memory. Once established these patterns, this study diagnosed

    a theoretical gap on connecting memory and transition on Transitional Justice theory.

    Therefore, according to our hypothesis, an ontological, dynamic and meta-individual

    concept of memory, as registered on Bergsons philosophy, would comprehend

    Transitional Justices heterogenic notions of memory and could go far beyond them. By

    this mean, we were able to fulfill the theoretical gap encountered in order to clarify how is

    possible to assign transitional potencies to memory. Thus, this study demonstrates that

    Bergsons durational philosophy promotes a connection between ontology and politics,

    real duration, memory and variation of ways of life. Afterwards, we derivated from that

    bergsonian political ontology subjective, moral and institutional consequences related to

    democracy and human rights referrals that Bergson and Transitional Justices theorists

    have in common. We have tried to establish a problem not yet investigated by Transitional

    Justice Theory and offer a original solution to it since Henri Bergsons philosophy, his

    concept of memory and its political implications.

    Key-words: Memory; Transitional Justice; Henri Bergson.

  • 9

    SUMRIO

    RESUMO .............................................................................................................................. 7

    ABSTRACT .......................................................................................................................... 8

    INTRODUO .................................................................................................................. 11

    PRIMEIRA PARTE

    O ATUAL: MEMRIA E TRANSIO NA TEORIA DA JUSTIA DE

    TRANSIO ..................................................................................................................... 15

    CAPTULO 1 A GNESE DA TEORIA DA JUSTIA DE TRANSIO E O

    DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS ....................................... 16

    CAPTULO 2 DIREITO-ENTRE: O JURDICO E AS INSTITUIES NO SEIO DAS

    TRANSIES ................................................................................................................. 30

    1 Direito, instituies e transio ............................................................................. 30

    2 O que um passado tem de insuportvel: notas sobre a continuidade do passado no

    presente a partir do caso brasileiro ............................................................................ 37

    CAPTULO 3 O CONCEITO DE MEMRIA NA TEORIA DA JUSTIA DE

    TRANSIO ................................................................................................................... 46

    1 Memria, verdade e Direito Internacional dos Direitos Humanos ....................... 49

    2 Os contornos do conceito de memria no campo transicional .............................. 53

    3 A centralidade da memria e seus potenciais transformativos ............................. 64

    SEGUNDA PARTE

    O VIRTUAL: A IDEIA DE MEMRIA NA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON .. 84

    CAPTULO 4 UM SALTO NO VIRTUAL: DO SER PRESENTE AO SER DO

    PASSADO ....................................................................................................................... 85

    1 Bergsonismo, mltiplas entradas ........................................................................... 88

    2 Durao: o sentido e a realidade do tempo .......................................................... 97

    3 Do ser presente ao ser do passado ...................................................................... 110

    CAPTULO 5 MEMRIA, FUNDAMENTO DO TEMPO ....................................... 126

    1 O problema do reconhecimento: o crebro e as duas memrias ........................ 127

    2 Coexistncias: a consistncia virtual da memria .............................................. 141

    3 O ser do passado como fundamento do tempo:memria, repetio e devir ........ 157

    TERCEIRA PARTE

    LINHAS DE ATUALIZAO: BERGSON, O ABERTO E A TRANSIO ......... 168

    CAPTULO 6 O ABERTO E A JUSTIA DE TRANSIO: DEMOCRACIA E

    DIREITOS HUMANOS ................................................................................................ 169

    1 O fechado: o social e o vital ................................................................................ 172

    2 Abrir o fechado: ruptura e devir .......................................................................... 198

  • 10

    3 Perseverar no aberto:transio, democracia e direitos humanos ...................... 214

    4 Retornar ao concreto:memria e justia de transio ........................................ 251

    CONSIDERAES FINAIS .......................................................................................... 268

    REFERNCIAS ............................................................................................................... 275

  • 11

    INTRODUO

    Sua narrativa afirma que o inesquecvel existe. A frase de Krikor Beledian,

    evocada em um dos textos de Lembrar, escrever, esquecer (GAGNEBIN, 2006, p. 47),

    consiste na nota fundamental que percorre todas essas pginas por ressonncia ou

    incandescncia. Ela seu princpio de impureza e contaminao. No entanto, ela lida a

    partir de uma forma de exerccio quase patolgico do pensamento: dizer, ela lida

    literalmente, levada ao limite de sua prpria expresso, ao limiar do que Beledian talvez

    jamais quisera dizer ao enunci-la.

    Assim, afirmar que o inesquecvel existe torna-se, no uma tarefa essencial, poltica

    e tica sem glria do historiador que luta contra a repetio do horror. Ela isso, mas

    mais que isso. A afirmao de que o inesquecvel existe aqui assumida como um ndice

    de positividade instaurador de um limiar significante a partir do qual j no parece mais to

    absurdo afirmar a realidade ou o ser da memria. Ela o inesquecvel mas, tambm, a

    obscura, espectral e ativa presena do imemorial.

    As pginas que se seguem consistem, pois, em uma mquina de produzir essa

    afirmao: o inesquecvel existe. J no se trata de algo que, desejando-o, no queremos

    esquecer, mas de um apelo compreenso da memria como uma regio do existente, do

    real. Isso implica recusar toda estratgia de reduo do conceito de memria a seus

    aspectos de lembrana individual ou psicolgica, de representao coletivamente

    partilhada fundadora de identidades de grupo, ou de forma vazia e ontologicamente

    negativa de representificao de algo ausente. O passado, nesse caso, seria apenas o que

    no mais; o futuro, o que no ainda.

    Nesse sentido, as formulaes modernas e contemporneas da Teoria da Justia de

    Transio1 so mobilizadas como campo terico e problemtico concreto a partir do qual

    essa recusa colocada em jogo. Contemplando prticas institucionais e simblicas a serem

    efetuadas em momentos de fluxo poltico (justia, reparao, reformas, purgas etc.), nos

    quadros da Teoria da Justia de Transio que a memria aparece continuamente como

    elemento chave para sua efetuao. Portanto, no seio da Justia de Transio que as

    interrogaes sobre uma memria despida de qualquer realidade podem adquirir contornos

    metafsicos, mas tambm polticos, relacionados constituio de novas formas de vida.

    1 Paul Van Zyl (2009a, p. 32) define brevemente Justia de Transio como o esforo para a construo da

    paz sustentvel aps um perodo de conflito, violncia em massa ou violao sistemtica dos direitos

    humanos.

  • 12

    A dimenso poltica da memria na Teoria da Justia de Transio constitui, ainda,

    uma constante. Comumente so atribudos potenciais transformativos memria, de forma

    que a veremos aparecer como uma espcie de condio (positiva ou negativa) sempre

    ligada efetuao das transies reais. O que permanece lacunar e sem explicao lacuna

    que devemos demonstrar em detalhe consiste justamente no aparente automatismo dessa

    atribuio. No entanto, como atribuir a um conceito individual os potenciais de produzir

    mutaes polticas de grande escala? Como emprestar potenciais transformativos e

    dinmicos a um conceito coletivo, mas representativo e esttico? Como a contumaz faceta

    ontolgica negativa pela qual se pensa a memria como conceito sem realidade prpria

    poderia engendrar as positividades que uma transio real exige e nas quais ganha corpo

    concreto? Ao se fazer da memria uma espcie de deus ex machina das transies reais,

    todas essas questes permaneceriam sem explicao.

    Essa lacuna progressivamente identificada e estabelecida a partir de uma

    correlao gentica entre a moderna Teoria da Justia de Transio e o Direito

    Internacional dos Direitos Humanos. Em seus quadros, definimos estruturalmente as

    formas e prticas da Justia de Transio, aprofundando-as progressivamente a fim de

    esclarecer o sentido do binmio memria-verdade. Ele nos forneceria a chave de

    interrogaes metaestruturais pelas quais poderemos estabelecer os contornos analticos do

    conceito de memria, tal como ele heterogeneamente engendrado pelos tericos da

    Justia de Transio.

    Realizado esse percurso, ao qual dedicamos a primeira parte deste trabalho,

    resultaria necessrio interrogar de que maneira se poderia integrar a lacuna encontrada,

    pois no conseguir explicar a origem dos potenciais transformativos da memria implica

    exp-la ao risco poltico de deneg-la impunemente, ou de sold-la acriticamente s

    narrativas oficiais. Ao mesmo tempo, a lacuna, uma vez estabelecida, teria deixado exposto

    e aberto o fundamento infundado dos potencias transicionais continuamente atribudos

    memria pela Teoria da Justia de Transio.

    Porm, intuies pr-conceituais e no hegemnicas no campo terico da Justia de

    Transio ofereceriam tendncias cujos devires poderamos amarrar, integrando a um novo

    e mais compreensivo conceito no apenas as heterogneas camadas de memria elaboradas

    pelos tericos da Justia de Transio, mas tambm oferecer uma contribuio a este

    campo terico e jurdico a partir de uma interlocuo com a filosofia de Henri Bergson.

    Porm, por que Bergson? preciso explicar como o bergsonismo nos auxilia a

    amarrar devires conceituais que se insinuam a partir do prprio marco terico da Justia

  • 13

    de Transio. Ao longo do terceiro captulo, registramos a apario de duas noes pr-

    conceituais de memria entre os tericos da Justia de Transio. A primeira

    reconceptualizava a memria como memria dinmica, instvel, flexvel, a partir das

    recentes descobertas das neurocincias sobre as funes evolutivas e adaptativas da

    memria (BARSALOU; BAXTER, 2007, p. 04; PHELPS, 2012, p. 07 e NAGEL;

    SINOTT-ARMSTRONG, 2012, p. 05). A segunda, conceituava a memria

    independentemente dos referenciais da lembrana individual. Cada uma dessas tendncias

    de efetuao do conceito precisaria cruzar-se com a outra, a fim de produzir uma memria

    ao mesmo tempo dinmica e emancipada dos referenciais meramente individuais. No

    entanto, at o presente, a Teoria da Justia de Transio no conseguiu apreend-la nesse

    sentido. Os autores que compreendem o sentido dinmico da memria por influncia do

    campo experimental das neurocincias estabelecem o conceito a partir do campo das

    memrias individuais e psicolgicas. Os que engendram um conceito de memria que visa

    a superar o campo individual ainda que a qualifiquem vagamente como um processo

    jamais detalhado no escapam ao fixismo e lgica da representao. Alm disso, restara

    em aberto determinar de que maneira se podem atribuir potenciais transformativos

    memria; isto , o que justifica que ela aparea constantemente como elemento chave

    efetuao das transies?

    no sentido de esclarecer esses dois problemas que mobilizamos a filosofia de

    Henri Bergson: (1) engendrar um conceito de memria mais compreensivo, ao mesmo

    tempo dinmico e emancipado de um referencial forosamente individual, promovendo

    uma interlocuo interdisciplinar com sua filosofia a partir de problemas estabelecidos na

    Teoria da Justia de Transio; (2) a partir do estabelecimento desse conceito que

    adquire, em Bergson, tonalidades ontolgicas , trata-se de apresentar uma colaborao

    original para elucidar a gnese dos potenciais transformativos atribudos memria nesse

    campo terico, afastando os riscos polticos inerentes lacunaridade. Esses objetivos

    baseiam-se na hiptese de que necessrio rearticular o conceito de memria na teoria da

    Justia de Transio de um ponto de vista ontolgico e, ainda assim, dinmico e no

    meramente individual ou psicolgico, a fim de explicar a relao sempre solicitada, mas

    elidida, entre memria e transio.

    Por isso, ser necessrio reconstituir as linhas gerais da argumentao de Bergson

    sobre a memria, compreendendo-a como uma regio do existente. Essa memria

    dando consistncia afirmao de que o inesquecvel existe ser qualificada como o

    virtual: um dos registros que, juntamente com o atual, consistem nas duas metades que

  • 14

    compem uma mesma estrutura do real, para Bergson. Enquanto o atual aparecer soldado

    ao espao e inteligncia embora continuamente varivel em funo do tempo , o

    virtual designa a durao real, potncia de variao das formas inorgnicas, orgnicas e

    polticas. Desse ponto de vista, esclarecer de que forma a memria pode consistir em

    fundamento do tempo muito mais do que um exerccio abstrato e metafsico; estabelec-

    lo implica, j, compreender em profundidade, a partir do ser que, para diz-lo em uma

    palavra, em Bergson confunde-se com o devir , a centralidade da memria como

    elemento chave nas estratgias genuinamente polticas para fender as camadas slidas do

    atual ou do presente. Como no seria esta, precisamente, a questo ltima de toda a Justia

    de Transio: como reabrir o fechado? Como responder a ela evocando uma memria

    fixa e representativa, ou meramente dinmica e individual ainda que conserve uma

    natureza profundamente emocional (ELSTER, 2003, p. 11)?

    Toda a longa demonstrao que tem por objeto a filosofia bergsoniana, articulada a

    partir das relaes entre memria e transio em seus diversos nveis de atualizao (do

    ontolgico ao poltico), envolve as diversas e heterogneas camadas de memria a partir de

    um solo comum e imanente: uma ontologia da memria capaz de explicar mesmo o ato

    aparentemente mais individual seja ele o ato de reminiscncia do vivido, seja ele o ato de

    liberdade que, como veremos, mantm uma relao essencial com a memria no

    bergsonismo.

    Nas linhas que se seguem a esta breve introduo, ser preciso avaliar tambm

    como Bergson mobiliza seu conceito ontolgico e potente de memria que se confunde

    com as virtualidades que produzem atualizaes e variaes contnuas no Todo do real a

    fim de construir um vnculo, s nossas vistas indissolvel, entre sua ontologia da memria

    e a dimenso da poltica. Como extenso desse mesmo gesto, ser preciso verificar de que

    modo Bergson poderia auxiliar a lanar luzes sobre os arcanos dos potenciais

    transformativos da memria do ponto de vista da mutao institucional e poltica concreta.

    Nesse limiar, envolvem-se os conceitos de aberto e transio, entrevistos a partir da

    intuio mstica e da emoo criadora como motores profundos das transies polticas,

    mas tambm da constituio de instituies democrticas, derivadas do apelo universal que

    provm dos Direitos Humanos, capazes de nos permitir reabrir o fechado, combater o

    fechamento e perseverar no aberto (Terceira Parte).

  • 15

    PRIMEIRA PARTE

    O atual: memria e transio na Teoria da Justia de Transio

  • 16

    CAPTULO 1 A GNESE DA TEORIA DA JUSTIA DE TRANSIO

    E O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

    A literatura clssica da Teoria da Justia de Transio, ao registrar a longa histria

    das experincias jurdicas transicionais, no raro a faz remontar a perodos arcaicos que se

    confundem com as primeiras emergncias de uma forma democrtica de governo no

    Ocidente. Jon Elster (2006, p. 17) o confirma ao assinalar que La justicia transicional

    democrtica es casi tan antigua como la democracia misma.

    No entanto, evitaremos recuar to intensamente. Interessa-nos, por ora, avaliar

    como o conceito de memria constri-se como o epicentro da Teoria da Justia de

    Transio, bem como analisar sua heterognea composio nos estritos limites do marco

    da produo terica que se seguiu ao fenmeno da internacionalizao dos direitos

    humanos; trata-se, portanto, para o momento, de esclarecer que elegemos como ponto focal

    de nossa investigao sobre o conceito de memria sua elaborao na moderna Teoria da

    Justia de Transio, uma vez que desejamos avaliar a gnese recproca entre o processo

    histrico de internacionalizao dos Direitos Humanos e a emergncia de uma doutrina

    moderna da Teoria da Justia de Transio erigida sobre fundamentos transnacionais

    privilegiadamente ao longo da primeira metade do Sculo XX. Com isso, pretendemos

    demonstrar a impossibilidade de se compreender a moderna formulao da Justia de

    Transio dissociada dos processos que conduziram adoo de mecanismos

    internacionais de proteo e promoo dos direitos humanos, especialmente no contexto

    histrico-poltico e mundial que se seguiu s consequncias imprevistas que decorreram

    das duas grandes guerras mundiais.

    O dia 4 de agosto de 1914 assinala o advento da I Guerra Mundial como o evento

    explosivo que dilacerara a cena e a comunidade poltica dos pases europeus. Em um

    cenrio de inflao, destruio da classe de pequenos proprietrios e desemprego radical,

    assiste-se paulatina migrao de compactos grupos humanos que no eram bem-vistos ou

    bem-vindos em lugar algum do continente Europeu. Deixando seus Estados de origem,

    esses indivduos tornavam-se aptridas inassimilveis e, uma vez que perdiam seus

    direitos, seriam, de agora em diante, vistos por toda parte como o refugo da terra

    (ARENDT, 2009, p. 300) expresso que o jornal oficial das SS utilizava para qualificar

    os judeus desnacionalizados em massa pelo III Reich, entre os quais a prpria Arendt, em

    1933, aps passar por um breve perodo de encarceramento.

  • 17

    No crepsculo da Primeira Guerra Mundial, assiste-se, do ponto de vista

    macropoltico, rpida degradao das estruturas despticas imperiais europeias. Com ela,

    todas as nacionalidades efervescentes que se encontravam sob o manto imperial so

    violentamente liberadas das estruturas nacionais unitrias que as submetiam e voltam-se

    umas contra as outras: eslovacos contra tchecos, croatas contra srvios, ucranianos contra

    poloneses.

    Nesse cenrio poltico intensamente degradado, os dois segmentos humanos que

    mais sofrero as consequncias dessa realidade dilacerante sero os aptridas e as minorias

    que, segundo Arendt (2009, p. 302), haviam perdido aqueles direitos que at ento eram

    tidos e at definidos como inalienveis (Direitos do Homem), dado que j no dispunham

    de governos nacionais prprios que os representassem e protegessem; ademais,

    encontravam-se forados a viver sob as leis de exceo dos Tratados das Minorias, que

    praticamente todos os governos dos Estados sucessrios haviam assinado sob protesto e

    no reconheciam como lei.

    As etnias minoritrias e sem Estado logo veriam a precria condio de cidadania

    na qual se encontravam ser rapidamente assimilada dos aptridas. Entre os anos de 1915

    e 1935, mesmo naes tradicionalmente reconhecidas pela defesa e proteo dos direitos

    humanos como Frana, Blgica, Itlia, ustria e, mais tarde, Alemanha , editaram leis

    que permitiram a desnaturalizao e a desnacionalizao massiva de cidados, culminando

    na lei de Nuremberg, que distinguiria, em 1935, entre cidados alemes de pleno direito e

    cidados sem quaisquer direitos polticos (AGAMBEN, 1996, p. 22).

    De posse desse poderoso instrumento jurdico-poltico, que logo se converteria em

    instrumento das polticas totalitrias que faziam sua escalada global, a situao das

    minorias e dos aptridas outrora excepcional generaliza-se velozmente, a tal ponto que,

    em certo momento, diversos pases europeus possuam a capacidade jurdica de utiliz-lo

    para se desfazerem de massas populacionais inteiras.

    Diante da incapacidade constitucional dos Estados europeus de protegerem os

    Direitos Humanos daqueles que haviam perdido, com a sua nacionalidade, seus direitos de

    cidadania, a escala de valores dos pases totalitrios passa a impor-se por toda a parte;

    Arendt registra que judeus, ciganos e trotskistas eram recebidos como o refugo da terra2

    2 tambm Arendt (2009, p. 302) quem destaca a relao entre os meios tcnico-jurdicos que tornavam a

    desnacionalizao de cidados indesejveis uma capacidade de diversos Estados europeus no perodo do ps-

    Primeira Guerra e a difuso do antissemitismo; a desnacionalizao teria sido, segundo Arendt, o mais eficaz

    instrumento de propagao de valores antijudaicos: O jornal oficial da SS, o Schwartze Korps, disse

    explicitamente em 1938 que, se o mundo ainda no estava convencido de que os judeus eram o refugo da

  • 18

    aonde quer que fossem. Mais do que uma tentativa alem de livrar-se dos judeus, sua

    perseguio tinha o propsito de espalhar o antissemitismo como um valor pelos pases

    europeus democrticos. Esse tipo de propaganda, segundo Arendt, teria sido especialmente

    eficaz porque sua retrica intrnseca anulava a tese jusnaturalista, iluminista e redentora

    que advogava a existncia de direitos humanos inalienveis, ao mesmo tempo em que

    revelava a hipocrisia e a covardia dos pases democrticos em relao proteo dos

    direitos humanos.

    Segundo Arendt, a desintegrao interna dos Estados-Nao observou-se a partir da

    Primeira Guerra Mundial uma vez que os Tratados de Paz, impostos aos Estados

    sucessrios, geravam tenso tanto entre as minorias nacionais quanto no mbito dos

    novos Estados. As minorias acreditavam-se injustiadas pela arbitrariedade dos Tratados

    de Paz que contemplavam apenas a alguns povos com Estados, enquanto sujeitavam os

    demais servido e falta de autodeterminao poltica; os Estados recm-criados, por sua

    vez, viam os Tratados das Minorias como prova de discriminao, pois somente os Estados

    sucessrios restavam-lhes subordinados.

    Concebidos como um mecanismo de assimilao das minorias s estruturas

    sistemticas dos Estados-Nao, a proteo dos Minority Treaties apenas alcanava as

    nacionalidades com certa densidade demogrfica, no sendo aplicvel a todas as minorias

    as quais foram deixadas sem governo prprio e completamente margem do direito. No

    entanto, os povos contemplados com Estados, ainda que politicamente majoritrios,

    padeciam de certa fraqueza numrica e cultural diante da vultosa diversidade das minorias;

    nem os Tratados das Minorias, tampouco a Liga das Naes, puderam, contudo, evitar que

    as minorias nacionais fossem assimiladas mais ou menos fora s estruturas dos Estados

    sucessrios.

    Ignorando completamente a Liga das Naes, e buscando solucionar de forma

    autnoma o seu problema de autodeterminao poltica inencontrvel no seio dos

    Estados sucessrios , as minorias organizam-se ao redor do Congresso dos Grupos

    Nacionais Organizados nos Estados Europeus. Uma vez que todas as nacionalidades

    aderiram ao Congresso, terminaram por superar em nmero os povos estatais; ainda, o

    Congresso dos Grupos Nacionais representava uma forma de organizao que ultrapassava

    os tratados da Liga das Naes, na medida em que estes ignoravam o carter interestatal

    terra, iria convencer-se to logo, transformados em mendigos sem identificao, sem nacionalidade, sem

    dinheiro e sem passaporte, esses judeus comeassem a atorment-los em suas fronteiras (Idem, ibidem, loc.

    cit.).

  • 19

    das nacionalidades minoritrias. Isso colocava em xeque o princpio territorial em que se

    encontrava baseada a Liga, ao mesmo tempo em que, apressando sua superao,

    antecipava o que viria a ser uma importante caracterstica na gnese do Direito

    Internacional dos Direitos Humanos no perodo do Ps-Segunda Guerra Mundial: a

    superao do princpio territorial, fiador do poder domstico dos Estados-Nao, gerador

    da necessidade de deslocar a base normativa dos Direitos Humanos em direo a uma

    fundamentao que j no permanecesse confinada s estruturas meramente domsticas ou

    nacionais.

    Disseminados por todos os Estados sucessrios, alemes e judeus dominaram

    politicamente o Congresso, deflagrando uma relao colaborativa, harmoniosa e suficiente

    para manter a agremiao coesa. Em 1933, no entanto, com a ascenso de Hitler ao poder

    na Alemanha, a delegao judaica exige uma moo congressual de protesto contra o

    tratamento dispensado aos judeus pelo governo do III Reich. Ao passo em que os alemes

    nacionalmente minoritrios anunciam sua solidariedade Alemanha nazista e conseguem o

    apoio da maioria das naes minoritrias, o antissemitismo floresce em todos os Estados

    sucessrios, tendo por consequncia o abandono do Congresso dos Grupos Nacionais pela

    delegao judaica (ARENDT, 2009, p. 308).

    A importncia dos Tratados das Minorias consistiu em terem sido os primeiros

    documentos legais que reconheceram a existncia das minorias margem do ordenamento

    jurdico-poltico como instituio permanente, necessitando de uma garantia adicional de

    seus direitos. Isso significou que se tornava explcito o que at ento o sistema dos

    Estados-Nao pregava apenas obscuramente por meio de suas prticas que apenas os

    nacionais poderiam ser cidados efetivos, que a lei de um pas no poderia ser responsvel

    por pessoas que de alguma forma resistiam assimilao. Dessa forma, o Estado passava

    de instrumento da lei em instrumento da Nao, muito antes de Hitler ter proclamado que

    a lei aquilo que bom para o povo alemo o desfecho previsvel, segundo Arendt

    (2009, p. 309), das estruturas de Estados-Nao que a forma constitucional de governo

    travestiu por longo tempo em imprio da lei.

    Os Tratados das Minorias visavam a assegurar aos povos nacionais sem Estado

    uma garantia adicional de seus direitos, ao passo em que estes, de jure, integravam o corpo

    poltico de determinado Estado. As Naes europeias tradicionais no foram obrigadas a

    aderir a eles na medida em que suas estruturas constitucionais j se supunham edificadas

    sobre a ideologia da proteo dos direitos do homem, distintamente do que acontecia s

    recentes naes sucessrias, das quais se exigia proteo adicional s minorias.

  • 20

    Por longo tempo considerado apenas uma anomalia legal desprovida de

    importncia, o aptrida recebeu ateno muito tardia, quando sua posio legal foi tambm

    aplicada aos refugiados expulsos de seus pases e desnacionalizados pelos vitoriosos nas

    revolues. Na poca que precedeu a Segunda Guerra, a desnacionalizao em massa

    constitua um fenmeno novo e imprevisto, pressupunha uma estrutura estatal que ou era

    totalitria ou j demonstrava completa incapacidade de tolerar oposio; tanto que em

    Origens do Totalistarismo, Arendt (2009, p. 312) sente-se tentada a medir o grau de

    infeco totalitria de um governo pelo grau em que usa o soberano direito de

    desnacionalizao [...].

    Com a insidiosa multiplicao do nmero de aptridas, o direito de asilo at

    ento smbolo dos direitos do homem (ALMEIDA, 2001, p. 85-96) abolido prtica e

    tacitamente. No mesmo sentido, a Declarao dos Direitos do Homem nunca fora

    incorporada legislao interna de nenhum Estado-Nao at este momento. Os refugiados

    tornam-se um problema, pois, ao mesmo tempo em que os Estados no conseguiam

    desvencilhar-se deles, tambm no desejavam torn-los cidados. Constatava-se o

    esgotamento das alternativas tradicionais, como a repatriao ou a naturalizao. As

    pessoas sem Estado, por sua vez, insistiam em suas nacionalidades e resistiam

    assimilao por quaisquer outras naes.

    Fracassadas as tentativas de repatriaes e naturalizaes, os aptridas

    encontravam-se gravados com uma espcie de condio de indeportabilidade, que logo se

    tornaria regra nos campos de concentrao e extermnio (ARENDT, 2009, p. 317). Um

    homem sem Estado era uma anormalidade, um fenmeno imprevisto que no gozava de

    qualquer posio apropriada na estrutura da lei em geral. Ficava, pois, merc da polcia,

    que no hesitava em perpetrar ilegalidades para diminuir o nmero de indsirables em seu

    pas, expulsando-os, contrabandeando-os para pases vizinhos e estes no hesitavam em

    retribuir o gesto do mesmo modo. Eclodiam conflitos entre polcias transfronteirias,

    cresciam as sentenas de prises de aptridas, falhavam todas as tentativas internacionais

    de estabelecer alguma condio de legalidade para as massas de povos sem Estado. Assim,

    os campos de internamento tornavam-se o nico substitutivo de uma ptria e

    generalizavam-se progressivamente como soluo para displaced people.

    Os mecanismos de naturalizao falharam a priori frente virtual demanda de

    naturalizao em massa mas sua ineficcia deveu-se, tambm, circunstncia de que os

    povos sem Estado tampouco viam grande vantagem na naturalizao j que os

    naturalizados eram frequentemente ameaados com a desnacionalizao e com a

  • 21

    consequente privao de direitos. O aptrida, sem direito de residir ou trabalhar, era

    obrigado a viver constantemente fora da lei, embora, por sua condio, estivesse sujeito ao

    encarceramento sem ter jamais cometido um crime: Uma vez que ele constitua a

    anomalia no-prevista na lei geral, era melhor que se convertesse na anomalia que ela

    previa: o criminoso, afirma Arendt (2009, p. 319).3 Ao passo em que campos de

    concentrao so progressivamente criados em praticamente todos os pases, o mundo

    europeu, civilizado e livre, passa a articular-se com o plexo de valores e a legislao dos

    pases totalitrios por meio das polcias nacionais que se implantariam em prol da

    Segurana Nacional.

    O que o cenrio europeu do entreguerras colocava em xeque era precisamente a

    categrica pretenso expressa na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, do fim

    do sculo XVIII, que, a um s tempo, erigia o homem condio de fonte e objetivo dos

    Direitos do Homem, aos quais emprestava as qualidades de direitos inalienveis,

    irredutveis, recebidos por nascimento e indedutveis de outros direitos ou de outra

    autoridade diversa da natureza humana. Tais direitos eram constantemente invocados para

    garantir certas prerrogativas dos sujeitos em face do arbtrio dos Estados soberanos, sendo

    tal soberania proclamada em nome de um conceito abstrato de Homem,4 impossvel de ser

    apreendido seno diludo no conceito deveras geral de povo, o qual teria direito a um

    autogoverno soberano. Nesse ponto, Hannah Arendt identifica o paradoxo j enunciado na

    declarao de direitos, referida a um homem abstrato, destacado de todo contexto social ou

    comunitrio, que compunha o povo de um Estado-Nao, associando-se a proteo dos

    direitos humanos soberania nacional.

    Giorgio Agamben (1996, p. 24) renova a crtica arendtiana ao identificar o que

    reputa ser a real funo biopoltica da Declarao de Direitos de 1789: inscrever a vida nua

    natural na ordem jurdico-poltica do Estado-Nao.5 Agamben diagnostica a ambiguidade

    3 Arendt (2009, p. 320) diagnostica que A melhor forma de determinar se uma pessoa foi expulsa do mbito

    da lei perguntar se, para ela, seria melhor cometer um crime. Se um pequeno furto pode melhorar a sua

    posio legal, pelo menos temporariamente, podemos estar certos de que foi destituda dos direitos humanos.

    Pois o crime passa a ser, ento, a melhor forma de certa igualdade humana, mesmo que ela seja reconhecida

    como exceo norma. O fato importante que a lei prev essa exceo. 4 Abstrao constitutiva do conceito moderno de homem, ou de natureza humana, j denunciada, e no sem

    ironia, por espritos polticos to heterogneos, como os de Edmund Burke (1820) em seu Reflections on the

    Revolution in France e Karl Marx (2010), em Sobre a questo judaica. Sobre o primeiro, conferir, ainda

    (ARENDT, 2009, p. 333-336) e, para um breve comentrio sobre o segundo, ver, tambm (DOUZINAS,

    2000, p. 371). 5 Quella nuda vita (la creatura umana) che, nellAncien Rgime, apparteneva a Dio e, nel mondo classico,

    era chiaramente distinta (come zo) dalla vita politica (bios), entra ora in primo piano nella cura dello Stato e

    diventa, per cos dire, il suo fondamento terreno. Stato-nazione significa: Stato che fa della nativit, della

    nascita (cio, della nuda vita umana) il fondamento della propria sovranit (AGAMBEN, 1996, p. 24).

  • 22

    expressa pelo ttulo da Declarao Universal dos Direitos do Homem e do Cidado, em

    que no fica claro se Homem e Cidado nomeiam duas realidades distintas ou se, ao

    revs, formam uma dade na qual o primeiro termo (Homem) apenas o contedo do

    segundo (Cidado).

    O liame entre princpios de natividade e da soberania restaria claro na medida em

    que a aquisio dos direitos humanos por nascimento (art. 1) aparece condicionada

    formao de uma associao poltica soberana (arts. 2 e 3) capaz de garantir sua eficcia

    por meio do emprego da fora pblica (art. 12), instituda em benefcio de todos.6 A raiz

    etimolgica latina comum a natio e nascere confirmaria, ainda uma vez, e de um ponto de

    vista genealgico, o fenmeno do nascimento como a fundamentao ltima dos Estados-

    Nao. O que Arendt enxergava como a diluio da condio humana concreta na

    antropologia filosfica universal e abstrata do iluminismo moderno e em sua reduo

    poltica ao conceito de povo, constituiria, mais profundamente, segundo Agamben, a

    fundamentao da soberania nacional moderna erigida sobre o que Arendt chamava vida

    nua natural.

    Condicionou-se a viso da humanidade como uma famlia de naes, de forma que

    o povo, e no o homem, representava a imagem do homo cujos direitos eram garantidos

    pela Declarao, identificando direitos do homem e direitos dos povos no sistema europeu

    de Estados-Nao. Com o aparecimento crescente de pessoas e povos cujos direitos no

    eram salvaguardados por essa sistemtica, os Direitos do Homem supostamente

    inalienveis mostravam-se inexequveis sempre que surgiam pessoas que no eram

    cidads de qualquer Estado soberano (ARENDT, 2009, p. 327).

    A perda da proteo do governo significava, a um s tempo, a perda da condio de

    legalidade em seu pas e em qualquer outro pas. Trata-se da degradao ltima do direito

    a ter direitos, que decorre no da perda do direito vida, liberdade ou propriedade, mas

    do fato de existirem sujeitos que no pertenciam a qualquer comunidade, que se

    encontravam em um limiar de absoluta indiferena jurdica. A lei tornava-se um

    mecanismo de produo de indiferena legal, incapaz de imagin-los sequer como sujeitos

    6 Os dispositivos referidos integram a Declarao Universal dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1789.

    In verbis, Artigo I: Les hommes naissent et demeurent libres et gaux en droits. Les distinctions sociales ne

    peuvent tre fondes que sur lutilit commune.; artigo II: Le but de toute association politique est la

    conservation des droits naturels et imprescriptibles de lhomme. Ces droits sont la libert, la proprit, la

    sret et la rsistance loppression.; artigo III: Le principe de toute Souverainet rside essentiellement

    dans la Nation. Nul corps, nul individu ne peut exercer dautorit qui nen mane expressment.; artigo XII:

    La garantie des droits de lHomme et du Citoyen ncessite une force publique : cette force est donc institue

    pour lavantage de tous, et non pour lutilit particulire de ceux auxquels elle est confie. Disponvel em:

    Acesso em: 11 maio 2013.

    http://www.assemblee-nationale.fr/histoire/dudh/1789.asp

  • 23

    sem espessura. O que tornava todos os residentes dos campos intrinsecamente matveis foi

    a criao pretrita de uma condio de completa privao de direitos, que se manifestava,

    segundo Arendt (2009, p. 330) na privao de um lugar no mundo que torne a opinio

    significativa e a ao eficaz.7

    O paradoxo prtico dos direitos humanos na modernidade encontra-se logo

    enunciado: quando os direitos do homem deveriam socorrer aquele que perdeu todo o

    status poltico e qualquer outra qualidade exceto a de ser unicamente humano , a

    estrutura jurdico-poltica dos Estados-Nao europeus determinava que os direitos

    humanos j no poderiam mais vir em seu socorro. Precisamente essa lacuna horizonte

    no de anomia, mas de um direito que quedava absolutamente indiferente em relao

    proteo e tutela da figura humana em seu estado puro e sem qualidades constituir uma

    das foras motrizes da gnese recproca da refundamentao dos direitos humanos e da

    emergncia de prticas de Justia de Transio. Esse contexto relaciona-se com as prticas

    adotadas nos julgamentos de Nuremberg e Tquio, de modo que as razes mais profundas

    do processo moderno de internacionalizao da Justia de Transio remontam aos marcos

    histricos e tericos que determinaram a constituio do prprio Direito Internacional dos

    Direitos Humanos (FUTAMURA, 2008, p. 30-51).

    A situao histrica paradoxal que atravessou o entreguerras e atingiu o fim da

    primeira metade do sculo XX apoia-se na cesura ainda no completamente desaparecida

    da realidade dos Estados-Nao entre homem e cidado. No interior dessa cesura, Arendt

    e Agamben viram tornar-se aparente o terrvel contraste entre o idealismo iluminista

    fundador dos Direitos Humanos inalienveis contido nas declaraes liberal-burguesas e

    na filosofia moral kantiana na qual estas se inspiraram , e a existncia de seres humanos

    sem direito algum que, ao serem privados do direito a ter direitos (ARENDT, 2009, p.

    330), tornavam-se o refugo da terra e, no plano de suas concretas existncias, colocavam

    em xeque a validade e a universalidade dos direitos inerentes a uma descarnada condio

    humana.

    O diagnstico de Arendt, estabelecido sobre a desarticulao entre a vida nua

    natural de homens desprovidos de toda condio de legalidade e sua condio de

    cidadania, s permitia compreender certa natureza humana e metafsica como o elemento

    evanescente do cidado nacional este, sim, nica condio do lao jurdico-poltico capaz

    7 De acordo com Arendt (2009, p. 330), S conseguimos perceber a existncia de um direito a ter direitos (e

    isto significa viver em uma estrutura onde se julgado pelas aes e opinies) e de um direito de pertencer a

    algum tipo de comunidade organizada, quando surgiram milhes de pessoas que haviam perdido esses

    direitos e no podiam recuper-los devido nova situao poltica global.

  • 24

    de assegurar a algum o direito a ter direitos no contexto europeu do entreguerras. Foi

    precisamente essa desarticulao entre homem e cidado que tornou juridicamente

    possvel, ou ao menos indiferente, a prtica de descartabilidade de seres humanos nos

    campos de concentrao e extermnio.

    Diante disso, a reao de uma mtica conscincia universal teria orquestrado, no

    ps-Segunda Guerra, a refundamentao dos direitos humanos sob uma base normativa

    internacional, dotando-os progressivamente de instrumentos de controle, de monitoramento

    e de mecanismos de promoo e proteo, visando a solucionar o paradoxo diagnosticado

    por Arendt por intermdio da superao do modelo westfaliano de normas de mtua

    absteno na dinmica relacional dos Estados-Nao (LAFER, 2008, p. 297). Eis o que

    designa, no perodo do ps-1945, uma nova fase dos Direitos Humanos, que compreende a

    institucionalizao da comunidade internacional e a criao de novos documentos

    internacionais especialmente a partir do advento fundacional da Declarao Universal

    dos Direitos Humanos (ALMEIDA, 2001, p. 13-14)8 , mas tambm desenvolve um

    perodo de crescente positivao internacional, ampliado com a edio dos Pactos

    Internacionais de Direitos Civis e Polticos e de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais,

    em 1966.

    Dezenas de documentos internacionais contemplando mecanismos de efetivao e

    proteo internacional dos Direitos Humanos seguem-se a 1966, consagrando-se, na

    Conferncia de Teer de 1968 (art. 13), a interdependncia e a indivisibilidade entre

    Direitos Civis e Polticos e Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, conquistada aps

    longas e difceis negociaes multilaterais (DOUZINAS, 2007, p. 15). Do ponto de vista

    da construo de um regime jurdico universal para os Direitos Humanos, seu apogeu teria

    sido a criao do Tribunal Penal Internacional como mecanismo supraestatal e permanente

    de tomada e prestao de contas (AMBOS, 2009, p. 67-86).

    A fim de compreender esse percurso histrico, Ruti Teitel (2003, p. 70-71)

    descreve a evoluo das prticas da Justia de Transio e a consequente formulao

    terica de que essas prticas passaro a depender a partir de trs recortes histricos.9

    Embora reconhea que as origens da moderna Justia de Transio remontam Primeira

    Guerra Mundial, apenas aps a Segunda que ela se torna excepcional e atravessa um

    processo de intensa internacionalizao. Uma segunda fase, posterior ao fim da Guerra

    8 Ver, ainda, nesse sentido, (LAFER, 2008, p. 298); e ( PIOVESAN, 2012, p. 175).

    9 Argumento genealgico que, poucos anos mais tarde, reaparecer resumido em (TEITEL, 2005, p. 839-

    840).

  • 25

    Fria, emerge de forma associada s vagas democrticas europeias que tm incio no ano de

    1989, e que persistem at o final do sculo XX. Uma terceira e ltima fase relaciona-se

    com as condies contemporneas de persistncia de conflitos que desenham as fundaes

    de um direito normalizado de violncia. Em seu mbito, Teitel afirma que a Justia de

    Transio que dali emerge j no se filia pura e simplesmente ao internacionalismo ou

    construo dos Estados nacionais, como resultou das duas primeiras fases, mas parece

    mover-se da exceo em direo norma, a fim de tornar-se o paradigma de todo o rule of

    law.

    Se nos ativermos descrio que Ruti Teitel realiza da primeira fase, notaremos

    que o julgamento de Nuremberg lana luzes sobre a gnese conjunta de uma moderna

    Teoria da Justia de Transio e o fenmeno de internacionalizao dos direitos humanos

    no ps-Segunda Guerra. Dessa perspectiva, Nuremberg teria representado o triunfo da

    Justia de Transio nos quadros do Direito Internacional dos Direitos Humanos (TEITEL,

    2003, p. 70) ao mesmo tempo em que testemunhava o surgimento de um novo tipo de

    ordem normativa ps-guerra o que caracterizou, por excelncia, o turning point no

    mbito do Direito Internacional (DOUZINAS, 2007, p. 21-22).

    O julgamento de Nuremberg teria constitudo um evento sem precedentes na

    histria do Ocidente, capaz de unir as duas pontas de uma longa histria dos combates

    polticos em defesa dos Direitos Humanos: de um lado, a tradio da duradoura histria do

    universalismo humanista europeu sumariada na reabilitao do argumento jusnaturalista

    no quadro legal internacional dos direitos humanos e, de outro, a criao de novas

    categorias, como a de crimes contra a humanidade, s quais se chegava pelo

    reconhecimento da fora vinculante do costume internacional dos pases cosidetti

    civilizados, orientados por princpios universalmente reconhecidos pela Humanidade

    argumento costumeiro que foi capaz de suplantar os argumentos situacionistas dos

    defensores dos agentes nazistas, baseados no princpio da ilegitimidade de tribunais de

    exceo, na impossibilidade de justia retroativa, no argumento poltico do justiciamento

    dos perdedores, ou no demasiadamente jurdico argumento do estrito cumprimento do

    dever legal e da adeso das condutas dos agentes violadores de direitos humanos aos

    princpios e s formas de uma legalidade ento vigentes no Estado alemo do III Reich.

    Ao criminalizarem as violaes cometidas pelos Estados nos quadros de um

    esquema universal de direitos, os julgamentos do ps-Segunda Guerra forjaram no apenas

    um precedente excepcional, mas tambm constituram o legado formador da base dos

    modernos direitos humanos (TEITEL, 2000). Como reao crtica s falhas dos

  • 26

    julgamentos nacionais predominantes no ps-Primeira Guerra insuficientes para evitar a

    carnificina que teria lugar algumas dcadas mais tarde , os tribunais de Nuremberg e

    Tquio deslocaram os padres nacionais cannicos em proveito de uma concepo

    internacional de justia.

    Esse deslocamento teve como consequncia a extenso dos efeitos de

    accountability (prestao de contas) na direo da responsabilizao criminal internacional

    do Estado e de seus agentes envolvidos na perpetrao de crimes contra a humanidade,

    alcanando servidores dos mais altos escales do III Reich (TEITEL, 2003, p. 73). No

    entanto, esta viragem da Justia de Transio de fundamentao nacional em direo a uma

    ancoragem internacional no permaneceu imune s crticas de que Nuremberg seria uma

    justificativa para a interveno dos Aliados na Guerra, ou s crticas de que a justia levada

    a efeito por esse julgamento no passaria de uma resposta legal internacional dirigida pela

    lei do conflito.

    Especialmente sensvel aps a polarizao poltica decorrente do contexto da

    Guerra Fria, seu legado desenvolveu-se de modo que a fora de seu precedente contribuiu

    com o incremento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, favorecendo a adoo

    da Conveno para a Preveno e Represso do Crime de Genocdio, bem como para a

    criao do Tribunal Penal Internacional, como uma de suas mais recentes consequncias,

    de modo que o perodo do ps-guerra teria sido o apogeu da crena do direito como um

    instrumento de modernizao do Estado (TEITEL, 2003, p. 74).

    As transies polticas que se verificam a partir dos anos 1980 nos pases do Cone

    Sul, ento governados por juntas militares que se estabeleceram a partir de golpes de

    Estado gerados no seio da polarizao entre capitalistas e comunistas, teriam sido algumas

    das ondas concntricas desencadeadas pelo colapso da antiga Unio Sovitica.

    O que prova o carter paradigmtico do modelo de Justia de Transio de

    Nuremberg, segundo Ruti Teitel (2003, p. 75), que os pases do Cone Sul teriam

    questionado em suas transies polticas em que medida se poderia aderir quele modelo,

    sendo duvidoso o xito de transies baseadas em julgamentos internacionais, optando-se,

    quando muito, por deix-los ao encargo domstico. Assim, a modernizao e a adoo de

    uma forma de Estado de Direito (rule of law) teriam sido equacionadas com a instituio

    de tribunais e a promoo de julgamentos, a fim de possibilitar as transies polticas e a

    consequente legitimao dos regimes sucessores.

    Apesar disso, Teitel (2003, p. 76) no deixa de observar que ainda que os

    julgamentos tenham sido majoritariamente domsticos nas transies ps-Guerra Fria, o

  • 27

    direito internacional no deixou de desempenhar um papel construtivo, fundado no

    profundo e paradigmtico horizonte de sentido instaurado por Nuremberg, que definiu o

    rule of law em termos universalizantes, aplicado agora a contextos locais marcados por

    uma indita tenso entre responsabilizao e anistia, entre justia e reconciliao. O

    critrio de justo passa a depender mais da singularidade do contexto poltico transicional

    que dos valores ideais do modelo de rule of law adotado, tendo por consequncia a

    emergncia de uma srie de concepes de justia imperfeitas e parciais.

    Nos anos 1980, as prticas da Justia de Transio, e sua correspondente teoria,

    assumem uma postura questionadora em face do modelo de Nuremberg, de modo que as

    formas adotadas pelas transies singulares passam a ser intensamente condicionadas pelo

    contexto poltico singular ao qual se aplicam (TEITEL, 2003, p. 78). Os dilemas entre

    justia e verdade, responsabilidade e reconciliao, sero construdos no corpo das

    experincias mais centradas em concepes restaurativas e comunitrias, testemunhando

    uma interao complexa entre dimenses do universal, do global e do local, apesar de

    revelarem uma abordagem mais limitada decorrente dessas tenses e da revivescncia dos

    problemas da legitimidade e da soberania governamental domstica (TEITEL, 2003, p.

    89).

    Ruti Teitel (2003, p. 73) reconhece que a polarizao macropoltica gerada pela

    Guerra Fria implicou a impossibilidade de universalizar o modelo da Justia de Transio

    construdo no ps-Segunda Guerra. No entanto, Teitel limita-se a afirmar que o modelo do

    ps-guerra europeu possua um propsito liberal acentuado e que o internacionalismo

    contemporneo teria sido profundamente transformado pelos ltimos desenvolvimentos da

    globalizao particularidade que iria ao encontro do que descreve como a terceira fase

    genealgica em que, diante de um contexto de fragmentao e persistncia dos conflitos, a

    Justia de Transio deixaria de ser exceo e passaria a constituir a regra instauradora de

    um novo paradigma do rule of law (TEITEL, 2005, p. 840). Nesse sentido, a jurisprudncia

    internacional atestaria a expanso e a normalizao do discurso humanitrio, de modo que

    as fontes de legitimidade disponveis implicariam um continuum entre o local e o

    transnacional.

    Recentemente, o jurista grego Costas Douzinas (2007, p. 29) demonstrou como a

    retrica dos direitos humanos pde ser generalizada e entregue a um uso paradoxal,

    especialmente a partir dos anos quarenta do sculo XX. No seio das batalhas ideolgicas

    que pautaram os anos de Guerra Fria, os direitos humanos encontrar-se-iam subordinados

    s prioridades polticas anticomunistas dos pases de capitalismo desenvolvido, as quais

  • 28

    teriam terminado por submeter qualquer potencial emancipatrio encerrado pelos

    universais do Ocidente.

    A partir de 1989, o triunfo aparentemente definitivo dos valores humanitrios no

    teria impedido uma recaptura constante da retrica dos direitos humanos no interior do

    eufemstico vocabulrio blico das intervenes humanitrias lideradas pelos Estados

    Unidos da Amrica, tampouco teria impedido o desenvolvimento da poltica estadunidense

    de ativo envolvimento em questes domsticas, segundo Douzinas.

    No interior do mesmo bloco histrico, Antonio Negri e Michael Hardt descrevem o

    direito de interveno baseado em uma moralidade que se representa como universal no

    corao do que nomearam processo de constituio do Imprio, anexando uma cincia

    poltica fundada no bellum justum como um de seus nefastos, porm eficazes, instrumentos

    operatrios.

    A nova ordem global no se caracterizaria tanto pela hegemonia de um Estado,

    mas, antes, pela difuso generalizada, em escala total, de uma lgica de

    governamentalidade imanente, flexvel e modulvel, capaz de operar como dispositivo de

    biopoder em um contexto transnacional coalescente com um permanente estado de

    emergncia e exceo. No interior dessa lgica, a retrica dos direitos humanos seria, a

    exemplo do que afirma Costas Douzinas, capturada sob a forma do apelo a valores

    essenciais de justia, de modo que o direito de polcia legitimado por valores

    universais (NEGRI; HARDT, 2006, p. 36).

    Tanto a genealogia proposta por Teitel, como as crticas de Negri, Hardt e

    Douzinas, auxiliam a compreender que se de um lado internacionalizao dos direitos

    humanos e das formas de Justia de Transio so dois fenmenos coalescentes, de outro

    seu desenvolvimento histrico-poltico essencialmente ambguo e no implica um

    progresso linear, unidimensional, redentor ou triunfante. Costas Douzinas (2007, p. 32-33)

    parece apreend-lo apropriadamente ao afirmar que os direitos humanos tornam-se a um s

    tempo maiores e menores. Maiores ao passo em que se tornam imprescindveis, e sua

    retrica admite os mais variados usos estratgicos; menores ao passo em que, nos pases

    objeto de intervenes humanitrias como Afeganisto e Iraque, por exemplo , o uso

    paradoxal de sua retrica impe um modelo empobrecido de democracia que tornado

    mais importante que a efetiva proteo aos direitos humanos.

    Essa lgica de submisso dos direitos humanos a usos estratgicos nos campos

    poltico e econmico teria, em larga medida, determinado o processo continental de

    esmagamento das frgeis democracias nacionais latino-americanas, desencadeado a partir

  • 29

    do golpe de Estado de 1964, no Brasil, alastrando-se sistemicamente nos anos seguintes

    por diversos pases da Amrica Latina, como Mxico (1968), Chile e Uruguai (1973), e

    Argentina (1976).

    As prticas desenvolvimentistas dos anos cinquenta e sessenta no apenas no sero

    desmontadas, como sero adaptadas ao discurso nacionalista, testemunhando a faceta

    conservadora do crescimento econmico que, ora assumindo a alternativa da antecipao

    neoliberal visvel no modelo argentino , ora tornando o Estado o elemento central de

    interveno poltico-econmica na construo de alianas com o capital multinacional

    mas conservando a proteo do mercado interno, como nos modelos brasileiro e mexicano

    , acabar por conduzir os pases latino-americanos ao endividamento externo, sem que o

    crescimento econmico tivesse significado outra coisa que no o aprofundamento da

    pobreza (NEGRI; COCCO, 2005, p. 104-107).

    A funo das ditaduras, segundo Idelber Avelar (2003, p. 262-263) foi a

    instalao da etapa ps-moderna do capital em seu sentido jamesoniano, em que o capital

    transnacional torna-se global e parece colonizar a totalidade do horizonte epocal, tornando

    problemtica a prpria compreenso do presente. Na frmula do escritor uruguaio Eduardo

    Galeano, que Avelar recorda para caracterizar a funo histrica das ditaduras, torturou-se

    o povo para que os preos pudessem ser livres.

    Apesar de contraindicar qualquer messianismo ou triunfalismo intrnsecos

    afirmao histrica dos direitos humanos, a verificao desses paradoxos e duplos em

    nenhum momento advogar a descartabilidade dos direitos humanos. Pelo contrrio, seu

    carter antimessinico designa, antes, a singularidade das lutas por direitos como um

    terreno imanente de combate, de reivindicao e de produo de direitos. Douzinas

    reconhece, nesse sentido, que os direitos humanos constituem ainda certo resduo

    transcendental, afinal no h, hoje, nenhuma outra linguagem disposio dos pobres, dos

    oprimidos e dos torturados seno a da reivindicao de direitos.

    Afirmar, como Douzinas (2007, p. 33), Human rights have only paradoxes to

    offer no testemunha nenhum niilismo poltico ou vazio programtico fundamentais.

    Maiores e menores ao mesmo tempo, os direitos humanos constituem o terreno a todo

    instante em disputa, ainda que nos faam experimentar a mesma estranheza que

    experimentava a Alice, de Lewis Caroll, que se sente crescer e diminuir: os direitos

    humanos constituem um infinito jogo de paradoxos e de duplos.

  • 30

    CAPTULO 2 DIREITO-ENTRE: O JURDICO E AS INSTITUIES NO

    SEIO DAS TRANSIES

    1 DIREITO, INSTITUIES E TRANSIO

    Afirmou-se que o duplo e o paradoxo parecem ser as figuras constitutivas de todo o

    pensamento sobre os direitos humanos, mas no seria menos vlido dizer o mesmo sobre a

    Teoria da Justia de Transio. Um consenso terico que atravessa pela quase totalidade de

    sua bibliografia recente aquele segundo o qual a Justia de Transio deixa-se penetrar e

    constituir por sries de duplos, implicando, ao mesmo tempo, continuidade e

    descontinuidade (TEITEL, 2000, p. 30), um olhar para o passado e para o futuro (TEITEL,

    2000, p. 113; TEITEL, 2010, p. 36), estabilidade e instabilidade poltico-institucionais.

    no seio dessas continuidades-rupturas influenciadas pelos singulares arranjos de foras

    que, rejeitando ecleticamente as perspectivas realistas e idealistas, Teitel (2000, p. 06)

    afirma que the conception of justice in periods of political change is extraordinary and

    constructivist: It is alternately constituted by, and constitutive of, the transition.

    Tentando super-la, Teitel interpreta a dicotomia entre realistas e idealistas no

    terreno da Justia de Transio como o efeito de superfcie de uma antinomia mais

    profunda verificada entre poltica e direito. Enquanto os idealistas apostariam na

    autonomia do direito e em seu papel determinante sobre a poltica, tericos realistas

    compreenderiam o direito nos perodos ps-conflituais como uma determinao decorrente

    dos arranjos do campo de foras polticas. Ambas as perspectivas, no entanto, teriam

    fracassado em descrever o papel constitutivo que o direito assume em sociedades que

    atravessam perodos de radical transformao poltica. Embora haja sensveis constries

    provenientes de seus quadros legais, no h uma simples e transcendente hegemonia de

    regras universais de direitos humanos, tampouco uma pura determinao das instituies e

    do direito pela poltica.

    Se Teitel opta por descrever o papel construtivista que o direito desempenha nos

    contextos de transio com o intuito de assinalar que as instituies so ao mesmo tempo

    objeto e causa de transformaes operadas no seio de uma singular e contingente dinmica

    transicional. No haveria, portanto, modelo universal de accountability capaz de descrever

    as razes suficientes para converter um Estado autoritrio e violento em Estado

    democrtico e de Direito.

  • 31

    O direito constitutivo das instituies ao passo em que medeia a preservao de

    certo nvel de continuidade formal e em que incorpora, ao mesmo tempo, uma genuna

    instncia de descontinuidade transformativa (TEITEL, 2000, p. 220; GREADY, 2011, p.

    151). Sua funo a de cesura e a de margem; sua qualidade, liminar: trata-se de um

    direito que est entre dois regimes, mais prximo de um poder constituinte que, no entanto,

    uma vez despojado de seus caracteres mais clssicos, no onipotente, tampouco

    incondicionado, uma vez que se estrutura sobre os quadros legais transnacionais dos

    Direitos Humanos, da Justia de Transio e das variaes que se verificam nos arranjos de

    poder locais.

    O relevante papel desempenhado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos,

    nesse aspecto, deriva de sua capacidade de mediar com sucesso correntes tericas

    derivadas do juspositivismo e do jusnaturalismo, superando a relao convencional entre

    direito e poltica ou, como quisera Paul Gready (2011, p. 10), balanceando-os. Embora seja

    possvel transio operar uma alterao da regra de reconhecimento, Teitel afirma que

    mais comum haver uma reinterpretao racionalizadora das bases normativas existentes,

    testemunhando uma forma especial de continuidade-ruptura.

    Como resultado do processo de internacionalizao dos Direitos Humanos,

    afetaram-se igualmente os quadros da doutrina e das prticas da Justia de Transio.10

    Consequentemente, a Justia de Transio enriquece-se passando a compreender a

    participao de diversos nveis que concorrem para sua produo institucional, como

    instituies supranacionais, Estados-Nao, organismos e indivduos (ELSTER, 2006, p.

    114).

    As instituies supranacionais compreendem os Tribunais Internacionais, a

    includas as Cortes Internacionais de Direitos Humanos que, sem representar sucessores ou

    vencedores, atuam em nome da prpria comunidade internacional. A paulatina criao de

    rgos e mecanismos de controle internacionais com abrangncia universal, como o

    Tribunal Penal Internacional, ou regional, como os Tribunais Europeus, a Corte

    Interamericana de Direitos Humanos, a Comisso Interamericana de Direitos Humanos

    etc., determinaram, no ltimo decnio, significativos influxos da internacionalizao dos

    Direitos Humanos sobre o quadro legal da Justia de Transio (ZYL, 2009a, p. 32-33).

    Segundo Paul Van Zyl (2009a, p. 33), esse horizonte de compreenso e influncia

    implica a vinculao dos Estados a normas internacionais claras que determinam

    10

    Cf., supra, Captulo 1, A gnese da Teoria da Justia de Transio e o Direito Internacional dos Direitos

    Humanos.

  • 32

    proibies universais, especialmente com a ratificao de mais de cem pases da criao do

    Tribunal Penal Internacional. No que concerne Justia de Transio, mais

    especificamente, no ano 2000, o Secretrio Geral da ONU apresentou relatrio no qual se

    consagrava, com precedncia, o foco das Naes Unidas sobre as questes da justia

    transicional.

    Kai Ambos (2009, p. 29-30) compreende o prprio desenvolvimento do regime

    legal da Justia de Transio nos quadros do Direito Internacional dos Direitos Humanos

    na medida em que esse regime normativo estrutura-se em correlao com a reviso e sua

    reafirmao histrica, a partir de 1948, em convenes que tinham por objeto o Genocdio,

    as Convenes de Genebra para melhoria da sorte dos exrcitos em campanha (I), para

    melhoria da sorte dos feridos, enfermos e nufragos das foras armadas no mar (II),

    relativa ao tratamento de prisioneiros de guerra (III), e proteo de civis em tempos de

    guerra (IV) em 1949, mas tambm em conexo com a Conveno Internacional contra a

    Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruis, Desumanos e Degradantes, aprovada pela

    Assembleia Geral da Organizao das Naes Unidas em de 10 de dezembro de 1984.

    Em segundo plano, do ponto de vista regional, observa-se o fortalecimento dos

    regimes democrticos na Amrica Latina, sia e frica, com a intensificao do

    surgimento e da participao de organizaes da sociedade civil no combate a graves

    violaes de direitos humanos. Por essa razo, Javier Ciurlizza (2009a, p. 25) constata a

    especial influncia do sistema interamericano de proteo e promoo de direitos humanos

    sobre a escala internacional da definio dos quadros normativos da Justia de Transio,

    reconhecendo que o sistema interamericano de direitos humanos desenvolveu ampla

    jurisprudncia relacionada s obrigaes internacionais dos Estados.

    Kai Ambos (2009, p. 34-36), de seu turno, cita extensa jurisprudncia de casos da

    Corte Interamericana de Direitos Humanos a fim de obter o perfil normativo internacional

    da Justia de Transio, envolvendo, entre os contedos de seu conceito de justia, o dever

    dos Estados de punir graves violaes de direitos humanos especialmente os objetos de

    proteo dos diplomas internacionais citados , efetivar o direito verdade das vtimas,

    isto , o esclarecimento de fatos ilegais e as responsabilidades correspondentes,

    compreendendo no apenas o direito coletivo que assegura sociedade o acesso

    informao essencial ao funcionamento de sistemas democrticos, mas tambm o direito

    privado dos familiares das vtimas que adquire uma forma compensatria, especialmente

    nos casos em que leis de anistia foram adotadas (AMBOS, 2009, p. 34-35).

  • 33

    Ainda, enovelam-se aos direitos das vtimas, tutelados pela quadratura internacional

    da Justia de Transio, o direito justia consubstanciado em formas de proteo

    judicial tanto pelo acesso ao sistema legal do Estado violador (o qual, de acordo com os

    direitos humanos, tem a obrigao de investigar, processar e sancionar o responsvel) ou

    pela via de um frum pblico alternativo no qual vtimas podem confrontar e desafiar os

    violadores (AMBOS, 2009, p. 36) e o direito reparao, que compreende indenizao

    integral, compensao, reabilitao, fornecimento de garantias de no repetio e outros

    mecanismos reparatrios, como o reconhecimento do estatuto de vtima e o

    restabelecimento de seus direitos (AMBOS, 2009, p. 37-39).

    Ao lado disso, Kai Ambos descreve alternativas admissveis persecuo criminal

    dos responsveis por graves violaes ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, que

    compreendem Comisses de Verdade e Reconciliao (AMBOS, 2009, p. 40-47),

    saneamentos e purgaes administrativas que visem a excluir a manuteno de agentes

    responsveis por violaes de direitos humanos em cargos e funes vinculados ao aparato

    burocrtico do Estado, bem como a impedir seu retorno; ainda, Ambos inclui reformas

    institucionais, a fim de remover os dispositivos autoritrios que guarneam as instituies

    em transio, processos de desarmamento, desmobilizao e reintegrao social, e o uso de

    formas tradicionais e locais, geralmente no-ocidentais, de justia e reconciliao

    (AMBOS, 2009, p. 48).

    Na esteira de Ambos, Paul Van Zyl (2009a, p. 34-39), por sua vez, sumaria cinco

    elementos que estruturam a Justia de Transio: justia (atento a suas funes penais, mas

    tambm simblicas e afetivas), busca da verdade, reparao s vtimas, reformas

    institucionais e reconciliao.

    Uma recente crtica endereada hegemonia terica das dimenses sem dvida

    relevantes da justia legal e da prestao de contas pelos Estados violadores, encontrou

    na proposio de ampliao do contedo cognitivo engendrado na disciplina internacional

    da Justia de Transio uma interessante alternativa analtica. Baseando-se em uma

    abordagem sincrtica que pretende reconciliar justias restaurativa e distributiva, Wendy

    Lambourne (2009, p. 37-47) prope uma Justia Transformativa vocacionada a religar

    passado e futuro de maneira duradoura por meio de mecanismos e processos localmente

    relevantes, capazes de promover prestao de contas, verdade e memria, justia

    socioeconmica e justia poltica, integrando-se a um processo compreensivo de

    construo da paz.

  • 34

    David Bloomfield (2005, p. 45-46) e Luc Huyse (2005, p. 164-165) tambm

    indicam a centralidade da interferncia da disciplina normativa internacional, e de

    organismos da comunidade internacional, nos processos de reconciliao. Bloomfield

    compreende que a comunidade internacional pode colaborar com a construo de

    processos de reconciliao aps eventos conflitivos como fonte potencial de informaes,

    experincia e educao, mas tambm com o lento, porm inexorvel, processo de

    desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, capaz de sustentar a

    forma de uma ordem jurdica internacional.

    Huyse evidencia que organismos internacionais podem intervir como aparatos

    auxiliares da transio em contextos ps-conflituais, especialmente pelo uso de relatrios,

    dentre outros mecanismos de monitoramento internacionais. A Organizao das Naes

    Unidas, organismos internacionais no-governamentais, como o International Centre of

    Transitional Justice (ICTJ), o Centre for the Study of Violence and Reconciliation (CSVR),

    o African Transitional Justice Research Network (ATJRN) e o Transitional Justice

    Institute (TJI) podem colaborar com a operacionalidade terica ou tcnica dos processos de

    transio em seus contextos singulares (BRITO, 2009a, p. 56-57).

    Ainda sob o ponto de vista das interaes entre o Direito Internacional dos Direitos

    Humanos e seus principais organismos, possvel entrever a amplitude da tese de Ruti

    Teitel sobre a constitutividade do direito de transio. Sendo um direito-entre regimes,

    para alm do princpio territorialista de juridicidade dos Estados-Nao (SANTOS, 2009,

    p. 474-476), o direito transicional permite posicionar o papel das instituies na

    consecuo da transio.

    As instituies devem tornar-se objeto de uma mutao profunda, que compreende

    reformas institucionais, purgas e responsabilizao de agentes que cometeram graves

    violaes de direitos humanos, bem como sua consequente remoo de cargos pblicos,

    adotando-se programas de depurao e saneamento administrativo (ZYL, 2009a, p. 38;

    ELSTER, 2006, p. 113). Tal mutao constituiria uma resposta persistncia de estruturas

    e prticas burocrticas autoritrias, o que exige que as instituies tambm sejam

    requisitadas como mediadoras da concretizao das demais tarefas da Justia de Transio

    que, como o prprio Zyl (2009a, p. 54) adverte, torna necessrio engendrar um amplo

    processo de consulta local, uma vez que se est a operar no terreno da singularidade

    histrica e cultural ainda que se reconheam certas vinculaes normativas como

    universais.

  • 35

    Se Paul Van Zyl estiver correto ao descrever a justia, a verdade, a reparao, a

    reconciliao e as reformas institucionais como estruturas mais gerais, mas nem por isso

    ideais, da Justia de Transio, as ltimas aparecem como um campo privilegiado de

    disputas polticas, uma vez que constituem no apenas o objeto de uma transformao,

    mas, principalmente, so exigidas como as instncias por meios das quais dever-se-

    operar uma tal transformao transicional.

    Isso denota a centralidade dos aparelhos de Estado encarregados da identificao,

    processamento e responsabilizao de agentes pblicos que cometeram graves violaes de

    direitos humanos, da institucionalizao de Comisses de Verdade e Reconciliao e de

    polticas reparatrias destinadas aos perseguidos polticos e resistentes de um perodo de

    exceo. As instituies incorporam, a um s tempo, uma instncia produzida e produtora

    de justia, responsabilizao, incluso poltica, bem como de uma narrativa sobre o

    passado. Mesmo porque esses so propsitos da Justia de Transio: justia, incluso

    poltica, reconciliao e paz nunca podem ser admitidas como a priori histrico de

    contextos ps-conflituais, pois no defluem de tais contextos naturalmente, mas como

    resultados de um esforo comum de criao de direitos e de modificaes institucionais.

    Registram-se, ainda, organismos no-estatais que tambm concorrem em algum

    nvel para a concretizao da Justia de Transio, como as organizaes sociais, partidos

    polticos, Igrejas, empresas, entidades sindicais etc. no raras vezes tornados alvos

    polticos do regime autoritrio precedente e de seus aparatos de perseguio e censura. Por

    sua vez, a justia privada assume a forma dos justiciamentos individuais e suas execues

    extralegais, podendo tomar a forma da humilhao deliberada e pblica: En America

    Latina, recorda Elster (2006, p. 119), los oficiales amnistiados que son conocidos por

    haber participado en torturas o desapariciones han sidos condenados a un ostracismo social

    de carcter informal. Um exemplar contemporneo, embora constitua uma forma

    geralmente no-violenta e portadora de um acentuado carter poltico de execrao

    pblica, so as prticas de escrachos inventados na Argentina (BRITO, GONZLEZ-

    ENRQUEZ e AGUILAR, 2001, p. 157), e recentemente incorporadas como esculachos

    pelos jovens ativistas polticos do Levante Popular da Juventude, no Brasil. Nesse caso, a

    importncia das aes legais partam de instituies nacionais ou supranacionais ,

    segundo Elster, deriva de uma necessidade de antecipar-se vingana privada ou de

    bloquear sua emergncia.

    Abro, Payne e Torelly (2011, p. 28) no cessam de destacar que o caso brasileiro

    paradigmtico, uma vez que suas prticas transicionais estatalistas desafiam a autoridade

  • 36

    da base normativa internacional dos Direitos Humanos. Nesse particular, a deciso da

    Corte de San Jos da Costa Rica imps uma srie de obrigaes ao Estado brasileiro em

    razo do Caso Araguaia, sem que, at o presente, se tenha dado integral cumprimento a ela.

    Nesse sentido, Abro, Payne e Torelly (2011, p. 24) afirmaram que [...]o caso brasileiro

    constitui-se um desafio potencial norma global da responsabilizao individual,

    sugerindo que a insurgncia dessa norma no mudou necessariamente o comportamento

    dos Estados, donde o cariz paradigmtico da experincia anistiadora brasileira que, ao

    mesmo tempo em que desafia, demonstra tambm do ponto de vista prtico o vnculo

    gentico que as doutrinas da Justia de Transio e o Direito Internacional dos Direitos

    Humanos entretm.

    Ao mesmo tempo em que as instituies encerram uma possibilidade dinmica de

    alterao estrutural, lgica e semntica da qual constituem um dos cernes privilegiados, o

    direito de transio, como um direito entre, tambm deve compreend-las como campo no

    qual podem persistir e, no raro, reproduzirem-se formas autoritrias de imaginao

    poltico-social.

    Se, como quisera Clifford Geertz (1983, p. 232), o direito constitui um modo de

    imaginao social que vem acompanhado de um conjunto de atitudes prticas sobre o

    gerenciamento de disputas que essa prpria forma de ver o mundo impe aos que a ela se

    apegam (Idem, ibidem, p. 173), no seio das transies polticas, e dos cenrios ps-

    conflituais em que direito e instituies interpenetram-se recproca e constitutivamente

    que se pode verificar de que modo o direito constitui produto de hibridizaes culturais.

    Nesses contextos, o direito e as instituies assumem posies aparentemente paradoxais

    porque se encontram no ponto de contato intenso em que se produz essa mestiagem e,

    com mais razo, porque seus elementos de continuidade e de ruptura podem indeterminar-

    se temporariamente (TEITEL, 2000, p. 17-18). Eis o que revelaria o carter intimamente

    liminar de todas as transies, bem como das estruturas jurdicas e conceituais que as

    secundam.

    Vistos sob a perspectiva da continuidade, o direito e as instituies podem tanto

    estar ao lado da construo de uma desejvel estabilidade poltico-institucional, como

    engendrar uma negativa reproduo de determinado imaginrio social, poltico e cultural

    autoritrio. sempre possvel imaginar os desenhos institucionais existentes, e o plexo

    normativo e prtico que lhes serve de suporte, pendularem e indeterminarem-se entre os

    polos da manuteno de certo equilbrio institucional necessrio que suporta graus

    variveis conforme a singularidade do jogo a que esto lanadas as dinmicas de poder e

  • 37

    a conservao de uma forma de imaginao social capaz de perpetuar legados

    antidemocrticos.

    2 O QUE UM PASSADO TEM DE INSUPORTVEL: NOTAS SOBRE A

    CONTINUIDADE DO PASSADO NO PRESENTE A PARTIR DO CASO BRASILEIRO

    Consideremos mais de perto as razes concretas pelas quais Paulo Abro e Marcelo

    Torelly (2011, p. 24) diagnosticaram que a questo da anistia e da responsabilizao, no

    Brasil, adquiriram uma dimenso paradigmtica na medida em que o caso brasileiro

    constitui um desafio potencial norma global da responsabilizao individual. Em

    sentido anlogo, recuperemos brevemente os dilemas que envolvem a transio brasileira

    para colocar prova a realidade prtica e poltica da paradoxal continuidade do passado no

    presente de que a Teoria da Justia de Transio limita-se, como vamos, a tratar

    abstratamente, e apesar de prever aberturas para elementos concretos provenientes dos

    singulares arranjos de poder.

    Em seu interior, pode-se constatar sem dificuldades a atualidade da pergunta

    proposta por Vladimir Safatle e Edson Teles (2010) O que resta da ditadura? , e do

    grito efectista e ao mesmo tempo parresiasta do psicanalista Tales AbSaber, que

    respondera questo afirmando que da ditadura restava tudo, exceto a ditadura; ou do

    gesto de Paulo Eduardo Arantes (2010, p. 205) que no hesitou em afirmar 1964 como o

    ano que no terminou. Essas foram algumas das ltimas vagas genealgicas

    desencadeadas pelo projeto Desarquivando a Ditadura, de Ceclia MacDowell Santos,

    Edson Teles e Janana de Almeida Teles (2009, p. 13-14), que se fundava na cartografia do

    legado autoritrio e na contribuio crtica constituio da memria e da justia no Brasil

    contemporneo. Esses gestos, verdadeiramente muito prximos daquele arendtiano, que se

    perguntava sobre o que estamos fazendo de ns mesmos (ARENDT, 2010, p. 06),

    permite entrever a dupla pertena das instituies ao passado e ao futuro no interior de uma

    interrogao que no pode ocupar outro limiar seno o da mais absoluta atualidade.

    Toda pesquisa genealgica no implica fazer do presente, e dos instrumentos

    democrticos que passam a exigir consolidao, especialmente aps 1988, tabula rasa do

    passado, de modo a lanar o presente e o passado a uma completa indiferena. Tais

    cartografias da memria assumem a tarefa de tornar visveis as formas presentes por meio

    das quais um legado antidemocrtico emerge, reproduz-se e se dissimula cotidianamente.

  • 38

    A presena de um legado autoritrio sem a sua representao s