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Meio Ambiente em Debate: descrição etnográfica de uma Audiência Pública
por Deborah Bronz1
1. Apresentação
No dia 10 de novembro de 2003 um grupo de estudantes de antropologia do Museu Nacional,
equipado com câmaras de filmar e de fotografia, gravador, papel e caneta foi para Quissamã,
registrar e observar a Audiência Pública2 referente ao processo de licenciamento ambiental de um
projeto, que levará parte da produção petrolífera da Petrobras do mar para terra, através de dutos.
Esse projeto foi denominado de Plano Diretor de Escoamento e Tratamento de Óleo (PDET) –
Trecho Marítimo3.
Essa empreitada foi impulsionada pelos meus interesses pessoais de pesquisa: o estudo da
relação entre os diversos grupos que reivindicam os direitos de apropriação dos recursos naturais e
territórios marítimos da Bacia de Campos e/ou que arbitram sobre as políticas públicas voltadas
para essa localidade no mar.
A Audiência Pública representa um rico material etnográfico. Esse evento reuniu uma série de
instituições e indivíduos que de algum modo encontram-se envolvidos com as questões que
pretendo tratar. Compareceram ao encontro em Quissamã cerca de 521 pessoas, entre membros dos
órgãos governamentais responsáveis pelos assuntos de meio ambiente do país (IBAMA, Ministério
Público, ANP, etc.), representantes da Petrobras, consultores responsáveis pelo Estudo de Impacto
Ambiental exigido no processo de licenciamento ambiental de empreendimentos petrolíferos,
membros de organizações não-governamentais, pescadores e a população dos municípios da região.
Estavam ali reunidos expressando opiniões e comportamentos, que nos fazem apreender sobre essas
situações sociais de conflitos pela disputa da apropriação dos recursos naturais da Bacia de Campos.
Se ao final dessas linhas os leitores tiverem a sensação de terem participado da Audiência, uma
parte de meus objetivos estará completa. Não me contentarei, no entanto, apenas com a transcrição
do encontro. Minhas anotações refletem também aquilo que pude elaborar a partir dos
acontecimentos, as questões que se desdobram, cujas respostas tentarei encontrar nas próximas
1 Aluna de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social – Museu Nacional (PPGAS / MN / UFRJ). Versão resumida de uma monografia apresentada ao final do curso Globalização e Movimentos Sociais (2° semestre de 2004), oferecido pelos professores: Henri Acselrad e Carlos Vainer (IPPUR / UFRJ) e Lygia Sigaud (MN / UFRJ). 2 O que é uma Audiência Pública, seus objetivos e funções no processo de licenciamento ambiental de um projeto energético de grande porte, como aquele que a Petrobras pretende implementar, serão expostos ao longo do texto. 3 O Complexo PDET – Trecho Marítimo é formado por uma Plataforma de Rebombeio Autônomo (PRA-1), uma unidade de estocagem do tipo navio FSO (Floating Storage and Offloading), uma monobóia e dutos submarinos interligando estas estruturas, além de um duto de exportação de petróleo, que liga a PRA-1 até Barra do Furado (no município de Quissamã). A sua implantação visa garantir o escoamento do petróleo produzido pelas Unidades P-40 e P-51 do Campo de Marlim Sul, P-53 do Campo de Marlim Leste, além da P-52, P-55 e da futura unidade do Módulo 4 do Campo de Roncador. As produções de petróleo provenientes dessas plataformas serão encaminhadas para a PRA-1, via dutos, de onde serão rebombeadas e escoadas, através do duto de exportação, até o continente. (Petrobras, 2003).
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etapas da minha pesquisa. Nesse sentido, procurarei encarar a Audiência Pública como sendo o
ponto de partida do meu trabalho. Meus passos durante os próximos semestres será seguir os
caminhos de alguns daqueles que participaram e que se manifestaram durante o evento, para colher
depoimentos, num contexto distinto do presenciado, em diferentes situações sociais, na busca pelo
aprofundamento das questões que se colocaram nesse momento. A identificação desses indivíduos
e dos grupos aos quais pertencem já é um dado de grande valor. Aos poucos vai se completando o
mapa da rede e dos vínculos que une esses indivíduos entorno das preocupações com o Meio
Ambiente, palavra genérica e com os meios ambientes, nos sentidos adquiridos por cada um dos
grupos.
O registro visual e auditivo do evento foi de fundamental importância para a realização desse
estudo. Nas seis horas e meia de duração muitas coisas aconteceram, muitas palavras foram
pronunciadas, gestos e atitudes passariam desapercebidos se não tivessem sido registrados. A
oportunidade de revê-los e reescutá-los repetidamente me possibilitou identificar e refletir sobre os
aspectos que tratarei nessas próximas linhas.
Não poderia deixar de mencionar ainda, que esse trabalho é um reflexo de uma empreitada
coletiva. Refiro-me a realização de um campo com uma equipe de quatro estudantes de
antropologia. Aos meus companheiros de viagem devo uma série de observações, dicas e idéias,
que compõem aquilo que lhes apresento. Devo a eles também, a possibilidade de realização desse
projeto.
2. Considerações sobre uma etnografia de uma Audiência Pública: o método empregado
A elaboração de uma etnografia é uma tarefa que tradicionalmente na antropologia demanda um
longo período de tempo de contato com os grupos sociais e as situações que estão sendo estudadas.
Esse tipo de estudo requer uma observação duradoura e uma participação nos processos sociais que
estão sendo levantados. Como então compor uma descrição etnográfica de uma Audiência Pública,
um evento com duração de 6 horas?
Buscarei reconstruir a história da Audiência a partir da ordem dos acontecimentos durante o
tempo de duração do evento. Tentarei identificar os indivíduos e os grupos que estavam ali
presentes através de suas ações efêmeras, de seus discursos uma vez pronunciados e de seus gestos,
sem conhecê-los bem. Não se pode negar, entretanto, que recontar uma história nada mais é do que
recortá-la, ou ainda, construí-la.
Utilizarei também meus conhecimentos adquiridos durante experiências pretéritas com
trabalhos de consultoria de meio ambiente, meus contatos, materiais divulgados na imprensa e na
Internet e panfletos e folhetins distribuídos durante o evento. Se, por um lado, tratar de temas com
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os quais trabalhei pode me ajudar a compreender certos assuntos que são debatidos e a identificar
algumas pessoas, pelo outro tomarei cuidado com a naturalização de certos termos do debate que se
coloca.
As palavras têm grande importância para esse estudo. Tratarei de identificar no discurso
pronunciado pelas pessoas que se manifestaram os sentidos atribuídos aos termos. As categorias
classificatórias utilizadas pelos grupos sociais, que configuram os debates e permitem o diálogo.
Embora todos estivessem reunidos com o objetivo de discutir assuntos de meio ambiente, esse
termo não tem o mesmo significado para aqueles que o utilizam. Ao mesmo tempo é o que permite
a reunião em torno de uma preocupação comum, de um léxico, é o que promove o encontro.
Identificar esses elos e desvendar o que existe de diferente em cada um dos nós que conformam
essa rede é um dos objetivos desse trabalho.
Em função do espaço que possuo, não poderei tratar de todos aqueles que se manifestaram
durante a Audiência. Nem tampouco apresentar essa descrição etnográfica integralmente como foi
elaborada numa primeira versão. Elegi, portanto, algumas pessoas que tiveram uma participação
marcante. Reproduzirei trechos de suas falas e suas formas de se colocar e de agir. Exemplificando
com situações as questões que me parecem mais abrangentes e conclusivas, e, por sua vez, mais
interessantes de serem investigadas nos próximos passos de minha pesquisa.
3. A Audiência Pública
As 18:00h, hora marcada para o início da Audiência o auditório da Prefeitura de Quissamã já
estava lotado. Não havia mais vagas para sentar-se no interior da sala, apenas cadeiras vazias em
frente ao telão armado do lado de fora do prédio. Cada pessoa que entrava registrava seu nome, seu
número de identidade e um telefone ou e-mail de contato. Recepcionistas com uniforme da
Petrobras faziam o credenciamento.
O Cenário já estava montado. Na parte externa do prédio cartazes da Petrobras com fotos de
plataformas, de animais símbolos de preservação ou ameaça ecológica, de homens com traços
populares e crianças anunciando as atividades de “desenvolvimento social e sustentável”, atividades
produtivas, projetos sociais e ambientais da empresa, informações sobre lixo e resíduos poluentes e
a atuação do Centro de Defesa Ambiental da Petrobras. O símbolo BR aparecia por todos os lados.
No interior do auditório a primeira visão eram as duas mesas no alto do palco, uma de cada lado,
com microfones, e, sobre a toalha, um cartaz anunciando a audiência. No meio do palco, um telão
onde foram transmitidos através de um datashow: estatísticas, probabilidades, mapas, gráficos,
imagens. Um “show de dados”.
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Na platéia uma miscelânea de tipos sociais que se distribuíam sobre as cadeiras da seguinte
forma: nas primeiras fileiras os empregados da Petrobras, cientistas de universidades, técnicos,
consultores e membros de órgãos governamentais; atrás um grupo de pescadores vestidos com
camisas estampadas com os nomes das entidades de pesca que representavam; alguns ambientalistas
também eram identificados por suas camisas ilustradas com temas ecológicos; famílias, homens,
mulheres e crianças espalhavam-se pelo auditório.
Essa mistura de tipos me possibilitou formular a minha primeira questão. Quais seriam os
vínculos que fizeram aquelas pessoas estarem presentes na audiência? Entre curiosos e
representantes de entidades e grupos sociais, cada qual tem uma razão. Através dos
pronunciamentos das pessoas na audiência e de rápidas conversas de intervalo pude identificar
alguns dos motivos que teriam levado as pessoas a participarem do evento. Tratarei de evidenciá-los
ao longo do trabalho.
Parte I: exposições oficiais seguiram o roteiro
O presidente da mesa, autoridade máxima da reunião, representante do Instituto Brasileiro de
Engenharia e Meio Ambiente — IBAMA — convocou os demais componentes da mesa: o
engenheiro técnico da Petrobras responsável por apresentar o projeto; a bióloga e coordenadora do
Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental — EIA/RIMA; um representante
da Agência Nacional do Petróleo — ANP; uma representante do Ministério Público Estadual,
Promotoria da Justiça da Tutela Coletiva (Macaé, Quissamã e Carapebus); e, mais dois funcionários
do IBAMA.
Logo em seguida, iniciou-se a execução do hino nacional. Todos de pé no auditório cantavam e
ouviam o hino, num ato que anunciava um dos sentidos dessa reunião, associados aos interesses de
um país. Interesses representados pelos órgãos governamentais ali presentes, pela empresa que é
símbolo de desenvolvimento nacional — que tem o nome e as cores do país na logomarca (BR) — e
pelos cidadãos4 presentes.
Durante a execução do hino, eram projetadas no telão imagens da natureza brasileira, de
atividades produtivas da Petrobras, das plataformas da Bacia de Campos, do mar, de atividades
culturais, dança, esportes, projetos desenvolvidos pela empresa, animais símbolo de projetos de
conservação como a tartaruga marinha e a baleia jubarte. A última imagem apareceu coordenada
4 A palavra cidadão foi bastante pronunciada durante a noite. Representantes de entidades de pesca e ambientalistas, o vice-prefeito de Quissamã, o representante do IBAMA e demais presentes evidenciaram em sues discursos o fato de estarem ali exercendo seu direito ou dever de cidadania, na proteção ao meio ambiente (considerado nesse contexto como um bem coletivo) e aos direitos daqueles que de algum modo sentiriam os efeitos da implementação de um projeto como o da Petrobras.
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com o arranjo final do hino: um funcionário da Petrobrás vestindo uma camisa estampada com o
símbolo BR.
O presidente da mesa apresentou em seguida o regulamento e o roteiro da Audiência. Um
representante do IBAMA tinha 15 min. para apresentar os objetivos da audiência, o empreendedor
mais 15 min. para apresentar o projeto, a empresa de consultoria, 45 min. para a apresentação do
EIA, em seguida, a promotora representante poderia apresentar as considerações da equipe
responsável pela análise do estudo ambiental do Ministério Público. Após um intervalo de 15 min.,
os componentes da mesa e outros técnicos sentados no auditório responderiam as questões escritas
encaminhadas durante a primeira parte da reunião. Somente depois de tudo isso se abriria o
microfone para o pronunciamento e para as questões orais dos presentes.
O primeiro pronunciamento oficial foi de um representante do IBAMA, que esclareceu de um
modo geral os objetivos da Audiência Pública:
“...digamos que ele venha apitar positivamente ou que os possíveis prejuízos possam ser minimizados com a ação do nosso órgão durante o processo de licenciamento... Nós consideramos de fato esse espaço como um espaço privilegiado e democrático para que possamos encaminhar melhor os anseios da sociedade...”
Depois o presidente da mesa apresentou, segundo suas próprias palavras o que é para o IBAMA a
Audiência Pública:
“Uma Audiência Pública tem como função: dar transparência ao processo de licenciamento, divulgar as informações sobre o projeto, esclarecer as dúvidas da sociedade sobre o projeto, captar as expectativas da população afetada pelo projeto e ouvir as críticas e sugestões ao projeto. Numa audiência não se decide... é para solver as criticas e sugestões que serão parte integrante do processo de licenciamento. Momento que a sociedade tem de se manifestar, em uma primeira apresentação formal do projeto. Poderá haver outras.”
A apresentação do presidente da mesa5 e dos demais funcionários do IBAMA exibiu em
linguagem litúrgica os objetivos da reunião. A referência constante às leis da Política Nacional do
meio ambiente reforçou o caráter de defesa dos interesses nacionais que seus referentes
representavam. As palavras modelaram seu discurso normativo — deve ser, deverá ser —
mostrando que eram ditas em nome da lei. A preocupação com a democratização das decisões e
com a intervenção dos presentes buscava garantir a legitimidade da Audiência e das decisões que se
desdobrariam a partir da data. Se “na Audiência não se decide”, ao menos ela representa uma
oportunidade legítima de participação da “sociedade” nas decisões referentes aos “projetos de
desenvolvimento” e suas conseqüências para o meio ambiente.
5 Um aspecto interessante da fala do presidente da mesa refere-se ao esclarecimento das responsabilidades sobre a organização e a coordenação do evento. Ao IBAMA caberia: (a) presidir, coordenar e secretariar a Audiência Pública; (b) organizar a lista de presença; (c) a protocolização dos documentos produzidos para ou durante a Audiência; (d) a responsabilidade pelos formulários de perguntas; (d) a elaboração de uma ata resumida e; (e) atendimento aos questionamentos levantados durante o evento.
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Nesse sentido, o meio ambiente para os representantes do IBAMA é entendido do mesmo modo
como é apresentado pela Política Nacional de Meio Ambiente, referida na Constituição Brasileira
de 1988. Cujo principal objetivo é estabelecer modos para assegurar a efetividade do direito de
todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. O meio ambiente em seu sentido democrático.
O responsável pela coordenação da Audiência Pública é o órgão de meio ambiente, IBAMA6. No
entanto, de acordo com as Resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente, CONAMA, ela
pode ser solicitada não só pelo órgão público nacional, bem como pelo Ministério Público ou pela
Sociedade Civil (por cinqüenta ou mais cidadãos). Ciente dessa norma, durante o intervalo, um
representante da Associação Macaense de Defesa Ambiental carregava uma declaração e um abaixo
assinado exigindo a realização de novas audiências. Esse documento foi lido e entregue para mesa
diretora na segunda parte da reunião, momento em que se abria para o debate. Por mais que o
documento contivesse mais de 50 assinaturas, contrariando a sua fala inicial7, o presidente da mesa
declarou considerar o número de presentes representativo e significativo da ampla divulgação do
evento, não sendo necessária à realização de uma nova audiência.8
A empresa que está sendo submetida ao processo de licenciamento de acordo com a legislação
vigente é responsável pela: (a) organização; (b) definição do local; (c) disponibilização de toda a
infra-estrutura necessária; (d) gravação do evento; (e) divulgação do evento; (f) elaboração de uma
ata escrita e; (g) custos do evento. Esse acúmulo de funções concentrou nas mãos da Petrobras o
destino sobre as características do evento. Quando olhamos para o cenário armado, percebemos
como se estabelece uma relação de assimetria e destaque das imagens da empresa em relação aos
demais presentes. A distribuição de materiais como a “pastinha” com os folhetos sobre o projeto em
licenciamento e os programas sociais da Petrobras, “bloquinho” e caneta estampados com BR, bem
como o coquetel oferecido no intervalo. Essas ofertas podem servir de atrativos a população local e
podem também contribuir para gerar um sentimento de simpatia com relação à Petrobras. Esse
desequilíbrio na relação de forças é reforçado pelos aparatos tecnológicos utilizados durante a
apresentação. Do modo como é organizada, a Audiência ganha proporções de um grande evento,
um encontro, um acontecimento.
Seguindo a ordem programada, o próximo a falar foi um representante do setor de engenharia da
Petrobrás, empresa empreendedora. O empreendimento é o projeto que eles, os empreendedores
6 O IBAMA é o responsável pela realização do evento, mas quem organiza e financia é o empreendedor. Essa questão será tratada mais adiante, pois considera-se que a organização do evento tenha uma grande influência nos seus desdobramentos. 7 “Se houver críticas a maneira como foi divulgada a audiência pública, façam chegar ao IBAMA e nos mudamos isso e nos informamos as entidade interessadas e encaminhamos os estudos”. 8 Segundo o Art. 2° da Resolução CONAMA: caso haja solicitação de Audiência Pública que não tenha sido realizada a licença não terá validade.
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pretendem implementar. Palavras com essa raiz foram pronunciadas por todas as pessoas que se
referiam aos funcionários ou às ações da Petrobras.
Esse funcionário era mulato e possuía um jeito calmo e simples de falar. Seu sotaque de
nordestino confirmava seu aspecto popular, semelhante a uma parte da platéia9. O empreendedor
começou sua apresentação falando sobre a Petrobras e sobre a produção de petróleo da Bacia de
Campos. Números e gráficos demonstraram a importância em termos numéricos e financeiros da
produção de petróleo da empresa para o país. Depois continuou seu argumento demonstrando os
detalhes do empreendimento, localização, engenharia, nomenclatura dos equipamentos, riscos,
impactos ambientais, projetos, ações de emergência e defesa ambiental.
Em sua fala, as referências ao meio ambiente apareceram relacionadas às características naturais
do meio ambiente da área do projeto e suas modificações no caso da implementação do mesmo. Nas
fotos que aparecem no folder e nos slides projetados na parede, ilustrando o texto que tratava dos
projetos ambientais, apareceram aves, mamíferos, mares e ecossistemas de restinga. Através da
leitura cuidadosa dos enunciados que aparecem no folheto, distribuído pelas recepcionistas no início
da Audiência, observamos como o meio ambiente sempre aparece relacionado à própria Petrobras.
A apresentação do empreendedor estava repleta de recursos lúdicos que a tornava mais atrativa.
Foram utilizados filmes, transparências, fotos e animações. Além dos dados numéricos, mapas e
imagens, que eram transmitidas na tela como em um cinema, aclimatado pelo escuro e pelo ar
condicionado. Esses recursos serviram para chamar a atenção do público em alguns momentos da
apresentação. Entretanto, a linguagem técnica, os nomes e siglas utilizados para nomear os aparatos
técnicos e os procedimentos de engenharia dispersavam os espectadores. Bocejos e conversas
paralelas foram observados durante a apresentação do empreendedor, assim como de uma
representante da empresa responsável pela elaboração do Estudo de Impacto Ambiental, que seria a
próxima a falar.
A apresentação do EIA seguiu o padrão freqüentemente encontrado em audiências públicas.
Também utilizando datashow, a bióloga e coordenadora técnica do estudo apresentou as
características do empreendimento e do meio ambiente onde ele está programado para se instalar. O
resultado do estudo atende ao termo de referência, que é um documento legal, emitido pelo
IBAMA, que contém as diretrizes e os pontos que devem ser tratados pelo relatório. As informações
são resumidamente organizadas da seguinte maneira: características técnicas do empreendimento,
definição da Área de Influência do Empreendimento (direta e indireta), diagnóstico dos meios
9 Em experiências anteriores assistindo outras audiências públicas notei que o funcionário de frente da empresa nesses eventos costuma responder a esse perfil. Quando comentei essa minha observação com um outro funcionário da Petrobras, entretanto, ele afirmou que a escolha do representante da empresa não está relacionada a critérios de tipo físico, trata-se do funcionário responsável na empresa pelo empreendimento.
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físico, biótico e socioeconômico, análise integrada, análise de impactos, análise de riscos, projetos
de mitigação e compensação ambiental (os chamados projetos ambientais).
O estudo apresenta as características do meio ambiente tal como elas se apresentam antes e depois
da implementação do empreendimento. No diagnóstico encontramos as características ambientais
dos locais que pertencem à área de influência, sob o olhar de profissionais com diferentes
formações. A equipe multidisciplinar foi composta por biólogos, engenheiros, geógrafos, geólogos,
advogados, etc. Esses profissionais elaboraram seus relatórios através do levantamento dos dados
existentes e da coleta de informações em campo10.
Diferente da perspectiva do empreendedor, o meio ambiente é apresentado como uma instituição
independente do empreendimento. Foram apresentados as suas características consideradas
“originais” — ecossistemas, fauna e flora — e as projeções de suas modificações, apresentadas
numa visão científica ou técnica. Palavras como moluscos, crustáceos, quelônios, cetáceos,
restingas, manguesais, entre outras, foram utilizadas para caracterizar o meio ambiente. Cada
especialista respondeu por uma parte do estudo compondo um corpo de legitimidade sobre os
saberes apresentados no EIA.
O meio socioeconômico, o homem, é aquele que se apropria desses recursos. Nesse caso foram
caracterizadas as atividades econômicas desenvolvidas pelos grupos sociais que habitam ou
utilizam os recursos naturais das áreas onde serão construídos a plataforma e os dutos. A pesca foi
rapidamente caracterizada, durante a apresentação da bióloga que durou cerca de 42 minutos,
apenas 1 minuto fora a ela dedicado. As comunidades pesqueiras que fazem parte da área de
influência e os pescadores que estavam distribuídos pela platéia não foram sequer citadas.
As análises de impacto e de risco consideraram as conseqüências, tanto para o meio natural como
para o meio socioeconômico11. Essas análises são balizadas por conceitos matemáticos e estatísticos
como freqüência, magnitude, probabilidade, severidade, etc. A conclusão do estudo foi a seguinte:
“A implantação do Complexo PDET no trecho marítimo é considerada viável ambientalmente. Por que? Porque apesar do maior números dos impactos serem negativos, esses impactos são considerados reversíveis ou de baixa magnitude em sua grande maioria. E, aliado a isso, existe o lado positivo da implementação de um empreendimento como esse, possibilitando o aumento da produção e do escoamento de petróleo, a oferta de empregos, o aumento de tributos e, a redução do tráfico de navios aliviadores, que aumentariam o tráfego marítimo. Essa viabilidade ambiental depende então da implementação das medidas e dos projetos ambientais12
10 Uma questão interessante que surge em relação a esse ponto é que as informações geradas nesses estudos pertencem à empresa que contrata a consultoria ambiental. Elas somente se tornam públicas quando o EIA/RIMA é encaminhado para os órgãos públicos e civis. No entanto, nem todas as informações colhidas são inseridas no EIA. A minha hipótese é de que as empresas de consultoria são responsáveis pela construção privada de saberes sobre o Estado, grande parte do qual permanece sobre o domínio das empresas que estão sujeitas ao processo de licenciamento ambiental. 11 Vale ressaltar que pelo modo como é organizado o estudo, nota-se uma separação do homem da natureza. E, quando os cientistas, técnicos e especialistas presentes na Audiência referiam-se ao meio ambiente, geralmente, o homem não estava incluído. 12 Os projetos ambientais foram propostos pelos próprios profissionais da Petrobras.
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propostos e, também devem ser considerados todos os aspectos legais em vigor durante a instalação e operação do gasoduto”.(grifos meus)
As conclusões do parecer técnico apresentado pela empresa de consultoria indica que o
empreendimento é viável do ponto de vista ambiental, lembrando que o ambiente nesse caso refere-
se às características de uma natureza explicitada em termos científicos e técnicos, calcada na
perspectiva das ciências da natureza. Essa viabilidade ambiental indica que as transformações sobre
as características do ecossistema no qual ele será inserido não serão responsáveis por uma
modificação “essencial” dessa natureza, bem como pelo desaparecimento, extinção, mortandade dos
seres que a habitam.
Após a apresentação do Estudo, a representante do Ministério Público leu o parecer elaborado
pelo grupo de apoio técnico, composto por um químico industrial e um biólogo especializado em
ciência ambiental. Sua linguagem misturava elementos litúrgicos, técnicos e científicos. Foram
citadas as resoluções do CONAMA como base de seus argumentos. O parecer técnico também
exibia em números e substância químicas as projeções de risco não contempladas pelo EIA.
Outra questão não considerada atendida pelo parecer refere-se às medidas compensatórias do
projeto. Nesse caso, uma justificativa dada por um representante do IBAMA durante o debate, em
que questões como essa também apareceram, está associada ao fato de que essa etapa do
licenciamento ambiental refere-se apenas à concessão de uma licença de instalação (LI), e não de
uma licença de operação (LO). Isso quer dizer que com essa licença, a Petrobras estaria apta a
realizar as obras do gasoduto, mas deveria ainda desenvolver um outro estudo para colocá-lo em
funcionamento. Somente durante o processo de licenciamento para a concessão da LO deveriam ser
propostas as medidas de compensação.
A compensação sugerida pela representante do Ministério Público seria dirigida aos pescadores e
ao investimento em áreas de conservação ambiental13. Segundo o parecer:
“Em reportagem do jornal o Globo, de 14 de setembro do corrente ano, este informa que “o petróleo esta fazendo a pesca definhar com o desaparecimento de espécies”. Biólogo do museu nacional, do Rio de Janeiro, Décio Ferreira de Moraes Junior entende possível que “os cardumes estão se afastando em razão a intensa atividade no mar, com as idas e vindas dos rebocadores nas áreas de exploração”. Já as plataformas teriam o efeito de atrair os peixes em razão de limo e lixo orgânico despejados no mar. Entretanto, por razões de segurança a pesca é proibida num raio 500m14 das plataformas, ficando os pescadores impedidos de se beneficiarem desta oferta. O estudo não indica a proposta para mitigar ou compensar os pescadores pela redução da área de pesca a partir da formação da área de exclusão. O estudo por fim não indica o percentual a
13 Seguindo a legislação encontrada no Sistema Nacional de Unidades de Conservação — SNUC — e nas Resoluções do CONAMA que prevêem a destinação de uma verba referente à quantia de cerca de 0,5% do valor do investimento em preservação do patrimônio ambiental. 14 De acordo com as normas de navegação estabelecidas pela Capitania dos Portos, órgão vinculado a Marinha do Brasil, em torno das plataformas estabele-se uma ‘zona de exclusão’ de 500m de raio, onde é impedida a circulação de embarcações, por motivo de segurança.
10
ser investido em compensação pela implantação do empreendimento que trará sensível impacto ao meio ambiente da região, conforme determina a Resolução CONAMA 02 de 96, em seu artigo primeiro15...”.
As sugestões emitidas pelo parecer depois de apresentadas foram enviadas ao IBAMA e a
empresa de consultoria. Uma declaração do presidente da mesa evidenciou o tipo de relação que
esse órgão possui com o Ministério Público — MP, ao referir-se a essa entidade como um parceiro
no processo de licenciamento.
É interessante notar como o parecer emitido pelo MP já anuncia as principais questões que serão
debatidas depois do intervalo. Nos próximos tópicos desse trabalho ficará mais claro como que
nesse caso, essa entidade parece ser uma espécie de interlocutor das preocupações que justificam a
presença de uma parcela importante das pessoas que compareceram e apareceram na Audiência
Pública.
A preocupação com a compensação dos pescadores é justificada a partir de um argumento
utilizado por um cientista do Museu Nacional, publicado em uma reportagem do jornal o Globo, a
respeito do prejuízo causado à atividade pesqueira pelas atividades do setor petrolífero no mar.
Esses argumentos serão combatidos por uma outra visão, de um outro cientista, que foi contratado
pela Petrobras para fazer um estudo sobre as espécies pesqueiras na Bacia de Campos.
Outra questão evocada está relacionada a uma preocupação que envolve a participação dos
ambientalistas, que trata especificamente da preservação dos ecossistemas costeiros e marítimos.
Depois do intervalo, esses assuntos serão então expostos de uma forma mais cuidadosa.
Parte 2: O debate e a participação da sociedade
Depois dos representantes do IBAMA, do empreendedor, dos consultores, dos membros do
Ministério Público, chegou à vez das outras pessoas que compareceram ao evento, do público, dos
representantes das entidades civis e governamentais, dos cidadãos, pescadores e ambientalistas
falarem. Na segunda parte do evento foram encaminhadas e respondidas questões escritas e orais,
nessa ordem.
O presidente da mesa lia cada pergunta em voz alta. As questões foram agrupadas por blocos do
mesmo assunto, lidas em conjunto e destinadas a um dos componentes da Mesa Diretora, definido
pelo Presidente, que deveria respondê-las. A resposta poderia durar até 3 minutos. O participante
tinha direito a pedir mais esclarecimentos, ou reformular a questão, também em um tempo de 3
15 “...que diz o seguinte: para fazer a reparação dos danos ambientais causados pela destruição de florestas e outros ecossistemas, o licenciamento de relevante impacto ambiental, assim considerado pelo órgão ambiental competente com fundamento no EIA/RIMA, terá como um dos requisitos a ser atendido pela entidade licenciada a implantação de uma unidade de conservação do domínio público e uso indireto, preferencialmente uma estação ecológica a critério do órgão licenciador (?). do empreendedor”. (grifos meus)
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minutos. A replica seguia esse padrão. Esses tempos poderiam ser prorrogados a critério do
Presidente.
As perguntas foram encaminhadas à mesa pelas recepcionistas da Petrobras de plantão. O
formulário para perguntas veio dentro da pasta distribuída na entrada do auditório. Nele continham
as seguintes informações a serem preenchidas: nome, identidade, endereço / telefone, perguntas.
Uma questão curiosa é que não havia nenhum espaço destinado à identificação da entidade a que o
perguntador estava vinculado. No entanto, durante a leitura de praticamente todas as perguntas, os
participantes se identificaram como vinculados a alguma instituição. No final da Audiência, no
verso do formulário que um pescador me repassou com seu contato, notei que no espaço destinado
ao preenchimento da identidade o perguntador havia preenchido o número de sua carteira e a
seguinte informação: Vice Presidente da Associação de Pescadores de Carapebus. Essa era a sua
identificação, sua identidade.
As perguntas foram separadas em 6 blocos, que se dividiam nos seguintes temas: (1)
empreendimento; (2) impacto, mitigação e compensação; (3) royalties; (4) acidentes; (5)
compensação aos pescadores; (6) empregos. Para efeito de análise considerei as perguntas
individualmente, atribuindo-lhes números separados. Desse modo, cheguei a um total16 de 46
perguntas, que foram separadas por temas e quantificadas.
Esse procedimento possibilitou-me apontar aqueles temas que foram motivo de maior
preocupação por parte dos participantes, que se manifestaram durante a Audiência. Pude identificar,
do conjunto de reivindicações, aquelas que se constituiriam em questões pertencentes a mais de
uma pessoa, a um grupo. Os temas foram separados a partir dos enunciados contidos nessas
perguntas. Foram agrupadas as questões que continham palavras pertencentes a um mesmo campo
semântico ou temático.
Perguntas sobre ‘pescador’, ‘pesca’, ‘atividades pesqueira’ representaram o maior percentual do
total de 46, cerca de 35%. Em seguida o segundo maior número de questões tratava de assuntos
relacionados às características do empreendimento, que representaram cerca de 19,5% do total. Os
assuntos de meio ambiente (aspectos naturais, ecossistemas, organismos, natureza, etc.) tiveram
uma participação menor no total de perguntas, 13%. Nos quadros abaixo, pode-se observar a
distribuição das perguntas por blocos (segundo a ordem em que foram lidas na Audiência) e por
temas (de acordo com a minha divisão).
Quadro 1 – Distribuição das perguntas por Bloco
16 De acordo com a declaração do Presidente da Mesa Diretora, no final do evento, foram encaminhadas 51 perguntas ao todo. Nem todas, no entanto, tratavam de temas relativos aos assuntos que estavam sendo discutidos na Audiência Pública e, portanto, não foram lidas.
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Bloco de Perguntas Número de Perguntas % do total
Empreendimento 9 19,5
Impacto, mitigação e compensação 11 23
Royalties 3 6,5
Acidentes 3 6,5
Compensação aos pescadores 15 32
Empregos 2 4,3
Geral 3 6,5
Quadro 2 – Distribuição das perguntas por tema
Temas Número de Perguntas % do total
Pesca, pescadores 16 35
Meio ambiente, natureza, ecossistemas 6 13
Acidentes 4 8,6
Características do empreendimento 9 19,5
Política da aplicação de dinheiro em projetos Sociais e Ambientais
5 10,9
Outros 6 13
O primeiro bloco de perguntas tratou das questões sobre o empreendimento. As nove perguntas
buscavam esclarecimentos sobre: (a) as características técnicas do projeto; (b) os tipos de
equipamentos utilizados; (c) as alternativas de projetos menos arriscadas para o meio ambiente; (d)
o valor do empreendimento; (e) estudos técnicos sobre tratamento de resíduos e efluentes químicos
eliminados no mar; entre outras preocupações de cunho prático. Elas foram respondidas pelos
representantes da Petrobras presentes na Audiência, engenheiros e técnicos contratados.
Denúncias sobre as características do empreendimento irregulares, conforme apresentadas na
primeira parte do EIA/RIMA, também apareceram entre as perguntas. Nesse momento, os
perguntadores utilizaram o tempo da réplica da pergunta para formular suas críticas ao
empreendimento. Ambos os casos demonstraram que os participantes realizaram uma leitura
cuidadosa do estudo, de modo a apontar-lhe as falhas. Em uma dessas intervenções foi feita uma
observação sobre uma das empresas prestadoras de serviço, responsável pelo tratamento dos
resíduos do lixo gerados, que não tinha licença para operar no Rio de Janeiro, apenas em Minas
Gerais. Em outro momento, uma denúncia sobre a ausência dos gasodutos nos esquemas
apresentados no EIA, assim como, a falta dos estudos de modelagem referentes aos riscos do
transporte de gás pelo Sistema PDET. Nenhuma das perguntadoras se identificou como
representante de entidade.
O segundo bloco de perguntas foi aquele que referia-se a questões relacionadas a: impactos
ambientais, medidas mitigadoras e medidas compensatórias. As perguntas de um modo geral
indicavam uma preocupação com: (a) as compensações em relação à restrição da atividade
13
pesqueira durante o período de obras, por motivos de segurança; (b) os impactos que seriam gerados
aos ecossistemas e as formas de compensá-los; (c) a compensação pelos danos sociais e ambientais
causados pelo empreendedor (d) a indicação de projetos que podem ser incluídos na etapa futura do
empreendimento, quando em momento da aplicação das compensações.
Os esclarecimentos com relação a compensações ambientais seguiam o mesmo argumento, já
apresentado, sobre a confusão que se estabeleceu em relação à etapa do processo de licenciamento.
Para emissão da LI, não é necessário apresentar os projetos de compensação. Nota-se, no entanto,
que essa confusão generalizada não é totalmente destituída de sentido. Conforme argumentou um
participante, que se identificou como pertencente ao Consórcio Intermunicipal de Barra de São
João, quando passar a Audiência, à população não vai poder se manifestar para encaminhar suas
propostas de investimento em medidas compensatórias. No momento da Audiência para concessão
da Licença de Operação, os projetos já devem ser apresentados no EIA, de modo que não haverá
mais como incorporar as sugestões. Segundo o esclarecimento de uma representante da
ELPN/IBAMA, as propostas então deveriam ser encaminhadas durante a Audiência ou diretamente
aos escritórios do IBAMA, “órgão a quem compete à aplicação e destinação dos recursos
obrigatoriamente destinados à compensação.
Para o esclarecimento sobre os impactos ao meio natural e à atividade pesqueira, o empreendedor,
encaminhou o microfone para dois especialistas (técnico e cientista), que responderam às questões
de acordo com as pesquisas que realizaram durante a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental.
O primeiro especialista a ser chamado foi o cientista e professor da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro —UERJ, membro do Departamento de Oceanografia. Em sua apresentação, que durou
cerca de 5 minutos e meio, declarou que vem acompanhando a atividades pesqueira do Estado do
Rio de Janeiro e do Brasil há muitos anos. Entende-se que esse comentário buscou salientar, que
embora tenha realizado esse estudo para a Petrobras, sua relação com as atividades pesqueiras é
anterior aos resultados da pesquisa apresentados no debate. Suas intervenções orais serão aqui
bastante exploradas, pois nelas encontram-se os pontos mais polêmicos do debate, alvos de críticas
e confrontações diretas.
O cientista começou a sua intervenção questionando o que foi levantado pela representante do
Mistério Público, sobre a reportagem do jornal O Globo, que trata da influência da atividade
petrolífera sobre a pesca. Sua primeira contestação relacionou-se com fato de seu nome também ter
sido citado na mesma reportagem e não mencionado durante a leitura do parecer. Talvez, segundo
ele, “por estar levantando um ponto de vista diferente”. O ponto de vista por ele defendido foi o
seguinte:
“A instalação das plataformas, é, no fundo, benéfica para a atividade pesqueira.”
14
Seguiu sua exposição afirmando que a atividade pesqueira teria se instalado naquela região da
Bacia de Campos, nos anos 70, em função da atração exercida pelo sombreamento das estruturas
das plataformas (e não do lançamento de resíduos no mar, restos de comida e esgotos, conforme
citado no parecer do MP). Referindo-se aos dados sobre pesca atualmente existentes, declarou que
cerca de 38% da captura do bonito listrado (uma espécie de peixe) no Estado do Rio de Janeiro se
realiza na região da Bacia de Campos. E ainda, que as plataformas servem de atrativo a outras
espécies como atuns, cavalas, dourados e bonitos, que sustentam uma grande parte da pesca de
espinhel, linha, currico e isca-viva (tipos de equipamentos) do Estado.
Sobre o efeito “atrator” das plataformas parece que existe uma concordância entre todos que
participam desse debate (incluindo os pescadores). O embate se travou, entretanto, em relação à
consideração desse fenômeno como um fator positivo ou negativo à atividade pesqueira. Para o
pesquisador da UERJ, esse fenômeno tem sido responsável pelo aumento da produção pesqueira,
sendo considerado, portanto, positivo.
Para o outro cientista citado em reportagem de jornal, pela representante do MP, assim como para
o Chico Pescador (que se manifestou em um outro momento do debate), esses peixes que são
atraídos pelas plataformas, não só em função do sombreamento como do despejo de resíduos no
mar, tem origem nos locais mais próximos da costa, nos territórios marítimos tradicionalmente
utilizados pelas comunidades pesqueiras. Desse modo, os pescadores são então obrigados a se
deslocar maiores distancias no mar, realizando viagens com custos maiores (combustível,
alimentação, equipamento, gelo, etc.), para pescar em áreas perigosas e proibidas (em função da
zona de exclusão de 500m entorno da plataforma).
O pesquisador da UERJ, contestou esse argumento afirmando que o efeito “atrator” se estende
para além desses 500m e, que a atividade pesqueira pode, portanto, conviver em “perfeita harmonia
com as plataformas”.
A disputas que se travavam em torno desse debate, no qual se contestou em linguagem científica,
podem ser interpretadas por uma outra ótica. Trata-se de uma diferença de posições entre os dois
cientistas, postos em diálogo pela imprensa e pelo MP, assim como, dos interesses particulares de
suas pesquisas. Não se pode ignorar o fato de que o pesquisador da UERJ recebe investimentos da
Petrobras para a realização de suas pesquisas. Os vínculos do outro pesquisador citado ainda não
foram bem mapeados, mas a princípio, não parece possuir nenhuma ligação formal com nenhuma
das entidades presentes no debate17.
17 Por pertencer a mesma instituição, o Museu Nacional, embora pesquisadora de outro departamento, tive a oportunidade de cruzar com Décio nos corredores do Palácio da Quinta da Boa Vista. Em conversas rápidas de corredor, Décio me explicou seu ponto de vista, e, quando questionado sobre os motivos de seus interesses de pesquisa sobre o assunto, me respondeu, que já tinha despertado para essas questões há um tempo atrás, tendo participado inclusive de alguns debates na época, com as empresas de petróleo.
15
Em relação ao esclarecimento a respeito dos impactos da obra sobre as atividades pesqueiras, para
o qual foi chamado ao microfone, o pesquisador, deu o seguinte parecer: haverá durante o período
de instalação “uma interrupção da pesca numa área de 16km2, que se movimenta ao longo do
tempo, durante 1 a 2 meses”, entre as profundidades de 5 e 25m (locais onde se concentram os
pesqueiros de camarão utilizados pelos pescadores de arrasto, oriundos do Farol de São Tomé,
litoral de Campos dos Goytacases). Desse modo, “existe uma interferência? Existe. Só que ela é
limitada e restrita no tempo. Depois da instalação não há restrições à pesca de arrasto...porque o
duto vai estar enterrado ou semi-enterrado”.
Outro impacto que preocupou os participantes do debate, pescadores e ambientalistas, refere-se à
fase da instalação do empreendimento denominada de ‘desalagamento do duto’. Momento em que o
líquido utilizado para conservar o duto da corrosão, enquanto ele estiver submerso no mar sem
utilização, será liberado na água, com os produtos e as substâncias químicas. O esclarecimento do
professor sobre os impactos dessa etapa foi o seguinte:
“Nesse momento vai haver uma variação do decaimento das substâncias ativas que serão despejadas na água, estabelecendo um tempo de interdição da pesca....um número limitado de dias e vai afetar basicamente a pesca de linha de fundo, visto que os recursos pelágicos tendem a se deslocar... Isso aí é perfeitamente quantificável....”18.
Para esclarecer sobre os impactos gerados ao meio ambiente, nessa mesma fase, de
‘desalagamento do duto’, o empreendedor chamou ao microfone um outro especialista, do Centro
de Pesquisa da Petrobras – CENPES. Esse profissional, especializado no estudo das substâncias
químicas que serão despejadas no mar, foi convocado a responder sobre os testes de toxidade dos
químicos em contato com a água do mar. De acordo com o seu parecer, o Multaral Deido (biocida)
e o Bisofito de Sódio (seqüestrante de oxigênio), que serão utilizados para desinfetar a água do mar
e como sequestrante de oxigênio, para evitar corrosão do duto, são “substâncias mais comuns do
que a gente pensa... utilizadas na desinfecção de material de laboratório e hospitalar...preservante
de alimentos....e já devemos tê-los ingerido”.
“..o risco existe, por isso devemos estudar para avaliar...O CENPES já tem projeto de estudo... O fluido fica no duto por meses e anos, então é provável que haja decaimento da toxidade do produto...em função disso as medidas devem ser tomadas...a partir do resultado das análises com o lançamento do fluido....”
O perguntador não se sentiu satisfeito com a explicação do especialista. A resposta que buscava
não se traduzia em nomes e comportamentos de substâncias químicas. Seu intuito era saber quem
Salientou sobre a necessidade de se investir em mais pesquisas na região para que se possa comentar com mais segurança sobre os impactos da atividade petrolífera na pesca da Bacia de Campos. Nessas conversas, Décio demonstrou também conhecer alguns nomes (por mim) citados de lideranças do setor pesqueiro do Estado do Rio de Janeiro. Pretendo ainda, no decorrer da minha pesquisa, realizar uma entrevista formal com esse cientista, assim como com o pesquisador da UERJ, Silvio Jablonski. 18 Nota-se que a argumentação do pesquisador esteve baseada em dados que podem ser “perfeitamente quantificáveis” e mensuráveis, através da utilização dos métodos de pesquisa por ele empregado.
16
seriam os prejudicados e quem arcaria com os danos gerados. Em sua réplica, salientou que haverá
um impacto sobre a pesca, e ainda, de acordo com as suas próprias palavras, em relação aos
pronunciamentos dos especialistas:
“...é tudo muito lindo...mas vocês tem que entender que isso ai vai atuar direto na biota, então os peixes pelágicos ou cardumes que por ali passariam para se alimentar não vão passar mais, essa pluma vai espantar de forma considerada os peixes da região, sendo 3, 4, 5, 6 dias, e isso tem que ser compensado porque o pescador esta dentro dessa cadeia. Eu queria que vocês considerassem sempre o pescador fazendo parte do meio, nunca superficialmente, muito pelo contrário, bem dentro da pesca.” (grifos meus).
Esse pronunciamento caracteriza claramente a mudança percebida no discurso dos participantes
em relação às discussões sobre o meio ambiente. Na segunda parte do evento, durante o debate, os
participantes reivindicavam a inclusão dos pescadores e do homem no debate. Suas afirmações
reforçaram a importância dos efeitos das modificações dos ecossistemas sobre o homem. Ao final
do debate, no momento das manifestações orais, mais um pronunciamento — de uma pessoa que se
apresentou como membro da Associação de Pescadores Artesanais de Quissamã — salientou
explicitamente essa reivindicação:
“Hoje aqui nessa Audiência, nós estamos aqui para discutir assuntos do meio ambiente; o meio ambiente, por acaso, não seria a forma de vida mais presente, o homem? Ou apenas os ecossitemas?...”
Para dar-se conta dessa dimensão as explicações científicas e técnicas não se mostravam
suficientes. Probabilidades e modelagens não diminuíam as preocupações dos ambientalistas com
relação à preservação dos ecossistemas, nem dos pescadores com relação à mortandade ou
afastamento do peixe. As perguntas que fizeram parte desse bloco buscavam respostas, que
pudessem se traduzir em investimentos nos projetos sociais e ambientais para compensação a
sujeição desses grupos aos riscos e impactos do empreendimento. Algumas questões que fizeram
parte desse bloco foram: “Quem pagará pelos danos ambientais?” Durante o período de obras os
pescadores viverão do que? Qual será a política da empresa em relação aos projetos sociais,
ambientais, culturais, esportivos, etc? Como contactar a empresa para encaminhar as propostas?
Alguns participantes aproveitaram a oportunidade para expor idéias ou projetos já em andamento,
os quais poderiam ser desenvolvidos com a verba da compensação. Nesse caso as perguntas escritas
funcionaram como uma ponte para a declaração oral dos participantes, que se aproveitaram do
momento da réplica para exporem suas propostas.
Por vezes, as colocações transcenderam os objetivos específicos da Audiência. As pessoas
utilizaram o espaço ali destinado, para colocar questões mais amplas, aproveitando-se da
oportunidade de encontrarem reunidas diferentes autoridades, representantes governamentais e da
Petrobras, representantes de entidades, e da possibilidade de angariar investimento para o
desenvolvimento de projetos. Isso pode ser observado, por exemplo, nas questões que trataram da
17
possibilidade de se destinar parte da compensação em contrapartida para os projetos da Agenda 21
dos municípios, para projetos comemorativos dos 500 anos, ou ainda, para o Projeto Orla,
desenvolvido pelo Ministério do Meio Ambiente — MMA.
O Bloco de perguntas sobre royalties teve apenas três questões. Duas tratavam basicamente do
mesmo tema. A destinação do tributo quando ele é repassado para os municípios e a reivindicação
de uma percentagem destinada diretamente para os pescadores. Para responder a essa questão o
presidente chamou o representante da Agência Nacional de Petróleo — ANP, órgão estatal
responsável pelo repasse das verbas de royaltes. Os esclarecimentos visavam diferenciar a
destinação do tributo da compensação ambiental. Segundo o presidente da mesa, que falou logo em
seguida: “o royaltie tem destinação legal”.
Um representante da Associação de Pescadores Artesanais de Quissamã — APAQ — alegou que
“o royaltie é entregue aos municípios que o gerenciam na educação, na saúde, no lazer, no
saneamento básico, no desenvolvimento da pecuária e na irrigação da agricultura. A pesca nunca
foi incluída”. Citando a lei dos royalties, alegou que só existem restrições quanto à utilização desses
tributos para o pagamento de dívida e do quadro permanente de pessoal. Esse perguntador propôs
ainda, que se discuta uma modificação nos parâmetros legais que regulamentam o repasse desses
tributos. Se os pescadores são aqueles que sofrem diretamente com os empreendimentos de petróleo
na Bacia de Campos, porque não recebem por isso uma parte do dinheiro destinado aos municípios.
A luta pelo direito a uma percentagem dos royalties está presente no quadro de reivindicações que o
movimento dos pescadores do Estado do Rio de Janeiro vêm declarando em suas aparições e
manifestações públicas19. A outra pergunta sobre o mesmo tema foi do Chico Pescador,
representante da União das Entidades de Pesca do Estado do Rio de Janeiro — UEPA. Essa
entidade foi fundada recentemente20. Pescadores com a camisa da UEPA, oriundos de diversas
localidades do Rio de Janeiro, se articularam durante todo o evento. Quando eram pronunciadas
suas reivindicações no microfone, ouviam-se as reações inflamadas desses pescadores, que
legitimavam através das palmas as idéias que estavam sendo tratadas.
O bloco de perguntas sobre acidentes teve apenas a participação de 3 perguntadores. Suas
questões foram de ordem técnica, e tratavam de indagações sobre o que ocorreria em caso de
acidentes e sobre as características do empreendimento mais suscetíveis aos acidentes. O
representante do empreendedor, em sua resposta, enumerou os procedimentos de engenharia e de
defesa ambiental da Petrobras. Falou sobre os Centros de Defesa Ambiental e a política de Saúde,
19 Essas reivindicações foram também manifestadas durante a 1 Conferência Estadual de Aqüicultura e Pesca do Rio de Janeiro, organizada pela Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca, realizada entre os dias 30 de junho e 1° de julho de 2003. 20 Tenho ainda que mapear as origens e os detalhes dessa entidade. Apenas tenho conhecimento que formou-se a pouco tempo, em função da mobilização dos representantes do setor pesqueiro no momento de criação da Secretaria Especial da Pesca, no início do Governo Lula, em abril de 2003.
18
Segurança e Meio Ambiente da empresa. De acordo com suas palavras, “temos um sistema
robusto”, com grandes investimentos nas pesquisas que visem garantir a seguridade do
empreendimento.
O próximo bloco de perguntas voltou para um tema já discutido, mas dessa vez, as perguntas
referiam-se exclusivamente à compensação para a pesca. Quinze questões foram agrupadas em
torno desse tema. Além das dúvidas sobre a compensação dos pescadores pela perda de áreas de
pesca durante a realização das obras de instalação dos dutos, as questões traziam propostas de
projetos e idéias.
A resposta do empreendedor a essas questões buscou reforçar a idéia já explorada de que nesse
momento do projeto a compensação não é exigida legalmente. Mas, de qualquer modo, a Petrobras
estaria investindo em projetos de atuação voluntária, voltados ao beneficiamento dos pescadores da
Bacia de Campos. Esses projetos estariam vinculados a uma ação coorporativa da companhia, não
estando relacionados com um ou outro empreendimento específico. De acordo com o representante
do empreendedor, a Petrobras tem um compromisso social com os pescadores, e vêm elaborando
um projeto que vise agregar as propostas do movimento dos pescadores. Outros projetos podem
futuramente ser incluídos no contexto do Programa Fome Zero, desenvolvido pela empresa, desde o
início do Governo Lula.
Como a discussão sobre a compensação também envolve o conhecimento sobre os impactos que
devem ser gerados durante as instalações, mais uma vez, o cientista da UERJ foi chamado ao
microfone. Seus esclarecimentos reproduziam alguns trechos da sua fala inicial já citada. Durante o
período de instalação em um raio de 16km2 em torno da obra não poderiam ser desenvolvidas
atividades pesqueiras. Segundo suas estimativas, a produção pesqueira referente a uma área como
essa representaria cerca de 4% da atividade pesqueira da comunidade que mais utiliza esses espaços
marítimos, do Farol de São Tomé. Aproveitando-se da oportunidade de estar ao microfone, o
falante respondendo as provocações do Chico Pescador, declarou que a UEPA e as outras entidades
de pesca deveriam concentrar seus esforços no direcionamento de reivindicações às instituições
responsáveis pela sua gestão. Segundo sua fala: “a Petrobras não é órgão gestor da pesca”. A
companhia vai compensar os danos causados, mas faltam inclusive dados suficientes para valorar os
impactos. Seus cálculos utilizaram os dados da ultima estatística pesqueira da localidade, que foi
realizada em 1987. De acordo com o cientista, os pescadores deveriam concentrar seus esforços na
luta pela realização de estatísticas pesqueiras capazes de retratar a real situação da atividade
pesqueira do estado.
Uma questão de ordem prática foi colocada durante esse bloco de perguntas: “foi feito o
cadastramento dos pescadores, para evitar correria em caso de acidente?” A resposta do
19
empreendedor parece não ter sido satisfatória para o presidente da mesa, que logo em seguida
interveio alegando ser essa uma questão de um pescador, “que é uma gente prática e objetiva”. O
cadastramento não foi realizado, e, segundo o presidente, de modo a evitar os chamados
“pescadores de ocasião”, será exigido esse procedimento como uma das condicionantes à liberação
da licença.
Encerrados os bloco de perguntas escritas iniciou-se a parte referente às manifestações orais. Já
era mais de meia noite e apenas 3 participantes se escreveram para falar: Chico Pescador e outros
dois, um que não se identificou como representante de entidade e outro, da Secretaria de Obras e
Projetos de Arraial do Cabo. A platéia já encontrava-se esvaziada. Nas cadeiras podiam ser
identificados apenas os pescadores, os técnicos responsáveis pelo estudo, os engenheiros da
Petrobras, os membros dos órgãos governamentais, e outras pessoas. As famílias, mulheres e
crianças já tinham deixado o auditório. Deterei-me apenas à intervenção desse primeiro, pois as
outras trataram de questões já desenvolvidas nesse trabalho.
Pode-se dizer que a participação de Chico foi inovadora. O representante da UEPA tinha
preparado uma apresentação de 15 minutos, para, segundo ele, tratar de temas ainda não abordados
durante a Audiência. Esse tipo de intervenção não estava previsto no regulamento, mas a mesa
diretora e os demais presentes não se mostraram contrários. Sua apresentação conteve os mesmos
recursos utilizados pela empresa responsável pelo EIA e pelo empreendedor. Falou do alto do palco,
enquanto fotos, números e imagens eram projetadas no telão21. Nota-se que nesse momento ocorre
uma inversão da posição do perguntador, para a condição de expositor. Até então os perguntadores
falavam de um microfone instalado ao lado da platéia, voltados para o palco, direcionando suas
questões para a mesa diretora. Quando subiu no palco, Chico voltou-se para a platéia e para os
pescadores, que se demonstraram cúmplices de suas afirmações. Como durante sua apresentação, o
pescador citou os argumentos utilizados pelo cientista contratado da Petrobras, fora destinado a esse
ultimo a oportunidade de réplica. Nesse momento, o pesquisador também respondeu a platéia e aos
pescadores, voltando seu corpo para os mesmos (diferentemente da suas outras intervenções,
quando falava para a mesa diretora).
A exposição de Chico começou com uma provocação ao cientista: “é claro que não poderia
deixar de informar nosso companheiro desinformado...”. Isso, referindo-se as sugestões do cientista
às próximas ações da instituição a qual pertence, UEPA. Segundo Chico, os membros dessa
entidade têm trabalhado junto com a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca — SEAP, já tendo
21 Uma investigação que ainda pretendo realizar refere-se a identificação de quem teria assessorado o Chico a desenvolver essa apresentação.
20
encaminhado sugestões, durante a Conferência Estadual de Aqüicultura e Pesca do Rio de Janeiro,
sobre a realização de uma estatística pesqueira no estado.
Durante sua apresentação o pescador declarou estar de acordo com as ações da Petrobras.
Considerou a empresa como uma parceira nos processos de discussão com as comunidades
pesqueiras, também realizados em outras ocasiões, como a Audiência Pública ocorrida em Campos.
Essa legitimação ocorre, entretanto, numa relação de reciprocidade. Em troca a empresa escuta as
reivindicações dos pescadores e inclui alguns de seus projetos no seu plano de investimentos.
Conforme as palavras de Chico:
“Estamos aqui graças a Petrobras, discutindo em conjunto com as outras comunidades. Ta? Discutindo, nos organizando; e a Petrobras tem sido nossa parceira nisso”.
“...a gente quer o oleoduto. E foi provado que os navios estão ai; acontecendo acidente. O oleoduto é bem menos pior. Agente quer isso, agora que seja levado em consideração as dúvidas e as questões que estão sendo levantadas pela comunidade.”
No final da sua declaração essa questão ficou mais evidente, quando apresentou suas propostas
para a contrapartida desse projeto. A idéia foi que se investisse na abertura da Barra do Furado, uma
localidade pesqueira de Quissamã. A Barra do Furado encontra-se assoreada e os barcos pesqueiros
têm dificuldade de trafegarem até o porto de desembarque localizado na foz do rio do Furado. Esse
projeto seria benéfico para os pescadores de Quissamã, município onde o duto entrará em contato
com a terra. Assim como para a empresa, já que o empreendimento será construído a apenas 10
minutos desse local. Em caso de acidente, o caminho dos barcos de apoio e os procedimentos do
Centro de Defesa Ambiental seriam facilitados pela distância mais curta do que a prevista (com um
deslocamento de 5horas até o local).
Os dados utilizados durante a apresentação foram retirados do EIA. O pescador apresentou as
estimativas do número de pescadores, da produção pesqueira e da renda dos pescadores que
habitam as localidades da Área de Influência do Empreendimento; e multiplicou esses valores pelo
tempo de duração da obra, chegando, no final de sua conta a um valor de R$183.168.000,00. De
acordo com o Chico, com esse valor: “a gente pode falar para o empreendedor como isso é
importante para agente. Porque falar em 4% é muito fácil, mas dizer que o pescador ganha
R$720,00 por mês, que é mais difícil.”
Um outro argumento utilizado por Chico Pescador, não foi retirado do EIA, mas “da escola da
vida”. Quando se fala em uma área de restrição à pesca de 16km2, se comparando-a ao tamanho da
costa marítima do litoral do Rio de Janeiro, parece que se trata de uma porção muito pequena de
mar. No entanto, mostrando uma foto de uma canoa de pesca artesanal de 9m de comprimento, ao
lado de um cardume de cerca de 5t, que tinha um raio menor do que a canoa, o pescador inverteu
essa dimensão e convidou os espectadores a suporem quanto peixe não caberia em 16km2.
21
O embate observado durante toda a Audiência ganhou seus contornos mais definidos, no final do
evento, durante a exposição oral do pescador. A disputa entre o conhecimento produzido pelo
cientista e o conhecimento empírico dos pescadores pode ser observada na declaração do pescador
da UEPA:
“Nós aqui não somos donos da verdade, somos apenas pescadores e queremos aqui colocar a questão do nosso conhecimento do dia-a-dia”.
Essa diferença foi ainda reforçada na fala do outro pescador, que aproveitou os 3 minutos não
utilizados na exposição do companheiro. Aproveitou também para reivindicar sobre os destinos do
conhecimento produzido pelos cientistas das universidades públicas. Como mostram suas palavras:
“O professor ... citou a UEPA, até muito meritoriamente, tecendo críticas muito louváveis. Porém, ele como biólogo, como um professor de uma universidade que parece ser uma das mais conceituadas do país. Gostaria também de lembrar a ele, que como cidadão, como professor de faculdade, nunca na minha praia, ou na dos outros companheiros, chegou uma faculdade, ou biólogos trazendo um apoio em termos de saber a nenhum grupo de pescadores. Essas faculdades...são importantes para a sociedade e são geridas com o meu dinheiro, do cidadão contribuinte. (PALMAS)...quem paga imposto nesta terra, quem vai ao mar para trazer peixe para a mesa do doutor, do professor, paga imposto. E deveria ter esse imposto de volta, lá na praia dele, pelo menos com uma teoria para ele saber (o que são essas) centenas desses termos técnicos, pergunte aos companheiro aí se eles sabem o que é isso. Não sabem porque eu também não sei.”
Os dois pescadores foram ovacionados pelo público. Suas manifestações fervorosas receberam o
respaldo dos espectadores, que com suas palmas diziam concordar com aquilo que estava sendo
dito. Alguns pescadores, no final do evento, já permaneciam de pé — talvez pelo cansaço do tempo
gasto sentado em cadeira (cerca de 5h e meia) — formando uma rede de solidariedade, de modo que
pudessem também aparecer, através das palavras daqueles que seguravam o microfone nas mãos.
Em sua réplica o cientista citou um projeto em que cooperou com a Associação de Catadores de
Caranguejo da Baía de Guanabara, financiado com os recursos de uma multa paga pela Petrobras,
repassados pelo IBAMA. Depois afirmou que considera que a UEPA vai por um caminho duvidoso,
pois ao mesmo tempo em que possui um lado muito positivo relacionado à vontade dos pescadores
de lutar, a sua capacidade de mobilização e organização, não está munida com argumentos
coerentes. Para o professor, o Chico “somou laranjas com bananas”, somou traineiras com canoas,
misturando atividades pesqueiras com dinâmicas diferenciadas num mesmo padrão de distribuição
da produção. Depois da crítica, ofereceu sua consultoria gratuita para os membros da UEPA ali
presentes, de modo que pudessem conjuntamente reformular as questões apontadas por Chico e
rever os dados. De acordo com suas palavras: “podemos chegar a um consenso e podemos ir
adiante nessa parceria”. No fim reafirmou sua posição: “não concordo com o fato de que a
plataforma atrai peixe”.
22
Logo em seguida o Chico respondeu, talvez disposto a uma parceria, mas também reafirmando a
sua posição:
“Eu não vou dispensar a ajuda dele...tenho certeza que nós temos com ele muita coisa para interagir, tenho certeza que temos coisas para aprender com ele, mas temos certeza também que ele tem que aprender muita coisa com agente e descer do cavalo, que nós fazemos tanto quanto ele.”
A Audiência acabou 1:00h da manhã do dia 11 de novembro. Ao final mais um pescador pediu a
palavra, Tio Jorge, um contador de história, que encerrou o encontro com um de seus poemas. A
história contada em verso traduzia o sentimento dos pescadores no mar, e a dimensão do risco, que
é inerente a própria atividade pesqueira. Afinal, quando um pescador entra no barco, nunca se tem a
certeza de que voltará salvo.
4. Considerações Finais:
Nesse trabalho apresentado, tive como objetivo realizar uma descrição etnográfica sem me
preocupar com os desdobramentos teóricos, que procurarei explorar em outros trabalhos,
ultrapassando assim essa etapa inicial de descrição.
Não posso ignorar, entretanto, que busquei inspiração em alguns autores, para compor essa
descrição. Principalmente aqueles que possuem uma relação mais estreita com a antropologia, e
com a etnografia propriamente dita22.
Além disso, tendo sido realizado no contexto de uma disciplina denominada de Globalização e
Movimentos Sociais, esse trabalho recebeu o impulso das discussões realizadas em sala de aula.
Procurei elencar o conjunto das reivindicações dos grupos sociais que dialogam através de suas
posições num campo de disputas, permeado por interesses individuais e coletivos. Esse
procedimento, entretanto, foi diferente daquele utilizado em grande parte da bibliografia lida
durante o curso. A preocupação com a descrição etnográfica e com o tratamento de dados empíricos
foi impulsionada pela sensação de que precisamos nomear e identificar sobre quem ou o quê
estamos falando, antes de formular “teorias” que se possam “encaixar” em qualquer realidade23.
Conforme mencionado, os desdobramentos teóricos desse trabalho serão uma conseqüência daquilo
que observei em campo, e não um ponto de partida.
22 Não posso ignorar ainda, que a ultima etnografia que li “Vida de Laboratório”, de Bruno Latour, em função da presença recente em minha memória, foi aquela que mais me inspirou para escrever esse trabalho. Outros autores como Pierre Bourdie (com seus livros: Coisas Ditas e Economia das Trocas Simbólicas), Marcel Mauss (Formas de Classificação Primitivas), Max Gluckman (Análise de uma Situação Social na Zululândia Moderna), Victor Turner (Dramas, Fields and Metaphors), entre tantos outros (Leach, Evans-Pritchard, Levy-Strauss), presentes nessa “salada” de influências. 23 Devo essa observação à professora Lygia Sigaud, que insistiu sobre esse ponto, incessantemente, durante todo o curso. Assim como o estímulo à realização dessa empreitada.