memória da diretoria de intercâmbio e cartéis da ebp-sp 2009-2011
DESCRIPTION
Memória da Diretoria de Intercâmbio e Cartéis da EBP-SP 2009-2011TRANSCRIPT
Página 1
Sumário
Memória da Diretoria de Intercâmbio e Cartéis da EBP-SP 2009-2011 ......................... 2
A DIRETORIA DA EBP-SP CONVERSOU:
Resenha e comentários atividades 20/6/2009 ................................................................. 4
Resenha Conversação sobre Atualidade dos Cartéis na EBP-SP 20/06/2009.................. 5
Comentário do debate em torno do filme If... ................................................................ 6
A DIRETORIA DA EBP-SP CONVERSOU:
Resenha e comentários atividades 14/11/2009 ............................................................... 8
Resenha da conversação sobre o Atreve-te a Saber ...................................................... 11
Comentário do debate sobre o filme Zazie no metrô .................................................... 12
JORNADA DE CARTÉIS 2010 .................................................................................. 15
ABERTURA JORNADA DE CARTÉIS EBP-SP 2010 .............................................. 16
OS COLETIVOS LACANIANOS, Romildo do Rêgo Barros ...................................... 18
TEXTO DE ENCERRAMENTO DA JORNADA DE CARTÉIS EBP-SP 2010 ......... 36
RESENHA DA JORNADA DE CARTÉIS DA EBP-SP 2010 .................................... 38
JORNADA DE CARTÉIS DA EBP-SP 2011.............................................................. 41
RELAÇÃO DOS CARTÉIS DA EBP-SP ................................................................... 42
Página 2
Memória da Diretoria de Intercâmbio e Cartéis da EBP-SP 2009-2011
A Diretoria de Intercâmbio e Cartéis da EBP-SP organizou em 2009 duas atividades sob
o dispositivo da conversação, dispositivo de elaboração coletiva, para colocar em dia o
que se sabe sobre a importância e atualidade dos cartéis na Escola.
Esta Diretoria também promoveu a Declaração de Seminários dos Membros da EBP-
SP.
Em 2009 foram declarados 9 (nove) seminários e em 2010, foram declarados 7 (sete)
seminários. Até março de 2011 foram declarados 4 seminários. É importante dizer que
esses seminários são de responsabilidade de Membros que os oferecem por conta e
risco, e são abertos e gratuitos.
No decorrer dos quase dois anos da nossa gestão contamos com 17 cartéis funcionando.
Doze deles já cumpriram o tempo de dois anos de funcionamento. Contamos atualmente
com 10 cartéis funcionando. O que significa que ao longo desta gestão se mobilizaram
mais de 100 (cem) cartelizantes.
Em abril de 2010, realizamos uma jornada de Cartéis com a presença de Romildo do
Rêgo Barros, que apresentou uma conferência sobre “Os coletivos lacanianos”, dando
continuidade lógica aos assuntos tratados nas atividades de 2009. Temos a satisfação de
oferecer para os leitores nesta publicação, a conferência pronunciada naquela
oportunidade.
Para abril de 2011 a Jornada de Cartéis da EBP-SP conta com a presença de Jesus
Santiago, que apresentará uma conferência sob o título: “Sintoma e laço social: sobre a
enunciação analisante”.
Como consta nas resenhas das atividades desta Diretoria, nosso interesse foi trabalhar o
tema da Atualidade do cartel, com uma releitura sobre o real dos grupos, a diversidade
dos coletivos, a particularidade dos coletivos lacanianos, enfim o laço social na Escola.
Estamos contentes com os resultados obtidos até o momento pois pessoas novas tem se
interessado vivamente em nossas discussões, procurando saber sobre o cartel, sobre a
formação que é possível realizar nele.
Também poderá se constatar nas resenhas, que fizemos um trabalho conjunto com a
Diretoria de Biblioteca para favorecer Intercâmbios.
Página 3
Em 2010 não realizamos outras atividades específicas além da Jornada, pois todos os
integrantes da Diretoria da EBP-SP foram convocados para trabalhar na organização do
XVIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano realizado com sucesso em São Paulo
em novembro de 2010.
Resta agradecer a todos os que fizeram possível que o trabalho desta Diretoria fosse
produtivo, e em especial às colegas integrantes da Diretoria da EBP-SP, Cássia Maria
Rumenos Guardado, Diretora Geral; Patrícia Badari, Diretora Secretária-Tesoureira e
Perpétua Medrado, Diretora de Biblioteca.
Uma comissão tem colaborado com esta Diretoria para atualizar dados dos cartéis, preparando material bibliográfico
para consulta na biblioteca e para sugerir e divulgar as atividades.
BLANCA MUSACHI
Diretora de Intercâmbio e Cartéis
Página 4
A DIRETORIA DA EBP-SP CONVERSOU: Resenha e comentários atividades
20/6/2009
A diretoria da EBP-SP retoma a idéia de fazer circular entre nós as atividades propostas
e realizadas na Seção São Paulo. Para isso, inaugura a rubrica: A DIRETORIA DA
EBP-SP CONVERSOU, que contará com a contribuição dos analistas de nossa
comunidade, tendo sempre, como ponto de partida, a transmissão da psicanálise.
Nesta oportunidade, as atividades de 20 de junho, do primeiro semestre
2009.
Poderemos, então, acompanhar pela resenha de Blanca Musachi, a primeira atividade da
Diretoria de Intercâmbio e Cartéis, que propôs uma conversação sobre a atualidade dos
Cartéis. Essa atividade foi realizada na sede da EBP-SP em 20 de junho de 2009 e a
conversação teve como orientação a leitura dos textos: “A psiquiatria inglesa e a guerra”
(1947), de Jacques Lacan e “No cartel se pode obter um camelo”, de Mauricio
Tarrab. Essa atividade teve como resultado a proposta de uma próxima atividade em 14
de novembro.
É tradição das Diretorias de Biblioteca da EBP promover atividades de discussão da
psicanálise a partir de livros, de filmes, ou seja, buscar um diálogo entre a psicanálise e
outras disciplinas assim como com as diversas manifestações da Arte. A Diretoria Geral
da EBP-SP propôs o filme if... de Lindsay Anderson, a fim de discutir e entender
melhor a referência que Lacan faz desse filme na última aula do Seminário 16, “De um
Outro ao outro”. Isso pode ser agora apreciado através da resenha de Maria de Lourdes
Mattos.
A próxima atividade será em 14 de novembro de 2009.
Boa leitura!
Perpétua Medrado
Diretora de Biblioteca EBP-SP
Página 5
Resenha Conversação sobre Atualidade dos Cartéis na EBP-SP 20/06/2009
Na primeira atividade desta Diretoria de Intercâmbio e Cartéis propusemos uma
conversação sobre a atualidade dos cartéis na EBP-SP. Escolhemos a forma
conversação por ser este um dispositivo de elaboração coletiva, que nos permitiu
colocar em dia o que se sabe do funcionamento dos cartéis: a importância de uma
estrutura a favor de fazer avançar a psicanálise; a importância dos cartéis para a
formação dos que se aproximam à psicanálise da orientação lacaniana, as novas formas
possíveis dos cartéis (ampliados, fulgurantes, etc.); a função do Mais-Um.
Num clima descontraído e de entusiasmo os participantes colocaram suas questões, que
foram orientadas a partir da leitura de alguns textos como o de Lacan “A psiquiatria
inglesa e a guerra” e o de Mauricio Tarrab “No cartel se pode obter um camelo”.
Como efeito dessa elaboração coletiva resgatou-se a importância do cartel como porta
de entrada à Escola, que permanece atual, e que já deu lugar ao interesse de constituir
novos cartéis entre os participantes; a proposta de fazer uma pasta com material
bibliográfico sobre cartéis que estará disponível na biblioteca da EBP-SP; assim como a
proposta de uma próxima atividade neste segundo semestre, que se chamará “Atreve- te,
a saber,” título surgido de comentários dos participantes a partir do texto do Tarrab.
Blanca Musachi
Diretora de Intercâmbio e Cartéis da EBP-SP
Página 6
Comentário do debate em torno do filme If...
No dia 20 de junho a EBP-SP, sob coordenação da diretora de Biblioteca, exibiu o filme
If...., de Lindsay Anderson, datado de 1968.
Lacan, no Seminário 16, “de um Outro ao outro”, no último capítulo, intitulado “A
extasiante ignomínia da homela”, faz uma referência a esse filme, cuja temática - a
história da revolta de estudantes de uma escola tradicional inglesa – guarda certa
semelhança com o contexto histórico político da época, incluindo seu ensino. Como
bem considerou Lacan, nessa aula de 25 de junho de 1969, ele e seus trezentos alunos
estão sendo “evacuados” da Escola Normal Superior, onde os Seminários eram
proferidos desde 1963.
Entre os convidados para o debate estavam: Marco Antonio Guerra, professor, doutor da
ECA - USP , e as psicanalistas Cássia Maria Rumenos Guardado, Diretora da Seção
EBP-SP e Maria do Carmo Dias Batista. A coordenação da mesa foi feita por Perpétua
Medrado, Diretora de Biblioteca da EBP-SP.
Cássia pontuou que homela se refere à cena do filme em que a mulher do reitor passeia
nua no dormitório dos estudantes passando a mão nos objetos pessoais, enquanto eles
faziam treinamento militar no pátio. O termo diz respeito ao gozo próprio, singular da
mulher e a uma posição servil, que serve ao saber do mestre. Como mulher do reitor,
serve ao saber do homem (homem - ela), representa a Universidade, considerada por
Lacan como uma instituição feudal. Diferente do filme, cuja saída é pela via da
violência, Lacan ao entregar aos alunos, “aos trezentos evacuados”, as cópias da carta
do diretor da Escola Normal pedindo sua saída, como se fosse um diploma, propõe a
saída pela via do significante.
Marco Antonio Guerra trouxe contribuições importantes sobre o contexto histórico,
político e cultural da época. Considerou if.... como um mini maio de 68, representando
o panorama da sociedade Ocidental do período. Comentou sobre o movimento da
contracultura, que entre os inspiradores teve Herbert Marcuse, autor de Eros e
Civilização, que ao criticar o mundo capitalista colocava como proposta as comunidades
alternativas auto-sustentáveis. Ressaltou que a nova esquerda do Brasil foi influenciada
por esse movimento, o que propiciou, além das lutas por mudanças políticas e sociais, o
questionamento dos valores comportamentais vigentes.
Página 7
Maria do Carmo levantou uma questão importante do filme que apresenta as cenas de
sadomasoquismo em sua vertente sádica, onde o masoquismo está praticamente ausente.
Para nós esse aspecto é inquietante, levando-se em conta que essa dupla é inseparável.
Maria de Lourdes Mattos
Página 8
A DIRETORIA DA EBP-SP CONVERSOU: Resenha e comentários atividades
14/11/2009
Em 14 de novembro de 2009, a Diretoria de Intercâmbio e Cartéis convidou para a
Conversação: Atreve-te a saber e a Diretoria de Biblioteca para a Exibição debate sobre
o filme "Zazie no metrô".
Comentário sobre: Atreve-te a saber
O título da atividade organizada pela Diretoria de Intercâmbio e Cartéis da EBP-SP, em
14 de novembro de 2009, Atreve-te a saber, foi inspirado no artigo de Maurício
Tarrab No cartel se pode obter um camelo. Este texto, que foi objeto de discussão da
atividade anterior, cita Jacques Lacan em O senhor A, de 1980, onde há a afirmação:
juntar-se para fazer algo e depois separar-se.
Tarrab salienta que para juntar-se é necessária uma nova relação entre o novo e o saber,
posição alicerçada em duas afirmações: a primeira feita por Jacques-Alain Miller que
evoca a fórmula que resume o Espírito das Luzes – sapere auda, atreve-te a saber, ousa
saber, e para tal há o entrecruzamento do laço coletivo – já que necessário para o debate
-, e uma posição subjetiva com respeito à ignorância. A segunda referência é da
conferência de Leonardo Gorostiza na abertura da Jornada de Cartéis da EOL: “a
relação de cada um ao saber é o produto de uma elaboração coletiva: tu podes saber,
mas não sem os outros.”[i]
Não sem os outros remete ao coletivo, ao grupo e, neste momento da atividade,
reportamo-nos ao trabalho de Romildo do Rêgo Barros,Sobre Grupos - disponível no
site do IV Encontro Americano -, onde o autor nos remete a Freud em Psicologia de
grupo e análise do eu. Freud inicia o texto afirmando que não há diferença entre a
psicologia individual e a psicologia social, o que permite “aplicar” a teoria psicanalítica
aos grupos artificiais, sendo a Igreja e o Exercito os grupos paradigmáticos. Mas, qual o
artifício que faz com que o grupo se mantenha unido? Exatamente a tensão existente
entre o amor vertical ao chefe e o amor horizontal aos irmãos. Esta “montagem
freudiana dos grupos exige uma consistência extraordinária da função do Um”.[ii]
O texto de 1921, pós I Guerra Mundial, encontra, em certo sentido, “sua resposta” no
artigo de Lacan A psiquiatria inglesa e a guerra,publicado em 1947. Texto escrito após
Lacan visitar a Inglaterra e conhecer a experiência de grupo realizada no exercito
Página 9
britânico por Bion., - experiência publicada com o título “Tensões internas ao grupo na
terapêutica. Seu estudo proposto como tarefa do grupo.” Na texto de Lacan
encontramos: “(...) Nele reencontro a impressão de milagre dos primeiros avanços
freudianos: encontrar no próprio impasse de uma situação a força viva da
intervenção.”[iii]
Em 1964, no Ato de fundação da Escola[iv], Lacan propõe que sua Escola tenha como
célula de base o cartel e, como afirma Romildo, referindo-se ao texto de Éric
Laurent Lo real y el grupo, “(...) O cartel é um pequeno grupo de trabalho, sem líder,
voltado sobretudo para o estudo e elaboração de textos, mas igualmente para realização
de pequenas tarefas que Lacan coloca na base da instituição criada por ele, a Escola. Se
é verdade que os pequenos grupos de Bion são ancestrais do cartel lacaniano, pode-se
dizer que a Escola de Lacan descende do cartel (...)”. Neste momento da conversação
Cássia Guardado, ressaltou que o passe é também célula de sustentação da
Escola e ligado ao cartel, e que na Escola da Causa o cartel do passe figura entre os
cartéis declarados à Escola. Vale relembrar que o cartel deve ser declarado à Escola e o
produto do trabalho endereçado a sua comunidade.
Não há líder no cartel, mas o Mais-Um, escolhido entre os cartelizandos que, por sua
vez, se escolheram a partir de um tema. A escrita para o cartel é 4+1, que pode ser lido
como quatro cartelizantes e um elemento que está fora, que descompleta o grupo e,
como afirma Laurent, no texto Lo real y El grupo, cabe ao Mais-Um interpretar os
impasses para que o trabalho seja possível. Não se trata da interpretação da posição
subjetiva de cada cartelizante, mas dos impasses oriundos da própria experiência de
trabalhar com uma questão particular, mas em um pequeno grupo. E aqui nos
deparamos com o lógica do “atreve-te a saber”, mas não sem os outros.
A conversação também abordou os cartéis expandidos ou fugazes. Blanca Musachi fez
uma interessante intervenção fazendo coincidir o momento político com a experiência
mesma do cartel: quando a psicanálise aplicada saiu da periferia e ocupou o centro de
várias discussões, em um movimento de destensão o cartel ampliado se expandiu. No
momento em que há certo fechamento da Escola e as lentes se voltam para a psicanálise
pura, o cartel em sua estrutura fundamental volta ao centro.
Outro aspecto foi discutido: as metáforas militares utilizadas por Lacan ao longo de seu
ensino. Além do próprio texto A psiquiatria inglesa e a guerra, escrito pós II Guerra
Mundial, há, na Fundação da Escola, a idéia de reconquista do campo freudiano. Em A
direção do tratamentoencontramos a política, a tática e a estratégia em uma cura, enfim,
Página 10
há outras referências trazidas por Blanca Musachi a partir de uma conferência de
Jacques-Alain Miller na Espanha, e a idéia de que há algo de guerreiro aplicado -
referência a livro homônimo -, na experiência do cartelizante.
Então, um pouco como guerreiros aplicados, nos reunimos em um lindo sábado
ensolarado para “conversar” sobre o cartel, encerrando com uma interessante pergunta
de alguém que se aproxima da Escola: O lugar do Mais-Um foi delineado com
contornos precisos - não é líder, não é mestre, descompleta o grupo, interpreta os
impasses, mas qual o lugar do cartelizante? Fica então o convite para, que tanto aqueles
que se aproximam como aqueles que já estão na Escola criada por Lacan, atreverem-se
na experiência com o cartel, que é sempre única e transmissível a partir de seu produto.
Valéria Ferranti Baptista
[1] TARRAB, Maurício. En las huellas del sintoma. Ed. Grama
[1] BARROS, Romildo do Rêgo. Sobre Grupos. IV Encontro Americano.
[1] LACAN, Jacques. A Psiquiatria Inglesa e a guerra. In Outros Escritos. Jorge Zahar Editor p. 113. RJ,
2003.
[1] LACAN, Jacques. Ato de fundação da Escola. In Outros Escritos. Jorge Zahar Editor, RJ, 2003
Página 11
Resenha da conversação sobre o Atreve-te a Saber
O título para esta atividade da Diretoria de Intercâmbio e Cartéis surgiu da primeira
Conversação sobre o texto de Tarrab “Num cartel se pode obter um camelo”, onde essa
fórmula imperativa “sapere aude” que resume o espírito das Luzes, também é possível
de ser situada num entrecruzamento entre o laço coletivo e uma posição subjetiva
referida à ignorância. Finalmente, é uma fórmula que desafia a avançar sobre o horror
de saber.
Nesta oportunidade, sempre sob o dispositivo de elaboração coletiva que é a
Conversação, nos orientamos a partir do texto de Eric Laurent “Lo real y El grupo”* y
do texto de Romildo do Rego Barros “Sobre grupos”**, para considerar o movimento
que iria, como diz Laurent “Da dificuldade da unidade do grupo à produção de sujeitos
divididos, re-enviados à sua questão íntima”, o que não é possível sem mediar a
interpretação. É o que bem mostra a experiência de Bion, que Lacan retoma em parte
para escolher como apoio os pequenos grupos de trabalho que chamou cartel quando
fundou a sua Escola. Mas, se no nascedouro mais remoto da idéia do cartel - como
observa Romildo- Lacan associa realismo ao heroísmo, como pensarmos hoje o
“realismo de combate” que implica o cartel, para continuar a ser uma forma de
tratamento permanente da Escola?
Blanca Musachi
Diretora de Intercâmbio e cartéis
*Texto disponível na biblioteca da EBP-SP
**Texto disponível na biblioteca da EBP-SP e no site do Encontro americano 2009:
http://ea.eol.org.ar/04/pt/template.asp?lecturas_online/textos/rego_barros_sobre.html
Página 12
Comentário do debate sobre o filme Zazie no metrô
A exibição do filme Zazie no metrô, seguida de debate com a presença de Paulo
Werneck, tradutor da edição comemorativa dos 50 anos da publicação do livro de
Raymond Queneau (1903-1976), marcou a presença da Seção São Paulo da Escola
Brasileira de Psicanálise nas comemorações do Ano da França no Brasil.
Zazie vai a Paris passar uns dias sob os cuidados do tio Gabriel, enquanto sua mãe
passeia com o novo namorado. Em Paris, Zazie quer apenas andar de metrô, mas não
consegue – está em greve. Ela não se conforma com isso e, ao invés do passeio
subterrâneo pretendido, anda por Paris, uma Paris de 1950, pós-guerra, tagarelando com
tudo e todos: um taxista, um sapateiro, um dono de bar, uma garçonete e um papagaio.
O romance nos mostra as inovações linguisticas que Queneau promoveu na literatura,
ao levar para o romance, por exemplo, o jeito de falar das ruas, com gírias e muitos
palavrões, ao usar uma linguagem mais irreverente em um contexto literário.
Louis Malle, produtor do filme (1960), utilizou recursos cinematográficos diversos –
desenho animado, estilo pastelão, cinema mudo, cenas que lembram Chaplin com a
câmera acelerada - para que a literatura fosse transportada para a tela.
Werneck nos contou de suas alegrias e dificuldades na tradução, mostrando-se
entusiasmado com o resultado de seu trabalho. Encantou-se desde jovem com o texto de
Queneau e aproveitou a comemoração dos 50 anos da publicação do livro para propor a
nova tradução de Zazie. A editora Cosac&Naify topou uma edição bastante esmerada. O
projeto gráfico do livro é bastante peculiar, bonito e condizente com os subterrâneos
que Zazie procura pela cidade.
Ao ser perguntado sobre qual seria o prazer do tradutor, Werneck acentuou que “o
tradutor convive com uma grande ambiguidade” – é um prazer enorme encontrar
solução para uma expressão difícil e, por outro lado, ele está sempre sofrendo, tentando
dar conta daquilo que está no original.
É um livro sobre a linguagem, nos diz, repleto das armadilhas da linguagem, a começar
pelo título: Zazie no metrô, sendo que ela nunca esteve no metrô. Queneau fala do mal-
entendido, dos atos falhos, do subentendido, dos significados ocultos, das falhas da
linguagem. Mostra que existe um discurso na superfície e um discurso subterrâneo, é
“como se Zazie estivesse realmente nos subterrâneos da linguagem”, mostrando isso e
revelando todos os personagens sempre às voltas com seus desejos. “Como uma espécie
Página 13
de Sócrates, Zazie sai andando pela cidade e, fazendo perguntas, vai extraindo as
verdades daquelas pessoas, que mal desconfiam do que sai de suas bocas”.
No artigo Zazie zanza em Paris e zoa a linguagem, de Gisela Anauate, publicado na
Revista Época, em 10/06/2009, podemos ler que “quando foi lançado, em 1959, o livro
de Queneau provocou reações opostas entre os críticos literários. Alguns o levaram
extremamente a sério e fizeram estudos linguísticos sobre o vocabulário malcriado e os
neologismos do texto. Outros consideraram a odisseia de Zazie como uma brincadeira
boba de Queneau, que não merecia atenção. Roland Barthes, um dos maiores críticos da
França, escreveu um texto esclarecedor que aparece como posfácio desta nova tradução
de Zazie no metrô. Lá, diz que a finalidade do romance era simplesmente arruinar
qualquer diálogo a seu respeito.
Segundo Barthes, Queneau desmonta a literatura, reduz a ação às palavras e também as
massacra, através de seus neologismos e invencionices. Faz transgressões das normas
escritas, com uma imposição total da fala. Logo no início da narrativa temos um belo
exemplo disso: “Dondekevemtantofedô, Gabriel se perguntou, irritado.”
O livro tem, ao mesmo tempo, um discurso literário e filosófico, com diversas citações
filosóficas, e também uma falação contínua, uma conversa de bar, um diálogo
permanente. Queneau misturou sua grande erudição a um discurso popular e também
fez piada com a erudição. A epígrafe do livro, que é de Aristóteles, é colocada em
grego, em alfabeto grego, e ao fazer a citação erudita e não traduzi-la, Queneau tira um
sarro daqueles eruditos que colocam algo que ninguém entende como se fosse uma
erudição, diz Werneck.
Linguagem, modos de dizer, falação sem parar, como mostra muito bem através do
papagaio Laverdure, com seu bordão: “falar, falar, você só sabe fazer isso”, cutucar e
cavoucar os subterrâneos do desejo, a quebra do universal para o particular, tudo isso
tem a ver com a psicanálise e com o tema que vem sendo debatido pela AMP, na
preparação de seu Congresso de 2010 em Paris: “Semblantes e Sintoma”.
O que Zazie nos faz pensar? Ela mostra e mexe com os semblantes, com os símbolos da
cultura e não se interessa por eles. No livro exclama repetidamente, em diversas
situações: “mon cul” (me importa o caralho!) “Miller destaca o interesse pelo metrô,
pelo subterrâneo por uma posição subjetiva que não quer saber dos semblantes. Uma
posição cínica diante dos ideais da cultura ao se referir aos semblantes necessários para
o laço e para que Eros, de certa forma, civilize o Real”, salientou Perpétua Medrado
Gonçalves em sua fala de abertura.
Página 14
Miller a descreve como uma máquina de perfurar os semblantes, fazendo aparecer a
balbúrdia do mundo de cada um, como lembrou Patrícia Badari em seu comentário.
Salienta também que Zazie desconstrói semblantes, mas não os aniquila, e ao mantê-los,
há a tentativa de preservação de uma ordem. Zazie também está nos subterrâneos de sua
sexualidade e vai cutucando a sexualidade dos outros à sua volta.
Maria Noemi de Araújo relembra Marie-Hélène Brousse ao se referir à arte como
ruptura. “Queneau em Zazie dans le metro produz rupturas - na língua francesa – por
exemplo, com a escrita inovadora de uma subtração do excesso de „letras inúteis‟,
fazendo uma transcrição fonética”. Noemi cita a homenagem que Malle faz à Nouvelle
Vague, na medida em que o filme mostra a captação da vida da rua das cidades, pois
antes disso, as cenas eram todas feitas em estúdios. Enfatiza Louis Malle como um
“quebrador de imagens”, desmistificando a cidade, tornando-a ridícula, sem intrigas.
Para ela, a cor da blusa de Zazie marca o filme – o laranja de sua blusa aparece em
diversos outros detalhes de muitas situações e/ou personagens. “Tomarei o recurso da
cor laranja, usado por Malle como um elemento que alinhava o discurso da imagem que
perpassa a narrativa do filme, como um semblante a serviço da criação do laço. No
coração da circulação da palavra, a própria cor, ao tomar o lugar de semblante, faz
semblante de laço. (Semblants et Sinthome, Januz Kotara(NLS), Scilicet, 173). Então,
em Zazie, a cor laranja funciona como a grande mediadora do simbólico com o
imaginário em relação ao real”.
Para finalizar, vale sugerir uma visita ao site da Cosac&Naify, na parte especialmente
dedicada ao livro, sua tradução, sua confecção. Vale passear pelas vias do metrô ali
assinaladas. Em uma das estações, entre outras delícias, podemos ler um capítulo
inédito do livro de Queneau, não utilizado na edição final, onde Zazie finalmente faz seu
passeio pelo metrô.
Acesse: www.cosacnaify.com.br/noticias/extra/zazie
Marizilda Paulino
Página 15
JORNADA DE CARTÉIS 2010 Dia 10 de abril – sábado 10h
Convidado:
Romildo do Rêgo Barros
Membro e AME da EBP-AMP
Conferência: “Os coletivos lacanianos"
Coordenação: Blanca Musachi
Diretora de Intercâmbio e Cartéis
Rua João Moura, 627 Pinheiros - Centro Clínico Pinheiros - mezanino
Entrada aberta
Informações: [email protected]
Tel. 3081.8947 Fax 3063.1626
www.ebpsp.org.br
Página 16
ABERTURA JORNADA DE CARTÉIS EBP-SP 2010
Damos começo à Jornada de Cartéis da EBP-SP 2010. Temos a cara presença do colega
e amigo de São Paulo, Romildo do Rêgo Barros, Membro, AME da EBP-AMP que vai
nos falar sobre os coletivos lacanianos.
Durante as atividades de 2009 da Diretoria de Intercâmbio e Cartéis temos trabalhado
sobre os grupos, o real do grupo e a Escola. Penso que as leituras que temos feito têm
uma lógica, pois em todas elas podemos situar respostas para as perguntas: O que nos
liga neste laço coletivo chamado Escola e do qual decidimos fazer parte? O que
diferencia o modo de estar nesse laço de qualquer outro laço social?
Para pensarmos os vínculos reais na Escola temos várias referências. Uma delas de Juan
Carlos Indart quando fala sobre O desejo do analista no final de análise publicado em
Clínica del final de análise EOL-Grama. Trata dos efeitos de grupo onde sempre se
colocam em jogo histórias de prestigio, mas que isso não é o principal, o principal ou
fundamental na Escola como instituição da diversidade seria se os grupos produzem
efeitos de interpretação, porque se não se produz nada heterogêneo não há interpretação.
Da mesma publicação nos servimos do texto estabelecido da fala de Graciela Brodsky,
onde convidada a falar sobre o desabonado do inconsciente e o final de análise aborda o
tema do laço social, de como manter o analisado no laço social, como reintroduzir o
Outro –da Escola - depois de ter conduzido um tratamento na direção de fazê-lo
inconsistir.
GB lista as respostas conhecidas: A transferência de trabalho, a transferência a Escola, a
identificação ao grupo... e assinala que o fato de ter que formulá-las indica que nada vai
naturalmente nessa direção.
Nos lembra com Lacan que é o amor o que faz existir o Outro. Por essa via se concebe,
por uma lado a Escola como partenaire-sintoma, um partenaire coletivo. Partenaire-
sintoma que supre via o amor a inexistência da relação sexual, como o testemunham
alguns AE que GB cita. Por outro lado temos a Escola como o que mantém unidos os 3
registros R-S-I, que em sua função de nomeação é uma boa suplência do Nome-do-Pai.
Finalmente, para que a Escola seja esse partenaire coletivo, é preciso de alguns com
nome e sobrenome, não anônimos, que com seu desejo, fazem existir a Escola.
Ante a pergunta sobre o que leva a fazer laço, de porque estamos na Escola, uma
primeira resposta então é o amor. E diz GB que não devemos ter vergonha de dizer que
é por amor ao pai. Fazendo a distinção entre o pai morto e o pai vivo.
Página 17
Achei interessante esta referência para pensarmos O que faz laço? Porque estamos na
Escola? Para que serve pensarmos nos grupos e impulsar o trabalho dos cartéis?
Para problematizar e avançar um pouco além das respostas conhecidas como a
transferência de trabalho, da identificação ao grupo, consideramos a leitura de Mauricio
Tarrab, num texto preciso e precioso publicado no livro “Las huellas del sintoma” sob o
título La identificación al grupo o decir bien lo insoportable. Ele parte das mesmas
questões que nós; Para responder considera o tema da identificação ao grupo e a
importância do tratamento do insuportável em jogo, que não é só o quão insuportáveis
são os outros, mas ante todo o insuportável que há em cada um de nós. Finalmente,
parafraseando Borges, refere: “No nos une sólo el amor sino el espanto”, entendendo
por espanto, neste caso o horror, o insuportável, “ponto –de real- em que, como os
outros estou comprometido no esforço por subjetivar e nomear...” ponto em que –
segundo e seguindo MT- vale a pena a identificação.
É preciso de alguns não anônimos, com seu desejo, para fazer existir a Escola. Alguns
estamos hoje aqui e dispostos a acolher o heterogêneo de uma jornada de cartéis.
BLANCA MUSACHI
São Paulo, 10 de abril de 2010
Página 18
OS COLETIVOS LACANIANOS
Romildo do Rêgo Barros
Romildo: Bom dia!
Eu queria agradecer a vocês pelo convite para participar aqui como conferencista da
Jornada de Cartéis da EBP-SP.
Eu chamei a palestra de hoje de Os Coletivos Lacanianos. É um título que pode ter
vários sentidos: pode servir para denominar os coletivos que Lacan inventou, por
exemplo. Ou os coletivos à maneira de Lacan, ou sob a inspiração de Lacan, ou
qualificar os que merecem o nome de lacanianos, etc..
Algumas leituras me ajudaram a preparar esta fala. Claro, Psicologia de Grupo e a
Análise do Eu, de 1921, de Freud; de Lacan, o Ato de Fundação da Escola Freudiana
de Paris, de 19641, e a Proposição de 1967, nas suas duas versões; dois artigos de
Jacques-Alain Miller: a Teoria de Turim, do ano 20002, e um texto que foi publicado
sob o título de Enemigos Éxtimos (Psicologia. Racismo na Sociedade Contemporânea),
que faz parte do seu curso Extimidad, recém publicado em espanhol pela Paidos; e,
finalmente, dois artigos de Éric Laurent: O Real e o Grupo, do ano 20003, e um outro, O
Nome-do-Pai, Psicanálise e Democracia, publicado em 20034.
[pausa para comentários da platéia acerca do volume de voz mais adequado para a
captação pelo gravador]
A Seção São Paulo teve a gentileza de discutir um texto meu que foi publicado no
volume do Encontro Americano em Buenos Aires, chamado justamente Sobre Grupos.
Na verdade inicialmente não era um texto, mas duas conferências que fui convidado a
fazer na Associação Digaí-Maré, coordenada por colegas nossos da EBP que trabalham
numa favela do Rio de Janeiro. Marcus André Vieira fez dessas conferências, que daria
umas 40 ou 50 páginas, uma edição bastante bem feita e fiel ao que eu tinha dito.
É evidente que, para falar do coletivo em psicanálise, temos que esclarecer qual a
1 Lacan, J.: “Ato de Fundação”, Outros Escritos, JZE, Rio de Janeiro, 2003, pp. 229-247. 2 Miller. J.-A.: “Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola”, Latusa n° 6, Rio de Janeiro, Contracapa,
2001, p. 220. 3 Laurent, É. “Lo real y el grupo”. In: Cucagna, A. R.. Ecos y matices en psicoanalisis aplicado. Buenos
Aires: Grama Ediciones, 2005. 4 Laurent, É.: em Cités – Philosophie, Politique, Histoire, número 16, PUF, Paris, 2003, PP. 55-61.
Página 19
posição que a psicanálise ocupa em relação ao coletivo, que deve ser coerente com a
prática clínica. Podemos resumir a questão dizendo que, como psicanalistas, e não, por
exemplo, como sociólogos ou psicólogos, o que nos interessa na verdade é chegar a
situar o que há, eu diria, de impossível nos grupos. Ou seja, chegar a saber a partir de
onde os coletivos apresentam sintomas. Este é o interesse principal do psicanalista em
relação aos coletivos. A prática psicanalítica, como se sabe, busca dar um tratamento
para esses pontos de impossibilidade e para esses sintomas.
No final das contas, interessam-nos mais os pontos de fratura dos coletivos do que a sua
continuidade. A descontinuidade nos interessa mais do que a continuidade. Para usar
um termo usado recentemente por Jacques-Alain Miller, este é o lado subversivo da
psicanálise, que vai considerar como imaginárias todas as montagens que de alguma
forma se mostram unitárias: famílias, personalidade, instituições, grupos, tudo o que
depende de um real que, na verdade, só aparece como tropeço.
Parece-me que foi esse, sabendo ele ou não, o método que Freud utilizou, em 1912, para
escrever Totem e Tabu: partiu de um fenômeno completamente visível e constatável por
todo mundo - a família, e localizou, teórica e clinicamente, os seus impasses, que ele
testemunhava na sua prática cotidiana; em seguida, explicou a história da família
retroativamente, a partir de um fator que na verdade vai contra a estabilidade ou mesmo
a existência da família, ou seja, o gozo sem limites de um suposto pai primitivo.
É nesse sentido que Freud inventa um mito, que tem a função de recobrir o real. Para
falar de uma passagem impossível, ele localiza o ponto de impossibilidade, e, a partir
daí, constrói uma narrativa. É assim que se fazem os mitos. São uma maneira de
explicar o que não teria explicação, e de fazer uma ponte entre o imaginário e um real
que não se teria palavras para exprimir. Em Totem e Tabu, temos um ponto de
impossibilidade em torno de um pai - ou um orangotango, como Lacan o chamava -,
que não precisa sequer ter existido, mas que ganhou consistência pelo fato de Freud lhe
ter dado um lugar.
Quando se fala do coletivo, ou das relações do coletivo com o individual, algumas
frases da nossa literatura nos vêm ao espírito.
Por exemplo, podemos pensar na afirmação clássica de Freud, escrita logo na primeira
página do seu texto de 1921 sobre a psicologia dos grupos: “a psicologia individual (...)
é, ao mesmo tempo, também psicologia social”5.
5 Freud, S.: "Psicologia de grupo e a análise do ego", Obras Completas, Imago, Rio de Janeiro, Volume XVIII, p. 81.
Página 20
Ou então, uma frase de Lacan que nos tem servido muito nas nossas discussões, e que
foi escrita como uma quase paráfrase do texto de Freud: “o coletivo não é senão o
sujeito do individual”. À primeira vista, ela surpreende um pouco, porque parece ter
várias entradas e várias saídas. A frase está em uma pequena nota de O Tempo Lógico e
a Asserção da Certeza Antecipada6.
Não foi certamente à toa que Lacan cunhou essa frase, justamente no artigo de 1945
sobre o tempo lógico, onde se pode achar a discussão e a diferença entre um indivíduo e
sujeito. Nesse artigo, Lacan trata do sujeito que se reconhece e se decide a partir de um
cálculo que se inicia pela posição relativa dos outros. Quando, finalmente, decide-se e
sai pela porta, algo se separa do individual, algo se separa do indivisível.
E, finalmente, uma frase de Jacques-Alain Miller, extraída da Teoria de Turim, de 2000,
texto muito conhecido por todos nós, em que Miller demonstra que a Escola é um
sujeito, e, como tal, interpretável. A frase de Miller, na verdade, esclarece a de Lacan
sobre a relação entre indivíduo e sujeito. Miller diz o seguinte:
“O individual não é o subjetivo. O sujeito não é o indivíduo, não está no plano do
indivíduo. O individual é um corpo, um eu. O efeito sujeito que se produz aí, e que
perturba as funções, está articulado ao „Outro‟, o grande Outro. É o que chamamos o
coletivo, ou o social."
O efeito sujeito, como cada um de nós já experimentou, perturba as funções do eu e do
corpo. É por isso que existe psicanálise. É porque existe um transtorno (dérangement),
um desarranjo trazido pelo efeito sujeito para esse nível do indivíduo, do eu e do corpo,
que a psicanálise encontra sua eficiência.
Quando se dá o efeito sujeito, aparece para o indivíduo, supostamente fechado, algo que
ele não sabia necessariamente, que é a articulação com o Outro. É o que se chama,
conclui Miller, de coletivo ou de social.
É precisamente no intervalo entre indivíduo e sujeito que a psicanálise encontra o seu
ponto de apoio e a sua razão de ser. O lugar de origem da psicanálise é o gap que se
abre na distância entre indivíduo e sujeito: se sujeito fosse igual a indivíduo, não
existiria a psicanálise.
O sujeito é um transtorno para o indivíduo, nos diz Miller. É um dérangement, um
obstáculo para o indivíduo. E não em um setor qualquer do seu psiquismo, mas nas suas
funções corporais e egóicas. Ou seja, nas funções imaginárias, que fazem com que um
6 Lacan, J.: Escritos, JZE, Rio de Janeiro, 1998, p. 213.
Página 21
sujeito possa ser vivido por si mesmo como unitário. Desde que há um efeito sujeito –
um trauma, um retorno do recalcado, uma formação do inconsciente... –, a inteireza do
eu ou do corpo é posta em questão. A manutenção dessa hiância, desse gap, é uma
condição para a sobrevivência da psicanálise. A psicanálise foi feita para tratar dos
efeitos da separação entre indivíduo e sujeito, mas, se essa separação se acaba, a
psicanálise se acaba junto. Em outros termos, a separação entre indivíduo e sujeito é
uma questão ética permanente da psicanálise.
É um ponto que me parece importante e atual no debate entre a psicanálise e as terapias
comportamentais. Podemos dizer que o ideal ético das terapias comportamentais é de
chegar a um ponto em que não haveria o gap de onde surgem os sintomas
psiconeuróticos, como Freud chamava os sintomas na histeria, na neurose obsessiva, na
fobia, etc.
Uma frase de Éric Laurent, no seu artigo O Real e o Grupo, me chamou a atenção: “do
ponto de vista da Razão psicanalítica, a escala coletiva – esta é uma expressão que
Lacan usa em A Psiquiatria Inglesa e a Guerra -, a escala coletiva não é outra coisa
senão o nível do sujeito”.
A escala coletiva é algo que diz respeito ao inconsciente do indivíduo, aquilo que não é
possível de se achar no plano do indivíduo, e que só se acha por meio de uma, digamos
assim, escorregadela. O efeito sujeito é aquilo que escapa do indivíduo: é aí que se pode
pensar em inconsciente, e se pode pensar no que Laurent chama, nessa frase, de nível do
sujeito.
Para Freud, quando escreve a Psicologia de Grupo e a Análise do Eu, é necessário um
elemento externo, uma instância externa, que chamou de Ideal do Eu, para que a
rachadura entre indivíduo e sujeito seja suportável. Essa rachadura, que para Freud
constitui o sofrimento humano por excelência, precisa de um ponto externo para ser
suportável.
O coletivo freudiano é um conjunto de indivíduos que têm um ideal do eu comum.
Poderíamos tirar desta definição a idéia de que o sintoma é, na verdade, um fracasso
desse recurso. Se o coletivo é uma reunião de vários indivíduos inspirados pelo ideal de
eu comum, o seu fracasso é o fracasso desse recurso. Há qualquer coisa que impede que
vários indivíduos se reúnam visando o mesmo ideal, o mesmo lugar de onde cada um
deles poderia ser visto como capaz de ser amado, segundo diz Lacan no Seminário XI.
Para Freud, o coletivo é um conjunto de indivíduos que colocaram um só e mesmo
objeto no lugar do ideal, e, consequentemente, identificaram-se uns com os outros. É
Página 22
uma definição completa, que pode, se quisermos, tomar a forma de um traçado
cartesiano. A constituição do coletivo vai se dar em algum ponto de encontro entre o
amor horizontal entre os irmãos, camaradas, colegas, etc., e o amor vertical que liga os
iguais ao chefe, ao Outro. Sobretudo através do exemplo do exército, Freud considera
que a relação entre os iguais está em articulação com a relação com o Outro, e que é
isso que põe em movimento todo o resto. Não há independência no amor entre os
irmãos, colegas e camaradas. É a partir do amor do Outro - e do amor ao Outro - que se
torna possível o amor entre os iguais. Esta é a lógica freudiana, que supõe que o pai –
vamos chamá-lo pelo seu nome freudiano - ame – ou odeie - a todos igualmente. Esta é
uma ilusão fundamental, constitutiva dos coletivos freudianos.
Vocês têm sem dúvida na memória o esquema gráfico que Freud desenhou em 1921.
Temos os objetos, os objetos do mundo; em seguida temos os coletivos – são três
pessoas; e, finalmente, temos o ideal, o ideal do eu. Os objetos se iluminam, digamos
assim, ganham uma nova pregnância, desde que um agrupamento humano os encare a
partir do ideal do eu.
Um exemplo num texto freudiano: quando ele se pergunta como é que há pessoas que
aceitam morrer por um "trapo" – expressão usada por Freud para se referir às bandeiras
nacionais. Pode-se ver aqui uma transformação: há uma passagem pelo ideal do eu
individual, e a partir daí se erige um objeto coletivo de investimento, em nome do qual
há quem aceite morrer, perder o corpo, o que é a negação máxima do individual.
Para Freud, no extremo oposto da estrutura coletiva está o pânico. O ponto zero do
coletivo não é exatamente o indivíduo – que é impensável sem o coletivo -, mas o
pânico. O pânico é um afeto – Freud fala do pânico mais ou menos como uma variante
da angústia. No pânico o imaginário se desconecta do simbólico. Ocorre nele uma
decomposição do coletivo, por efeito de uma disjunção entre imaginário e simbólico.
Ou seja, no pânico o corpo se separa, e é desde então desapoiado do significante que o
Página 23
representa.
Vocês se lembram da explicação freudiana: o pânico ocorre quando nenhum objeto
coincide mais com o ideal coletivo. Existe no pânico algo que não responde no Outro –
como os nossos telefones, de vez em quando. A gente chama e não responde. O pânico
passa um pouco por aí. (risos).
Eu me lembro de uma frase horrorosa, escrita na parede de uma cela em alguma cadeia
brasileira, que dizia: “aqui é o lugar onde a criança grita e a mãe não ouve”. É mais ou
menos isso o pânico. Existe o apelo, o grito, mas não há resposta do Outro.
Freud exemplifica o pânico com uma passagem bíblica que certamente todos conhecem:
trata-se do episódio de Judite, que, para salvar os hebreus, finge se oferecer ao general
assírio Holofernes, e, durante a noite, corta-lhe a cabeça: “o general perdeu a cabeça”,
gritam então os soldados em pânico. Freud usa esse grito como o anúncio da dissolução
do exército. Desde que alguém grite: “o general perdeu a cabeça”, o coletivo se
dissolve. A partir do momento em que já não existe apoio na moção vertical do amor do
Outro, a coordenada horizontal se dissolve. Nas palavras do narrador bíblico, “o tremor
e o terror caíram sobre eles, e não conseguiram ficar um ao lado do outro, mas, à uma,
debandaram, fugindo por todos os caminhos da planície ou da montanha”7.
Nessa lógica, o coletivo tem forçosamente uma estrutura edipiana, pelo menos em uma
das suas direções. O que Freud nos ensinava em 1921 não é suficiente para pensar um
coletivo que não seja de estrutura edipiana. O pai freudiano é a fonte do ideal, de onde
emana um amor igual para todos.
Chegados a esse ponto, é evidente que podemos nos perguntar o que pode acontecer na
cultura quando os ideais, como é o nosso caso atualmente, não são suficientemente
fortes para mobilizar coletivos, e o Nome-do-Pai não funciona tanto quanto antes como
operador simbólico. Foi em torno desta questão que surgiu o meu interesse pelo
encontro de Lacan com a experiência realizada por Bion, Rickman e outros na Inglaterra
durante a guerra.
Está havendo na cultura atual um movimento de dissolução de velhas estruturas – e um
dos recursos contra isso corresponde ao que Miller chamou, no Congresso da AMP de
2004 em Comandatuba, de "reacionário", que consiste em apelar para a volta do pai e
dos velhos ideais: é preciso refazer o pai, é preciso refazer os velhos ideais antes que o
mundo se dissolva. Um outro recurso, e aqui estou falando de um desafio ao qual cada
7 Judite, 15-2.
Página 24
um de nós dedicou a sua vida, é o de identificar o que está surgindo de novo, de inédito,
do que nunca existiu, e aprender a reconhecer os seus sintomas, que continuam a ser o
ponto de apoio da psicanálise.
O desafio, me parece, pode ser formulado assim: se os psicanalistas não são capazes de
reconhecer sintomas inéditos, haverá o fim da psicanálise. Haverá uma dissolução da
psicanálise se ela não for capaz de cumprir a tarefa para a qual foi inventada, que é
amparar-se no gap entre indivíduo x sujeito, e, a partir daí, dar um tratamento para
garantir as chances do desejo. É diferente de dissolver o sintoma. Para o psicanalista, o
sintoma não corresponde exatamente àquilo de que o sujeito se queixa. Lembro de um
psicanalista que disse ao seu paciente que o seu sintoma é o que ele tinha de melhor
[risos da platéia]. Talvez exagerando um pouco, diria que há de fato uma certa
advocacia do sintoma por parte do psicanalista.
É nesse ponto, me parece, que a gente encontra os efeitos dos trabalhos de Bion e
Rickman sobre Lacan, e a remota inspiração que terão trazido para as iniciativas
institucionais lacanianas, que terão como figuras principais o cartel e a Escola.
Eu tentei, nessas conferências que viraram artigo, pensar a criação dos cartéis
lacanianos como uma tentativa de fazer funcionar - como pensou Bion -, um grupo sem
o apoio físico de um chefe. Bion chamava isso de grupo sem líder, ou sem chefe. Em
lugar do chefe, uma tarefa, sem uma encarnação física do significante mestre. Mas, ao
mesmo tempo, sem cair na tentação anárquica do que Lacan chama no Ato de Fundação
da Escola Freudiana de Paris de "hierarquia de cabeça para baixo". Como alternativa à
hierarquia de cabeça para baixo, Lacan fala de uma "organização circular"8, que
permaneceu no funcionamento da Escola sob a forma da permutação.
A influência de Wilfred R. Bion sobre Lacan vem do fato desse psiquiatra e psicanalista
inglês ter inventado uma saída coletiva em um momento de crise do significante mestre.
Em uma Inglaterra arrebentada, praticamente vencida, e até certo ponto dispersa, Bion –
que foi combatente na Primeira Guerra - ensina aos militares como fazer uma seleção de
oficiais e encontra com isso uma saída digna, no sentido de que, mantendo a saída
coletiva, evitou no entanto uma saída do tipo submissão, como nos grupos fascistas. Isto
é um ponto fundamental do elogio que Lacan faz à iniciativa de Bion.
Esses grupos sem líder tiveram uma característica fundamental: é que, na verdade, não
era a capacidade natural de liderança que fazia com que alguém assumisse a direção,
mas simplesmente uma certa disposição para cumprir as tarefas. O que fazia com que
8 Lacan, J.: Outros escritos, JZE, Rio de Janeiro, 2003, p. 236.
Página 25
alguém ocupasse a direção não era o seu charme de líder, mas a sua capacidade de
cumprir tarefas. Existe aí uma idéia de psicanalista, de tentar manter a dignidade do
efeito sujeito.
Lembro que quando eu estava preparando as conferências, me encantei com o artigo de
Bion sobre as tensões de grupos9. É mais ou menos esta a fórmula, se posso forçar um
pouco os termos: “Todo mundo é obrigado a participar, a fazer isso e aquilo…a menos
que não queira” [risos da platéia]. Há sempre um “a menos que...” depois de se ter feito
uma clara afirmação de autoridade. Há portanto uma função irônica no texto de Bion,
que não deve ter passado desapercebida a Lacan.
Uma hipótese para ser discutida: o que Bion propôs como solução para a crise foi
ampliado por Lacan e passou a servir de resposta, não simplesmente para um momento
de crise, mas para uma mudança histórica fundamental. No momento em que atuou,
Bion não precisava pensar nas grandes linhas das transformações da cultura. O que Bion
precisava pensar era como tornar pessoas aptas para a guerra, mesmo que fossem lutar à
morte por um pedaço de trapo, e ao mesmo tempo reafirmar a dignidade democrática. E
para isso, ele, como psicanalista, operava no sentido da disjunção entre indivíduo e
sujeito. Bion não precisava pensar que a Segunda Guerra ia ser um dos fatores de uma
modificação definitiva na cultura ocidental.
Lacan pegou essa ideia e a usou como base de operações – é uma expressão militar que
ele usa – para enfrentar os desafios da cultura, e não mais de uma crise, como a crise de
um exército durante a guerra. Lacan lançou mão de instrumentos mais ou menos
análogos aos de Bion para responder não a uma crise contingente, mas a uma
necessidade imposta pela cultura, pela ciência, pelas transformações na família e nas
instituições, que exigiam uma modificação na maneira de transmitir a psicanálise.
Talvez o ponto em comum mais decisivo entre os dois, Bion e Lacan, pelo menos no
meu entender, seja a escolha do trabalho como forma de relação com a causa, por um
lado, e, por outro, como maneira de dispensar o recurso a um chefe, cujo modelo é o
pai. De um chefe que represente corporalmente o significante mestre para aquele
coletivo. O trabalho funciona como uma solução. Como muitos aqui terão notado,
chama a atenção o número de vezes em que Lacan no artigo fala diretamente do
trabalho, ou faz alusão a tarefas e a coisas práticas.
O trabalho é uma operação, que é posta no lugar do que seria a consistência. Onde
9Bion, W.R.: “O estudo pelo grupo de suas tensões internas”, em Experiências com grupos: os
fundamentos da psicoterapia de grupo, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1970.
Página 26
haveria consistência do Um, instala-se uma operação dinâmica – trabalho. Eu estive
olhando rapidamente no Ato de Fundação de 1964, nas várias vezes que Lacan fala do
trabalho, a começar pela expressão que se tornou um de nossos significantes mestres,
que é o "trabalhador decidido".
É evidente que o trabalho com os coletivos, por si mesmo, pode ser um engodo. Por si
mesmo, ele pode estar a serviço das pulsões de morte. Quando, por exemplo, alguém
aceita um excesso de trabalho para alimentar a gulodice do supereu. Eu falo de
gulodice, porque me lembro que Miller, há muito tempo atrás, para dar um exemplo de
supereu, disse: “o supereu impede que você coma marmelada: é ele que come” [risos da
platéia]. Há uma gulodice do supereu que conduz à inanição aqueles que não poderão
comer marmelada.
Talvez vocês tenham ouvido falar de Stakhanov. Alexei Stakhanov foi um mineiro
soviético que teria conseguido, na noite de 30 para 31 de agosto de 1935, extrair catorze
vezes a quantidade de minério que conseguia normalmente, em um esforço em prol da
construção do socialismo. Foi por isso condecorado como herói. Stakhanov ganhou um
título que era importante na época de Stalin, Herói do Trabalho Socialista, o que fez do
seu nome uma metonímia: o stakanovismo, que hoje é pejorativo, sem dúvida não o era
na época de Stálin, supondo-se que a metonímia já existisse. Chamar alguém hoje de
stakanovista significa dizer “você está trabalhando para a gulodice do supereu”. Na
época de Stálin, significaria dizer “você está trabalhando heroicamente para a
construção do socialismo”. Houve uma mudança aí na época, e trabalhar arduamente,
duramente, para alimentar a gulodice do supereu, visa negar a inconsistência do Outro.
É neste sentido que a Escola de Lacan deve sempre dizer que ela é inconsistente. Porque
a alternativa para a inconsistência do Outro é a gulodice superegóica.
Uma frase de Miller na sua Teoria de Turim, de 2000, define assim a Escola: “a Escola
é um conjunto logicamente inconsistente”. É um conjunto de Russel, do catálogo dos
catálogos que não contém a si próprio, um conjunto sem universal. Fora de uma idéia
onde não vale um para todo x, ele é não-Todo. Seguindo o que diz Miller, não-todo não
significa que seja incompleto, não significa que lhe faltaria sempre um pedaço, como se
entende habitualmente a expressão não-todo. Ele é não-todo no sentido de que é
logicamente inconsistente, e se apresenta sob a forma de uma série para a qual falta uma
lei de formação.
Também a razão disso tudo é que faz com que o movimento lacaniano se apresente sob
uma forma essencialmente dispersa. A própria AMP, é ainda Miller quem o diz, não é
Página 27
senão uma entre outras.
Em fevereiro de 2010, Jacques-Alain Miller concedeu uma entrevista para a revista
francesa Le Point10
, que foi traduzida e difundida nas publicações do Campo Freudiano.
Mais para o fim da entrevista, Miller fala do filme Avatar, que foi visto por muita gente.
O jornalista pergunta: “é esse o filme que nossa época espera?”. E Miller responde: “seu
sucesso mostra que a humanidade acaba de se… [pausa] dégouter foi traduzido como
“desgostar”, mas seria melhor dizer enojar-se, enjoar, é mais forte do que desgostar…
Não é questão de gostar ou desgostar. É mais como uma comida excessivamente doce
que você enjoa. Ou algo de que você se enoja. A humanidade enjoou da espécie
humana. É uma entrevista impressionante, o tom com que Miller fala me pareceu
inédito, sob certos aspectos.
“Não estamos mais no “mal-estar na civilização” diagnosticado por Freud, mas num
impasse crescente - afirma ainda Miller -. O „salve-se quem puder‟ – acabamos de falar
do pânico – é geral. Num momento em que a globalização do capitalismo exacerba o
individualismo, a competição, o cada-um-por-si, como foi dito, que cerca de auréola, de
uma docilidade imaginária, a natureza, a animalidade. Aspira-se a um comunismo
primitivo autoritário, sob a forma de um tribalismo quase vegetal”.
Essa resposta foi uma das últimas da entrevista, e é bem de acordo com o estilo de
Miller, me parece: ele parte, como faz com frequência, de pares que são postos em
oposição, e, a partir daí, como é o caso nessa entrevista, o primeiro elemento do par
conduz ao segundo. Por exemplo, “mal-estar na civilização” conduziu ao “impasse
crescente”. Mal-estar na civilização seria, tanto para Freud quanto para Lacan, um fator
real que mobiliza a existência da civilização. Que faz mal, mas ao mesmo tempo é causa
da civilização, como o sofrimento pode ser causa do tratamento analítico. Como é que o
mal-estar se torna, é substituído por um impasse? Há uma quebra na dialética que opõe
e reúne mal-estar e civilização.
Segundo: da “globalização” ao “individualismo”. Ou seja, como é que a globalização
desemboca no individualismo que, pelo menos à primeira vista, seria o seu contrário.
Poderíamos entender, me parece, o individualismo como a produção de um sintoma
particular a partir do universal. O individualismo, na verdade, seria um ponto de
fracasso da globalização – ela conduz ao seu contrário.
E, finalmente, do “individualismo” ao “comunismo primitivo”. Como é que o
10 Edição de 25/02/2010. No Brasil, a entrevista foi publicada pela CLIPP, no seu boletim datado de
05/04/2010.
Página 28
individualismo aspiraria, ou conduziria, ao comunismo primitivo.
Existe uma maneira de mostrar como os aparentes opostos podem se tocar, mas também
como a realidade do mundo é mais compreensível se a encararmos topologicamente, e
não apenas descritivamente, ou topograficamente. O coletivo e o individual passam a
ser vistos não mais como oposições absolutas, como termos opostos que se excluem,
mas como dois extremos que se combinam, ao ponto de um poder se transformar no
outro. O método de Miller nos ensina muito a este respeito.
Como vocês devem ter reconhecido, essas palavras de Jacques-Alain Miller retomam
algo do que escrevia Freud em Psicologia de Grupo e a Análise do Eu, no final do
Capítulo IX, onde Freud recusa a idéia de um autor, Trotter, que falava a favor da
existência de um instinto gregário como base do animal político aristotélico. Se há um
instinto gregário, a socialização é primária: desde que há ser humano, a socialização se
impõe. E Freud escreve: não, nada disso, não há instinto nenhum. O ser humano,
conclui Freud, é um animal de horda, uma criatura individual numa horda conduzida
por um chefe autoritário11
.
Essa horda seria uma formação social cuja igualdade entre seus membros é garantida
pela referência a um diferente, um chefe – nesse texto, há uma descrição antecipada dos
grupos nazi-fascistas. Um chefe superior a todos, que não está sujeito à igualdade mas
que é a condição da igualdade. Freud está retomando nesta passagem, mais ou menos
literalmente, o que escrevera nove anos antes em Totem e Tabu.
Hoje temos que prolongar a teorização freudiana sobre as relações entre o coletivo e o
individual, a partir de dois fenômenos constatados por Lacan, e que me parece que são
perfeitamente correlatos: a inexistência do Outro – um título do curso de Jacques-Alain
Miller com Éric Laurent; e a elevação do objeto ao zênite da civilização. Não dá, me
parece, para pensar um sem o outro.
Obrigado!
Blanca Musachi: Então, vou passar a palavra para vocês fazerem intervenções.
Rômulo Ferreira da Silva: Obrigado, Romildo, pela excelente fala, e de tanto interesse.
Eu fiquei pensando, desde o início da sua apresentação, o quanto a experiência da
11 V. Freud, S.: “Psicologia de grupo e análise do ego - Capítulo IX”, Obras Completas, Imago Editora,
Rio de Janeiro, 1996, p. 131.
Página 29
psicanálise nas instituições teve um aperto durante os anos de 1960 e 70,
principalmente, de uma desconstrução da autoridade, uma desconstrução da própria
instituição. A tese máxima era “a instituição não existe”, portanto desfez-se o que tenta
fazer consistir a instituição. E, nesse tempo, um certo banimento, a partir daí, da
psicanálise desse trabalho nas instituições. E depois uma retomada, o que hoje nós
temos, em vários lugares, psicanalistas trabalhando em instituições. Então, claro, que
essa orientação lacaniana, que você colocou de uma forma brilhante e muito
interessante, a passagem que você fez desse pai que então fazia essa função entre essa
rachadura aí entre o sujeito e o indivíduo, como Lacan, a partir da experiência de Bion e
Richmann, propôs esse inconsistente, e o trabalho, a tarefa mesmo. Quase como em
oposição mesmo à intelectualidade, sempre presente nessa discussão sobre a
desconstrução. É o trabalhador decidido que vai poder se colocar aí nessa hiância.
Então, fiquei pensando que esse é um ponto importante pra gente destacar, de como
algumas formações como o cartel, por exemplo, em que há o pai absolutamente
inconsistente, e como a presença do psicanalista nas instituições - que é o que a gente
também está pretendendo discutir a partir da questão da psicanálise aplicada – o quanto
é preciso estar advertido, um psicanalista que está numa instituição também, do que é
esse momento contemporâneo, do lugar do objeto, e a inconsistência do Outro, o Outro
que não existe. Entre a psicanálise pura, a Escola e o passe, tem essa questão da
psicanálise e Instituição – que acho que muitos aqui têm essa experiência para pensar.
Não só na função de supervisor, na função de um chefe de serviço, mas como cada um
anuma instituição, seja ela de educação, de saúde, etc, mas como cada um tem que estar
colocado a partir dessa posição, que é se dar conta dessa hiância aí entre sujeito e o
indivíduo.
Luiz Fernando Carrijo da Cunha: Primeiro, eu gostaria de agradecer essa conferência
porque eu acho que ela retoma pontos de extrema importância e atualidade para nós.
Antes de vir pra cá, eu fiquei me perguntando se seria possível, quando vi o título da sua
conferência de hoje, se seria possível escapar da (sic) “Psicologia das Massas e Análise
do Eu” para interpretar o momento atual. E eu acho, à conclusão que eu chego, é que
não tem como escapar disso. Tem alguma coisa que Freud colocava nesse texto, assim
como em “Totem e Tabu”, que é efetivamente o retorno de um Real impossível de
escapar dele. Então, quando você fala do coletivo de indivíduos que se forma em torno
de um ideal, e que o contrário disso é o pânico, e isso depois em Lacan tem, como saída
para isso, a saída bioniana da “Psiquiatria Inglesa e a Guerra”, onde toma o lugar-
Página 30
causa. Uma saída não em função de um ideal, mas em função de uma causa. A minha
pergunta para você seria o seguinte: será que se sustentaria para nós hoje, para que não
fôssemos psicanalistas reacionários – tal como Miller nos adverte lá em Comandatuba
em 2004 –, será que se sustentaria ainda para nós hoje – se não é uma pergunta que eu
faço, é um ponto que eu estou querendo tentar avançar um pouco – o enunciado de se
terem inimigos em função de uma causa. Inclusive o que a gente atesta hoje, dentro da
própria psicanálise, um certo impossível... dessa causa. Falar da causa perdida freudiana
me parece hoje mais um enunciado vazio, porque não pegamos as mesmas
contingências que Freud e Lacan pegaram no mundo, sobretudo no período entre
guerras, onde isso poderia ser sustentado de uma maneira muito vigorosa. Eu não sei,
então – é uma impressão que eu tenho – eu não sei se podemos nos sustentar em cima
desse semblante ainda. Como, por exemplo, colocar o trabalho no lugar da causa, que
levaria à voracidade do supereu – eu acho que é isso que caracteriza os sintomas
contemporâneos: a própria voracidade do supereu como retorno aí do Real, do pai que
manda castigo.
Heloísa Prado: Romildo, eu queria pensar com você uma questão. Me parece que
poderemos propor uma báscula entre o ideal e os modos de gozar, enquanto instrumento
para analisar alguns fenômenos. E a partir dessa contribuição que você traz do Miller –
que são dois fenômenos: da inexistência do Outro, e a elevação do objeto ao zênite –
pensarmos hoje, na atualidade, algumas manifestações de algo em torno do ideal ainda,
disso que não cessa de retornar. E me ocorre de pensarmos no retorno do
fundamentalismo religioso. Se a gente poderia entendê-lo algo orientado, apoiado por
um ideal, e não por um modo de gozar.
Maria Josefina Fuentes: Então, eu queria dividir com você uma idéia que eu tenho que
é a seguinte: talvez você concorde comigo que a história – eu estou querendo pensar a
própria instituição dos psicanalistas – que a história do movimento psicanalítico, mostra
que essa instituição dos psicanalistas, ela é difícil, sempre foi difícil, nos diferentes
grupos sempre houve muita confusão, briga, separação… Sempre foi… historicamente
amor e ódio; e ruptura. Então, eu queria, assim, tentar entender um pouco isso, e
também essa idéia de que porquê… mesmo com Lacan, como você bem nos trouxe, ter
fundado a Escola a partir dessa… colocando a inconsistência do Outro no coração da
Escola, já que não há definição para o analista, mas como é difícil para todos nós hoje
Página 31
em dia, se é que a gente pode falar aqui no coletivo, saber fazer na mesma
inconsistência. Eu tenho uma idéia que eu queria te escutar um pouco sobre isso: se não
há algo que não é da própria posição do psicanalista, que é diferente do dentista, do
médico, de outras instituições, mas da própria posição do psicanalista que, por mais que
isso singularmente possa até servir como solução para um psicanalista, no sentido de
seu sintoma para um psicanalista, mas com a posição do psicanalista que implica estar
como objeto na experiência, como objeto tem que se desfazer do narcisismo – porque
com o narcisismo não se opera como analista – se essa posição mesmo não faz, não
retorna… não tem algo disso: de que na instituição dos psicanalistas, de alguma forma é
necessário recuperar um certo narcisismo perdido. Então isso é… algo que eu gostaria
de te escutar.
Carmem Cervelatti: Primeiro eu gostaria de agradecer ao Romildo. A cada vez que te
vejo falar sobre esse tema, me faz pensar e elaborar sobre coisas importantes que estão
sempre, estou sempre às voltas com isso, é algo que… não se deixa “desgrudar do nosso
pé”. E você falando sobre o trabalhador decidido, e até interessante falar sobre a
colocação da Pepita, eu também tenho muito forte essa questão sobre o que acontece
com os psicanalistas dentro das suas instituições. Onde deveria acontecer alguma coisa,
isso que me parece, porém que sempre está às voltas com um funcionamento.
Exatamente esse ponto do trabalhador decidido que você recupera, que me provoco a
pedir para que você falasse um pouco mais sobre ele, porque me parece estar em
antagonismo com a questão do gozo.
Eduardo Benedicto: Realmente uma conferência muito instigante a sua, e
particularmente porque trabalho numa instituição também, e a gente trabalha num
núcleo também que desenvolve pesquisas sobre as relações entre psicanálise e
instituição, e atualmente estamos trabalhando o “Parceiro-Sintoma”, de Miller. Em
cima da sua colocação… em que há um espaço entre indivíduo e o sujeito, teve um
momento em que a esse efeito sujeito se reverte ao outro. Como a gente pode pensar
desse sujeito ao parlêtre, me parece que talvez colocando o “Parceiro-Sintoma” como
uma referência aí. Até para gente pensar no contemporâneo, na atualidade da própria
instituição, e desses coletivos.
Blanca Musachi: Bom, então vamos passar a palavra a Romildo, mas eu também
Página 32
queria fazer um comentário. Retomando essa sua referência ao “salve-se quem puder” ,
ao qual você faz referência na entrevista do Miller, me lembrei que Miller no
“Banquete dos Analistas”, naquele seminário sobre o “Banquete dos Analistas”, tem
um capítulo onde ele justamente trata das questões que hoje estamos tratando. Mesmo
que a Escola seja definida como aquele Outro inconsistente, sempre, não está livre dos
efeitos de grupo. Então, esse “salve-se quem puder”, muitas vezes está presente nos
efeitos de grupo, ele diz isso nesse seminário. E uma das coisas que chamam à nossa
consideração diz assim: “os analistas sempre estão em guerra”. E uma saída que ele
propõe nesse momento, ele coloca como uma saída possível, a consideração da disputa.
A disputa que não significa que alguém que está em desacordo é um dissidente. Que
não significa a dissidência, e que isso não gere a uma cisão. Então, era o comentário que
eu queria colocar porque está no tom das coisas que estamos tratando aqui. Quer dizer a
Escola, mesmo definida como esse Outro inconsistente, mesmo que não responda a essa
lógica da “Psicologia das Massas”, não está livre dos efeitos do grupo, e penso que a
gente está aqui também falando da importância de entender de quê se trata.
Romildo: Eu queria agradecer a vocês pelas perguntas e comentários, que certamente
vão além do que eu tinha pensado em dizer – e sem dúvida além do que eu seria capaz
de dizer. Dá para reconhecer em alguns dos comentários certas características dos anos
sessenta/setenta. Eu pertenço a essa geração, e devo ter as incertezas dessa geração. Por
exemplo, uma certa tendência à idealização. Todas, ou quase todas as perguntas vão no
sentido de corrigir idealizações, não sei se vocês se deram conta disso. Pode ser minha,
a idealização. Pode ser uma idealização de nós todos, costumeira. Pode ser também uma
idealização impossível de evitar quando se usam categorias como “A Escola”, “O
Passe”, “O Psicanalista”. Toda vez que se usa o artigo definido, masculino ou feminino,
existe um risco de idealização. Isso está presente sobretudo na questão trazida por Luiz
Fernando. Eu concordo com ele completamente, até um certo ponto – completamente,
até um certo ponto [risadas na platéia]... É minha maneira de concordar
inconsistentemente. É verdade que não há como escapar da Psicologia das Massas, no
sentido de que é o horizonte de um certo tipo de coletivo, embora não de outros. Existe
uma possibilidade – creio que é esta a aposta da Escola de Lacan – de se fazer, de se
pensar um coletivo com outra lógica. Não como um ideal somente, mas também como
uma chance para as causas singulares. O mérito da psicanálise não é o de nos levar a
ficar sem ideais - não há coletivo sem ideais, mas o de permitir que saibamos que há
causas que não são ideais, e que os ideais não expressam as causas. A junção entre as
Página 33
causas e os ideais faz parte da tarefa civilizatória dos psicanalistas, isto me parece
essencial.
Nesse sentido, a partir do que Heloísa diz, me parece que é importante procurar os
pontos de articulação entre ideais e causa, mais do que dizer em que é que a Escola de
Lacan trabalha no sentido da disjunção. É evidente que há diferentes ideais e diferentes
causas.
Eu gostaria de retomar alguns pontos importantes das várias perguntas e comentários:
Fundamentalismo. Eu não acho que o fundamentalismo seja propriamente um
ideal, no sentido que Freud dava ao termo, isto é, algo como o horizonte comum
dos coletivos. Penso que não é exatamente um ideal, mas uma tentativa de impor
um modo de gozo no coletivo. O fundamentalismo é, entre outras coisas – quase
tudo está entre outras coisas –, uma tentativa de universalizar um modo de
gozar, o que tem como contrapartida o surgimento do ódio ao gozo do Outro –
forma moderna do racismo, como ensina Miller em Enemigos Éxtimos. Nós
dizemos que os modos de gozar são separadores, e os ideais juntam. Então, faz-
se uma Escola que abrigue modos de gozar singulares, e ao mesmo tempo tenha
ideais coletivos. Ideais coletivos, e pessoas que saibam que as causas são
separadoras. É neste sentido que a precariedade é fundamental na instituição
psicanalítica.
A recuperação do narcisismo. A nossa experiência mostra que não é preciso
muito esforço para isso [risadas na platéia]. Existe uma vertente quase natural
de recuperação do narcisismo. Quer dizer, cada um se vira como pode.
Recuperar o narcisismo perdido não é nem um defeito e nem uma qualidade. É
como os ideais: é alguma coisa que é inevitável, contanto que ao mesmo tempo
se saiba, se seja bastante irônico para saber que isso não é a causa. Porque a
“causa” narcísica parece com a causa analítica, no sentido de que é particular.
Trabalhador decidido. É preciso não confundir o trabalhador decidido com o
operário padrão, como disse há alguns anos o nosso amigo Carlos Nicéas, já não
lembro em quê contexto. É preciso que o trabalhador decidido – “trabalhador
decidido, como sou desde já”, é assim que Lacan conclui a frase – não seja
confundido com aquele que não recusa trabalho porque precisa alimentar a
gulodice do supereu.
As relações entre o sujeito e o parlêtre. Esta questão nos levaria um pouco longe,
mas talvez se possa dizer que existe alguma pista, alguma linha que a gente
Página 34
possa discutir… quer dizer, não somente dizer que parlêtre é como Lacan
terminou chamando o sujeito, senão que atendeu a necessidades práticas e
teóricas que o sujeito não atende. Há uma nova relação com a causa no parlêtre
que não é visível no sujeito, se posso dizer assim. Foi por isso que eu trouxe esse
trecho da entrevista de Miller que é muito interessante. Até seria oportuno que
algum cartel em São Paulo discutisse essa entrevista, exatamente a partir da
idéia de Miller segundo a qual o que era mal-estar na civilização é hoje um
impasse. É uma frase que não se diz todo dia. Se o que caracteriza a civilização
hoje é o impasse e não o mal-estar, onde estão o sujeito e o sintoma? E, em
consequência, onde está a ética do psicanalista? Mereceria uma discussão
aprofundada. Eu acharia interessante que se tomasse, por exemplo a partir da
pergunta de Eduardo, uma questão do tipo: “o que quer dizer mal-estar na
civilização na perspectiva do falasser? Na perspectiva do falasser, que reenvia à
perspectiva do sinthoma” – que é o sintoma que inclui a fantasia, diferentemente
do sintoma freudiano. Existe aí uma questão que é histórica, mas sobretudo
existe uma questão ética fundamental que é dirigida aos psicanalistas.
„Salve-se quem puder na Escola‟. Todo dia tem algum „salve-se quem puder‟ em
algum lugar, em maior ou menor grau. No entanto, não se sai correndo todo dia
durante um seminário na Escola. Aliás, é rarísssimo [risadas na platéia]. Mas,
suponhamos, não é impossível. Podemos imaginar que aconteça um dia que uma
frase do tipo “o general perdeu a cabeça‟, dita num seminário, de repente faça as
pessoas saírem correndo. Quando o general perde a cabeça, o efeito súbito de
pânico indica que ninguém se representa naquilo que está fazendo. Quando é
rompida a linha vertical que nos une ao Outro, já não temos colegas, nem
irmãos, nem camaradas, e nem mais famílias. Isso é o pânico. É a dissolução
daquilo que mantém os coletivos, segundo Freud. Mas, por outro lado, para mim
que sou otimista, o „salve-se quem puder‟ permanente nas instituições é
simplesmente o sinal de que a causa é singular. O „salve-se quem puder‟ ocorre
nesse momento em que alguém se afasta sozinho, porque a liga do coletivo, a
liga que mantém o coletivo, por alguma razão não funciona. Isso, por que não, a
gente pode pensar que é permanente, pode ocorrer a qualquer momento. Agora
mesmo pode estar acontecendo com algumas pessoas aqui. De repente alguém
pensa: “bom, isso para mim já é uma bobagem”. E se afasta. Outros estarão no
entusiasmo porque ontem tiveram uma idéia brilhante, e justamente agora eu
teria feito uma rápida alusão, mesmo se superficial, a algo que tem a ver com
Página 35
essa ideia... Esse movimento de idas e vindas é próprio do coletivo.
Para terminar, o que caracteriza a Escola? O que deveria, no meu entender, caracterizar
a Escola e o psicanalista é que não se tem o direito de não saber disso. A gente tem
todos os erros, todos os defeitos, todas as misérias do mundo, mas não tem o direito de
não saber do que são feitos. As nossas misérias, claro, e a nossa grandeza também,
ambas recobertas pelos nossos semblantes.
Transcrição: Daniella Teixeira Souza.
Estabelecimento do texto: Blanca Musachi
Revisão do português: Maria Luiza Ricupero
Correção e versão final de Romildo do Rêgo Barros
Página 36
ENCERRAMENTO DA JORNADA DE CARTÉIS DE 2010
Ao encerrar esta Jornada de Cartéis da EBP-SP - 2010, gostaria de fazer referência à
retomada desta atividade pela Diretoria da EBP-SP – gestão 2007-2009 – ao realizar a
Jornada de Cartéis da EBP-SP em março de 2009, com a presença de Leonardo
Gorostiza, quando há muito isto não acontecia em São Paulo, embora os cartéis
continuassem existindo e trabalhando.
Na atual Diretoria da EBP-SP – gestão 2009-2011, o empenho na manutenção deste tipo
especial de trabalho da Escola de Lacan, postulado por ele em seu Ato de Fundação de
1964, se renovou de maneira decidida, não só pela realização da Jornada anual, mas,
principalmente, pela organização de reuniões e conversações voltadas para o trabalho de
cartéis, levadas a termo por Blanca Musachi, Diretora de Intercâmbio e Cartéis da EBP-
SP, no ano de 2009, cujos resultados estão publicados e são uma referência para nós.
Em um determinado momento da orientação lacaniana sustentada pela AMP, em que se
discutiu de forma extensa a Psicanálise Aplicada, com a posterior retomada da ênfase na
Psicanálise Pura, surgiu, para mim, a questão da permanência ou não, em nossa
orientação, do lugar especial do trabalho de cartel na Escola de Lacan. A resposta me
veio, de maneira contingente, no editorial de Jean-Daniel Mattet, na Lettre Mensuelle de
fevereiro de 2009, em que ele reafirma a importância do trabalho de cartel para a
Escola, destacando, inclusive, os Cartéis do Passe como cartéis especiais, mas também
cartéis.
A partir da primeira conversa realizada pela Diretoria de Intercâmbio e Cartéis da EBP-
SP em 2009, extraiu-se, como título para a segunda, a expressão de Mauricio Tarrab
“Atreve-te a saber”, que está no cerne do trabalho de cartel. Acrescentaria que o
trabalho de cartel e a Jornada, que recolhe o produto próprio de cada um dos
participantes do cartel, oferecem a chance também do atreve-te a falar, falar para o
Outro, endereçando o saber assim elaborado para a Escola, que é a função do cartel.
Foi o que pudemos acompanhar nesta Jornada que reuniu trabalhos de cartéis que já
terminaram, daqueles que estão funcionando e aqueles que apenas estão começando,
mostrando o caráter circular, e também em espiral, desta modalidade de trabalho, tal
como os giros dos discursos criados por Lacan, em que, a cada volta, aparece o amor.
Neste caso, o amor à Escola, o amor a Freud e Lacan, o amor à Psicanálise.
Página 37
Quero agradecer imensamente a Romildo do Rego Barros, nosso convidado para esta
Jornada, cujos textos e elaborações são uma referência para nós na EBP-SP, a todos os
participantes que apresentaram seus produtos próprios, e ao público que debateu
vivamente o trabalho de cartel da EBP-SP.
Muito obrigada e até o ano que vem!
Cássia M. R. Guardado
Página 38
JORNADA DE CARTÉIS DA EBP-SP – 10 de abril 2010
RESENHA
A Jornada de Cartéis da EBP-SP deste ano ocorreu em um clima de muito trabalho e
entusiasmo, com a presença do convidado Romildo do Rêgo Barros, Membro e AME da
EBP-AMP, que nos brindou com a Conferência “Os coletivos lacanianos”.
Na abertura, a Diretora de Intercâmbio e Cartéis, Blanca Musachi, após dar as boas
vindas e agradecer a presença de todos, falou do trabalho que a diretoria vem
desenvolvendo sobre o real do grupo, em torno de questões sobre o que nos liga neste
laço coletivo chamado Escola e em que se diferencia esse de outros laços sociais. O
cartel se mostra como um modo de tratamento do real do grupo, mais além dos efeitos
de grupo sempre presentes nas formações coletivas. O fundamental na Escola como
instituição da diversidade é que os grupos produzam efeitos de interpretação dando
lugar ao heterogêneo. A questão sobre o que faz laço na Escola encontra uma resposta
pela via do amor, introduzindo a Escola como parceiro-sintoma, um parceiro coletivo,
onde a identificação que vale a pena é naquele compromisso de subjetivar, nomear o
insuportável, ponto de real de cada um. Finalmente, para que a Escola seja esse parceiro
coletivo, é preciso de alguns com nome e sobrenome, não anônimos, que com seu
desejo, fazem existir a Escola.
A "sociologia lacaniana" possui um elemento que descompleta o
universal, daí a Escola, o cartel, o passe. . . [1]
Romildo nos brindou com a conferência “Os coletivos lacanianos” tecendo
diferenciação entre grupos verticais de orientação universal orientados pela relação com
um chefe, de grupos horizontais organizados a partir da inexistência do Outro, mas que
não funcionem pela via do “somos todos iguais” como sonharam os irmãos do texto
freudiano (Totem e Tabu), clã que só se mantém até o momento em que um dos irmãos
resolve reivindicar para si o gozo que era reservado ao Pai. Introduz aí a função da
Escola em sua dimensão sintomática inscrevendo-se em um lugar litoral entre o sujeito
e o coletivo.
Frente ao fracasso dos significantes mestres, e ao inevitável risco que isso traz aos
sujeitos, expondo-os ao imperativo da “lei insensata” (Lacan) do supereu, a Escola se
oferece como alternativa descompletante. Alternativa sintomatizante que abre ao sujeito
a possibilidade de produzir, pelo trabalho de cartel ou pelo passe, algo de singular, algo
Página 39
de seu, algo novo. Algo que Romildo chamaria uma saída digna, termo com o qual
adjetivou a produção coletiva de tarefas realizadas no interior dos pequenos grupos de
Bion, cuja proposta era pesquisar a capacidade dos sujeitos cumprirem uma tarefa no
grupo preservando as singularidades, ideia que inspirou Lacan a instituir o dispositivo
do cartel como o pilar central da Escola, uma saída coletiva, uma “organização circular”
(Ata de Fundação) que responde a algo que se encontra no coração do funcionamento
da Escola - o regime da perturbação(Romildo).
À Conferência de Romildo, seguiram-se apresentações de trabalhos, desenvolvidos por
cartelizantes, organizados em três mesas.
Ainda no período da manhã, a primeira mesa, coordenada por Margareth Ferraz,
apresentou três trabalhos que abordaram o tema da Arte: a) Dali: Salvador da pintura
em parceria com Gala por Nohemí Ibañez Brown, trabalho em que autora fala do laço
entre Gala e Dali, da parceria sinthomática em que ela se coloca como a mulher
sinthoma desse homem, inserindo-se ali no espaço de um lapso, como bem observa
Maria do Carmo, para estabelecer a amarração que impede o desencadeamento da
psicose; b) Assim é que Lacan não acaba – Rodrigo Camargo – o autor utiliza a
criptografia como uma interessante metáfora para, ultrapassando Edgar Allan Poe em
“A carta roubada”, ao afirmar que uma mensagem só pode chegar ao seu destinatário,
aquele que detém a chave secreta, a ninguém mais; c) Winehouse, a dor e o ardor: o
“saber fazer” na toxicomania, por Eliane Lima Guerra Nunes, que fala sobre a relação
de Winehouse com o sucesso, a dor trazida pela equivocada escolha amorosa, ligada ao
“ódio materno”, e a opção pela droga como alternativa à castração.
No período da tarde, a segunda mesa, sob a coordenação de Maria do Carmo Dias
Batista, expôs os seguintes trabalhos: a) Demanda de cura para os novos sintomas,
como implicar aí a psicanálise? – Antonia Claudete Amaral Livramento Prado. A
autora trata de questões relativas à clínica contemporânea, à demanda de tratamento
trazida por sujeitos cujo mal-estar não se refere à falta e sim ao excesso de gozo
proveniente do declínio do Outro, o que impõe uma nova forma de conceber a clínica
psicanalítica; b) Louis Althusser: de uma parceria amorosa à passagem ao ato? – Maria
de Lourdes Mattos. Maria de Lourdes aborda a parceria sinthomática entre Hélène e
Althusser, de como uma relação amorosa pôde culminar na passagem ao ato que causou
a morte de Hélène. c) Do despertar da primavera – Maria Luiza Ricupero. O trata o
tema das crises próprias da adolescência, o corpo, a sexualidade e os conflitos que se
apresentam diante do real, das dificuldades do encontro com o outro sexo; d) O que é
possível fazer com o real? – Edson Gusella Jr. Neste trabalho, Edson fala das relações
Página 40
do real com o budismo tibetano e a forma de abordar o vazio, e como isso pode se
articular com a noção de vazio em psicanálise.
A terceira e última mesa reuniu os trabalhos: a) Pulsão: como isso toca o sujeito? –
Edson Gusella Jr. Fruto do Cartel cujo tema é sobre Os quatro conceitos fundamentais
da psicanálise, do Seminário XI de Lacan, o autor enfatiza a pulsão escópica colocando
em questão a relação entre o olhar e a consciência; b) Documentários brasileiros
contemporâneos: do saber do outro a um outro saber – Sabrina Thompson. A autora
aborda os „documentários‟ como objeto de um saber exposto por um outro, para
problematizar a relação com o saber; c) Lacan e a aposta de Pascal – Maria Bernadette
Pitteri. Tendo como referência o Seminário XVI, a autora trabalha a aposta de Pascal,
cuja questão central é sobre a morte e a existência de Deus, do Outro, observando que o
que está em jogo é o efeito de perda, perda do objeto a que, para existir, depende da
existência do Outro, indicando que o efeito de perda é aquilo com que a psicanálise está
sempre se deparando.
Para finalizar, Cássia Maria Rumenos Guardado faz um apanhado da história desta
Jornada nesta Diretoria, atividade que foi retomada, depois de muito tempo, já pela
gestão anterior, seu entusiasmo pela continuidade do Cartel na Escola, relembrando as
conversações sobre o tema do cartel realizadas no decorrer do ano de 2009 e as diversas
leituras discutidas, dentre as quais ela destaca a frase de Maurício Tarrab – “Atreve-te a
saber”, que se opõe ao não-querer-saber e abre a via para lidar de algum jeito com o
real [...] provoca transferências de trabalho... algo que é da ordem da decisão, do
Atreve-te a saber.
Antonia Claudete A. L. Prado
Correspondente da EBP-SP
[1] Rêgo Barros, R. Sobre grupos. Anais do IV Encontro Americano.
Página 41
JORNADA DE CARTÉIS 2011
SÁBADO 9 DE ABRIL - 10:00h
Convidado: Jésus Santiago, AME da EBP-AMP
Sintoma e laço social: sobre a enunciação analisante
Local: Sede da EBP-SP, Rua João Moura, 627, Mezanino
Nota: Imagem de "Aventuras dos corpos III", 2010, 21 x 29.7 x 14 cm, recorte em madeira. Thereza
Salazar, Galeria Virgílio, Pinheiros, SP
Página 42
RELAÇÃO DOS CARTÉIS DA EBP-SP
O SEMINÁRIO X – A ANGÚSTIA – DE J. LACAN
Início: Agosto de 2010
Rubrica: Clínica: teorias e práticas
Cássia M. R. Guardado (Mais-Um)
Maria de Fátima S. Luzia
Marilsa Basso
Regina Puglia
Valéria Ferranti
ATUALIDADE DA FUNÇÃO DO MAIS-UM
Início: fevereiro de 2010
Rubrica: Psicanálise e insituição
Blanca Musachi (Mais-Um)
Nancy Greca de O. Carneiro
Nohemi Ibañez Brown
Tereza Pavone
Marcia Maria Stival
Maria Otília Bento Holtz
Inez Carneiro Brito
A CLÍNICA PSICANALÍTICA NOS TEMPOS DA INEXISTÊNCIA DO OUTRO
Rubrica: Clínica: teorias e práticas
Início: 02 de fevereiro de 2010
Antonia Claudete Amaral Livramento Prado (Mais-Um)
Camila Pereira da Silva
Cristiane Carvalho Oliveira Januário
Fabiana Coimbra Noronha
Leandro Verzignassi Nunes
O DESPERTAR DA PRIMAVERA
Rubrica: Clínica: teorias e práticas
Início: fevereiro de 2010
Blanca Musachi (Mais-Um)
Maria Luiza Ricupero
Marinalva Souza Santos
Daniella Texeira Souza
Paula Catunda
O FEMININO
Rubrica: Clínica: teorias práticas
Início: março de 2010
Maria Josefina Sota Fuentes (Mais-Um)
Cynthia Nunes de Freitas Faria
Carlos Eduardo T. Murakami
Renata de Carvalho Duarte
Mary Ellen Dias Barbosa
Página 43
O OUTRO E A INCONSISTÊNCIA DO OUTRO
Início: 13 de maio de 2009
Rubrica: Leituras: conceitos fundamentais
Maria Bernadette Soares de Sant'Ana Pitteri (Mais-Um)
Carlos Eduardo de Almeida Leite
Maria Marta Rodrigues Ferreira
Lucimara Borghi Abdo Agamme
Priscilla Cheli Mendes
Anna Claudia Campos Fontes
FORACLUSÃO GENERALIZADA
Início: agosto de 2010
Rubrica: Clínica: teorias e práticas
Carmen Silvia Cervelatti (Mais-Um)
Maria Wedna Tabosa Henrique
Eliane Chermann Kogut
Griseldis Laura Achoa
Cláudia Aldigueri
PSICANÁLISE COM CRIANÇAS
Início: 08/11/2010
Rubrica: Clínica: teorias e práticas
Cristiana Chacon Gallo (Mais-Um)
Thaís Maria Pimenta e Souza
Neusa Gomes
Claudia Manaia Moreira
José Danilo Canesin
CORPO E GOZO
Rubrica: Clínica: Teorias e Práticas
Paola Salinas (Mais-Um)
Armando Paulo Tonilo
Betina Matarazzo
Elisabeth Pscholalino
Maria Saldanha de Castro
PSICANÁLISE E INSTITUIÇÃO
Rubrica: Psicanálise e instituição
Eduardo Benedicto (Mais-Um)
José Renato F. da Cunha
Maíra Tumbioli Tosi
Thaís M. Pimenta Souza
Lucas Vinco
Vagner Arakawua
Página 44
DIRETORIA DA EBP-SP
Diretora Geral
Cássia Maria Rumenos Guardado
Luiz Fernando Carrijo da Cunha (adjunto)
Diretora Secretária/Tesoureira
Patrícia Badari
Maria do Carmo Dias Batista (adjunta)
Diretora de Intercâmbio e Cartéis
Blanca Musachi
Maria Margareth Ferraz de Oliveira (adjunta)
Diretora de Biblioteca
Perpétua Medrado Gonçalves
Maria Bernadette Soares de Sant‟Ana Pitteri (adjunta)
CONSELHO DA EBP-SP
Presidente
Maria Josefina Sota Fuentes
Secretária
Marizilda Paulino
Conselheiros
Cássia Maria Rumenos Guardado
Heloísa P. R. da Silva Telles
Maria Cecília Galletti Ferretti
Rômulo Ferreira da Silva
SEÇÃO SÃO PAULO
Secretário
Anselmo Nunes
Página 45
Página 46