memoria e fotografia em busca do tempo perdido

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  • 8/18/2019 Memoria e Fotografia Em Busca Do Tempo Perdido

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    Memória e fotografia Em busca do tempo perdido

    Juliana Ferreira Bernardo

    [email protected]

    Bacharel em Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) pela Universidade de São Paulo – USPMestranda em Artes pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP

    Palavras-chave: fotografia, Proust, memória, colagem

    Resumo

    O presente artigo aborda a constituição narrativa da obra Em busca do tempo perdido, de MarcelProust. Nesta análise será retratado os aspecto da memória como recursos de colagem narrativa.Esta pesquisa se propõe também a verificar as implicações da fotografia nas características daescrita proustiana no contexto do início do século XX.

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]

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    A obra-prima de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido , foi escrita entre 1908 e 1922e é composta por sete volumes, dentre os quais os três últimos publicados postumamente. Oromance acontece em um período que inclui a primeira grande guerra e talvez esta seja uma dasinfluências na maneira fragmentada com que a narrativa foi constituída.

    Muitos são os personagens que ganham vida no decorrer da trama. No entanto, além dosacontecimentos, personagens e retrato da sociedade francesa do final do século XIX, o queimporta de fato ao autor é a investigação do ser humano, ou seja, a dissecação psicológica domesmo. Assim, trata-se de uma obra repleta de teorias psicológicas, filosóficas e até mesmoartísticas.

    Proust preocupa-se sobretudo com o Tempo e a Memória. É retratado o passar do tempoque tudo modifica, que transforma paixões, ideias, opiniões, gostos e até mesmo os próprioscorpos, por meio do envelhecimento. É este fluir ininterrupto que faz com que tudo perca o sentidoe causa a tentativa de contê-lo, numa busca incessante, como o próprio título sugere, já que é abusca por algo perdido.

    Esse transcorrer do tempo parece angustiar o narrador, apresentado como um grandevoyer . Em busca do tempo perdido é, em grande parte, uma obra auto-biográfica. É o próprioProust, de saúde frágil, isolado fisicamente do mundo exterior, o protagonista Marcel. Asexualidade é trabalhada nos conflitos colocados no decorrer do texto por meio dos nomesdúbios, de uma homossexualidade (tanto feminina quanto masculina) citada explicitamente ounão.

    É nesta tentativa de conter o tempo que ganha relevância a Memória. Não se trata de umamemória racionalizada, produto da inteligência, pois esta memória seria capaz apenas de arquivardados, fatos, números, datas, não as sensações vividas. Tais sensações estariam no que Proustchamou memória involuntária , ou seja, aquela que está latente em nós e que um acontecimentoexterior pode trazer à consciência. Isto se assemelha ao que António Damásio 1

    Grande parte das nossas decisões é tomada de maneira mais ou menos

    automática e inconsciente. Esse processo é guiado pelo valor que se dá àsdiversas experiências do passado. Por exemplo, se eu conheço uma pessoa quedesperta boas emoções em mim, toda vez que eu a encontrar vou reviver umamemória que se divide em dois aspectos: o cognitivo (saber quem é a pessoa) e oemocional (é alguém de quem se gosta). Tais aspectos guiam a forma comoconduzimos a relação com os outros. Não há memória ou tomadas de decisãoneutras, sem emoção. (2010, p.82)

    , um dosneurocientistas mais respeitados da atualidade afirma ao explicar que não existe memória sememoção:

    É dessa forma composta a narrativa de Proust. O narrador adulto, ao saborear uma

    madeleine (uma espécie de biscoito doce) recorda-se dos tempos de infância, em que passava as

    1 SCHELP, Diogo. A conquista da memória.Revista Veja 2147 (82), 2010

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    férias na pequena cidade de Combray. O desenrolar da história se dá por meio da colagemdessas memórias num procedimento semelhante ao que António Damásio (2010, p.82) considera aforma de criação artística:“um grande artista ou inventor é alguém que consegue usar a emoçãopara manipular essas imagens visuais, auditivas, táteis ou olfativas de forma extraordinariamenterica.”

    Os episódios evocados pelas sensações do narrador vão compondo sua trajetória demaneira fragmentada e não linear, na tentativa de recuperação do Tempo Perdido. Fernando Py,tradutor da terceira edição da obra completa em português pela editora Ediouro, explica noprefácio que este “tempo não existe mais em nós, mas continua a viver oculto num sabor, numaflor, numa árvore, num calçamento irregular ou nas torres de uma igreja, etc.” E completa dizendoque a repetição de tais episódios é fundamental para estabelecer as relações existentes entresensações e lembranças. E, acima de tudo, tais momentos de reencontro do Tempo dão ao artistao sentimento de haver conquistado a eternidade.

    Ecléa Bosi, no livro O tempo vivo da memória, faz uma outra distinção da memória.Segundo ela, o corpo guardaria esquemas de comportamento de que se vale muitas vezesautomaticamente na sua ação sobre as coisas: trata-se da memória-hábito , memória dosmecanismos motores. Por outro lado, haveria lembranças independentes de quaisquer hábitos:lembranças isoladas, singulares, que constituiriam autênticas ressurreições do passado. Edisserta ainda a respeito do conceito de memória desenvolvido por Bergson e sua relação com opensamento do autor de Em busca do tempo perdido :

    Bergson trouxe novas luzes para os fenômenos surpreendentes da memóriaindividual: a lembrança, a imagem que aflora e que torna vivo um rosto queperdemos anos atrás, uma voz ouvida na infância que retorna obsessiva e fiel aseu próprio timbre... Essa evocação proustiana que os relatos autobiográficosmostram como atividade psíquica dotada de força e significado. (2003, p.41)

    Uma das formas para que estas lembranças venham à tona é a fotografia. Para Proust, afotografia deflagrava a necessidade da narrativa, assim como era aliada da memória, colaborandocom a imaginação. Proust afirma que sua memória era fraca devido ao uso incessante demedicamentos. Assim, segundo ele, a fotografia seria ferramenta utilizada no reforço destamemória.

    Sobre a importância da imagem para a formação da narrativa, Alfredo Bosi (apud BOSI,Ecléa, 2003, p. 43) afirma:

    Uma conquista da linguagem narrativa e da ficção é a superação de um ponto devista fixo, sempre igual a si mesmo, por um fluxo interior (stream ofconsciousness ), procedimento que tem sua gênese na idéia bergsoniana doespírito como contínuo vir-a-ser . Também a recuperação que Marcel Proust faz dotempo em A Procura do Tempo Perdido , recebeu da doutrina de Bergson um

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    alento teórico no que diz respeito aos trabalhos da memória. A memória resgata otempo mediante as imagens. Bergson cunhou a distinção entre memória-imageme memória hábito

    Para Proust, a fotografia estava associada também à distração. Colecionar e exibir as

    fotografias que possuía era um passatempo conhecido por seus familiares e amigos. O autorchegava a pedir que lhe enviassem fotografias e álbuns a pessoas recém conhecidas.

    Agradava a Proust a troca de fotografias e este era um costume que manifestou-se já emsua adolescência, como forma de fixar a lembrança de um esquecido, conforme nos apontaBrassaï em seu livro Proust e a fotografia .

    Sua paixão pela fotografia levou à constituição de uma coleção preciosa, o que colaboroupara a composição de seus personagens, cada um deles nascido de uma colagem de modelos.

    Todos os protagonistas da Recherche são múltiplos, e o relato de Proust não deixade ser, entre outras coisas, a história da metamorfose deles. Sob a mesmaidentidade, existem diversas Gilbertes, numerosos Saint-Loups, múltiplos Morels,Charlus e Swanns, uma infinidade de Odettes e Albertines. É aliás, nesta últimaque Proust faz culminar a multiplicidade das aparências. Os milhares de páginasda Recherche não serão suficientes para descrever todas as mudanças físicas epsicológicas de seus personagens. (BASSAÏ, 2005, p. 142)

    As fotografias eram também utilizadas na descrição detalhada dos cenários da obra. Eleacreditava que a fotografia permitia enxergar aquilo que se perdia ao olhar um conjuntoarquitetônico, por exemplo, ou ampliava o alcance daquilo que estava distante a olho nu.

    Esta visão assemelha-se com o pensamento de Walter Benjamin de que a fotografiapermite atingir realidades ignoradas pela visão natural, tanto dando ênfase a uma realidadequanto permitindo sua recriação.

    Brassaï traça um paralelo sobre a escrita de Marcel Proust e a perspectiva de umfotógrafo, afirmando que aquele era um observador sempre extremamente móvel, em busca de

    perspectivas insólitas e ângulos de visão particulares.

    Críticos foram capazes de deduzir que se tratava de maneiras de cineasta. Estãoenganados. Nada mais distante de seu espírito que filmar, isto é, seguir aincessante translação das imagens, seu deslizamento umas sobre as outras. Oescoar do tempo em si mesmo não lhe interessa. (...)Homem da descontinuidade,Proust é um fotógrafo, suas descrições são sempre imagens fixas, instantâneas,únicas capazes de tornar perceptíveis a mudança ocorrida, o tempo escoado, oenvelhecimento. (2005, p. 120)

    No que concerne as diferenças de uma fotografia para uma imagem em movimento, Susan

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    Sontag (2004, p.28) alega que “fotos podem ser mais memoráveis do que imagens em movimentoporque são uma nítida fatia de tempo, e não um fluxo.”

    Talvez advenha daí a dificuldade da adaptação da obra de Marcel Proust para o cinema.Ao longo das últimas décadas existiram algumas tentativas de transpor a obra de Proust para oaudiovisual, dentre as quais estão as de Luchino Visconti, Joseph Losey, Peter Brook e VolkerShlöndorff (Um amor de Swann ). Muitas dificuldades foram encontradas para esta releitura, vistoque, como dito anteriormente, o mais relevante da obra não é sua narrativa.

    A lém disso, a extensão e complexidade da obra dificultam sua síntese para a apreensão

    audiovisual. Apenas em 1999 foi feita aquela que é considerada sua melhor transposiçãointersemiótica, O tempo redescoberto . O diretor chileno Raoul Ruiz reconstruiu a história por meioda colagem de imagens mantendo, assim, uma de suas principais características, a não-linearidade.

    Observa-se ainda a liberdade criativa ao não obedecer a sequência em que os fatos sãoapresentados no livro. Por exemplo: enquanto no livro a infância do narrador é apresentada logonos primeiros capítulos; no filme, ela é exposta nas cenas finais, em que Marcel suplica pelo beijode sua mãe antes de dormir em um cenário que assemelha-se a uma caverna inóspita.

    Outro fato é que no filme o caráter auto-biográfico da obra é explícito. Proust é interpretadoem seus últimos anos de vida, doente. Ele delira ao rever fotografias antigas. Interpostas a estascenas são apresentados os fragmentos da narrativa, misturando realidade e ficção.

    É interessante notar que o diretor não utilizou apenas a técnica flashback , bastante

    recorrente ao se retratar o trabalho com a memória. Raoul Ruiz vai além do óbvio, utiliza arepetição de rituais para marcar a passagem de tempo.

    Uma das cenas que deixa esta técnica evidente é a do baile em que a alta sociedadereunida mantém os mesmos assuntos, trejeitos, trajes e costumes ao longo do tempo. O narradorolha para uma das senhoras trajada em vestido verde brilhante e a vê jovem. Segundos depois,olha-a novamente e a vê envelhecida, cheia de rugas. Outra maneira de demostrar a passagemde tempo e a insatisfação de Proust com a mesma é a mobilidade do cenário. Transparece suanão participação ativa na sociedade em que vive; ele vê apenas, o movimento está ao redor: a

    platéia roda, a orquestra roda, o olhar de Marcel permanece fixo.Esta análise da sociedade em que vivia estende-se também a reflexões de Proust acerca

    da fotografia em seus escritos. A obra marca o espaço dado a esta nova forma de representaçãona sociedade da época. Ele mostra com olhar crítico a posição da aristocracia em relação àfotografia, considerada apenas como distração ou como arte menor.

    Proust afirma que a distância mostrada pela fotografia contrapõe imaginação e realidade.Em muitos episódios de Em busca do Tempo perdido, o desencantamento do narrador nasce justamente dessa defasagem entre sua imaginação e o real. Sobre este fato, acrescenta Brassaï:

    Uma simples fotografia possuiria então tanta presença quanto uma pessoa real?

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    Sim, pensa Proust, a foto é inclusive uma espécie de duplo ideal, carregada detodas as potencialidades de um ser. Todo retrato não atestaria a presença de umapessoa diante de uma objetiva, não seria uma imagem traçada pela própria luz,como indica por sinal, sua etimologia:photos = luz, graphein = traçar? Diante deuma fotografia ardentemente cobiçada, Proust deveria experimentar a mesma

    sensação de poder e triunfo que o Narrador diante do corpo de Albertineadormecida: “Sinto que ela está aqui, sob minha possessão dominadora”. (2005, p.96)

    A questão do traço indicial da fotografia foi tratada por inúmeros teóricos, sobretudo poraqueles que se apoiaram na semiótica pierciana. Dentre eles Dubois, Barhes, Sontag e obrasileiro Boris Kossoy. Todos eles concordam que a fotografia, por seu elemento técnico, guardatraços do real. No entanto, ao tratar da relação da fotografia com a memória, as opiniões são

    bastante dissonantes.Kossoy, por exemplo, posiciona-se a favor da fotografia como ferramenta que permite a

    transmissão da memória a diferentes tempos.

    A perpetuação da memória é, de uma forma geral, o denominador comum dasimagens fotográficas: o espaço recortado, fragmentado, o tempo paralisado; umafatia de vida (re)tirada de seu constante fluir e cristalizada em forma de imagem.Uma única fotografia e dois tempos: o tempo da criação, o da primeira realidade,instante único da tomada do registo no passado, num determinado lugar e época,quando ocorre a gênese da fotografia; e o tempo da representação, o da segundarealidade, onde o elo imagético, codificado formal e culturalmente, persiste em suatrajetória na longa duração. (2007, p.133)

    Em outra direção, Barthes (1984, p.133) aponta que “a fotografia não rememora o passado(não há nada de proustiano em uma foto). O efeito que produz em mim não é o de restituir o que éabolido (pelo tempo, pela distância), mas o de atestar que o que vejo de fato existiu. Ora esse éum efeito verdadeiramente escandaloso.”

    No entanto, este apontamento de Barthes apresenta-se, em parte, contraditório, pois aoatestar que algo realmente existiu, parece-me que a relação com a memória é automaticamentefeita nesta ligação com o passado.

    Neste sentido, a fotografia pode, sim, ser ferramenta de constituição narrativa. Também autilização das características da fotografia em uma escrita literária é uma das novidadesapresentadas por Marcel Proust na época de sua produção artística.

    Por fim, cito uma preciosa relação desenvolvida por Brassaï no livro anteriormentemencionado:

    “À pergunta de Proust - “Mas o que é uma lembrança da qual não mais

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    recordamos?” -, para evocar a existência ou não das lembranças-fantasmas,corresponde esta outra pergunta: “Mas o que é uma fotografia que nunca foirevelada?”. Nenhuma lembrança, assim, como nenhuma imagem latente, pode serlibertada desse purgatório sem a intervenção do deux ex machina que é orevelador, como o termo bem indica. Para Proust, será habitualmente uma

    similitude atual que ressuscitará uma lembrança, como uma substância química dávida a uma imagem latente. O papel revelador é o mesmo em ambos os casos:transferir uma impressão do estado virtual para o estado real.”

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    Referências bibl iográficas

    Livros:

    BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia ; tradução de Júlio CastañonGuimarães. 4 a edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

    BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In Textos de WalterBenjamin. Ed. Abril, 1975 __________, Sobre la fotografa. Valência: Pre-Textos, 2004.

    BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê editorial,2003.

    BRASSAÏ.Proust e a fotografia. Trad.: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

    DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad. Marina Appenzeller. Campinas:Papirus, 1994.

    KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. São Paulo: Ateliê Editorial,2007.

    PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido . Trad. Fernando Py. 3a Ed. Rio de Janeiro:Ediouro, 2004

    SONTAG, Susan. Sobre fotografia . Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

    Revista:

    SCHELP, Diogo. A conquista da memória.Revista Veja 2147 (78-87), 2010.

    Filmes:

    Tempo redescoberto . Volker Schlöndorf, 1984. 110 min. son. col. França.

    Um amor de Swann. Raoul Ruiz, 1999. 162 min. son. col. França, Itália e Portugal.