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• POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA MEIO AMBIENTE Paradoxo social Projeto busca legalizar loteamentos em áreas de mananciais sem comprometer a qualidade da água TERESA NAVARRO Vila Joaninha, em Oiadema: esgoto a céu aberto deságua na bacia da represa Billings A casassurgem desordenada- mente em lotes irregulares onde as fossas se confun- dem com poços. Algumas casas nem fossa têm: o esgoto percorre as ruas, cortando valas até chegar à região mais baixa e alcan- çar uma das várias nascentes da bacia da represa Billings, fornecedora de água para cerca de 1,5 milhão de pessoas dos municípios de Diadema, São Bernardo do Campo e Santo André. Esse é o ce- nário do Sítio Joaninha, em Diadema, onde vivem 240 famílias. A degradação 22 • JULHO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 89 ambiental da área é idêntica a de vá- rios outros loteamentos irregulares, que ocupam entre 15% e 20% das áreas em torno dos mananciais da Billings e da represa de Guarapiranga, ao sul da re- gião metropolitana de São Paulo. De acordo com a legislação, para garantir a preservação dos mananciais e a qualidade da água, esses loteamen- tos não poderiam existir. Tanto que as prefeituras estão proibidas de dotá-los de infra-estrutura básica - como água encanada, luz e esgoto - sob pena de se- rem incluídas como réus nas ações civis públicas e serem condenadas à repara- ção do dano. A única solução legal seria desalojar 1,2 milhão de pessoas que vi- vem hoje nas áreas de mananciais na Grande São Paulo. Mas é possível, dentro da legislação, buscar outras alternativas que permitam elaborar padrões para regularizar os 10- teamentos e, ao mesmo tempo, reduzir os danos ambientais. E esse é o desafio do projeto Reparação de Danos e Ajus- tamento de Conduta em Matéria Urba- nística, proposto pelo Ministério Pú- blico, que está sendo executado pela

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• POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

MEIO AMBIENTE

ParadoxosocialProjeto busca legalizar loteamentosem áreas de mananciais semcomprometer a qualidade da água

TERESA NAVARRO

Vila Joaninha,em Oiadema: esgoto

a céu abertodeságua na bacia

da represa Billings

Acasassurgem desordenada-mente em lotes irregulares

onde as fossas se confun-dem com poços. Algumascasas nem fossa têm: o

esgoto percorre as ruas, cortando valasaté chegar à região mais baixa e alcan-çar uma das várias nascentes da baciada represa Billings, fornecedora de águapara cerca de 1,5 milhão de pessoas dosmunicípios de Diadema, São Bernardodo Campo e Santo André. Esse é o ce-nário do Sítio Joaninha, em Diadema,onde vivem 240 famílias. A degradação

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ambiental da área é idêntica a de vá-rios outros loteamentos irregulares, queocupam entre 15% e 20% das áreas emtorno dos mananciais da Billings e darepresa de Guarapiranga, ao sul da re-gião metropolitana de São Paulo.

De acordo com a legislação, paragarantir a preservação dos mananciaise a qualidade da água, esses loteamen-tos não poderiam existir. Tanto que asprefeituras estão proibidas de dotá-losde infra-estrutura básica - como águaencanada, luz e esgoto - sob pena de se-rem incluídas como réus nas ações civis

públicas e serem condenadas à repara-ção do dano. A única solução legal seriadesalojar 1,2 milhão de pessoas que vi-vem hoje nas áreas de mananciais naGrande São Paulo.

Mas é possível, dentro da legislação,buscar outras alternativas que permitamelaborar padrões para regularizar os 10-teamentos e, ao mesmo tempo, reduziros danos ambientais. E esse é o desafiodo projeto Reparação de Danos e Ajus-tamento de Conduta em Matéria Urba-nística, proposto pelo Ministério Pú-blico, que está sendo executado pela

determina a lei. Mas esta é uma deci-são muito difícil de ser tomada por umjuiz porque simplesmente essas pesso-as não teriam para onde ir', ele conta. Aproteção aos mananciais no Estado deSão Paulo é determinada basicamentepor três leis: uma federal e duas estadu-ais. Em geral elas restringem a ocupa-ção do solo em regiões próximas às ba-cias fornecedoras de água à populaçãoe adotam critérios de adensamento,dividindo a área por categorias que vãodesde as totalmente impróprias paraocupação (mais próxima à bacia) até

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo(FAU), da Universidade de São Paulo(USP), e que integra o Programa Políti-cas Públicas da FAPESP.''Aquestão deveser vista do ponto de vista social, nãoapenas ambiental. As ocupações acon-teceram porque a demanda por mora-dia sempre foi maior que a capacidadedo governo de ofertar casas populares",justifica a coordenadora do projeto, Ma-ria Lucia Refinetti Martins, da FAU.

Nó legal - A ocupação dos mananciaisresulta, diariamente, numa enxurrada

de processos na Promotoria de Justiçade Habitação e Urbanismo da capital.Sãoações civispúblicas movidas por de-núncia de vizinhos da região, por soli-citação das prefeituras ou a pedido dospróprios moradores que querem regu-larizar a sua situação. Para seguir rigo-rosamente a lei, a promotoria teria quepedir à Justiça a expulsão dos infratores.E durante muito tempo foi exatamen-te isso que o promotor José Carlos deFreitas fez. "Processávamos o lotea-dor, o município e o Estado, e pedíamosa remoção dos moradores, conforme

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Regularizaçãodos lotesdependerá decompromissodos moradores

aquelas onde é permitida a ocupaçãoem terrenos com no mínimo 500 me-tros quadrados.

"O objetivo da legislação é garantira qualidade da água", explica Freitas. "Eé dentro desse espírito da lei que vamostrabalhar para regularizar os loteamen-tos, desde que haja compromisso de to-dos os envolvidos para re-parar os danos causadosao meio ambiente, o que épossível por meio da assi-natura de um termo deajustamento de conduta':afirma. Foi para subsidiaros termos desses acordosque o Ministério Públicoprocurou a FAU. "Nossameta é definir o que deveser feito no loteamentopara garantir o cumpri-mento do espírito da lei eresolver esse nó entre a questão arnbi-ental e social", completa Maria Lucia.

Sítio Joaninha - Nessa perspectiva, aprimeira providência foi fazer um le-vantamento dos processos existentes naspromotorias de Diadema, Santo Andrée selecionar para estudo de caso quatroloteamentos localizados nas sub-baciasda Guarapiranga e da Billings: SítioJoaninha (Diadema), Parque Andreen-se (Santo André), Jardim São Fran-cisco (Embu) e Parque dos Químicos(São Bernardo do Campo). O SítioIoaninha foi escolhido por ser um dosloteamentos mais problemáticos. Eleocupa uma área com mais de 200 milmetros quadrados, situada ao lado deum aterro sanitário, hoje desativado,

mas que, até a década de 80, recebiatodo o lixo de São Paulo. Uma agravan-te: os terrenos comprados pelos mo-radores não pertenciam à pessoa queos vendeu, o que dificulta a concessãode propriedade por usucapião. Ali, exis-tem casas em situação de risco de desa-bamento, instalações elétricas clandes-

tinas e não há tratamentode esgoto nem água en-canada.

A população do SítioIoaninha pressiona a pre-feitura de Diadema pararegularizar a posse da terrae implantar infra-estru-tura básica e ficaria satis-feita se contasse com for-necimento de água e luz."Nem esgoto eles pedem':afirma Soma Sumiko Ka-razawa Nagai, arquiteta-

chefe da Divisão de Planejamento In-tegrado da prefeitura de Diadema. Aprefeitura está negociando com o Mi-nistério Público as condições para regu-larizar o loteamento, já que a intençãoé reduzir a remoção ao menor númerode famílias possível. "Primeiro precisa-mos definir com precisão a área que po-derá ser ocupada", ressalva Sonia. Oprojeto, apoiado pela FAPESP, já iden-tificou algumas alternativas técnicasque podem garantir a qualidade daágua sem a necessidade de retirar as fa-mílias. O primeiro passo é o tratamen-to do esgoto, que pode ser feito no lo-cal, na área mais baixa do loteamentopróximo à bacia do córrego. Maria Lu-.cia acredita que essa é uma "solução in-~eressante" porque, além de jogar a água

já tratada na bacia, também evita que asmoradias sejam instaladas muito pró-ximas ao córrego, já que o espaço seriaocupado pela estação de tratamento. "Aidéia é criar um cinturão de proteção",ela explica. A prefeitura estuda aindauma outra possibilidade, a do bombea-mento do esgoto até a Estação de Trata-mento de São Caetano. ''As obras já fo-ram iniciadas na região de Eldorado,próxima ao Sítio Ioaninha, e poderiamser estendidas para o loteamento. Masisso ainda não está definido", afirmaSonia Nagai. A necessidade de obras deinfra-estrutura inclui ainda a reserva deuma área para o plantio de árvores, dre-nagem e melhoria das condições dasruas, sem que isso signifique asfaltartudo. Maria Lucia explica que é precisodeixar trechos de terra e a calçada comgrama para absorção da água da chuva.As más condições das ruas da região nãose constitui no problema mais grave,mas isolam os moradores. Os Correios,por exemplo, não entram no loteamento:as cartas são deixadas em uma floricul-tura na parte mais baixa da região.

jY(reocupação da prefeiturade Diadema e do Ministé-rio Público em dar posseda área aos moradores seexplica: na maior parte

das vezes, a ocupação de áreas de ma-nanciais é involuntária. "Eu fiquei sa-bendo o que era uma área de manan-cial quando fui pedir a ligação da luzpara a minha casa e me falaram quenão podiam ligar. Não tinha nem idéiado que era isso", afirma Raimunda doVale Ferreira, vice-presidente da Asso-

Prefeituras e estados poderão, embreve, contar com auxílio de novas téc-nicas na negociação de conflitos emáreas de ocupação de mananciais. Aspropostas estão sendo desenvolvidasno projeto Negowat, financiado pelaComissão Européia, Centro de Coope-ração Internacional em Pesquisa Agro-nômica para o Desenvolvimento (Ci-rad), da França, que também conta como apoio da FAPESP, na modalidade co-nhecida como Auxílio à Vinda de Pes-quisadores Visitantes.

A arte de negociarO projeto, desenvolvido inicialmente

na França, oferece ferramentas que per-mitem simular o resultado de cada de-cisão tomada e trabalhar com o jogo depapéis, fazendo com que cada grupo vi-vencie as razões do outro. "Utilizamosbasicamente dois softwares, o de mode-lagem multiagente e o jogo de papéis,que nos permitem fazer uma análise am-biental, integrando o conhecimento dasdiversas áreas que atuam no projeto", dizYara Maria Chagas de Carvalho, coor-denadora do grupo brasileiro do Nego-

wat. A modelagem multiagente é umanova forma de representação compu-tacional, desenvolvida nos últimos 15anos, e que utiliza linguagem orientadaa objetos. Essa técnica, freqüentem enteutilizada na indústria, controle de tráfe-go aéreo, análise de trânsito urbano, en-tre outros, tem sido utilizada em centrosde pesquisa para a gestão de recursosnaturais. A modelagem é refeita até queas partes concordem com a forma co-mo estão sendo retratados, e só entãotem início o jogo de papéis.

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Ligaçõesclandestinas de luz

traçam teia sobreárea onde residem

240 famílias

ciação de Moradia e Preservação Am-biental de Vila Ioaninha. A luz, queno caso de Raimunda chegou depoisde longa peregrinação, é hoje privilé-gio de meia dúzia de famílias. As de-mais utilizam ligações clandestinasque formam verdadeiras teias de ara-nha sobre suas moradias.

mento, mas ainda não há nenhum casopronto para demolição. ''A prefeituraterá que intensificar a fiscalização e osmoradores devem comprometer-se emdenunciar o vizinho que faz uma no-va obra. Já o Ministério Público poderáautuar a prefeitura e o Estado,em casodeomissão, e adotar medidas para ir atrásdo patrimônio dos infratores:' Mas nadadisso vai funcionar se as decisões naJustiça forem demoradas, ressalva.

Enquanto isso não acontece, as pla-cas de" Vende-se" espalham-se pelo Sí-tio Ioaninha. •

já fez o cadastramento das famílias einicia o levantamento das edificaçõesexistentesnos terrenos para impedir no-vas construções. Mas, apesar das visitasconstantes dos fiscais, outras obras es-tão em andamento. O fiscalda prefeitu-ra Fausto Veronese afirma que, quandohá construção nova, a prefeitura noti-fica o proprietário e manda paralisar aobra, mas muitos continuam. "Nessescasos nós entramos com processo pe-dindo a demolição da construção", dizVeronese. Segundo ele, algumas dessasações já estão em fase final de julga-

Ação de fiscais - Melhorar as condiçõesde vida dessas pessoas tem seus riscos:os lotes - hoje procurados pelo baixopreço - vão tornar-se mais atrativosquando houver água e luz. A prefeitura

O trabalho é desenvolvido juntocom os integrantes do Comitê da Baciado Alto Tietê, formado por represen-tantes do Estado, das prefeituras e dasociedade civil,na proporção de um ter-ço cada um. O projeto também deveráse estender para as sub-bacias Guara-piranga e Cabeceiras do Alto Tietê. Aintenção é capacitar os integrantes docomitê e facilitar as negociações entreeles,já que a administração da água en-volve vários municípios, cada um comnecessidades e interesses diferentes,além de as características da populaçãoque ocupa as áreas de manancias serembastantes distintas: "Temos moradores

de baixa renda atraídos pelo preço daterra, agricultores e até indústrias ins-taladas antes da legislação de proteçãoaos mananciais", diz Yara.

As soluções encontradas para cadauma das áreas em estudo certamenteserão distintas umas das outras. ''Amo-delagem é participativa e não pode-ria ser diferente em uma realidade tãocomplexa como a brasileira, onde opadrão de ocupação do solo pareceum mosaico: com agricultura, casas eindústria", diz a pesquisadora france-sa Raphaele Ducrot, coordenadora doNegowat. Projeto idêntico está sendodesenvolvido na Bolívia.

Yara Carvalho acredita que em umano será possível ter um diagnósticopreciso da realidade das áreas de ma-nanciais nas duas sub-bacias escolhidase um modelo com condições de fazersimulações. ''A partir daí podemos veros efeitos das várias decisões que po-dem ser tomadas. Ao mesmo tempovamos usar o jogo de papéis, onde umdos participantes nas discussões fará opapel de dono da indústria, por exem-plo, e a partir daí será analisado o cus-to de transferir a empresa para outrolugar:' Com isso, ela explica, pretende-se trazer a pesquisa para o diálogo dire-to com a comunidade.

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