memoria

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“Memória” significa aquisição, formação, conservação e evocação de informa- ções. A aquisição é também chamada de aprendizado ou aprendizagem: só se “grava” aquilo que foi aprendido. A evo- cação é também chamada de recorda- ção, lembrança, recuperação. Só lem- bramos aquilo que gravamos, aquilo que foi aprendido. Podemos afirmar, conforme Nor- berto Bobbio, que somos aquilo que re- cordamos, literalmente. Não podemos fazer aquilo que não sabemos, nem comu- nicar nada que desconheçamos, isto é, nada que não esteja na nossa memória. Também não estão a nossa disposição os conhecimentos inacessíveis, nem for- mam parte de nós episódios dos quais esquecemos ou os quais nunca atravessa- mos. O acervo de nossas memórias faz com que cada um de nós seja o que é: um indivíduo, um ser para o qual não existe outro idêntico. Alguém poderia acrescentar: “...e também somos o que resolvemos esque- cer”. Sem dúvida; mas não há como negar que isso já constitui um processo ativo, uma prática da memória: nosso cérebro “lembra” quais são as memórias que não quer trazer à tona, e evita recordá-las: as humilhações, por exemplo, ou as situações profundamente desagradáveis ou inconvenientes. De fato, não as esquece, pelo contrário: as lembra muito bem e muito seletivamente, mas as torna de difícil acesso. O passado, nossas memórias, nossos esquecimentos voluntários, não só nos dizem quem somos, como também nos permitem projetar o futuro; isto é, nos dizem quem poderemos ser. O passado contém o acervo de dados, o único que possuímos, o tesouro que nos permite traçar linhas a partir dele, atravessando, capítulo 1 O que é a memória? “Memória” significa aquisição, for- mação, conservação e evocação de informações.

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  • Memria significa aquisio, formao, conservao e evocao de informa-es. A aquisio tambm chamada de aprendizado ou aprendizagem: s segrava aquilo que foi aprendido. A evo-cao tambm chamada de recorda-o, lembrana, recuperao. S lem-bramos aquilo que gravamos, aquilo quefoi aprendido.

    Podemos afirmar, conforme Nor-berto Bobbio, que somos aquilo que re-cordamos, literalmente. No podemos fazer aquilo que no sabemos, nem comu-nicar nada que desconheamos, isto , nada que no esteja na nossa memria.Tambm no esto a nossa disposio os conhecimentos inacessveis, nem for-mam parte de ns episdios dos quais esquecemos ou os quais nunca atravessa-mos. O acervo de nossas memrias faz com que cada um de ns seja o que : umindivduo, um ser para o qual no existe outro idntico.

    Algum poderia acrescentar: ...e tambm somos o que resolvemos esque-cer. Sem dvida; mas no h como negar que isso j constitui um processoativo, uma prtica da memria: nosso crebro lembra quais so as memriasque no quer trazer tona, e evita record-las: as humilhaes, por exemplo, ouas situaes profundamente desagradveis ou inconvenientes. De fato, no asesquece, pelo contrrio: as lembra muito bem e muito seletivamente, mas astorna de difcil acesso.

    O passado, nossas memrias, nossos esquecimentos voluntrios, no s nosdizem quem somos, como tambm nos permitem projetar o futuro; isto , nosdizem quem poderemos ser. O passado contm o acervo de dados, o nico quepossumos, o tesouro que nos permite traar linhas a partir dele, atravessando,

    captulo 1

    O que a memria?

    Memria significa aquisio, for-

    mao, conservao e evocao

    de informaes.

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  • 12 Ivn Izquierdo

    rumo ao futuro, o efmero presente emque vivemos. No somos outra coisa seno isso; no podemos s-lo. Se no te-mos hoje a Medicina entre nossas me-mrias, no poderemos pratic-la ama-

    nh. Se no nos lembramos de como se faz para caminhar, no poderemos faz-lo. Se no recebemos amor quando crianas, dificilmente saberemos oferec-loquando adultos.

    O conjunto das memrias de cada um determina aquilo que se denominapersonalidade ou forma de ser. Um humano ou um animal criado no medo sermais cuidadoso, introvertido, lutador ou ressentido, dependendo de suas lembran-as especficas mais do que de suas propriedades congnitas. Nem sequer as mem-rias dos seres clonados (como os gmeos univitelinos) so iguais; as experinciasde vida de cada um so diferentes. Uma vaca clonada de outra vaca ter mais oumenos acesso comida do que a vaca original, ficar prenhe mais ou menos vezes,seus partos sero mais ou menos dolorosos, sofrer mais a chuva ou o calor que aoutra; e as duas no sero exatamente iguais, exceto na aparncia fsica.

    Memria tm os computadores, as bibliotecas, o cachorro que nos reconhecepelo cheiro depois de vrios anos, os elefantes de quem se diz terem muita (masningum mediu), os povos ou pases e, logicamente, ns, os humanos.

    Mas cada elefante, cada cachorro e cada ser humano quem , um indivduodiferente de qualquer congnere, graas justamente memria; a coleo pessoalde lembranas de cada indivduo distinta das demais, nica. Todos recordamosnossos pais, mas os pais de cada um de ns foram diferentes. Todos recordamos,geralmente vaga mas prazerosamente, a casa onde passamos nossa primeirainfncia; mas a infncia de uns foi mais feliz que a de outros, e as casas de algunsdesafortunados trazem ms lembranas. Todos recordamos nossa rua, mas arua de cada um foi diferente. Eu sou quem sou, cada um quem , porque todoslembramos de coisas que nos so prprias e exclusivas e no pertencem a maisningum. Nossas memrias fazem com que cada ser humano ou animal seja umser nico, um indivduo.

    O acervo das memrias de cada um nos converte em indivduos. Porm, tantons como os demais animais, embora indivduos, no sabemos viver muito bemem isolamento: formamos grupos. Deus os cria e eles se juntam, afirma o ditadopopular. Esse fenmeno tanto mais intenso e importante quanto mais evoludoseja o animal. A necessidade da interao entre membros da mesma espcie, ouentre diferentes espcies inclui, como elemento-chave, a comunicao entre indiv-duos. Essa comunicao necessria para o bem-estar e para a sobrevivncia.Nas espcies mais avanadas, o altrusmo, a defesa de ideais comuns, as emoes

    S lembramos aquilo que grava-

    mos, aquilo que foi aprendido.

  • Memria 13

    coletivas so parte de nossa memria eservem para nossa intercomunicao. Osgolfinhos ajudam-se uns aos outrosquando passam por dificuldades. Os hu-manos, embora s vezes parea o contr-rio, tambm. Procuramos laos, geral-mente culturais ou de afinidades e, combase em nossas memrias comuns, formamos grupos: comarcas, tribos, povos,cidades, comunidades, pases. Consideramo-nos membros de civilizaes inteirase isso nos d segurana, porque nos proporciona conforto e identidade coletiva.Nos sentimos apoiados pelo resto do grupo, chame-se este famlia, bairro, cidade,pas ou continente. Os europeus e os norte-americanos, por exemplo, claramentepertencem Civilizao Ocidental. Mas dentro desta, pertencem de maneira maisentranhvel aos grupos que sentem mais prximos porque com eles compartilhamuma srie de memrias e uma histria. comum que morando, digamos, nosEstados Unidos, os europeus tendam a se associar entre si e os latino-americanostambm; geralmente mais do que com os nativos do lugar. A recordao de hbitos,costumes e tradies que nos so comuns leva a preferncias afetivas e sociais.

    A identidade dos povos, dos pases e das civilizaes provm de suas mem-rias comuns, cujo conjunto denomina-se Histria. A Frana a Frana porqueseus habitantes se lembram de coisas francesas: Carlos Magno, Napoleo, VictorHugo, Verlaine. O conjunto dessas lembranas faz com que os franceses se sintame sejam franceses. O mesmo acontece com os demais pases e as memrias emcomum de seus habitantes. Ns somos membros da Civilizao Ocidental porquenossa histria comum inclui Moiss, Csar, Jesus, o monotesmo, os gregos, osromanos, os brbaros, os celtas, os ibricos, Colombo, Lutero, Michelangelo, aslnguas europeias que todos falamos. Fora desse acervo histrico comum a todos,os povos do Ocidente temos uma identidade individual que depende da histriade cada um de ns. Assim, espanhis, ingleses, estadunidenses, brasileiros,paraguaios e argentinos possumos memrias (histrias) prprias de cada pas eque nos distinguem dentro do marco maior da Civilizao Ocidental. Como foidito, ao nos encontrarmos num meio cujo acervo coletivo de memrias outro,descobrimos elos entre os diferentes grupos, baseados na memria coletiva quepromove novas associaes. Assim, para um brasileiro na Filadlfia ou emNewark ser em geral mais fcil estabelecer amizade com um paraguaio do quecom um nativo de Idaho.

    Em seu sentido mais amplo, ento, a palavra memria abrange desde osignotos mecanismos que operam nas placas de meu computador at a histriade cada cidade, pas, povo ou civilizao, incluindo as memrias individuais dos

    Procuramos laos, geralmente cul-

    turais ou de afinidades e, com base

    em nossas memrias comuns, for-

    mamos grupos.

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  • 14 Ivn Izquierdo

    animais e das pessoas. Mas a palavramemria quer dizer algo diferente emcada caso, porque os mecanismos deaquisio, armazenamento e evocaoso diferentes.

    No convm, portanto, entrar noterreno fcil das generalizaes e consi-derar que nossa memria igual a tal

    ou qual tipo de memria dos computadores. Meu computador tem chips e pre-cisa estar ligado na tomada para funcionar; eu, certamente no. Alis, se eucolocar os dedos na tomada sofrerei um choque, e aprenderei uma memria daqual meu computador profundamente incapaz: a de evitar colocar os dedos natomada. Tambm no convm fazer demasiadas analogias entre memrias dendole diferente, como a memria individual dos seres vivos pessoas e a mem-ria coletiva dos pases. Fora o aspecto mais amplo de sua definio, so coisasdiferentes. Os processos subjacentes a cada uma so completamente distintos.A memria humana parecida com a dos demais mamferos no referente a seusmecanismos essenciais, s reas nervosas envolvidas e ao seu mecanismomolecular de operao; mas no no relativo a seu contedo. Um ser humanolembra melodias e letras de canes, ou como praticar Medicina; um rato, no.Os seres humanos utilizamos, a partir dos 2 ou 3 anos, a linguagem para adquirir,codificar, guardar ou evocar memrias; as demais espcies animais, no. Mas,fora as reas da linguagem, usamos mais ou menos as mesmas regies do crebroe mecanismos moleculares semelhantes em cada uma delas para construir eevocar memrias totalmente diferentes.

    Neste livro, nos ocuparemos da memria dos humanos e dos mamferos.Muito do que se sabe da primeira vem de estudos feitos em animais de laborat-rio. As memrias so feitas por clulas nervosas (neurnios), se armazenam emredes de neurnios e so evocadas pelas mesmas redes neuronais ou por outras.So moduladas pelas emoes, pelo nvel de conscincia e pelos estados de nimo.Todos sabem como fcil aprender ou evocar algo quando estamos alertas e debom nimo; e como fica difcil aprender qualquer coisa, ou at lembrar o nomede uma pessoa ou de uma cano quando estamos cansados, deprimidos oumuito estressados.

    Os maiores reguladores da aquisio, da formao e da evocao das mem-rias so justamente as emoes e os estados de nimo. Nas experincias quedeixam memrias, aos olhos que veem se somam o crebro que compara e ocorao que bate acelerado. No momento de evocar, muitas vezes o coraoquem pede ao crebro que lembre, e muitas vezes a lembrana acelera o corao.

    Memria abrange desde os igno-

    tos mecanismos que operam nas

    placas de meu computador at a

    histria de cada cidade, pas, povo

    ou civilizao.

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  • Memria 15

    Breves noes sobre os neurnios

    bom saber alguma coisa sobre os neurnios, j que so eles os que fazem,armazenam, evocam e modulam a memria animal. H cerca de oitenta bilhesde neurnios no crebro humano.

    Os neurnios tm prolongamentos, s vezes de vrios centmetros, por meiodos quais estabelecem redes, se comunicando uns com os outros. Os prolonga-mentos que emitem informao em forma de sinais eltricos a outros neurniosdenominam-se axnios. Os prolongamentos sobre os quais os axnios colocamessa informao se chamam dendritos (Figura 1.1). A transferncia de informa-o dos axnios para os dendritos feita atravs de substncias qumicas produzi-das nas terminaes dos axnios, denominadas neurotransmissores. Os pontosonde as terminaes axnicas mais se aproximam dos dendritos se chamamsinapses, e so os pontos reais de intercomunicao de clulas nervosas. Do ladodendrtico, nas sinapses, h protenas especficas para cada neurotransmissor,chamadas receptores. Existem muitos neurotransmissores e muitos receptoresdiferentes; em captulos seguintes veremos os principais deles envolvidos nosprocessos de memria. Os neurnios recebem terminaes de axnios demuitos outros neurnios; s vezes tanto como 10.000 ou mais. Mas emitem umaxnio s, que se ramifica no mximo 10 ou 20 vezes. como se os neurniossoubessem que ouvir melhor do que falar: recebem informao de muitosoutros neurnios, mas a retransmitem para uns poucos.

    Os receptores com os quais interagem os neurotransmissores podem serexcitatrios ou inibitrios. Os excitatrios diminuem transitoriamente a diferenade potencial entre o lquido interior dos neurnios e o meio que os rodeia. Osinibitrios produzem o efeito contrrio: aumentam esse potencial. Para que umneurnio possa produzir potenciais de ao e assim se comunicar com os seguin-tes, precisa ser despolarizado at um certo nvel, chamado limiar (Figura 1.1). Osefeitos excitatrios e inibitrios das interaes entre os neurotransmissores eseus receptores devem-se ao fluxo de ons para o interior da clula, ou desde ointerior da clula para fora. A entrada de ons positivos ou ctions (sdio, clcio)reduz a diferena de potencial entre o interior da clula, que negativo, e oexterior. A entrada de ons negativos ou nions (cloro), ou a sada de ctions(potssio), produz um efeito contrrio.

    Os receptores que, ao serem ativados, deixam passar ons, denominam-seionotrpicos. H, porm, outros que, em vez de permitir a passagem de onspara dentro ou para fora da clula nervosa, estimulam determinados processosmetablicos: estes se denominam metabotrpicos. H tambm receptores nasterminaes pr-sinpticas dos axnios por meio dos quais os mesmos neuro-

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  • 16 Ivn Izquierdo

    Figura 1.1Clula piramidal do crtex ou do hipocampo. Observe-se que h muitas sinapses em

    seus dendritos e que ela emite um axnio que se ramifica e faz, por sua vez, sinapse

    com outros neurnios de diferente formato. Uma dessas sinapses mostra-se em for-

    ma ampliada, direita.

    Dendritos

    Corpo celular

    Dendritos

    Axnio

    Sinapses

    Sinapse

    Terminais axnicos

    Neurnios ps-sinpticos

  • Memria 17

    transmissores liberados em muitos casos agem sobre receptores que modulamsua prpria liberao. Por exemplo, receptores pr-sinpticos noradrenalinaou ao GABA (ver prximo pargrafo) inibem a liberao de noradrenalina oude GABA.

    Os axnios que liberam um ou outro tipo de neurotransmissor, e os recepto-res a estes existentes nos dendritos, costumam ser denominados segundo o nomedo neurotransmissor. Assim, os axnios que liberam glutamato (o principal neu-rotransmissor excitatrio) e seus receptores correspondentes so denominadosglutamatrgicos. O principal neurotransmissor inibitrio chamado GABA (dasigla em ingls do cido gama-amino-butrico); os axnios que o liberam e osreceptores aos quais se liga so denominados GABArgicos. Os receptores dopamina so chamados dopaminrgicos, e os axnios que liberam esse neuro-transmissor, tambm. Os receptores noradrenalina se chamam noradrenrgicos,assim como os axnios que liberam essa substncia. No caso da serotonina, usam-se os termos serotonrgico ou serotoninrgico. No caso em que o neurotransmissor a acetilcolina, usa-se a expresso colinrgico.

    H muitos subtipos de cada receptor, e em cada caso, a interao do respecti-vo neurotransmissor sobre eles produz efeitos completamente diferentes. Assim,para os receptores dopaminrgicos, h os subtipos D1, D2, etc.; para os nora-drenrgicos, os subtipos a, b, etc.; para os serotoninrgicos, os 1A, 1B, 2A, etc.;para os colinrgicos, os muscarnicos e os nicotnicos. Estes ltimos so assimchamados porque no primeiro, a substncia muscarina capaz de mimetizar osefeitos da acetilcolina, e nos segundos, a nicotina capaz de faz-lo.

    Existem drogas (substncias) que imitam ou mimetizam o efeito dos transmis-sores sobre seus receptores. Duas foram mencionadas, ambas de origem vegetal,a propsito dos receptores colinrgicos: a muscarina e a nicotina. Essas substn-cias mimticas, junto com o prprio neurotransmissor, se denominam agonistas.Assim, a acetilcolina e a muscarina so agonistas muscarnicos, e a acetilcolina ea nicotina so agonistas nicotnicos.

    H tambm substncias capazes de se ligar aos receptores em lugar dosneurotransmissores correspondentes, impedindo dessa forma sua ao. Essasdrogas denominam-se antagonistas. Por exemplo, a escopolamina um antagonis-ta muscarnico ou de receptores muscarnicos. H agonistas e antagonistas sint-ticos, hoje, para todos os subtipos de receptores conhecidos (mais de 2.000), e opapel dos neurotransmissores e de cada receptor so estudados atravs do empre-go dessas drogas.

    O glutamato, o GABA, a dopamina, a noradrenalina, a serotonina e a ace-tilcolina so molculas simples e relativamente pequenas. So esses os principaisneurotransmissores envolvidos com os processos de memria. Existem, porm,

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  • 18 Ivn Izquierdo

    muitos outros, de molculas maiores;muitos destes so peptdeos, ou seja, se-quncias de aminocidos mais curtas doque aquelas que constituem as pro-tenas.

    H substncias liberadas pelos ax-nios que atingem receptores dissemina-dos por muitos neurnios vizinhos, eno simplesmente sobre o dendrito maisprximo. Essas substncias se denomi-nam neuromoduladores. Muitos so de

    natureza peptdica, como a -endorfina, que liberada por neurnios cujo corpocelular est no hipotlamo sobre muitas clulas do prprio hipotlamo e darea imediatamente anterior a este, denominada rea preptica, e no ncleoamigdalino ou amgdala. Os hormnios hipofisrios vasopressina e oxitocina, queregulam a produo de urina e as contraes do tero, respectivamente, atuamtambm sobre numerosas sinapses mais ou menos esparsas. O xido ntrico (NO)e o monxido de carbono (CO) so liberados pelos dendritos de sinapses gluta-matrgicas que acabam de ser estimuladas e difundem rumo ao axnio que foiestimulado, e a muitos outros na vizinhana, num raio de 0,1 mm ou mais. Existemcentenas de neuromoduladores; aqui s foram mencionados os mais importantesem relao memria. H, tambm, agonistas e antagonistas dos moduladores,muitas vezes usados como medicamentos e outras como ferramentas para a pes-quisa biolgica de sua funo.

    Sobre ratos, camundongos e aves

    possvel intervir nas redes de neurnios dos animais de laboratrio atravs daestimulao eltrica, da extirpao de grupos delas ou da administrao de drogasque agem sobre elas. Tambm possvel analisar as alteraes bioqumicas produ-zidas nos neurnios pela estimulao, pela formao ou pela evocao de umamemria determinada. Podemos colocar cnulas ou eletrodos no crebro deanimais como os ratos ou os camundongos de laboratrio, especialmente criadospara seu uso experimental. Graas a isso foi possvel desvendar os mecanismosprincipais de muitas funes nervosas, entre elas a memria. Como, basicamente,os sistemas neuronais de todas as espcies de mamferos so muito semelhantes(o homem, o rato e o camundongo possuem lobos cerebrais), podemos fazerinferncias sensatas de achados numa dessas espcies menores e relacion-las

    O glutamato, o GABA, a dopamina,

    a noradrenalina, a serotonina e a

    acetilcolina so molculas simples

    e relativamente pequenas. So os

    principais neurotransmissores en-

    volvidos com os processos de me-

    mria.

  • Memria 19

    aos humanos. Uma leso do lobo temporal produz alteraes semelhantes dememria no homem e no camundongo, por exemplo. A interferncia com deter-minado passo de uma cadeia de reaes bioqumicas no crebro do rato e dohomem tem efeitos parecidos sobre a memria em ambas as espcies.

    Muitos achados em aves ou em invertebrados indicam que os mecanismosessenciais da formao de memria so semelhantes aos dos mamferos e podemser considerados, portanto, propriedades bsicas dos sistemas nervosos em geral,seja qual for a espcie. Uma lesma, uma abelha, um pinto, um camundongo eum ser humano, quando submetidos a um estmulo que causa desconforto, apren-dem basicamente a mesma coisa: evitar esse estmulo. De fato, isso constituiuma forma de aprendizagem denominada esquiva inibitria: o animal inibe suatendncia a colocar os dedos na tomada ou o bico onde no deve. Esta , porvrias razes, a forma de aprendizagem mais utilizada nos estudos biolgicossobre a memria: muito simples, se adquire numa nica vez, permanece pormuito tempo (s vezes toda a vida) e tem um valor biolgico importante. omesmo tipo de aprendizado que usamos para olhar para os lados antes de atraves-sar a rua ou para evitar lugares perigosos ou pessoas que nos so desagradveis.

    A memria e suas deformaes

    Nossa memria pessoal e coletiva descarta o trivial e, s vezes, incorpora fatosirreais. Vamos perdendo, ao longo dos dias e dos anos, aquilo que no interessa,aquilo que no nos marcou: ningum se lembra em que ano foi construda aquelacasa feia do outro quarteiro ou onde morava aquele colega da escola com quemtivemos pouco contato. No costumamos lembrar sequer detalhes da tarde deontem. Mas tambm vamos incorporando, ao longo dos anos, mentiras e varia-es que geralmente as enriquecem. Pessoas (avs, tios, amigos, companheirosda escola) que no foram, no seu momento, mais do que comuns, adquirem umverniz heroico ou de alguma maneira brilhante. Em geral, somos benignos epiedosos quando lembramos os mortos, embora em vida os considerssemosuns canalhas. Inmeras esttuas equestres nas praas pblicas o atestam: l caval-gam briosamente personagens que, em vida, foram odiados ou ignorados pelopovo. Os gregos e todo o Ocidente lembram a Atenas de Pricles como algoglorioso; no como uma terra onde existiam escravos. O Brasil se sente maisBrasil quando se lembra do samba, no dos pelourinhos e dos ltegos que castiga-vam os seus inventores. A Espanha se sente mais Espanha quando lembra agloriosa Isabel em cujo reinado o pas se unificou e foi descoberta a Amrica,no quando lembra a Isabel inflexvel que expulsou os mouros e os judeus.

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  • 20 Ivn Izquierdo

    Memria e memrias

    As memrias dos humanos e dos animais provm das experincias. Por isso, mais sensato falar em memrias, e no em Memria, j que h tantas mem-rias quanto experincias possveis. evidente que a memria de ter colocado osdedos na tomada no igual da primeira namorada, da casa da infncia, desaber andar de bicicleta, do perfume fugaz de uma flor, de toda a Medicina.Algumas dessas memrias so adquiridas em segundos (a da tomada, a da flor),outras em semanas (andar de bicicleta), outras em anos (a Medicina). Umas so

    muito visuais (a casa da infncia), outrass olfativas (a do perfume da flor), ou-tras quase completamente motoras oumusculares (nadar, andar de bicicleta).Algumas do prazer; outras so terr-veis. Algumas memrias consistemnuma sbita associao de outras me-mrias preexistentes, como quando Ar-quimedes gritou Eureka!. Outras no

    requerem nenhum conhecimento prvio, como a deixada pela experincia dosdedos na tomada. Algumas consistem num baralhar de memrias sem a lgicaassociativa que usamos na viglia: os sonhos, dos quais muitas vezes nos lembra-mos mais do que dos fatos reais, e com eles os misturamos.

    Certamente, os mecanismos nervosos de cada um desses tipos de memriano podem ser os mesmos; e muito menos os componentes emocionais de cadauma. Neste livro veremos quais so esses mecanismos nervosos e como so in-fluenciados pelos diversos componentes emocionais.

    Talvez seja sensato reservar o uso da palavra Memria para designar a capaci-dade geral do crebro e dos outros sistemas para adquirir, guardar e lembrarinformaes; e utilizar a palavra memrias para designar a cada uma ou acada tipo delas.

    O prprio conceito de memria envolve abstraes. Podemos lembrar demaneira vvida o perfume de uma flor, um acontecimento, um rosto, um poema,a partitura de uma sinfonia inteira, como fazia Mozart quando criana, ou umvastssimo repertrio de jogadas possveis de xadrez, como fazem os grandesmestres desse jogo. Mas a lembrana no igual realidade. A memria doperfume da rosa no nos traz a rosa; a dos cabelos da primeira namorada no atraz de volta, a da voz do amigo falecido no o recupera. H um passe de pres-tidigitao cerebral nisso; o crebro converte a realidade em cdigos e a evocatambm atravs de cdigos.

    As memrias dos humanos e dos

    animais provm das experincias.

    Por isso, mais sensato falar em

    memrias, e no em Memria,

  • Memria 21

    A memria que eu possa construir a partir de uma determinada cena ou umacontecimento no a mesma que far um cachorro, que tem uma vista muitopior, mas um olfato muito melhor do que eu, e no tem linguagem. Ns costuma-mos traduzir imagens, conhecimentos e pessoas em palavras, e muitas vezes asguardamos como memrias s como tais. No decorrer dos anos, essas palavrasacabam ficando vazias de contedo e acabam se perdendo tambm. A Medicinaest cheia de exemplos disso. H pouco mais de um sculo, Charcot e Freudestudavam a histeria; h 70 ou 80 anos os psiquiatras estudavam a surmnage.Nenhuma das duas doenas existe na nomenclatura mdica de hoje em dia: ahisteria dissolveu-se em vrias sndromes que levam outros nomes; a surmnagese conhece hoje como uma das formas mais perversas da depresso, aquela quedecorre do prprio trabalho ou do exerccio da profisso ou da atividade comque ganhamos a vida e da qual no podemos prescindir (burnout syndrome). Asndrome do burnout bastante frequente entre cuidadores de pacientes crnicose entre mdicos que trabalham s em urgncias e esto, portanto, em permanentecontato com a tragdia humana, quase sem descanso.

    Existe um processo de traduo entre a realidade das experincias e a forma-o da memria respectiva; e outro entre esta e a correspondente evocao.Como foi dito, ns os humanos usamos muito a linguagem para fazer essas tradu-es; os animais no. As emoes, o contexto e a combinao de ambos influen-ciam a aquisio e a evocao, como veremos mais adiante.

    Os processos de traduo, na aquisio e na evocao, devem-se ao fato deque em ambas ocasies, assim como durante o longo processo de consolidaoou formao de cada memria, utilizam-se redes complexas de neurnios. Oscdigos e processos utilizados pelos neurnios no so idnticos realidade daqual extraem ou qual revertem as informaes. Uma experincia visual penetrapela retina, transformada em sinais eltricos, chega atravs de vrias conexesneuronais ao crtex occipital e l causa uma srie de processos bioqumicos hojebastante conhecidos. Uma informao verbal, embora possa penetrar tambmpela retina (por exemplo, quando lemos), acaba em outras regies do crtex cere-bral. A leitura de uma partitura musical, embora tambm tenha como ponto deorigem a retina, ocupa depois mltiplasredes de clulas de muitas regies do cr-tex cerebral. A informao olfativa pe-netra pelo nariz, no pelos olhos; a gusta-tiva pela lngua, etc. H regies do cre-bro em que todas essas vias convergem.Essas regies, como veremos, so usadasna formao e na evocao de memrias.

    Existe um processo de traduo

    entre a realidade das experincias

    e a formao da memria respec-

    tiva; e outro entre esta e a corres-

    pondente evocao.

  • 22 Ivn Izquierdo

    Ao converter a realidade num complexo cdigo de sinais eltricos e bioqu-micos, os neurnios traduzem. Na evocao, ao reverter essa informao para omeio que nos rodeia, os neurnios reconvertem sinais bioqumicos ou estruturaisem eltricos, de maneira que novamente nossos sentidos e nossa conscinciapossam interpret-los como pertencendo a um mundo real.

    Em cada traduo ocorrem perdas ou mudanas. Qualquer um que tenhalido poemas no idioma original e depois numa traduo ter percebido que huma perda ou uma mudana. Os italianos cunharam h muitos anos, a frasetraduttore = traditore (tradutor = traidor) para denotar essas perdas e altera-es.

    Ao penetrar na anlise do que a Memria ou, quem sabe, somente de oque so as memrias, atravessamos uma fronteira um pouco mgica. Esperoque o leitor me acompanhe na explorao dessas magias nas pginas que seguem.Borges escreveu contos magnficos sobre objetos reais criados atravs do pensa-mento ou da memria. Isso , claro, fico; no estudo da memria real dos huma-nos ou dos animais no se chega a tanto. Mas um lado da cincia em que amagia est bastante presente; um lado em que h vrios jogos de biombos ou deespelhos em cada traduo ou transformao.

    Porque, afinal, traduzir quer dizer no s verter a outro cdigo, mas tambmtransformar. H algo de prestidigitao nessa arte que tem o crebro de fazermemrias, de transformar realidades, conserv-las, s vezes modific-las e re-vert-las ao mundo real. E h tambm magia naquela outra nobre arte, a doesquecimento, sem o qual o prprio Borges afirmava que impossvel pensar(Izquierdo, 2010). Sem o esquecimento, o convvio entre os membros de qualquerespcie animal, inclusive os humanos, seria impossvel. Cada reunio de condom-nio, cada jogo de futebol, cada eleio para vereador, cada discusso de umcasal, acabariam num desastre. Um dos maiores estudiosos da memria, o norte--americano James McGaugh, disse que a caracterstica mais saliente da memria justamente o esquecimento. Se pedirmos para o mdico mais famoso do mun-do que nos conte tudo o que sabe de Medicina, ele poder faz-lo em poucashoras; levou 6 anos de Faculdade, 4 de residncia e dcadas de prtica paraaprend-lo. A imensa maioria de tudo aquilo que aprendemos, de todas as inme-ras memrias que formamos na vida, se extingue ou se perde.

    Outros grandes investigadores da memria, como o tambm norte-americanoLarry Squire, ou a inglesa Elizabeth Warrington, manifestaram sua perplexida-de diante do fato de que nos quadros degenerativos cerebrais mais graves, emque o esquecimento enorme (a doena de Alzheimer, por exemplo), sejamtantas as memrias que ainda se conservam. A sugesto que emerge desse fato que, no meio das leses, persistam ilhas compostas por redes neuronais

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    sadias e mais ou menos preservadas, nas quais sobrevivem algumas memrias.Os trabalhos de Squire e de Warrington podem ser facilmente encontrados nosite EntrezPubMed ou outros que tenham acesso Medline, na internet.

    Nas prximas pginas exploraremos os diferentes tipos ou formas de mem-ria, seus mecanismos, sua patologia, sua modulao pelas emoes e, claro, oesquecimento.