meio ambiente e constituição

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  M E I O A M BI E N TE E CO N ST I TU I ÇÃO : u m a p r i m e i r a abordagem ANTONIO HERMAN DE VASCONCELLOS E BENJAMIN 1 Ministro do Superior Tribunal de Justiça As primeiras constituições objetivavam resguardar o cidadão contra governantes arbitrários, penas vexatórias ou cruéis, e apropriação da propriedade sem justa causa ou indenização. Hoje, no mundo civilizado, as pessoas comuns, mais do que com a ameaça às suas liberdades, assustam-se, dentre outros malefícios, em particular com a contaminação da água que bebemos, do ar que respiramos e dos alimentos que ingerimos. É inegável a atualidade e gravidade desses riscos, que afetam ou podem afetar todos os membros da comunidade, indistintamente 2 , riscos que integram a esfera daquilo que poderíamos apelidar de  segurança ambiental , bem de cunho coletivo. Instrumento típico nesses primeiros arcabouços constitucionais era a edição de uma Carta de Direitos (= Bill of Rights, como no caso americano), desenhada de tal modo a resguardar os cidadãos em face do Estado-Rei opressor. Hoje, é certo, a grande maioria dos cidadãos ainda espera a tutela forte que decorre da norma constitucional. Salvaguardas, entretanto, dirigidas não apenas contra o Estado, mas também contra uma minoria de sujeitos privados que, no drama ambiental ou em outros campos, não aparecem exatamente como vítimas indefesas de abusos estatais, mas como candidatos à repreensão e correção 3 . Só na década de 70 - por razões que não é próprio aqui esmiuçar - os sistemas constitucionais começaram, efetivamente, a 1  Procurador de Justiça em São Paulo, fundador e ex-presidente do Instituto "O Direito por um Planeta Verde", professor de Direito Ambiental Comparado nas Universidades do Texas e Illinois e membro da Comissão de Direito Ambiental da UICN. 2  Eric T. Freyfogle, Should we green the bill?, in University of Illinois Law Review, vol. 1992, p. 166. 3  William H. Rodgers, Jr., Environmental Law, 2nd edition, St. Paul, West Publishing Co., 1994, p. 66.

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  • MEIO AMBIENTE E CONSTITUIO : uma primeira abordagem

    ANTONIO HERMAN DE VASCONCELLOS E BENJAMIN1

    Ministro do Superior Tribunal de Justia

    As primeiras constituies objetivavam resguardar o cidado

    contra governantes arbitrrios, penas vexatrias ou cruis, e apropriao

    da propriedade sem justa causa ou indenizao. Hoje, no mundo civilizado,

    as pessoas comuns, mais do que com a ameaa s suas liberdades,

    assustam-se, dentre outros malefcios, em particular com a contaminao

    da gua que bebemos, do ar que respiramos e dos alimentos que

    ingerimos. inegvel a atualidade e gravidade desses riscos, que afetam

    ou podem afetar todos os membros da comunidade, indistintamente2,

    riscos que integram a esfera daquilo que poderamos apelidar de segurana

    ambiental, bem de cunho coletivo.

    Instrumento tpico nesses primeiros arcabouos constitucionais

    era a edio de uma Carta de Direitos (= Bill of Rights, como no caso

    americano), desenhada de tal modo a resguardar os cidados em face do

    Estado-Rei opressor. Hoje, certo, a grande maioria dos cidados ainda

    espera a tutela forte que decorre da norma constitucional. Salvaguardas,

    entretanto, dirigidas no apenas contra o Estado, mas tambm contra uma

    minoria de sujeitos privados que, no drama ambiental ou em outros

    campos, no aparecem exatamente como vtimas indefesas de abusos

    estatais, mas como candidatos repreenso e correo3.

    S na dcada de 70 - por razes que no prprio aqui

    esmiuar - os sistemas constitucionais comearam, efetivamente, a

    1 Procurador de Justia em So Paulo, fundador e ex-presidente do Instituto "O Direito por um Planeta Verde", professor de Direito Ambiental Comparado nas Universidades do Texas e Illinois e membro da Comisso de Direito Ambiental da UICN. 2 Eric T. Freyfogle, Should we green the bill?, in University of Illinois Law Review, vol. 1992, p. 166. 3 William H. Rodgers, Jr., Environmental Law, 2nd edition, St. Paul, West Publishing Co., 1994, p. 66.

  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    reconhecer o ambiente como valor merecedor da tutela maior4. Note-se

    que o clamor por um direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente

    equilibrado (para usar aqui a expresso adotada na nossa Constituio de

    1988) emerge, na sua origem, em frmula estritamente antropocntrica,

    como componente mais amplo da dignidade humana; s mais tarde, toma

    corpo uma concepo biocntrica (integral ou mitigada), que

    gradativamente afasta-se de uma vinculao exclusiva aos interesses

    estritamente antropognicos5.

    Foi assim com as novas constituies dos pases que se

    libertavam de regimes ditatoriais, como, numa primeira leva, Grcia

    (1975)6, Portugal (1976)7 e Espanha (1978)8. Posteriormente, numa

    4 Cabe ressalvar que, de forma pioneira, todos os antigos pases comunistas do leste europeu previam, mas no implementavam, normas constitucionais vocacionadas tutela do meio ambiente. 5 Cf. Karl-Heinz Ladeur, Environmental constitutional law, in Gerd Winter (editor), European Environmental Law: A Comparative Perspective, Aldershot, Dartmouth, 1994, p. 18. 6 Trata-se do art. 24: "1) A proteo do meio ambiente natural e cultura] constitui uma obrigao do Estado. O Estado tomar medidas especiais, preventivas ou repressivas, com o fim de sua conservao. A lei regula as formas de proteo das florestas e espaos arborizados em geral. Est proibida a modificao da afetao das florestas e espaos arborizados patrimoniais, salvo se sua explorao agrcola tiver prioridade do ponto de vista da economia nacional ou de qualquer outro uso de interesse pblico. 2)A gesto do territrio, a formao, o desenvolvimento, o urbanismo e a extenso das cidades e regies urbanizveis so regulamentados e controlados pelo Estado, com o fim de assegurar a funcionalidade e desenvolvimento das aglomeraes humanas e as melhores condies de vida possvel. 3) Os monumentos assim como os lugares histricos e seus componentes esto sob a proteo do Estado. A lei fixa as medidas restritivas da propriedade para assegurar esta proteo, assim como as modalidades e natureza da indenizao dos proprietrios prejudicados." 7 Estabelece o atual artigo 66 ("Ambiente e Qualidade de Vida") da Constituio portuguesa: " I - Todos tm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender. 2 - Incumbe ao Estado, por meio de organismos prprios e por apelo e apoio a iniciativas populares: a) Prevenir e controlar a poluio e os seus efeitos e as formas prejudiciais de eroso; b) Ordenar e promover o ordenameto do territrio, tendo em vista uma correcta localizao das actividades, um equilibrado desenvolvimento scio-econmico e paisagens biologicamente equilibradas; c) Criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e stios, de modo a garantir a conservao da natureza e a preservao de valores culturais de interesse histrico ou artstico; d) Promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de remoo e a estabilidade ecolgica." 8 o art. 45: "1) Todos tienen el derecho a disfrutar de un medio ambiente adecuado para el desarrollo de la persona, as como el deber de conservalo. 2) Los poderes pblicos

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    segunda onda, vieram pases como o Brasil9, ainda em perodo marcado

    pela influncia direta da Declarao de Estocolmo de 1972. Finalmente,

    aps a ECO-92, outras Constituies foram promulgadas ou reformadas,

    incorporando, expressamente, o conceito de desenvolvimento

    sustentvel10.

    Em todas essas constituies, o meio ambiente perde o seu

    estado perifrico, ingressando na rbita dos valores fundamentais dos

    pactos polticos nacionais, privilgio esse que outros bens sociais

    igualmente relevantes levaram dcadas, quando no sculos, para atingir.

    1. SENTIDO DA ANLISE DA PROTEO CONSTITUCIONAL DO MEIO AMBIENTE

    Tendo o Direito Ambiental, nos dias atuais, alcanado o

    patamar de maturidade, aps uma evoluo de pouco mais de trinta anos,

    velarn por la utilizacin racional de todos los recursos naturales, con el fin de proteger y mejorar la calidad de vida y defender y restaurar el medio ambiente, apoyndose en la inexcusable solidariedad colectiva. 3) Para quienes violen lo dispuesto en el apartado anterior, en los trminos que la ley fije se establecern sanciones penales o, en su caso, administrativas, as como la obligacin de reparar el dao causado." 9 Sobre a proteo constitucional do meio ambiente no Brasil, cf., dentre outros, Antnio Herman V. Benjamin (coordenador), Dano Ambiental: Preveno. Reparao e Represso, So Paulo, Revista dos Tribunais, 1.993; Antnio Herman V. Benjamin, Jos Carlos Meloni Scoli e Paulo Roberto Salvini, Manual Prtico da Promotoria de Justia do Meio Ambiente, So Paulo, Procuradoria-Geral da Justia, 1.997; Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues, So Paulo, Max Limonad, 1.997; Cristiane Derani, Direito Ambiental Econmico, So Paulo, Max Limonad, 1.997; dis Milar, A Ao Civil Pblica na Nova Ordem Constitucional, So Paulo, Saraiva, 1.990; Jos Afonso da Silva, Direito Ambiental Constitucional, 2 edio, So Paulo, Malheiros, 1.995; Paulo Affonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiro, 7 edio, So Paulo, Malhereios, 1.998; Vladimir Passos de Freitas, Direito Administrativo e Meio Ambiente, 2 edio, Curitiba, Juru, 1.998; -, coordenador, Direito Ambiental em Evoluo, Curitiba, Juru, 1.998. 10 Cf., p. ex., a Constituio argentina de 1994, na qual observa-se, claramente, a influncia da definio de desenvolvimento sustentvel de "Nosso Futuro Comum" ("as actividades productivas satisfagan las necesidades presentes sin comprometer las de las generaciones futuras"): "Artculo 41 - Todos los habitantes gozan del derecho a un ambiente sano, equilibrado, apto para el desarrollo humano y para que las actividades productivas satisfagan las necesidades presentes sin comprometer las de las generaciones futuras; y tienen el deber de preservarlo. El dao ambiental generar prioritariamente la obligacin de recomponer, segn lo establezca la ley. Las autoridades proveern a la proteccin de este derecho, a la utilizacin racional de los recursos naturales, a la preservacin del patrimonio natural y cultural y de la diversidad biolgica, y a la informacin y educacin ambientales. Corresponde a la Nacin dictar las normas que contengan los pressupuestos mnimos de proteccin, y a las provincias las necesarias para complementarias, sin que aqullas alteren las jurisdicciones locales. Se prohibe el ingreso al territorio nacional de residuos actual o potencialmente peligrosos y de los radiactivos."

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    muito breve para os padres jurdicos, tentador e fcil enxergar nos

    "direitos ambientais" verdades auto-evidentes, para as quais seria

    descabido ou desnecessrio procurar subsdios dogmticos ou explicao

    terica. Quando assim procedemos, terminamos, sem querer, por condenar

    tais direitos, de alta complexidade, a permanecerem circundados por uma

    aura de ambigidade11, o que, a rigor, prejudica seu entendimento e, pior,

    dificulta sua aplicao.

    Notadamente em pases que ignoram ou desprezam a norma

    constitucional em favor do ordenamento ordinrio, temos o dever de

    buscar os fundamentos remotos, em especial os constitucionais, do Direito

    Ambiental, mesmo quando este, na superfcie, transmita uma aparncia de

    consolidao. E, sem dvida, o anseio por essa configurao terica em

    bases slidas, no h como fugir, deve comear e terminar pelo texto da

    constituio.

    Como sabido, todas as Constituies modernas, orientadas

    pelo princpio da livre iniciativa, garantem o direito de propriedade privada.

    A crise ambiental do Sculo XX, contudo, no deixa, at certo ponto, de ser

    tambm um dos subprodutos dos exageros desse modelo de domnio,

    onde, mngua de determinaes legais explcitas restritivas da explorao

    predatria e no-sustentvel dos recursos naturais, estimulava-se o

    entendimento de que ao proprietrio tudo era permitido - inclusive destruir

    o que lhe pertencesse -, desde que respeitados alguns limites mnimos,

    conectados satisfao de contra-interesses de seus vizinhos individuais.

    Era imperioso, pois, contrabalanar tal rigor privatstico, de

    coisificao da natureza, corrigindo as distores produzidas por uma

    doutrina e jurisprudncia insensveis degradao ambiental. A princpio,

    tal aspirao foi tentada, em contexto mais amplo, nas prprias

    Constituies, com o uso do instituto da funo social da propriedade,

    11 Joseph L. Sax, The search for environmental rights, in Journal of Land Use & Environmental Law, vol. 6, 1990, p. 96.

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    includa nos regimes constitucionais da primeira metade do Sculo XX, com

    o objetivo original de legitimar a interveno do Estado na regulao do

    trabalho, das relaes contratuais e do mercado em geral.

    No perodo anterior e nos primrdios do Direito Ambiental, at

    a dcada de 70, imaginava-se que, como expresso renovadora do

    contedo do direito de propriedade, a funo social serviria de ponto de

    partida e apoio ao ajustamento conclamado pelas novas demandas sociais

    abrigadas pelo Estado Social, a se incluindo, o meio ambiente. Em tal

    tica, mesmo sem um reconhecimento explcito do meio ambiente como tal

    no quadro constitucional, uma releitura interpretativa (legislativa e judicial)

    da funo social bastaria para legitimar um novo regime jurdico da

    natureza, agregando aspectos ecolgicos ao uso (e abuso) da propriedade.

    Mas, temos prtica nisso no Brasil, a evoluo e reforma do

    Direito via labor exegtico levam tempo. E tempo exatamente o que no

    temos em sede ambiental, diante do carter catastrfico ou irreversvel de

    muitos dos atentados natureza. Nesse sentido, logo a frmula da

    ampliao interpretativa da funo social da propriedade mostrou-se

    insuficiente, tanto no campo doutrinrio, como no terreno da

    jurisprudncia. No fcil mudar, dessa forma indireta, todo um

    paradigma de explorao no-sustentvel dos recursos naturais. Sem falar

    que, at hoje, a funo social, como tal, ainda busca uma afirmao

    concreta no campo das decises judiciais.

    Essa uma das razes pelas quais as Constituies mais

    recentes, por poder constituinte originrio ou derivado, foram levadas a

    incluir, no seu corpo, a proteo do meio ambiente. Desse modo,

    relegitima-se, numa perspectiva mais ampla e profunda, direitos que, de

    uma forma ou de outra, os indivduos e a coletividade sempre foram

    detentores, como limites intrnsecos ao direito de propriedade privada.

    Com esse movimento de constitucionalizao do meio

    ambiente, firma-se tambm uma nova postura (= nova tica), atravs da

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    qual a fria avaliao econmica dos recursos ambientais perde sua primazia

    exclusivista e individualista, uma vez que precisa ser, sempre,

    contrabalanada com a sade dos cidados, as expectativas das futuras

    geraes, a manuteno das funes ecolgicas, os efeitos a longo prazo

    da explorao os benefcios do uso-limitado (e at do no-uso) da

    natureza.

    2. CONVENINCIA DA PROTEO CONSTITUCIONAL DO AMBIENTE: BENEFCIOS E RISCOS

    No debate constitucional, uma pergunta inicial que se pe a

    seguinte: seria a previso da proteo do ambiente na Constituio

    realmente indispensvel atuao do legislador ordinrio e do

    implementador (rgos ambientais, juizes, Ministrio Pblico, ONGs e

    vtimas de degradao)?

    A experincia comparada parece indicar que, embora no

    imprescindvel, o reconhecimento constitucional expresso de direitos e

    deveres inerentes ao nosso relacionamento com o ambiente , jurdica e

    praticamente, til, devendo, portanto, ser estimulado e festejado.

    No passado, antes mesmo do movimento de

    constitucionalizao da proteo do ambiente, a inexistncia de previso

    constitucional inequvoca no inibiu o legislador, aqui como l fora, de

    promulgar leis e regulamentos que, de uma forma ou de outra,

    resguardavam os processos ecolgicos e combatiam a poluio. Assim, p.

    ex., no Brasil, onde o Cdigo Florestal (1965), a Lei de Proteo Fauna

    (1967) e a Lei da Poltica Nacional do Meio Ambiental, todas extremamente

    avanadas, foram editadas em perodo anterior Constituio Federal de

    1988.

    Ainda hoje, importantes sistemas jurdicos, a incluindo-se os

    Estados Unidos, Frana (195812) e a Itlia (1947), protegem o ambiente

    12Segundo Prieur, na Frana a proteo ambiental no ainda uma liberdade pblica constitucionalmente garantida, no obstante ter a Lei de 2 de fevereiro de 1995 admitido

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    sem contar com apoio expresso ou direto na Constituio. Em todos eles,

    doutrinadores e juizes procuram "depreender de outros princpios ou de

    outros direitos um princpio de defesa do ambiente, com as decorrncias

    inerentes"13. No regime italiano, na salvaguarda da sade (art. 3214) que

    se vai, amide, buscar apoio para amparar o meio ambiente15,

    compreendendo-se o direito sade como "direito ao ambiente sadio"16.

    No Mxico, no deram resultado at agora os esforos daqueles que

    pregam a necessidade da consagrao constitucional de um direito

    fundamental a um meio ambiente adequado17.

    No obstante essa constatao, razes vrias recomendam a

    constitucionalizao do ambiente, podendo ser esta considerada uma

    tendncia mundial irreversvel, o que certamente no passou despercebido

    ao constituinte brasileiro de 1988.

    Superada a questo genrica da convenincia da

    constitucionalizao, vejamos agora seus benefcios e riscos.

    2.1 Benefcios da constitucionalizao

    So inmeros e de vrias ordens os benefcios auferidos com a

    constitucionalizao da proteo do meio ambiente. Alguns apresentam

    carter substantivo, isto , reorganizam a equao de direitos e deveres

    um direito de todos a um ambiente sadio (Michel Prieur, Dmit de VEnvironnement, 4e dition, Paris, Dalloz, 2001, p. 56). 13 Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 2a edio, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 472. 14 Art 32 - La Repubblica tutela la salute come fondamentale diritto delPindividuo e interesse delia collettivit, e garantisce cure gratuite agli indigenti. 15 Para Guerio D'Ignazio, embora a Constituio italiana no contenha uma disciplina orgnica da matria ambiental, o aplicador pode se amparar em dispositivos isolados, como o art. 9o, que trata da proteo da paisagem, ou o art. 32, segundo o qual a sade "direito fundamenta] do indivduo e de interesse da coletividade". Cf. Guerio D-Ignazio, Laprotezione delia nalura nelVordinamento italiano, in Luca Mezzetti (a cura di), / Diritti delia Natura. Paradgmi di Giuridificazione dell 'Ambiente nel Diritto Pubblico Comparato, Milani, CEDAM, 1997, p. 28. 16 Cf.,Vezio Crisafulli e Livio Paladin, Commentario Breve alia Costituzione, Padova, CEDAM, 1990, p. 217. 17 Para uma excelente anlise da Constituio mexicana, cf. Raul Brafies, Manual de Derecho Ambiental Mexicano, 2 edicin, Cidade do Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 2000, pp.65-105.

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    que caracteriza a ordem jurdica. Outros, diversamente, relacionam-se com

    a afirmao concreta ou implementao das normas de tutela ambiental -

    so benefcios formais ou externos. Comecemos pelos benefcios

    substantivos.

    O primeiro aspecto positivo que se observa nos vrios regimes

    constitucionais do meio ambiente (inclusive o brasileiro) o

    estabelecimento de um inequvoco "dever de no-degradar", contraposto

    ao "direito de explorar" inerente ao direito de propriedade clssico, no

    modelo brasileiro previsto no art. 5, da Constituio Federal. Trata-se de

    dever com fora vinculante plena e inafastvel, no sujeito

    discricionariedade estatal ou livre opo do indivduo18. Sendo de ordem

    pblica, no cabe escolha entre respeit-lo ou desconsider-lo, abrindo-se,

    nesta ltima hiptese, a avenida dos instrumentos reparatrios e

    sancionatrios, posto disposio do Estado e das vtimas.

    alterao radical do paradigma clssico da explorao

    econmica da terra. Nesse enfoque, o regime da propriedade passa do

    "direito a explorar, respeitado o direito de vizinhana" para o "direito a

    explorar s e quando respeitados a sade humana e a manuteno dos

    processos e funes ecolgicos essenciais", frmula que vai muito alm dos

    limites estreitos da vizinhana fsica do proprietrio, na viso civilstica.

    Em tal equao renovada, no incomum o reconhecimento da

    inverso do nus da prova da inofensividade da atividade proposta, da

    expanso da necessidade de licenciamento e da responsabilidade objetiva

    na reparao dos danos causados19. Num e noutro caso, fica claro o fim

    redistributivo dos benefcios e custos ambientais, reposicionando a face real

    da degradao ambiental: uma apropriao indevida de atributos naturais,

    18 Richard O. Brooks, A constitutional right to a healthful environment, Vermont Law Review, 1992, vo. 16, p. 1110. 19 John A. Chiappinelli, The right to a clean and safe environment: a case for a constitutional amendment recognizing public rights in common resources, in Buffalo Law Review, vol. 40, 1992, p. 604.

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    onde os benefcios so monopolizados por poucos (= os poluidores) e os

    custos so socializados entre todos (= a coletividade).

    Alm da instituio desse inovador "dever de no-degradar", os

    mais recentes modelos constitucionais elevam a tutela ambiental ao nvel

    no de um direito qualquer, mas de um direito fundamental, em p de

    igualdade com outros tambm previstos no quadro da Constituio, entre

    os quais se destaca, por razes bvias, o direito de propriedade privada.

    Assim configurada, a proteo ambiental deixa,

    definitivamente, de ser um interesse menor ou acidental no ordenamento,

    afastando-se dos tempos em que, quando muito, era objeto de

    interminveis discusses cientficas ou poticas. Aqui, o meio ambiente

    alado ao patamar mximo do ordenamento, privilgio que outros valores

    sociais relevantes s depois de dcadas ou mesmo sculos lograram

    conquistar. E tratando-se de direito fundamental, a norma que dele cuida

    tem aplicabilidade imediata20.

    De relevante efeito prtico, a caracterizao do meio ambiente

    ecologicamente equilibrado como direito fundamental traz consigo trs

    qualidades consideradas inerentes a tal tipologia: a irrenunciabilidade, a

    inalienabilidade e a imprescritibilidade21. Irrenunciabilidade conquanto,

    embora tal direito conviva com a omisso de exerccio (a passividade

    corriqueira da vtima ambiental), no aceita renncia apriorstica;

    inalienabilidade na medida em que, por ser de exerccio prprio,

    intransfervel, inegocivel, pois possui titularidade pulverizada e

    personalssima, incapaz de apropriao individual; finalmente,

    imprescritvel, j que tm perfil intertemporal, consagrando entre seus

    beneficirios inclusive os incapazes de exercitarem seus direitos

    diretamente e at as geraes futuras.

    20 "As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais tm aplicao imediata" (Constituio Federal, art. 5, par. 1 ). 21 Jos Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 9 edio, So Paulo, Malheiros, f 994, p. 166.

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    Tanto como dever de no-degradar, como na frmula de direito

    fundamental ao meio ambiente ecologicametne equilibrado, a

    constitucionalizao presta-se para contrabalanar as prerrogativas

    tradicionais do direito de propriedade, com a imposio de limitao tanto

    implcitas como explcitas (p. ex., a funo scio-ambiental da

    propriedade22).

    Em adio ao "dever de no-degradar" e ao "direito

    fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado", as normas

    constitucionais ambientais modificam o substrato normativo que circunda o

    funcionamento do Estado. Legitimam e facilitam - e, por isso, obrigam - a

    interveno estatal, regulatria ou no, em favor do ambiente, o que no

    pouco em tempos de declnio de confiana nas instituies estatais23.

    Fincam os marcos divisrios daquilo que podemos denominar ordem

    pblica ambiental constitucionalizada.

    Interveno estatal que deve ser preventiva (e de precauo) e

    positiva, na esteira do reconhecimento de que a nossa uma era que

    crescentemente aceita e at exige governabilidade afirmativa24. Os direitos

    ambientais so umbilicalmente associados agenda do Welfare State, bem

    mais complexos que os direitos constitucionais clssicos, dirigidos, de modo

    preponderante, quando no exclusivo, em face do Estado, dele se

    esperando uma absteno e no, a rigor, uma interveno. Por isso, seu

    desiderato maior no uma absteno estatal, mas, ao contrrio, um

    chamamento a prestaes positivas e afirmativas por parte da

    Administrao. Uma demanda para que assegure, como direito de todos os

    cidados, um certo nvel de liberdade contra riscos ambientais e, ao

    mesmo tempo, acesso aos benefcios ambientais25.

    22 No caso brasileiro, cf. o art. 186, inciso II. 23 Richard O. Brooks, art. cit., p. 1107. 24 Lawrence H. Tribe, American Constitutional Law, 3rd edition, vol. 1, New York, Foundation Press, 2000, p. 16. 25 Joseph L. Sax, The search ... cit., p. 95.

    10

  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    Vistos, por outro ngulo, os comandos constitucionais

    produzem uma irrecusvel reduo da discricionariedade da Administrao

    Pblica, pois impem ao administrador o permanente dever de levar em

    conta o meio ambiente, na formulao de polticas pblicas e em

    procedimentos decisrios individuais, optando sempre, entre vrias

    alternativas viveis ou possveis, por aquela menos gravosa ao equilbrio

    ecolgico. Da que a determinao constitucional de que todos os rgos

    pblicos devem levar em considerao o meio ambiente em suas decises

    (art. 225, caput, e par. 1) faz com que se adicione, a cada uma das

    misses primrias dos vrios rgos da Administrao, a tutela ambiental.

    Desvio desse dever pode caracterizar improbidade administrativa.

    Finalmente, entre tantos outros benefcios da

    constitucionalizao, conforme a dico utilizada pelo legislador

    constitucional possvel extrair-se da norma reconhecedora da tutela

    ambiental como valor essencial da sociedade legitimao para agir

    automtica, conferindo aos cidados, de modo coletivo, a possibilidade de

    questionar, administrativa e judicialmente, as hipteses de ofensa

    natureza, parte de qualquer regulao processual posterior. Isso porque

    os direitos e obrigaes constitucionais s tm sentido na medida em que

    podem ser implementados e usados26.

    So esses, ento, alguns dos benefcios substantivos ou

    materiais da constitucionalizao do regime ambiental. Vejamos, agora,

    alguns dos benefcios formais (ou externos), isto , vantagens que operam

    no terreno da aplicao da tutela jurdica do meio ambiente.

    Inicialmente, a Constituio, na pirmide ordenamento,

    dotada de mxima visibilidade e respeitabilidade. Como bem lembra Jos

    Afonso da Silva, pela via constitucional "certos modos de agir em sociedade

    transformam-se em condutas humanas valoradas historicamente e

    26 Chester James Antieau and William J. Rich, Modern Constitutional Law, vol. 3, second edition, St. Paul, West Group, 1997, p. 660.

    11

  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    constituem-se em fundamento do existir comunitrio"27. Trata-se, por

    conseguinte, de norma superior na hierarquia legislativa; santurio

    legislativo dotado de preeminncia normativa (Canotilho), pois cuida de

    valores fundamentais da sociedade. Sobre ela se diz ser um modelo para

    os cidados, propiciando, por tudo isso, uma maior probabilidade de

    conhecimento, especialmente pelo implementadores (administrao e

    judicirio).

    O texto constitucional resguarda valores e interesses

    fundamentais em detrimento ou com sacrifcio de outros. Quando elevamos

    esses valores ao seio constitucional, o que fazemos , por excluso, coloc-

    los acima do resto, "no ordenamento e na mente da sociedade"28. A norma

    constitucional tem, por isso mesmo, valor didtico e fica l como

    permanente lembrana da posio dorsal do meio ambiente.

    Alm disso, a constitucionalizao, especialmente em

    Constituies rgidas como a nossa29, acompanhada por uma certa

    segurana normativa, seja porque os direitos e garantias individuais so

    considerados norma ptrea30, seja ainda em decorrncia da previso de um

    procedimento rigoroso para as emendas constitucionais31. Em ambos os

    casos, alcana-se um patamar nico de durabilidade legislativa no

    ordenamento, o que funciona como barreira desregulamentao e

    alteraes ao sabor de crises e emergncias momentneas.

    Por outro lado, atravs da constitucionalizao substitumos o

    paradigma da legalidade ambiental32 pelo paradigma da constitucionalidade

    ambiental, onde a constitucionalidade toma o lugar da legalidade na sua

    27 Jos Afonso da Silva, Curso... cit., p. 41. 28 Eric T. Freyfogle. art. cit., p. 166. 29 Jos Afonso da Silva, Curso... cit., p. 47. 30 Constituio Federal, arts. 5, par 2, c.c. art. 60, par. 4o, inciso IV 31 Constituio Federal, art. 60. 32 Antes de 1988, protegia-se o meio ambiente apenas pela fora da lei; assim, p. ex., o Cdigo Florestal de 1965, Lei de Proteo Fauna de 1967 (antigo Cdigo de Caa) e e a Lei da Poltica Nacional do Meio Ambiente, j citados.

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    funo de veculo e resguardo de valores essenciais33, firmando-se, a partir

    da, conforme j vimos, uma ordem pblica ambiental constitucionalizada.

    Outra importante vantagem de cunho formal que advm da

    constitucionalizao permitir o controle de constitucionalidade de atos

    normativos hierarquicamente inferiores (controle formal e material)34.

    Como se sabe, "todas as normas que integram a ordenao jurdica

    nacional s sero vlidas se se conformarem com as normas da

    Constituio Federal"35.

    E tal conformidade com os padres constitucionais, "no se

    satisfaz apenas com a atuao positiva de acordo com a constituio. Exige

    mais, pois omitir a aplicao de normas constitucionais quando a

    Constituio assim determina constitui tambm conduta inconstitucional"36.

    Naquele caso, temos a inconstitucionalidade por ao; neste, por

    omisso37, seja por deixar-se de praticar ato legislativo, seja pela

    displicncia na afirmao de ato executivo. E tal controle de

    constitucionalidade, nos termos da Constituio Federal, pode ser exercido

    de modo difuso ou concentrado, isto , por via de exceo, a cargo de

    qualquer interessado em processo judicial em curso, ou por ao direta de

    inconstitucionalidade, esta ltima com legitimao ativa em numerus

    clausus, nos termos do art. 103, da Constituio.

    Por derradeiro, a norma constitucional, em especial em pases

    com firme tradio constitucional, uma poderosa ferramenta exegtica,

    sendo usada no cotidiano da prtica administrativa ou judicial; pode ser um

    verdadeiro guia para a boa compreenso da norma infraconstitucional por

    juizes, administradores e outros destinatrios. Exatamente porque a

    proteo constitucional do meio ambiente situa-se numa posio elevada 33 Louis Favoreu et alii, Droit Constitutionnel, Dalloz, 1998, pp. 343 e 345. 34 Essa faceta da constitucionalizao me foi lembrada por Rogrio Campos, estudante da UnB, durante palestra que fiz no STJ, em 10.5.2001. 35 Jos Afonso da Silva, Curso... cit., p. 47. 36Jos Afonso da Silva, Curso... cit., p. 48. 37 Constituio Federal, art. 103, par. 2 .

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    na hierarquia das normas, os comandos dessa envergadura servem de guia

    para a (re)leitura do direito positivo nacional38, em particular no

    balanceamento de interesses conflitantes39.

    2.2 Riscos da constitucionalizao

    Alguns riscos podem ser apontados no processo de insero do

    meio ambiente no quadro constitucional.

    De um lado, fala-se nos perigos de constitucionalizao de

    conceitos, direitos e obrigaes insuficientemente amadurecidos, mal-

    compreendidos ou at incorretos ou superados (p. ex., a noo de equilibro

    ecolgico).

    De outra parte, conseqncia das garantias previstas na prpria

    Constituio, h, como j notado, todo um procedimento mais rigoroso

    para modificao da norma constitucional, o que dificulta sua atualizao e

    retificao. Como curial, o meio ambiente, seus componentes e as

    ameaas de degradao40 so dinmicos, estando em permanente

    transformao e evoluo41. No por outra razo que as leis ambientais

    so conhecidas exatamente pela sua mutabilidade; nelas, segurana

    jurdica sinnimo de contnua adaptao e alterao, ao contrrio do que

    se d em outras esferas da regulao jurdica.

    Por derradeiro, tanto mais em pases sem forte tradio

    constitucional, paira sempre a sombra das normas constitucionais retricas,

    com mnimo ou nenhum impacto concreto na operao jurdica do cotidiano

    38 Jean-Franois Neuray, Introduction Gnrale, in LActualit du Droit de L'Environnement (Actes du Colloque des 17 et 18 novembre 1994), Bruxelles, Bruylant, 1995, p. 21. 39 Karl-Heinz Ladeur, art. cit., p. 26. 40 Acertadamente lembrava Pontes de Miranda que "O processo econmico o mais instabilizador, revolvente, mvel, de todos, exceto a Moda" (Pontes de Miranda, Comentrios Constituio de 1967, Tomo I, So Paulo, Revista dos Tribunais, 1967, p. 164). 41 Alexandre Kiss and Dinah Shelton, Manual of European Environmental Law, Cambridge, Grotius Publications Limited, 1997, p. 9.

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    das pessoas42. Quem pouco valor d ao texto constitucional em outros

    campos mais tradicionais, pouca ateno vai dedicar tutela ambiental

    constitucionalizada.

    3. DA SADE AO MEIO AMBIENTE

    J notamos que a tutela legal do ambiente no Brasil tem incio

    na dcada de 60 e consolida-se nos anos 80 e 90. Quais os fundamentos

    constitucionais utilizados, poca, para justificar e legitimar tal interveno

    legislativa, se, como sabemos, s a Constituio Federal de 1988 abrigou,

    expressamente, a proteo ambiental como direito e dever de todos?

    Paulo Affonso Leme Machado, na primeira edio do seu hoje

    consagrado Direito Ambiental Brasileiro, pregava, ainda em 1982, que o

    meio ambiente merecia "melhor formulao na Constituio Federal. O

    fato, contudo, da inexistncia de um ordenamento especfico no pode ser

    entendido como inibidor das regras sobre a defesa e proteo da sade

    notadamente"43. E acrescentava: "Se de um lado a Constituio no tratou

    o ambiente de forma abrangente e global, de outro lado, muitas matrias

    que integram o tema ambiente foram contempladas no texto maior do pas.

    Assim, guas, florestas, caa, pesca, energia nuclear, jazidas, proteo

    sade humana foram objeto das disposies constitucionais"44.

    Realmente, a lacuna nas ordens constitucionais anteriores a

    1988 no foi srio bice regulamentao legal de controle das atividades

    42 Fenmeno este que sucede at mesmo em naes com forte tradio constitucional. o caso, p. ex., da pfia aplicao que se faz nos Estados Unidos das normas de proteo ambiental inseridas nas Constituies dos Estados federados. Assim, a Constituio da Pennsylvania (art. I, par. 27), uma das mais explictas:"O povo tem o direito ao ar limpo, gua pura, e preservao dos valores naturais, paisagsticos, histricos e estticos do meio ambiente. Os recursos naturais pblicos so propriedade comum de todas as pessoas, incluindo as futuras geraes. Como depositrio (trustee) desses recursos, o Estado deve conserv-los e mant-los para o beneficio de todos". Como bem resume William Rodgers, na Pensilvnia e em outros Estados que constitucionalizaram a proteo do meio ambiente, tais normas no encontraram maior ressonncia prtica, "algumas delas sendo explicitamente sepultadas por decises judiciais aceitando que tais dispositivos no seriam auto-executveis" (William H. Rodgers, Jr., ob. cit., p. 66). 43 Paulo Affonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiw, 1a edio, So Paulo, Revista dos Tribunais, 1982, p. 8. 44 Paulo Affonso Leme Machado, Direito Ambiental... cit. (Ia edio), p. 8.

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    nocivas ao ambiente ou, mais comum, aos seus elementos. Faltando uma

    base incontroversa de apoio na Constituio, o legislador ordinrio foi

    buscar suporte ora na proteo da sade45 (sob o argumento de que ela

    no pode ser assegurada em ambiente degradado), ora no regramento da

    produo e consumo46.

    O Ministro Jos Celso Mello, escrevendo sob o imprio da

    Constituio de 1969, apontava que "A tutela jurdica do meio ambiente

    decorre da competncia legislativa sobre defesa e proteo da sade"47.

    Ou seja, degradao ambiental, ausente melhor apoio

    constitucional, seria sinnimo de degradao sanitria, ou, pior, mero

    apndice do universo maior da produo e do consumo. Uma

    argumentao de cunho estritamente homocntrica, com indisfarvel

    contedo economicista e utilitarista.

    Naquele perodo, tal raciocnio vingou e serviu para dar

    sustentao interveno legislativa, recebendo, inclusive, respaldo

    judicial. Hoje, contudo, num juzo retrospectivo, bem podemos verificar o

    carter limitado desse esforo, eticamente insuficiente e dogmaticamente

    frgil.

    Eticamente insuficiente porque a tutela ambiental vem, de

    modo gradativo, abandonando a rigidez de suas origens antropocntricas,

    45Segundo Hlio Gomes, " axioma popular que a sade o maior e o melhor bem da vida" ((Helio Gomes, Direito de cura, in Direito, vol. XV, 1.942, p. 90). E continua: "Sendo assim um bem to estimvel, a sade no poderia deixar de ser legalmente protegida e amparada. E o foi. Os pases civilizados criaram o chamado - DIREITO SADE - constitucionalmente consagrado entre ns pela Carta Magna de 1937, embora leis anteriores j cuidassem da matria" (art. cit p. 92). Ao contrrio do meio ambiente, a sade foi formalmente tratada, sob vrios enfoques, por diversas constituies anteriores a 1988 (Paulo Eduardo Elias, A sade como poltica social no Brasil, in Associao Juizes para a Democracia, Direitos Humanos: Vises Contemporneas, So Paulo, 2001, p. 136). 46 A Constituio de 1.969 previa, expressamente, a competncia da Unio para legislar sobre "defesa e proteo da sade" (art. 8, inciso XVII, alnea c), in fine) e "produo e consumo" (art. 8, inciso XVII, alnea d). 47 Jos Celso de Mello Filho, Constituio Federal Anotada, So Paulo, Saraiva, 1984, p. 40.

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    incorporando uma viso mais ampla, de carter biocntrico (ou mesmo

    ecocntrico), ao propor-se a amparar a totalidade da vida e suas bases48.

    Dogmaticamente frgil porque o direito sade no se

    confunde com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado:

    dividem uma rea de convergncia (e at de sobreposio), mas os limites

    externos de seus crculos de configurao no so, a rigor, coincidentes.

    Quase sempre quando se ampara o ambiente se est beneficiando a sade

    humana. Sem dvida, h aspectos da proteo ambiental que dizem

    respeito, de forma direta, proteo sanitria. Assim com o controle de

    substncias perigosas e txicas, como os agrotxicos; com a garantia da

    potabilidade da gua e da respirabilidade do ar.

    Alis, mesmo no regime constitucional atual, permanece bem

    prxima a vinculao sade-ambiente. No se trata de aproximao que

    feita somente na esfera doutrinria, mas decorre da letra da Constituio.

    Por exemplo, entre as competncias do Sistema nico de Sade, esto o

    controle, fiscalizao e inspeo de "guas para consumo humano" (art.

    200, VI), "produo, transporte, guarda e utilizao de substncias e

    produtos ... txicos e radioativos" (art. 200, VII), assim como a

    colaborao "na proteo do meio ambiente, nele compreendido o do

    trabalho" (art. 200, VIII)49.

    Mas, nem sempre essa a hiptese. Inegavelmente, inmeras

    vezes na interveno do legislador ambiental, a sade humana joga um

    papel secundrio, perifrico e at simblico, como sucede com a proteo

    de certas espcies ameaadas de extino (o mico-leo dourado, p. ex.) ou

    de manguezais, no imaginrio popular ainda vistos como ecossistemas mal-

    cheirosos e abrigo de mosquitos disseminadores de doenas. Em algumas 48 A Constituio Federal de 1.988 refere-se preservao e restaurao de "processos ecolgicos essenciais" (art. 225, par. 1, inciso I); evidentemente, "essenciais" sobrevivncia do planeta, como o conhecemos, concepo que ultrapassa a frmula tradicional da sobrevivncia do homem. 49 Sobre o meio ambiente do trabalho, cf. Guilherme Jos Purvin de Figueiredo, Direito Ambiental e a Sade dos Trabalhadores, So Paulo, LTr, 2000.

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    situaes - a proibio, p. ex., da caa de espcies peonhentas ou

    perigosas aos seres humanos, como o jacar e a ona -, a determinao

    legal protetria chega mesmo a reduzir a segurana fsica imediata das

    populaes que vivem nas imediaes do habitat desses animais.

    4. MODELOS DE NORMA CONSTITUCIONAL

    Um estudo comparado dos regimes de proteo constitucional

    do meio ambiente vai identificar cinco bases comuns, que, de uma forma

    ou de outra e com pequenas variaes, informam seus textos.

    Primeiro, a adoo de um modelo garantista de qualidade

    ambiental, resumido na frmula de direitos e deveres; segundo, a

    descrio, em maior ou menor escala, de uma nova dominialidade dos

    recursos naturais, crescentemente publicizada; terceiro, uma opo por

    processos decisrios abertos, bem-informados e democrticos, a previso

    de uma espcie de devido processo ambiental (= due process ambiental)

    como regra geral; quarto, o compromisso (= dever) de no empobrecer a

    Terra e sua biodiversidade, com isso almejando manter as opes das

    futuras geraes50; por derradeiro, a preocupao com a implementao,

    visando evitar que a norma constitucional ganha uma feio retrica.

    Em termos formais, a proteo do meio ambiente na nossa

    Constituio Federal no segue um padro normativo nico. Ora o

    legislador utiliza-se da tcnica da caracterizao de direitos (p. ex., a

    primeira parte do art. 225, caput), ora faz uso da instituio de deveres

    explcitos (p. ex., todo o art. 225, par. 1). Em alguns casos, tais

    enunciados normativos podem ser apreciados como princpios (p. ex., os

    princpios da funo scio-ambiental da propriedade rural e do poluidor-

    pagador, previstos, respectivamente, nos arts. 186, II, e 225, pargrafos

    2 e 3), noutros, como instrumentos de execuo (p. ex., a previso de

    Estudo Prvio de Impacto Ambiental, no art. 225, par. 1, IV).

    50 Cf., no que se refere a esses dois ltimos pontos, Joseph L. Sax, The search... cit., p. 105.

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    Muito se fala da constitucionalizao do direito ao meio

    ambiente ecologicamente equilibrado. Ora, to importante - mas

    desprezada em comentrios - a previso de deveres constitucionais

    relativos proteo do ambiente, seja em favor dos prprios cidados e

    futuras geraes, seja em favor da prpria natureza.

    A Constituio Federal de 88, no seu art. 225, caput e par. 1o,

    traz um verdadeiro "caderno de encargos do Estado", para usar a

    expresso de Canotilho e Moreira51. Alis, o art. 225 prdigo em deveres

    estatais, mas tambm em obrigaes dirigidas aos sujeitos privados.

    Embora direitos e deveres sejam concepes correlatas na

    tcnica jurdica, o discurso dos direitos, paradoxalmente, carreia menos

    fora do que o discurso dos deveres; vale dizer, a implementao concreta

    e direta destes ltimos termina por ser menos espinhosa.

    5. CONCLUSES

    Muitos pases, entre eles o Brasil, j "ambientalizaram" suas

    constituies. A nossa Constituio, "em matria de meio ambiente, situa-

    se em posio pioneira"52, dotada que est de "um dos sistemas mais

    abrangentes e atuais do mundo"53. Contudo, como em tudo mais que diga

    respeito norma constitucional, nossa tarefa "no unicamente fazer a

    Constituio, mas cumpri-la"54.

    Aqui, como l fora, o regramento jurdico-ambiental moderno

    deu dois saltos sucessivos. Primeiro, a publicizao (ou desprivatizao) do

    modelo de regulao, com a edio de leis de comando-e-controle, como a

    51 J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituio, Coimbra, Coimbra Editora, 1991, p. 39. 52 Vladimir Passos de Freitas, Direito Administrativo e Meio Ambiente, 3 edio, Curitiba, Juru, 2001, p. 33. 53 dis Milar, Direito do Ambiente, So Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 211. 54 Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 5 edio, So Paulo, Malheiros, p. 162.

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  • Meio Ambiente e Constituio : uma primeira abordagem

    Lei da Poltica Nacional do Meio Ambiente, em 1981. Segundo, a

    constitucionalizao, com a passagem da ordem jurdica legalizada para a

    ordem jurdica constitucionalizada.

    por a que, a partir de 1988, abandona-se o eixo antigo da

    legalidade, transformada esta em simples elemento (dependente) da

    constitucionalidade. Nesse novo paradigma, a constitucionalidade substitui

    a legalidade em sua funo de veculo ou porta-voz dos valores essenciais

    da sociedade55.

    S isso, j bastaria para exigir de todos ns um cuidado - e

    obedincia - maior com o texto constitucional.

    55 Louis Favoreu et alii, ob. Cit., p. 345.

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