medidas para o aprimoramento da gestÃo de bacias ... · apontam que, atualmente existem 263 bacias...
TRANSCRIPT
Mestrado em Ciências Jurídico-Ambientais
MEDIDAS PARA O APRIMORAMENTO DA
GESTÃO DE BACIAS HIDROGRÁFICAS
INTERNACIONAIS
FLÁVIA ROBERTI FERREIRA
Lisboa, 2018
MEDIDAS PARA O APRIMORAMENTO DA
GESTÃO DE BACIAS HIDROGRÁFICAS
INTERNACIONAIS
Dissertação apresentada no Curso de
Mestrado em Ciências Jurídico-
Ambientais da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, como requisito à
obtenção do título de mestre, sob a
orientação da Professora Doutora Carla
Amado Gomes.
Lisboa, 2018
Resumo:
A experiência demonstra que modelos de gestão isolados, baseados em interesses soberanos
dos estados, se revelaram insustentáveis. Os cursos de água internacionais transcendem
fronteiras e, por isso, a gestão precisa ser aprimorada para envolver todos os estados que os
compartilham com base em um plano único de gestão. Nessa linha, a adoção do critério da
bacia hidrográfica como unidade de referência das ações de planejamento reflete a opção
pela gestão integrada dos cursos de água, baseada em uma abordagem holística que respeita
os limites naturais das bacias hidrográficas, em detrimento das fronteiras políticas. Além
disso, favorece a adoção de medidas de precaução – que abrangem a avaliação de impacto
ambiental, a avaliação ambiental estratégica e a avaliação de impactos sobre a população
afetada - e estimula o cumprimento das obrigações materiais de utilização equitativa e
razoável e de não causar danos significativos a outros estados da bacia. Assim, este trabalho
tem por objetivo analisar a possibilidade de adoção de mecanismos de gestão baseados no
critério da bacia hidrográfica que contribuam para a redução de conflitos e a sustentabilidade
das bacias internacionais. Tais mecanismos incluem o estabelecimento de obrigações
procedimentais – dever de cooperação, de notificação, de consulta, de troca de dados e
informações em bases regulares e a participação do público -, além da criação de mecanismos
de descentralização da gestão e de estruturas supranacionais permanentes, denominadas
autoridades da bacia. Nesse desígnio, aponta-se a necessidade de superar modelos isolados
de gestão, em prol de uma gestão efetivamente integrada que permita desenvolver as bacias
hidrográficas internacionais, assim como de aplicar princípios de direito internacional já
existentes, como aqueles previstos nas Convenções das Nações Unidas sobre a água, na
intenção de articular e viabilizar a integração almejada no âmbito de cada bacia hidrográfica,
com destaque para a importância do acesso à informação de qualidade para uma maior
conscientização do público envolvido.
Palavras-chave:
Bacias hidrográficas internacionais. Critério da bacia hidrográfica. Gestão de conflitos.
Medidas para o aprimoramento da gestão de bacias hidrográficas. Direito do ambiente.
Abstract:
Experience has shown that isolated management models, based on the sovereign interests of
the states, have proved unsustainable. International watercourses transcend boundaries and,
similarly, management needs to be improved to involve all states that share them based on a
single management plan. Thus, the adoption of the basin criteria as a reference unit for
planning actions reflects the option for integrated management of watercourses, based on a
holistic consideration that respects the natural boundaries of river basins rather than political
boundaries. In addition, it favors the adoption of precautionary measures - which include
environmental impact assessment, strategic environmental assessment and impact
assessment on the affected population - and encourages compliance with material obligations
of equitable and reasonable use and responsibility not to cause damage to the environment
of other states or to areas beyond national jurisdiction. This work aims to analyze the
possibility of adopt management mechanisms based on the criteria of the river basin that can
contribute to the reduction of conflicts and to the sustainability of international basins. Such
mechanisms include the establishment of procedural obligations - a duty to cooperate, to
notify, to consult, to exchange data and information on a regular basis, and to involve the
public - as well as to create decentralization mechanisms for management and permanent
supranational structures – water authorities. In this design, it is necessary to overcome
isolated management models for an effectively integrated management that allows the
development of international river basins, as well as to apply existing principles of
international law, such as those established by the United Nations Conventions, in order to
articulate and make feasible the desired integration within each river basin, always stressing
the importance of access to quality information to raise awareness of the public involved.
Keywords:
International watercourses. River basin criteria. Conflict management. Measures to improve
river basin management. Environmental law.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 7
1. O REGIME JURÍDICO DOS CURSOS DE ÁGUA INTERNACIONAIS NÃO
DESTINADOS À NAVEGAÇÃO .............................................................................. 14
1.1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA ........................................................................... 14
1.2. A CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS RELATIVA À PROTEÇÃO E
UTILIZAÇÃO DOS CURSOS DE ÁGUA TRANSFRONTEIRIÇOS E DOS LAGOS
INTERNACIONAIS, DE 1992 – “CONVENÇÃO DE HELSINQUE”. ................... 18
1.3. A CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE OS DIREITOS DOS
CURSOS DE ÁGUA INTERNACIONAIS NÃO DESTINADOS À NAVEGAÇÃO,
DE 1997 – “CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE”. ................................................ 20
2. O CRITÉRIO DA BACIA HIDROGRÁFICA ..................................................... 28
3. PRINCÍPIOS ORIENTADORES DA GESTÃO DAS BACIAS HIDROGRÁFICAS
INTERNACIONAIS ................................................................................................... 41
3.1. O PRINCÍPIO DA SOBERANIA TERRITORIAL ....................................... 44
3.2. O PRINCÍPIO DA INTEGRAÇÃO .............................................................. 53
3.3. OS PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E DA PRECAUÇÃO .......................... 65
3.3.1. Avaliação de impacto ambiental............................................................. 92
3.3.2. Avaliação Ambiental Estratégica – AAE .............................................. 103
3.3.3. Realocação de populações .................................................................... 107
4. OBRIGAÇÕES MATERIAIS ............................................................................ 119
4.1. USO EQUITATIVO E RAZOÁVEL .......................................................... 119
4.1.1. O equilíbrio entre o uso equitativo e sustentável................................... 124
4.2. NÃO CAUSAR DANOS SIGNIFICATIVOS ............................................. 130
5. MEDIDAS PARA O APRIMORAMENTO DA GESTÃO DAS BACIAS
HIDROGRÁFICAS INTERNACIONAIS ................................................................. 144
5.1. REDUÇÃO DE CONFLITOS .................................................................... 144
5.2. OBRIGAÇÕES PROCEDIMENTAIS ........................................................ 149
5.2.1. Cooperação Internacional..................................................................... 149
5.2.2. Dever de notificação ............................................................................ 159
5.2.3. Dever de Consulta................................................................................ 162
5.2.4. Dever de Troca de Dados e Informações em Bases Regulares .............. 166
5.2.5. Dever de Informação e Participação Pública ........................................ 168
5.3. DESCENTRALIZAÇÃO DA GESTÃO ..................................................... 176
5.4. CRIAÇÃO DE ESTRUTURAS SUPRANACIONAIS PERMANENTES:
AUTORIDADES INTERNACIONAIS DA ÁGUA .............................................. 180
6. CONCLUSÃO ................................................................................................... 189
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 192
INTRODUÇÃO
A água é considerada a maior preocupação em tema de ambiente deste século1. A
disputa pela água é apontada por uma parcela da doutrina como a possível causa de uma
futura Guerra Mundial2. Já outros defendem, amparados em dados científicos, que a
necessidade de acesso equitativo à água tem levado à prevalência do consenso no
compartilhamento de cursos de água internacionais até mesmo entre estados com
histórico de hostilidade em outras esferas3.
As águas internacionais são aquelas que se situam em diferentes estados, de
acordo com o artigo 2º, “b”, da Convenção das Nações Unidas sobre os direitos dos cursos
de água internacionais não destinados à navegação, “Convenção de Nova Iorque”, de
1997. MECHLEM afirma que “transfronteiriça” é uma subcategoria do gênero
“internacional”, na medida em que toda água transfronteiriça é internacional, mas não
vice-versa - um aquífero localizado inteiramente no território de um estado, mas que
esteja hidraulicamente conectado a um curso de água internacional, é um aquífero
internacional, mas não transfronteiriço4.
A Convenção das Nações Unidas relativa à proteção e utilização dos cursos de
água transfronteiriças e dos lagos internacionais, firmada em 1992, conhecida como
“Convenção de Helsinque”, definiu “águas transfronteiriças” como “todas as águas
superficiais e subterrâneas que definem as fronteiras entre dois ou mais estados, que os
atravessam ou se encontram situadas nestas fronteiras (...)” (artigo 1º, nº 1).
1 Aaron T. WOLF, Jeffrey A. NATHARIUS, Jeffrey J. DANIELSON, Brian S. WARD e Jan K. PENDER,
International River Basins of the World, Water Resources Development, Vol. 15, N.o 4, 1999, páginas
387-427, 387. 2 Kathy HOCHSTETLER, International Environmental Politics and Transboundary Waters, in
Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 437 e seguintes, 438. 3 Joseph W. DELLAPENNA, The costumary international Law of internationally shared fresh
Waters, in Shared Water Systems and Transboundary Issues with special emphasis on the Iberian
Peninsula, Evan Vlachos e Francisco Nunes Correia (coordenadores), Luso-American Foundation, 1999, páginas 79 e seguintes, 81. Ashok SUBRAMANIAN, Bridget BROWN e Aaron T. WOLF, Understanding
and overcoming risks to cooperation along transboundary rivers, Water Policy, N.o 16, 2014, páginas
824-843, 825. 4 Kerstin MECHLEM, International groundwater law: towards closing the gaps?, Yearbook of
international environmental Law 14, Oxford, Oxford Press, 2003, páginas 47-80, 52, também disponível
em
https://www.researchgate.net/profile/Kerstin_Mechlem/publication/228157811_International_Groundwat
er_Law_Towards_Closing_the_Gaps/links/0a85e52fdeea57a0cf000000.pdf, acesso em 14 de janeiro de
2016.
Em 1978, as Nações Unidas identificaram 214 “rios internacionais”. De acordo
com WOLF, NATHARIUS, DANIELSON, WARD e PENDER, em 1999, o número de
bacias hidrográficas internacionais aumentou para 261, devido a fatores políticos, como
o desmembramento da União Soviética e dos estados Balcânicos; a evolução tecnológica,
que possibilitou o acesso a mapas digitais e permitiu a identificação de bacias
internacionais até então não identificadas; e a inclusão de estados constituídos por ilhas,
desconsiderados na contagem realizada anteriormente, em 1978. Tais circunstâncias
fizeram com que o número de bacias internacionais na Europa saltasse de 48 para 71, na
Ásia de 40 para 53, na África de 57 para 60 e na América de 69 para 77. Por outro lado,
entre 1978 e 1999, algumas bacias perderam o status de internacionais (Mosa, Muga e
Weser, todas estas na Europa, e Tiban, na Ásia). Estes fenômenos justificam-se devido à
unificação da Alemanha e do Iêmen, bem como à definição mais rigorosa de bacia
hidrográfica internacional pelos referidos autores, de forma a abranger aquelas que
possuem algum tributário perene que atravesse a fronteira política de dois ou mais
estados5.
Dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
apontam que, atualmente existem 263 bacias hidrográficas transfronteiriças6 e que 145
estados têm parte de seu território situado em bacias internacionais7. Destas, 13 são
compartilhadas entre 5 a 8 estados e outras 5 bacias (dos Rios Congo, Níger, Nilo, Reno
e Zambeze) entre 9 a 11 estados. Já a bacia do Danúbio é a que percorre o maior número
de estados, 18 no total8. A título de exemplo, 60% do território brasileiro é composto por
5 Aaron T. WOLF, Jeffrey A. NATHARIUS, Jeffrey J. DANIELSON, Brian S. WARD e Jan K. PENDER,
International River Basins of the World, Water Resources Development, Vol. 15, N.o 4, 1999, páginas
387-427, 391. 6 Stephen C. MCCAFFREY, Politics And Sovereignty Over Transboundary Groundwater, 2008,
página 253. 7 Fonte: http://www.un.org/spanish/waterforlifedecade/transboundary_waters.shtml, acesso em
18/12/2015. 8 Amparo SERENO ROSADO, O Regime Jurídico das Águas Internacionais. O Caso das Regiões
Hidrográficas Luso-Espanholas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, página 311. Greg
BROWDER e Leonard ORTOLANO, The Evolution of an International Water Resources
Management Regime in the Mekong River Basin, Natural Resources Journal, Volume 40, n.o 3,
University of New Mexico School of Law, 2000, páginas 499-531, 499.
9 bacias hidrográficas compartilhadas com outros estados da América do Sul, dentre as
quais, 2 das 5 maiores bacias do globo (Amazonas9 e Prata10)11.
Essa realidade, que se repete em todos os continentes - com exceção da Oceania,
é foco de conflitos e exige a adoção de mecanismos de gestão coordenados entre os
estados da bacia com o propósito de superar desafios e promover o desenvolvimento das
bacias internacionais.
Não se pode desconsiderar que o ambiente possui natureza transfronteiriça12 e
com as águas internacionais não é diferente. Ultrapassam as fronteiras dos estados,
constituindo unidades naturais denominadas “bacias hidrográficas internacionais”. A
poluição – definida como “toda e qualquer alteração nociva na composição ou qualidade
das águas de um curso de água internacional, e que resulte, direta ou indiretamente, de
conduta humana”13 – flui igualmente de um estado para outro através dos cursos de água
que integram as bacias internacionais.
Estados situados a jusante tendem a sofrer mais impactos em virtude de atividades
desenvolvidos por estados a montante, por causa da localização geográfica. Estes últimos,
por sua vez, em regra apresentam menos disposição para a cooperação, uma vez que a
posição geográfica lhes proporciona determinadas vantagens no compartilhamento da
água. Além disso, o compartilhamento de bacias hidrográficas internacionais induz
9 A Bacia do Amazonas é a maior do globo, com área de 5.883.400km2 e percorre os territórios do Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia, Equador, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa, Sinval NEVES
SANTOS, Águas Transfronteiriças Superficiais: o caso da bacia do Rio Danúbio, São Paulo, 2005,
página 80. 10 A Bacia do Prata é a quinta maior do globo, com área de 2.954.500km2 e percorre os territórios do Brasil,
Argentina, Paraguai, Bolívia e Uruguai, Sinval NEVES SANTOS, Águas Transfronteiriças Superficiais:
o caso da bacia do Rio Danúbio, São Paulo, 2005, página 80. 11 Sinval NEVES SANTOS, O compartilhamento das águas transfronteiriças superficiais: um
subsistema da ordem ambiental internacional, 2004, página 6. UNITED NATIONS EDUCATIONAL,
SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION, Water for people, water for life: UN World Water
Development Report, Paris, 2003. 12 “Transfronteiriça” é uma sub-categoria do gênero “internacional”, na medida em que toda água transfronteiriça é internacional, mas não vice-versa. Já as águas internacionais são aquelas que se situam
em diferentes estados, de acordo com o artigo 2º, “b”, da Convenção de Nova Iorque de 1997, de acordo
com Kerstin MECHLEM, International groundwater law: towards closing the gaps?, Yearbook of
international environmental Law 14, Oxford, Oxford Press, 2003, páginas 47-80, 52-54 e 61, também
disponível em
https://www.researchgate.net/profile/Kerstin_Mechlem/publication/228157811_International_Groundwat
er_Law_Towards_Closing_the_Gaps/links/0a85e52fdeea57a0cf000000.pdf, acesso em 14 de janeiro de
2016. 13 Artigo 21, §1º, da Convenção de Nova Iorque de 1997.
estados ribeirinhos a intensificarem o seu uso, diante do receio de que os demais utilizem
a água disponível antes dele14.
Por isso, determinadas obrigações de natureza material e procedimental são
necessárias para regular e limitar a relação dos estados com os cursos de água
internacionais que percorrem seus territórios.
Nesse sentido, o princípio da soberania – relacionada à temática ambiental ou à
gestão dos cursos de água – precisa ser repensado. Não há mais espaço para considerá-lo
um princípio absoluto. Encontra mitigações em prol do bem comum da coletividade e no
princípio da não utilização do território de forma a provocar danos ambientais para além
das fronteiras, com amparo no emblemático julgamento Trail Smelter. Embora tenha
tratado sobre a poluição atmosférica transfronteiriça, o referido julgamento demonstra a
evolução da interpretação do princípio da soberania na seara do ambiente, ao decidir sobre
a responsabilidade internacional do Canadá pela poluição decorrente da emissão de
dióxido de enxofre por uma fábrica de fundição de chumbo e zinco (Consolidated Mining
And Smelting Co. of Canada), que transbordou a fronteira nacional e atingiu os Estados
Unidos da América. O Governo dos Estados Unidos da América apresentou queixa à
Comissão Mista Internacional contra o Canadá, alegando violação ao Tratado de Águas
de Fronteira (Boundary Waters Treaty), de 1909. Em seguida, o caso foi submetido a um
tribunal arbitral ad hoc, que, ao concluir o julgamento, em 1941, decidiu que nenhum
estado tem o direito de usar seu território de forma a causar dano ao estado vizinho (no
state has the right to use or permit the use of its territory in such a manner as to cause
injury in or to the territory of another or the properties of persons therein)15.
Embora se trate de uma decisão de perspectiva antropocêntrica, envolvendo
direito de vizinhança e poluição atmosférica, e não propriamente um litígio ambiental16,
seu fundamento jurídico pode ser aplicado na gestão de bacias internacionais
compartilhadas.
14 Kathy HOCHSTETLER, International Environmental Politics and Transboundary Waters, in
Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 437 e seguintes, 439. 15 H. F. M. W. VAN RIJSWICK, Moving Water and the Law on the Distribution of Water Rights and
Water Duties within River Basins in European and Dutch Water Law, Europa Law Publishing,
Groningen, 2008, página 6. 16 Carla AMADO GOMES, Responsabilidade Internacional do Estado por Dano Ecológico: uma
Miragem?, in Questões de Responsabilidade Internacional, Maria de Assunção do Vale Pereira
(Coordenadora), Sociedade Portuguesa de Direito Internacional, 2016, páginas 11-41, 12.
Nessa linha, este trabalho aborda o regime jurídico dos cursos de água
internacionais não destinados à navegação e a relação dos estados que compartilham
bacias hidrográficas internacionais compostas por esses cursos de água. Integram esse
regime jurídico obrigações materiais e procedimentais que visam reduzir conflitos e
resolver disputas com base na cooperação, na descentralização da gestão e no
desenvolvimento de estruturas supranacionais.
Não se pretende encontrar um modelo de gestão único aplicável globalmente. As
peculiaridades políticas, culturais, econômicas e socioambientais, assim como as
complexidades inerentes às bacias hidrográficas impedem a adoção de modelos simplistas
e uniformes. Contudo, seria possível identificar princípios e diretrizes comuns que
possam ser observados na elaboração de planos de gestão individualizados com o intuito
de reduzir impactos sobre os cursos de água e, dessa forma, assegurar o acesso equitativo
e sustentável à água?
O objetivo da investigação consiste em demonstrar se a gestão integrada dos
cursos de água internacionais, a partir do critério da bacia hidrográfica - e baseada no
dever de cooperação, na descentralização e na criação de estruturas supranacionais – pode
contribuir para a redução de conflitos e a promoção do desenvolvimento da bacia.
No momento, impõe-se delimitar o campo de estudo e a abrangência da análise
nos seguintes termos:
1. Inicialmente, serão analisadas linhas de força e de evolução do regime jurídico
dos cursos de água internacionais não destinados à navegação. Não obstante a inúmera
quantidade de documentos internacionais que tratam do assunto, diante da necessidade
de delimitação do tema, focar-se-á na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos
dos Cursos de Água Internacionais Não Destinados à Navegação, também conhecida
como “Convenção de Nova Iorque”, de 1997, e na Convenção das Nações Unidas relativa
à proteção e utilização dos cursos de água transfronteiriças e dos lagos internacionais,
firmada em 1992, conhecida como “Convenção de Helsinque”, sem prejuízo da menção
pontual a normas de outros documentos de direito internacional pertinentes;
2. Na sequência, será estudada a bacia hidrográfica como unidade de gestão, com
o propósito de verificar se a gestão com base nesse critério contribui para o aumento da
proteção dos cursos de água internacionais. Também serão estudados os princípios
centrais orientadores da gestão das bacias hidrográficas internacionais, apontados pela
doutrina especializada. Nesse aspecto, serão destacados os conflitos entre o mencionado
critério e a soberania dos estados e as dificuldades na aplicação desses princípios.
3. Por fim, serão identificadas obrigações materiais e procedimentais aplicáveis
aos estados que compartilham bacias hidrográficas internacionais. O objetivo é
demonstrar se mecanismos administrativos de gestão compartilhada podem contribuir
para o aprimoramento da gestão das bacias hidrográficas internacionais, reduzindo riscos
de danos e conflitos.
Ao longo deste trabalho, será realizada análise crítica de casos envolvendo
disputas internacionais por cursos de água compartilhados que ganharam destaque na
doutrina e na jurisprudência, com amparo em instrumentos de carácter local, regional e
global, vinculativos e não vinculativos.
Importante esclarecer que não constitui objeto deste estudo tratar da água
enquanto “recurso” ou “produto comercial dotado de valor econômico ou utilitário”, mas
como um componente ambiental que deve ser protegido enquanto elemento integrante de
um ecossistema mais abrangente no qual se encontra inserido17.
Devido à necessidade de delimitação do tema, também não serão abordados
aspectos econômicos e financeiros relacionados aos cursos de água, tais como a análise
econômica da água, recuperação de custos, tarifas e mecanismos econômicos de
racionalização dos usos, embora se reconheça a importância dessa análise, ou, ainda, os
cursos de água destinados à navegação, objeto de regulamentação própria específica.
Relevante destacar que, apesar de se conhecer a discussão doutrinária existente,
também não se pretende tratar da existência de autonomia do Direito Internacional do
Ambiente.
Embora os termos “água” e “curso de água” abranjam tanto as águas superficiais
quanto as subterrâneas, que interagem e integram um mesmo ciclo hidrológico, estas
últimas requerem um estudo próprio e aprofundado, dedicado às suas inerentes
peculiaridades. Por tal razão, este trabalho limita-se àquelas primeiras – as águas
superficiais que integram bacias hidrográficas internacionais.
Em relação à distinção entre os termos “água” e “recursos hídricos”, a doutrina
adota a expressão “água” para atividades de proteção, ao passo em que a noção de
“recurso hídrico” possui conotação de exploração econômica. Assim, “gestão da água”
não é sinônimo de “gestão de recursos hídricos”. A primeira preocupa-se com a proteção
17 Nesse sentido, é o 1º considerando da Diretiva 2000/60/CE, de 23 de Outubro de 2000. Antonio Eduardo
L. LANNA distingue o termo “água”, como elemento natural, do termo “recursos hídricos”, com conotação
utilitária, econômica, isto é, a parcela da água que pode ser considerada recurso, A inserção da gestão das
águas na gestão ambiental, página 75, disponível em
http://www.uff.br/cienciaambiental/biblioteca/rhidricos/parte2.pdf, acesso em 15/01/2016.
da água enquanto componente ambiental e a manutenção de padrões de qualidade, ao
passo em que o foco da segunda é a quantidade, necessária para assegurar a atividade
econômica de exploração dos cursos de água enquanto recurso econômico18.
Serão utilizados os seguintes conceitos extraídos da Convenção de Nova Iorque
de 1997, que possui natureza jurídica de Convenção-Quadro sobre a gestão dos cursos de
água internacionais não destinados à navegação: “curso de água”: “sistema de águas de
superfície e subterrâneas que, em virtude de sua relação física, constituem um conjunto
unitário e normalmente fluem para uma desembocadura comum”; “curso de água
internacional”: “curso de água cujas partes se encontram em estados distintos” (artigo 2º,
“a” e “b”); e “gestão”: “o planejamento para o desenvolvimento sustentável de um curso
de água internacional e a adoção das medidas correspondentes para a execução dos planos
adotados” e “a promoção por qualquer outro meio da utilização racional e ótima, a
proteção e o controle do curso de água” (artigo 24, §2º, “a” e “b”).
Feitas essas considerações acerca da delimitação do tema, no tópico a seguir
passa-se a tratar do regime jurídico dos cursos de água internacionais não destinados à
navegação, com enfoque nas principais linhas de evolução.
18 Essa distinção é feita pelo Conselho da União Europeia no caso envolvendo o Reino da Espanha. UNIÃO
EUROPEIA, TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Processo C-36/98, disponível em
http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=46018&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir
=&occ=first&part=1&cid=261637, acesso em 19/02/2017, parágrafo 17.
1. O REGIME JURÍDICO DOS CURSOS DE ÁGUA INTERNACIONAIS NÃO
DESTINADOS À NAVEGAÇÃO
1.1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA
O tratamento conferido aos cursos de água passou por uma sensível evolução.
Inicialmente valorizados enquanto meio de transporte essencial para navegações, em um
segundo momento cresceu sua importância como insumo para o desenvolvimento de
atividades econômicas, com especial destaque para a necessidade de cooperação entre os
estados, voltada para a produção de energia elétrica a partir da força hidráulica19.
A partir das Conferências das Nações Unidas, no entanto, observou-se o despertar
ecológico, não apenas para a finitude da água e da sua importância enquanto bem
indispensável para a vida humana, mas também para o desenvolvimento de uma visão
ecocêntrica desse componente ambiental especialmente carente de proteção pela
comunidade internacional. Gradualmente, o princípio da preservação ambiental foi
ganhando força. Essa mudança refletiu na regulação jurídica dos cursos de água no plano
internacional. Apesar de a Conferência de Estocolmo de 1972 constituir um importante
marco na mudança de paradigma da proteção do ambiente, voltada ao ecocentrismo, já
há registros, desde o século XIX, de relevantes documentos de Direito Internacional
Público destinados à proteção dos cursos de água não destinados à navegação. A seguir,
serão destacadas as linhas de evolução dos principais documentos editados sobre o tema.
Em 1815, no Congresso de Viena, procedeu-se à classificação dos rios em internos
e internacionais. Além de promover a abertura dos rios internacionais, para permitir a
navegação comercial em igualdade de condições entre os estados parte, a partir desse
congresso foi dado um importante passo para a criação de um organismo de natureza
internacional voltado para a gestão dos cursos de água – a denominada “Comissão
Fluvial”20. Representa uma sensível evolução na relação entre os estados ribeirinhos, na
medida em que a soberania absoluta era deixada de lado em prol da gestão compartilhada,
visando o bem comum.
19 Nesse contexto, entrou em vigor em 1925 a Convenção de Genebra. 20 Amparo SERENO ROSADO, O Regime Jurídico das Águas Internacionais. O Caso das Regiões
Hidrográficas Luso-Espanholas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, página 80. Andreas
KRAEMER e Eleftheria KAMPA, The Rhine – A History and a Model in Regime Development, in
Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 157 e seguintes, 161.
Na sequência, foram firmados acordos, tratados e convenções de direito
internacional sobre os cursos de água internacionais, dentre os quais se destacam os
seguintes devido à contribuição para a evolução de um regime jurídico internacional
próprio dos cursos de água internacionais.
Em 1956, a Associação de Direito Internacional21 publicou a Declaração de
Dubrovnik, que definiu o que é rio internacional. Também previu que na celebração de
acordos os estados a jusante devem pesar os benefícios para um estado e os danos
provocados pelo uso da água, de forma a abordar os conceitos de soberania do estado e
diligência razoável22. Trata-se de uma sensível evolução no sentido da relativização do
princípio da soberania para considerar os interesses dos demais estados da bacia de
maneira equânime.
Seguindo a tendência de internacionalização da gestão, em 1919 o Tratado de
Versalhes regulamentou a utilização de dois importantes rios europeus, o Reno e o
Danúbio, e previu a figura jurídica do rio internacionalizado, de forma a permitir a livre
navegação por todos os estados partes do tratado, a partir de um regime geral aplicável
aos rios internacionais.
A Associação de Direito Internacional adotou três resoluções dignas de destaque
sobre o tema, quais sejam, a Resolução de Madri de 1911, sobre a Regulamentação
Internacional quanto a Utilização de Cursos de Água Internacionais, a Resolução de
Salzburg de 1961, sobre o Uso de Águas Internacionais Não-Marítimas, e a Resolução de
Atenas de 1979, sobre a Poluição de Rios e Lagos e Direito Internacional.
A Resolução de Madri23 estrutura-se em duas normas de considerável relevância
para a gestão integrada de águas transfronteiriças. São elas a proibição de um estado
realizar qualquer modificação em um curso de água contínuo que possa prejudicar o
vizinho sem o consentimento prévio deste e a proibição de utilização da água de maneira
a interferir no uso pelo outro ribeirinho. De acordo com FISHER, essas normas
consistiram em uma verdadeira inovação na época de sua publicação e indicaram como a
estrutura normativa da governança dos recursos hídricos se desenvolveria nos anos
21 A International Law Association, instituição de caráter não oficial fundada em 8 de setembro de 1873,
na Bélgica, através de suas comissões, estuda temas a serem tratados na assembleia plenária e adota
resoluções respeitadas no plano internacional, contribuindo, assim, para o desenvolvimento e o
aperfeiçoamento do Direito Internacional. Fonte: http://justitiaetpace.org/historique.php, acesso em
06/01/2016. 22 Douglas FISHER, The Law and governance of water resources, The challenge of sustainability,
Cheltenham, UK, Edwar Elgar Publishing Limited, 2009, páginas 115 e 116. 23 Fonte: http://www.justitiaetpace.org/idiF/resolutionsF/1911_mad_01_fr.pdf, acesso em 06/01/2016.
seguintes, ao prever que os múltiplos usos da água são permitidos, desde que haja um
consenso entre os estados ribeirinhos, mas que os impactos adversos são proibidos24.
Já a Resolução de Salzburg25 prevê que o direito de um estado utilizar um curso
de água compartilhado é limitado pelo mesmo direito dos demais estados. Estabelece,
ainda, a observância do princípio da equidade na utilização e na solução de disputas
internacionais. Prevê o dever de notificação prévia ao vizinho ribeirinho caso um estado
pretenda fazer novos usos de águas transfronteiriças e impõe a negociação entre eles no
caso de disputas ou divergências.
Na sequência, a Resolução de Atenas26 prevê a utilização racional e equânime e
estabelece a proibição de poluição de rios e lagos que possam causar impactos além do
território nacional. Vai além, para prever não apenas a obrigação de evitar novas formas
de poluição mas também de reduzir as já existentes.
Como se pode perceber, os documentos mencionados mostraram-se bastante
avançados para a época de sua edição e, por isso, representam uma importante evolução
do Direito Internacional em relação à preocupação com o respeito ao direito de todos os
estados do curso de água, além de consolidar mais um passo na superação da doutrina da
soberania absoluta sobre os bens ambientais.
Na mesma linha de força, em 1966 foram editadas pela Associação de Direito
Internacional as Regras de Helsinque sobre a Utilização das Águas dos Rios, conhecidas
como “Regras de Helsinque”, documento de extrema importância para a consolidação de
um regime jurídico voltado à gestão dos cursos de água internacionais a partir de uma
abordagem holística da bacia hidrográfica e para o desenvolvimento da noção de
comunidade de interesses e de cooperação entre os denominados “estados da bacia”. Suas
principais contribuições consistiram na adoção do conceito de bacia hidrográfica
internacional, na negação da prioridade de determinado uso sobre os demais - superando
o paradigma de prevalência da navegação - e na previsão do princípio da utilização
equitativa e razoável, que serão detalhados oportunamente 27.
24 Douglas FISHER, The Law and governance of water resources, The challenge of sustainability,
Cheltenham, UK, Edwar Elgar Publishing Limited, 2009, página 115 e seguintes. 25 http://www.justitiaetpace.org/idiE/resolutionsE/1961_salz_01_en.pdf, acesso em 06/01/2016. 26 http://www.justitiaetpace.org/idiE/resolutionsE/1979_ath_02_en.PDF, acesso em 06/01/2016. 27 Douglas FISHER, The Law and governance of water resources, The challenge of sustainability,
Cheltenham, UK, Edwar Elgar Publishing Limited, 2009, páginas 118 e 119. Amparo SERENO ROSADO,
O Regime Jurídico das Águas Internacionais. O Caso das Regiões Hidrográficas Luso-Espanholas,
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, página 146 e 151.
Aprimorando as Regras de Helsinque, a Associação de Direito Internacional
publicou, em 2004, as Regras de Berlim, cuja principal contribuição consistiu em também
abordar questões relacionadas ao ambiente no qual as bacias internacionais se encontram
inserida. As Regras de Berlim evidenciam o surgimento de uma visão ecocêntrica da
água, ao incluir o dano ambiental na definição de “danos” e “custo de medidas razoáveis”
para minimizar perdas de vidas, danos à propriedade e para o ambiente28. Já se vislumbra
um novo paradigma de preocupação tanto com o dano ecológico quanto com a qualidade
da água enquanto valor intrínseco para a proteção do ecossistema, e não mais apenas
vinculado à saúde, à integridade e à propriedade29. As Regras de Berlim contribuíram,
ainda, para a consolidação de princípios esparsos encontrados em diversos documentos
normativos, entre os quais se destacam o da participação pública na gestão dos recursos
hídricos, o do gerenciamento conjunto, o da gestão integrada, o da sustentabilidade e o da
minimização dos danos ambientais. Também preveem a cooperação internacional, a
utilização equitativa e a prevenção de danos transfronteiriços na gestão das águas
internacionais, constituindo, dessa forma, um passo relevante para a consolidação de
princípios do Direito Internacional do Ambiente.
Nesse contexto de preocupação com os impactos negativos sobre o ambiente, a
economia e o bem-estar dos estados da bacia, é possível verificar, a cada novo documento
internacional, a consolidação do despertar da comunidade internacional para a
necessidade de promover a gestão integrada das bacias hidrográficas internacionais.
O esforço é voltado ao desenvolvimento de uma política de fortalecimento da
cooperação multilateral para prevenir, controlar e reduzir a poluição transfronteiriça,
assegurar a gestão sustentável da água, conservar os recursos hídricos e proteger o
ambiente.
Essa política decorre da consciência global desenvolvida ao longo de séculos de
que a utilização da água produz impactos que vão além das fronteiras do estado poluidor
e que, portanto, a efetiva preservação da água depende da cooperação reforçada a nível
internacional, focada na adoção de medidas de controle, monitoramento e redução de
descarga de poluentes nas bacias internacionais. Nessa linha, a cooperação internacional,
28 Artigo 3º. 29 Palestra proferida pela Professora Carla AMADO GOMES, em 27 de abril de 2016, na 3.ª Edição do
Curso de Pós-Graduação de Direito da Água, organizado em 2016 pelo Instituto de Ciências
JurídicoPolíticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. As Regras de Berlim dedicam o
capítulo V exclusivamente à proteção do ambiente aquático, no qual trata da integridade ecológica, dos
fluxos ecológicos e do estabelecimento de padrões de qualidade da água.
baseada na igualdade e na reciprocidade, ocupa papel de destaque em diversos
documentos internacionais relacionados à tutela dos recursos hídricos compartilhados,
como a Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente, de 1972.
Observa-se que os conceitos de “cursos de água internacionais”, “bacia
hidrográfica internacional” e “região hidrográfica internacional” são adotados por
diversos documentos internacionais, embora não haja uma definição uniforme.
Feitas essas considerações sobre o contexto de evolução do regime das águas
internacionais, passa-se a analisar, a seguir, as principais linhas de força relativas à gestão
integrada das águas internacionais, com maior aprofundamento sobre a Convenção das
Nações Unidas relativa à Proteção e Utilização dos Cursos de Água Transfronteiriças e
dos Lagos Internacionais (Convenção de Helsinque), de 1992, e a Convenção das Nações
Unidas sobre os Direitos dos Usos dos Cursos de Água Internacionais não Destinados à
Navegação (Convenção de Nova Iorque), de 1997.
1.2. A CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS RELATIVA À PROTEÇÃO E
UTILIZAÇÃO DOS CURSOS DE ÁGUA TRANSFRONTEIRIÇOS E DOS
LAGOS INTERNACIONAIS, DE 1992 – “CONVENÇÃO DE HELSINQUE”.
Em 1992, em Helsinque, foi assinada a Convenção das Nações Unidas para a
Proteção e Gestão dos Lagos Internacionais e dos Cursos de Água Transfronteiriços, que
consolidou importantes princípios de Direito Internacional. Dentre esses princípios se
destacam os princípios da precaução, da prevenção, da correção dos danos ambientais
prioritariamente na fonte, do poluidor-pagador e da solidariedade intergeracional30.
A preocupação com a prevenção de impactos transfronteiriços é evidente em
diversos pontos da Convenção, na linha da Declaração do Rio, também de 199231. De
início, a Convenção define de forma bastante abrangente o impacto transfronteiriço como
“qualquer efeito prejudicial importante que uma alteração do estado das águas
transfronteiras, provocada por uma atividade humana cuja origem física se situa, no todo
ou em parte, numa zona sob jurisdição de uma parte, tenha no ambiente de uma zona sob
jurisdição de outra parte.”. Em uma perspectiva ecocêntrica, abrange não apenas impactos
30 Peter GLEICK, Water and Conflict: Fresh Water Resources and International Security,
International Security, Volume 18, nº 1, 1993, páginas 79 a 112, 106. 31 Ver Princípios 17 e 19, que tratam da avaliação de impactos ambientais, do dever de notificação prévia
e da troca de informações no caso de impactos transfronteiriços.
que possam provocar danos à saúde e à segurança do homem, mas também aqueles que
possam “causar efeitos negativos na flora, fauna, solo, atmosfera, águas, clima, paisagem
e monumentos históricos ou outro patrimônio construído ou ainda interações entre estes
diversos fatores; inclui igualmente efeitos negativos no patrimônio cultural ou nas
condições socioeconômicas resultantes da alteração destes fatores.”32.
A referida Convenção destaca o princípio da prevenção na fonte, ao determinar
que as partes deverão tomar todas as medidas adequadas, preferencialmente na fonte, para
prevenir, reduzir e controlar impactos transnacionais. Para isso, vale-se de avanços
científicos e tecnológicos, ao priorizar a adoção de técnicas menos poluentes e da melhor
tecnologia disponível para a fixação de limites de descargas.
Um das principais linhas de evolução da Convenção consiste no reforço da
cooperação para auxiliar na prevenção de impactos transfronteiriços. Também estimula a
integração, ao prever que os estados estabeleçam objetivos conjuntos de qualidade (em
1992, a quantidade ainda não era uma preocupação digna de destaque). Nessa linha,
instiga o desenvolvimento de sistemas conjunto de vigilância do estado das águas para
coibir impactos que afetem estados vizinhos, valendo-se do desenvolvimento de técnicas
de minimização e prevenção de impactos, bem como do intercâmbio de informações de
forma rápida e abrangente.
Para isso, a Convenção determina a conclusão de acordos bilaterais ou
multilaterais, baseados na equidade e na reciprocidade, inclusive mediante a criação de
órgãos comuns com atribuições claras e bem definidas, visando a coordenação de
atividades para reduzir impactos nas bacias hidrográficas internacionais.
Merece destaque, também, o incentivo à gestão duradoura dos recursos hídricos,
o que abrange a abordagem ecossistêmica e a aplicação do princípio da prevenção, esta
última como forma de redução de riscos de poluição acidental. Nessa linha, prevê
sistemas de alerta e de alarme para a comunicação de qualquer situação crítica que possa
ter impacto nas partes ribeirinhas.
Como se pode observar, a Convenção de Helsinque representou um importante
avanço na consagração do dever de os estados assegurarem uma gestão ecologicamente
equilibrada das águas superficiais e subterrâneas33, que inspirou, por exemplo, a
32 Artigo 1º, nº 2. Attila TANZI, The Economic Commission for Europe, Water Convention and the
United Nations, Watercourses Convention: an analysis of their harmonized contribution to
international Water Law, Water Series, nº 6, 2015, página 22. 33 António Gonçalves Henriques, The Portuguese-Spanish Convention on Shared River Basins: A
Framework for Co-operation for Protection and Sustainable Use of Waters, in Implementing
Convenção para Proteção do Danúbio de 199434, além de outros acordos internacionais
relativos às principais bacias hidrográficas da União Europeia, como a do Reno e as luso-
espanholas35.
1.3. A CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE OS DIREITOS DOS
CURSOS DE ÁGUA INTERNACIONAIS NÃO DESTINADOS À
NAVEGAÇÃO, DE 1997 – “CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE”.
Dando continuidade à política de integração e cooperação, e visando a utilização
equitativa e sustentável dos recursos hídricos, foi celebrada em 1997, a partir da
Resolução nº 49/52 da Assembleia Geral, de 09 de dezembro de 1994, a Convenção das
Nações Unidas sobre o Direito das Utilizações dos Cursos de Água Internacionais para
Fins Distintos da Navegação, que resultou de um longo trabalho da Comissão de Direito
Internacional das Nações Unidas. Também conhecida como “Convenção de Nova
Iorque”, esse diploma extremamente relevante tem natureza jurídica de convenção-
quadro e sistematizou princípios gerais sobre gestão compartilhada de águas
internacionais36, alguns deles já previstos na Convenção de Helsinque.
A evolução da consciência acerca da dimensão global e multidimensional de
determinadas questões ambientais, assim como da necessidade de adotar soluções
conjuntas através de uma política de proteção ambiental integrada e que transcenda
fronteiras, impulsionou o desenvolvimento do direito internacional para a gestão da
poluição das águas internacionais37.
Nesse contexto, juntamente com a Convenção de 1992, a Convenção de Nova
Iorque superou o tradicional modelo de abordagem limitada a um curso de água ou a uma
Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation,
Lisboa, 2003, Páginas 251 e seguintes, 254. 34 No original: “‘Transboundary impact’ means any significant adverse effect on the riverine environment
resulting from a change in the conditions of waters caused by human activity and stretching out beyond an
area under the jurisdiction of a Contracting Party. Such changes may affect life and property, safety of facilities and the aquatic ecosystems concerneditores”. 35 Amparo SERENO ROSADO, O Regime Jurídico das Águas Internacionais. O Caso das Regiões
Hidrográficas Luso-Espanholas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, página 148. 36 O artigo 2º, 5, da referida Convenção, menciona expressamente os princípios da precaução, poluidor-
pagador e solidariedade intergeracional. Também é possível extrair do referido diploma os princípios da
equidade, da obrigação de não causar dano significativo, de cooperação geral e de intercâmbio regular de
dados e informações. 37 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, página 577.
parte deste, para considerar todo o contexto da bacia hidrográfica, incluindo as águas
superficiais e subterrâneas como parte de um sistema hidrológico único38, e adotar um
regime fundado na cooperação internacional, prevendo expressamente a gestão conjunta
dos cursos de água internacionais.
A Convenção abandonou a tradicional definição de “rio internacional” e
estruturou-se a partir das noções mais amplas de “curso de água” e “curso de água
internacional”, atreladas à ideia de “água em movimento”. “Curso de água” é definido
como um “sistema de águas de superfície e subterrâneas que, em virtude de sua relação
física, constituem um conjunto unitário e normalmente fluem para uma desembocadura
comum”39, ao passo em que “curso de água internacional” é definido como “curso de
água com parcelas situadas em estados diferentes”.
Como se pode perceber, as definições consideram não apenas as águas
superficiais, mas também a subterrânea, demonstrando preocupação com a integração
entre ambas, já que a maior parte da água potável está localizada no subsolo. A
substituição do termo “rio internacional” por “curso de água” reflete a evolução do
conhecimento científico, uma vez que considera a interação entre a água doce subterrânea
e a de superfície e como a poluição de uma pode contaminar a outra e vice versa, assim
como a captação de água subterrânea pode afetar o fluxo da água de superfície40. Tais
conceitos abrangem os aquíferos livres e semiconfinados, porém excluem os aquíferos
confinados, que não possuem uma relação física com as águas de superfície41.
Merece destaque o avanço da Convenção no reconhecimento da necessidade de
proteção dos ecossistemas dos cursos de água internacionais. Demonstra a
conscientização acerca da importância da proteção dos ecossistemas associados aos
cursos de água, que compreendem o solo, a fauna e a flora que interagem com o
ecossistema aquático e que são responsáveis pela saúde das águas. A Convenção de Nova
Iorque também se preocupa com a proteção das zonas ripárias contra atividades
38 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, página 419. 39 Artigo 2º, “a”. 40 Stephen MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of the
U.N. Convention, 1999, páginas 11-19, 11, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017. 41 António GONÇALVES HENRIQUES, O Direito Internacional das Águas e a Convenção de
Albufeira de 1998 sobre as Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas, página 5.
degradantes, e não apenas os cursos de água propriamente ditos, o que revela uma
tendência ecocêntrica, na mesma linha da Convenção de Helsinque42.
Para viabilizar a cooperação e a integração, destaca a importância da realização
de consultas e da criação de um mecanismo institucional para tal fim, bem como
estabelece medidas projetadas, além de estimular a participação de organizações
internacionais governamentais e não-governamentais.
De modo a evitar a ocorrência de danos ou minimizar seus impactos, caso eles
ocorram, o artigo 9º da referida Convenção prevê o dever de trocar regularmente dados e
informações entre os estados da bacia, em particular os relativos à qualidade,
meteorologia, hidrologia, hidrogeologia, ecologia e previsão do tempo, o que denota uma
grande preocupação com o monitoramento e a avaliação constantes e conjuntos do estado
das águas, incluindo enchentes, bem como dos impactos transfronteiriços de choques43.
Da mesma forma, ultrapassou o modelo de simples proibição da poluição
transfronteiriça e consolidou o desenvolvimento de um regime legal de responsabilidades
e obrigações – embora não tenha aprofundado nos deveres das partes, voltado para a
proteção das águas internacionais compartilhadas, baseado na gestão comum, com
obrigações de prevenção, realização de consultas e autorização para o uso da água44.
Qual o regime das consequências legais de um impacto transfronteiriço, dano
significativo ou uso não equitativo? Se a Convenção de Helsinque foca-se nos princípios
da prevenção e na cooperação institucional para evitar danos transfronteiriços, a
Convenção de Nova Iorque trata das consequências, isto é, da responsabilidade dos
estados pela ocorrência de danos. Nessa linha, o artigo 7º, §2º, fala em “adoção de todas
as medidas apropriadas”, além do dever de consultar o estado afetado para eliminar ou
mitigar esses prejuízo e examinar a questão de indenização45.
A Convenção prevê medidas para proteger, preservar e gerir cursos de água
internacionais, além de estabelecer mecanismos para a solução de conflitos. Aliás, esta
42 Stephen C. MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of
the U.N. Convention, 1999, páginas 11-19, 16, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017. 43 Dante A. CAPONERA, Principles of water Law and Administration, National and International, 2ª
edição revista e atualizada por Marcella Nanni, Londres, UK, Taylor & Francis Group, 2007, páginas 223
e 224. Peter GLEICK, Water and Conflict: Fresh Water Resources and International Security,
International Security, Volume 18, nº 1, 1993, página 108. 44 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, página 419. 45 Attila TANZI, The Economic Commission for Europe, Water Convention and the United Nations,
Watercourses Convention: an analysis of their harmonized contribution to international Water Law,
Water Series, nº 6, 2015, página 22.
convenção constitui a principal base para a resolução de disputas envolvendo cursos de
água compartilhados46.
No que se refere à proteção e utilização das águas transnacionais, foi além da
Convenção de Helsinque de 1992, ao estabelecer que a cooperação entre os estados deve
basear-se na equidade e na reciprocidade (artigo 5º), bem como traduzir-se,
prioritariamente, na elaboração de acordos entre estados ribeirinhos que facilitem o
desenvolvimento de políticas, programas e estratégias conciliados aplicáveis às bacias
hidrográficas com o objetivo de prevenir, controlar e reduzir impactos sobre as águas
transfronteiriças e o ambiente nos quais elas exerçam influência, incluindo o marinho.
Nesse sentido, orienta a negociação de acordos relacionados à bacia hidrográfica
e representa uma tentativa de consolidar normas internacionais sobre a água e facilitar as
negociações entre estados soberanos na celebração de tratados.
Apesar de estimular a celebração de acordos no âmbito da bacia, e de determinar
a utilização equitativa e razoável, é digna de crítica a ausência de previsão sobre como
conciliar o princípio da utilização equitativa com o de não provocar dano significativo,
previsto no artigo 7º, no caso de eventual conflito.
Importante destacar que a previsão do princípio da utilização equitativa e razoável
foi objeto de controvérsia entre os estados durante as negociações da Convenção, assim
como a obrigação de não causar danos significativos, por implicar em verdadeira
limitação à utilização dos cursos de água, especialmente pelos estados a montante.
Para a preservação das bacias, a Convenção prevê mecanismos de gestão
integrada, como a obrigação de que determinadas medidas de prevenção, controle e
redução da poluição da água devem ser tomadas, sempre que possível, na fonte,
especialmente mediante a aplicação de tecnologias pouco poluentes ou limpas, e impõe
que os estados atuem de maneira consciente, de forma que não haja de forma alguma
transferência de poluição para outros lugares47.
Embora os princípios e mecanismos aqui mencionados não constituam
propriamente inovações jurídicas, sua consolidação na principal Convenção atualmente
em vigor sobre a matéria reafirma o compromisso dos estados com sua observância.
Igualmente, formaliza o dever de cooperação e de integração das políticas internas de
46 Tarek MAJZOUB e Fabienne QUILLERÉ-MAJZOUB, Contribution to the Operationalization of the
Principle of Equitable and Reasonable Utilization of International Watercourses through
Jurimetrics, Revue Hellénique de Droit Internactional, Sakkoulas Publications, Atenas, 2012, páginas 371
e seguintes, 397. 47 Artigo 2º, 3 e 4, e artigo 3º, 1, “a”, ambos da Convenção de Nova Iorque de 1997.
gestão das águas internacionais dos estados com uma política de gestão comum e
uniformizada48, obrigando-os a agirem de forma igual e recíproca, mediante a adoção de
acordos bilaterais ou multilaterais entre as partes ribeirinhas, e a criarem órgãos conjuntos
com atribuições definidas49. Consequentemente, isso traz a necessidade de diálogo e o
dever de intercâmbio das informações entre eles sobre as questões tratadas pela
Convenção.
Mas ainda há muito a ser aprimorado. Parcela da doutrina critica a ausência de
força normativa das regras gerais “universais” adotadas no plano internacional,
notadamente as Convenções das Nações Unidas, assim como a ausência de autoridade
dos órgãos internacionais com atribuição de proteger e resolver conflitos relacionados aos
cursos de água. Assim, aponta para a necessidade de adoção de instrumentos jurídicos
vinculantes no plano internacional, bem como do fortalecimento daqueles existentes no
direito nacional50.
Diante de tantas críticas, pergunta-se por que a Convenção é tão referenciada e
estudada antes mesmo de entrar em vigor?
A resposta a essa questão não é simples. Requer algumas considerações.
Em que pese o regime estabelecido pela Convenção seja considerado tímido –
pois avançar mais poderia inviabilizar a adesão dos estados, representou uma significativa
evolução na codificação da legislação internacional sobre a gestão dos cursos de água
internacionais.
Trata-se de um documento de natureza internacional legitimado pelo amplo debate
em um fórum que permite a participação de qualquer estado interessado e que reflete a
visão da comunidade internacional sobre a matéria, notadamente em razão de sua
aprovação por uma significativa maioria de estados e pela existência de poucos votos
contrários51. Tal fato se justifica também em razão de determinadas questões controversas
não terem sido incluídas no texto final da convenção.
Nesse sentido, possui reconhecido valor em virtude de ter sido negociada em um
fórum internacional democrático que permitiu a participação de qualquer estado. Por isso,
é a única convenção sobre cursos de água que possui caráter universal. Foi adotada por
48 A título de exemplo, a Convenção de Nova Iorque de 1997 prevê a troca de informações sobre as
regulamentações nacionais sobre limites de emissão de poluentes nos cursos de água no artigo 13º, 2. 49 Artigo 9º, §2, da Convenção de Nova Iorque de 1997. 50 António GONÇALVES HENRIQUES, O Direito Internacional das Águas e a Convenção de
Albufeira de 1998 sobre as Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas, página 3. 51 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 316.
uma considerável maioria de estados, com apenas três votos contrários, o que demonstra
que, após conciliar temas controversos, a convenção conseguiu um amplo acordo da
comunidade internacional sobre princípios gerais aplicáveis aos cursos de água não
destinados à navegação52.
Certamente, a Convenção contribuiu para o estabelecimento de um regime legal
dos cursos de água internacionais, apesar das severas críticas recebidas, e exerceu forte
influência nos acordos e tratados subsequentes à sua celebração. Sua importância também
foi reconhecida pela Corte Internacional de Justiça, especialmente no caso Gabčíkovo-
Nagymaros53. A menção à Convenção de Nova Iorque no julgamento desse caso, apenas
quatro meses após sua conclusão, representa um enorme reconhecimento de sua
importância e endossa o seu caráter imperativo54.
Ademais, trata-se de uma convenção-quadro que deve ser complementada por
acordos e tratados entre estados de bacias hidrográficas internacionais. Foi o que ocorreu
com a Convenção do Danúbio, de 1994, que incorporou as normas da Convenção da
Comissão Econômica para a Europa das Nações Unidas (UNECE), de 1992, e foi além,
prevendo outras normas de proteção da bacia hidrográfica do Danúbio55.
Apesar das inúmeras críticas acerca da ausência de profundidade no tratamento de
determinados aspectos, não se pode negar a contribuição da Convenção de Nova Iorque
na sistematização de normas importantes relativas ao uso equitativo e razoável, à
prevenção contra danos, à notificação prévia e à proteção do ecossistema. Trata-se de
normas que já emergiam ou até mesmo encontravam previsão em outros documentos
internacionais, mas que careciam de consolidação56. Da mesma forma, cristalizou o
52 Stephen C. MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of
the U.N. Convention, 1999, páginas 11-19, 17, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017. 53 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso Gabčíkovo-Nagymaros, Hungria versus Eslováquia,
25 de setembro de 1997, disponível em: http://www.icjcij.org, acesso em 29/08/2017. David FREESTONE
e Salman M.A. SALMAN, Ocean and Freshwater Resources, in The Oxford Handbook of International
Environmental Law, Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 338 e seguintes, 354. António GONÇALVES HENRIQUES, O Direito Internacional das Águas e a Convenção de
Albufeira de 1998 sobre as Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas, página 7. 54 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 193. 55 David FREESTONE e Salman M.A. SALMAN, Ocean and Freshwater Resources, in The Oxford
Handbook of International Environmental Law, Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores),
2008, páginas 338 e seguintes, 356-358. 56 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 316.
entendimento já consagrado de que nenhuma classe de uso de um curso de água
internacional possui prioridade sobre os demais57.
É notório o esforço para codificar e consolidar princípios já mencionados em
outros documentos internacionais – utilização equitativa, dever de não causar danos
significativos e notificação prévia de medidas projetadas (ou planejadas), o que representa
um sensível progresso para o direito internacional no sentido do fortalecimento destes
importantes princípios58.
Mesmo normas da Convenção de Nova Iorque que não refletem o direito vigente,
ou atual, criam uma expectativa de amadurecimento do comportamento dos estados em
relação a obrigações internacionais59.
Além disso, a Convenção também servirá à interpretação de outros acordos gerais
ou específicos relativos a cursos de água internacionais e será considerado o ponto inicial
na negociação de futuros acordos. Assim, não há dúvidas também de que o fortalecerá a
cooperação e a comunicação entre os estados ribeirinhos, além de auxiliar a promoção e
a implementação de seus propósitos e princípios60.
A Convenção reflete a evolução normativa internacional conquistada a duras
penas, a partir de erros do passado e catástrofes humanas. É o caso, por exemplo, do
acidente ocorrido em 1986, no Rio Reno, envolvendo um incêndio que atingiu a indústria
química Sandoz. Houve o escoamento das águas utilizadas para combater o incêndio da
referida indústria química, localizada perto da Basileia, na Suíça. Cerca de 30 toneladas
de produtos químicos foram derramadas no Rio Reno durante 28 horas. O sistema de
aviso falhou. Os alertas somente chegaram aos estados vizinhos 24 horas após o acidente
e a poluição atingiu a França e a Alemanha, passando ainda pela Holanda até chegar ao
Mar do Norte. A poluição tóxica praticamente extinguiu a vida aquática por diversos
quilômetros e acabou com a fonte de água potável de inúmeras cidades alemãs, que
dependiam totalmente do Reno para abastecimento humano.
57 Artigo 10, §1º. 58 Stephen C. MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of
the U.N. Convention, 1999, páginas 11-19, 16 e 17, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017. 59 Stephen C. MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of
the U.N. Convention, 1999, páginas 11-19, 17, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017. 60 Stephen C. MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of
the U.N. Convention, 1999, páginas 11-19, 17, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017.
Desde o final do século XIX, o Rio Reno sofria com a poluição das suas águas.
Esse acidente agravou essa situação, demonstrou a existência de falhas no sistema de
alerta de acidentes - que impediu a adoção de medidas emergenciais - e também expôs a
vulnerabilidade do ecossistema local. No entanto, a repercussão pública fortaleceu o
papel da Comissão Internacional do Reno e motivou a adoção de um “Programa de Ação”
em 1987. Esse programa previa o compromisso com a reabilitação do ecossistema, para
permitir o retorno de espécies, a garantia de produção de água potável no futuro, a redução
da poluição de sedimentos e a proteção do Mar do Norte contra impactos negativos da
bacia do Reno61.
Aprendendo com os erros do passado, foi estabelecida uma estação de medição
de poluentes e uma estação de alerta para informação das cidades vizinhas em caso de
novos acidentes, além de a empresa responsável ter sido obrigada a recuperar o
ecossistema ribeirinho.
Verificou-se, a partir de então, um considerável progresso em termos de melhoria
da qualidade das águas e recuperação do ecossistema, através da eficiência na troca de
informações sobre técnicas nacionais de redução da poluição, do monitoramento conjunto
da qualidade das águas e da coordenação de sistemas de alerta62.
Esse acidente evidenciou a necessidade de adoção de normas de gestão da água,
tanto no plano regional quanto internacional, voltadas para a prevenção e a redução dos
impactos decorrentes de acidentes e projetos relacionados à água63. A Convenção de Nova
Iorque é um reflexo dessa evolução.
Feito esse apanhado acerca das principais normas que compõem o regime jurídico
internacional dos cursos de água transfronteiriços, no capítulo seguinte passa-se a tratar
do critério adequado para a gestão desses cursos de água, com fundamento em normas
jurídicas até aqui mencionadas.
61 Andreas KRAEMER e Eleftheria KAMPA, The Rhine – A History and a Model in Regime
Development, in Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos
(editores), Luso-American Foundation, Lisboa, 2003, páginas 157 e seguintes, 163, 170 e 171. 62 Andreas KRAEMER e Eleftheria KAMPA, The Rhine – A History and a Model in Regime
Development, in Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos
(editores), Luso-American Foundation, Lisboa, 2003, páginas 157 e seguintes, 171. 63 No plano do Direito da União Europeia, o principal reflexo dessa evolução consistiu na adoção da
Diretiva-Quadro da Água, nº 2000/60/CE, de 23 de Outubro.
2. O CRITÉRIO DA BACIA HIDROGRÁFICA
Conforme abordado no capítulo anterior, a política dos cursos de água
internacionais não destinados à navegação observa uma mudança de paradigma. Na época
das grandes navegações, os rios internacionais eram vistos basicamente como fonte de
navegação e irrigação para a agricultura, sem qualquer importância ambiental. As
políticas públicas do setor voltavam-se, basicamente, para o desenvolvimento de
infraestruturas de navegação e transporte. Com a revolução industrial, o desenvolvimento
do mercado de consumo e a crise dos combustíveis fósseis, houve uma transição para o
paradigma hidráulico, no qual os cursos de água passaram a constituir uma alternativa
energética renovável e adquiriu, assim, valor enquanto recurso econômico64. Foi nesse
contexto que se iniciou a dissociação entre os cursos de água destinados e os não
destinados à navegação. As políticas públicas passaram a ser meramente infraestruturais
e não se conferia qualquer relevância a políticas sanitárias e ambientais.
Após longas décadas de intensificação do consumo, a partir do século XX a
escassez dos recursos naturais fez despertar para a necessidade de preservação do
ambiente como meio indispensável para uma vida digna e de qualidade65. Esse “despertar
ecológico” decorreu da constatação da finitude dos “recursos ambientais” aliada às
catástrofes naturais e veio a consolidar-se após as duas grandes guerras mundiais,
especialmente com as Conferencias das Nações Unidas de Estocolmo (1972) e do Rio de
Janeiro (1992)66.
A evolução do conhecimento científico conduziu à percepção de que as bacias
hidrográficas são bens ambientais compartilhados. Cada bacia hidrográfica é uma
unidade física naturalmente indivisível, que pode ser formada por cursos de água
nacionais e cursos de água que cruzam fronteiras, constituindo neste último caso bacias
64 Desenvolveu-se a crença na hidráulica como domínio técnico-científico capaz de concretizar esse valor. 65 Sobre a substituição da missão da engenharia hidráulica pela gestão integrada dos recursos hídricos, Mark SMITH e Torkil Jonch CLAUSEN, Integrated water resource management, A discussion Paper of the
World Water Council Task Force on IWRM, World Water Council, 2015, página 7, disponível em
http://www.worldwatercouncil.org/fileadmin/world_water_council/documents/publications/forum_docum
ents/WWC_IWRM_DiscussionPaper.pdf, acesso em 23/02/2016. 66 José Rubens MORATO LEITE, Sociedade de Risco e Estado, in Direito Constitucional Ambiental
Brasileiro, organizadores José Joaquim Gomes Canotilho, José Rubens Morato Leite, São Paulo, editora
Saraiva, 2ª edição revista, 2008, páginas 131-204, páginas 131-136, e Carla AMADO GOMES, Introdução
ao Estudo do Ambiente, Lisboa, Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2ª edição,
2014, páginas 20 e 21.
hidrográficas internacionais67. Nas palavras de MILARÉ, “a bacia hidrográfica é um
espaço territorial desenhado pela geografia física e não pela geografia política.”68.
As fronteiras políticas e administrativas constituem criações artificiais que
geralmente não coincidem com as delimitações naturais das bacias hidrográficas, as quais
atravessam territórios de estados distintos. Isso agrava as dificuldades de gestão e
potencializa conflitos vinculados à utilização dos cursos de água por estados com regimes
jurídicos distintos69.
Percebeu-se a importância do desenvolvimento de políticas públicas voltadas à
preservação dos cursos de água internacionais e da integração das políticas do setor com
as demais políticas do ambiente.
Diante da necessidade de gerir os cursos de água internacionais de forma holística
e integrada com os ecossistemas adjacentes, a adoção do critério da bacia hidrográfica
apresenta-se como uma alternativa às políticas setorizadas até então vigentes. Exige a
elaboração de um único plano de gestão por bacia, mediante a integração e a coordenação
entre os estados que compartilham cursos de água internacionais, conforme se verá a
seguir70.
Observa-se nos documentos internacionais modernos uma tendência pela opção
do modelo de gestão baseado no critério da bacia hidrográfica. Embora a noção de bacia
hidrográfica seja adotada, expressa ou implicitamente, pelos principais documentos de
direito internacional, não é possível encontrar uma definição clara de bacia hidrográfica
nas Convenções das Nações Unidas de Helsinque ou de Nova Iorque.
O conceito pode ser emprestado do direito regional da União Europeia. O artigo
2.o, n. o 13, da Diretiva 2000/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de
Outubro de 2000, define bacia hidrográfica como “a área terrestre a partir da qual todas
as águas fluem, através de uma sequência de ribeiros, rios e eventualmente lagos para o
67 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 398 e 399. 68 Édis MILARÉ, Direito do Ambiente, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, página
667. 69 Sinval NEVES SANTOS, O compartilhamento das águas transfronteiriças superficiais: um
subsistema da ordem ambiental internacional, São Paulo, 2004, página 2, disponível em
http://www.anppas.organizadoresbr/encontro_anual/encontro2/GT/GT13/sinval_neves.pdf, acesso em
01/11/2016, página 7. António GONÇALVES HENRIQUES, O Direito Internacional das Águas e a
Convenção de Albufeira de 1998 sobre as Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas. 70 Dante A. CAPONERA, Principles of Water Law and Administration, National and International,
2ª edição, Londres, 2007, página 215. Amparo SERENO ROSADO, Rios que nos separam, águas que
nos unem. Análise jurídica dos Convénios Luso-Espanhóis sobre águas internacionais, Editora
Fundação Lex Nova, 2011, página 25.
mar, desembocando numa única foz, estuário ou delta”, ainda que ultrapassem as
fronteiras nacionais dos estados. Trata-se da “área total de drenagem que alimenta uma
determinada rede hidrográfica; espaço geográfico de sustentação dos fluxos d’água de um
sistema fluvial hierarquizado.”71.
O artigo 2.o das Regras de Helsinque define bacia hidrográfica internacional como
“uma bacia hidrográfica que se estende por territórios de dois ou mais estados,
considerando-se incluídas nos respectivos recursos hídricos as águas superficiais e
subterrâneas”72. Na linha das Regras de Helsinque, classifica-se como internacional a
bacia hidrográfica cujo algum tributário perene atravessa a fronteira política de dois ou
mais estados73.
Não são apenas sistemas aparentemente distintos, separados por fronteiras
políticas, que precisam ser integrados. As vulnerabilidades socioambientais dos
ecossistemas das bacias internacionais também transcendem fronteiras. Ações humanas
e catástrofes naturais provocam impactos significativos sobre bacias hidrográficas
compartilhadas. Nesse contexto de globalização ambiental, a adoção de medidas de
gestão conjunta pode evitar que danos ao ambiente da bacia transcendam o território de
estados vizinhos. Tais medidas abrangem o desenvolvimento, uso, proteção, alocação,
regulação e controle das águas, nos termos do artigo 3.14 das Regras de Berlim.
O critério da bacia hidrográfica não é novidade. Passou por altos e baixos. Já
fundamentou a proteção dos recursos hídricos e do ambiente aquático, através da
abordagem ecossistêmica, assim como já legitimou o desenvolvimento econômico.
Remonta às primeiras navegações, ao controle de enchentes e ao cultivo da terra.
Fortaleceu-se no final do século XIX, quando passou a ser utiliza para o aumento da
eficiência da utilização das águas, em resposta ao desenvolvimento industrial e ao
consequente crescimento da superexploração dos cursos de água. Os altos índices de
poluição das águas na Alemanha levaram à adoção da sub-bacia como unidade de gestão
dos recursos hídricos no plano nacional. Comissões foram criadas para tributários do
Reno, com as atribuições de combater a poluição e gerir a produção de energia. Embora
71 Édis MILARÉ, Direito do Ambiente, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, página
1059. 72 Artigo 2º. 73 Aaron T. WOLF, Jeffrey A. NATHARIUS, Jeffrey J. DANIELSON, Brian S. WARD e Jan K. PENDER,
International River Basins of the World, Water Resources Development, Volume 15, N.o 4, 1999,
páginas 387-427, 389.
tais comissões fossem responsáveis por apenas partes da bacia, adotaram o critério da
unidade da bacia para a gestão74.
Agora, acomoda usos multipropositais e preocupações ambientais relacionadas
com o desenvolvimento sustentável e a gestão integrada. A questão que se coloca é: a
gestão integrada baseada no critério da bacia hidrográfica é amplamente aceita ou apenas
adotada esporadicamente? Quais os seus resultados? Qual o seu futuro? 75
Ao longo da evolução do direito, desenvolveram-se diversos regimes nacionais
com bastante aceitação do critério da bacia como unidade de gestão, que continuam sendo
adotados, como o alemão. A comunidade internacional também trabalhou para o
desenvolvimento de um sistema jurídico coerente relativo às bacias hidrográficas
internacionais e, assim, surgiram os primeiros tratados internacionais refletindo a unidade
da bacia. Em 1911, a Associação de Direito Internacional publicou a Resolução de Madri,
por meio da qual reconheceu que os estados ribeirinhos encontram-se em uma posição de
dependência física permanente entre eles. Dessa interdependência, decorrem duas regras
expressas na resolução. São elas a proibição de um estado realizar qualquer modificação
em um curso de água contínuo que possa prejudicar o vizinho sem o consentimento prévio
deste e a proibição de utilização da água de maneira a interferir no uso pelo outro
ribeirinho. Na mesma linha das conferencias da Associação de Direito Internacional, o
Instituto de Direito Internacional publicou a Resolução de Salzburg em 1961. A gestão
baseada na bacia hidrográfica também tem sido estimulada por organismos
internacionais, como é o caso da Associação de Direito Internacional em relação às
Regras de Helsinque de 196676.
A evolução do conhecimento científico permitiu superar a noção de que a bacia
hidrográfica é uma unidade exclusivamente destinada ao desenvolvimento de recursos e
passou a considerar elementos até então desprezados, como as águas subterrâneas – às
quais até as Regras de Helsinque de 1966 não era conferida qualquer importância, os
danos provocados pela intervenção humana sobre o ciclo hídrico e os efeitos das
mudanças climáticas77.
74 Ludwik A. TECLAFF, Evolution of the River Basin Concept in National and International Water
Law, Natural Resources Journal, 1996, Volume 36, nº 2, páginas 359 e seguintes, 359 e 365. 75 Ludwik A. TECLAFF, Evolution of the River Basin Concept in National and International Water
Law, Natural Resources Journal, 1996, Volume 36, nº 2, páginas 359 e seguintes, 387. 76 Ludwik A. TECLAFF, Evolution of the River Basin Concept in National and International Water
Law, Natural Resources Journal, 1996, Volume 36, nº 2, páginas 359 e seguintes, 359, 365, 366, 369 e
388. 77 Ludwik A. TECLAFF, Evolution of the River Basin Concept in National and International Water
Law, Natural Resources Journal, 1996, Volume 36, nº 2, páginas 359 e seguintes, 372 e 373.
Como se pode perceber, a gestão baseada na bacia hidrográfica preocupa-se com
todos os ecossistemas dependentes dos cursos de água e vice-versa. Nesse sentido,
aproxima-se do conceito de gestão integrada, que será abordado oportunamente.
A adoção da bacia hidrográfica como unidade territorial para a gestão constitui
um grande desafio para a implementação de uma política global das águas e de um sistema
global de gestão das bacias hidrográficas, baseado no equilíbrio entre disponibilidade e
demanda78.
Mas a unidade da bacia não foi sempre aceita. Embora tenha sido reafirmada por
alguns estados (como no Tratado de Cooperação Amazônica), sofreu críticas de
defensores de um regime de menos regulação e mais liberdade para o mercado regular a
forma como a água seria usada. Isso implicou em um recuo na política nacional de alguns
estados, como a “privatização” dos cursos de água britânicos em 198979.
Não se confunde com o conceito de abordagem combinada, de acordo com o qual
“deverão ser estabelecidas condições suplementares ou controlos ambientais mais estritos
se o cumprimento de normas de qualidade ambiental não puder ser satisfeito pela
aplicação dos valores limites de emissão vigentes, fixados de acordo com as melhores
técnicas disponíveis” 80.
A drenagem é característica que distingue as bacias hidrográficas de outras áreas
naturais da superfície da Terra. A bacia de drenagem constitui “uma área determinada
pelos limites geográficos de um sistema de águas interconectadas, cujas águas superficiais
normalmente partilham um terminal comum”, nos termos do artigo 3.5 das Regras de
Berlim. Trata-se da área drenada por um curso de água e seus afluentes. Sua delimitação
é feita a partir dos divisores topográficos de água responsáveis por captar águas pluviais
e as desviar para um dos cursos de água da bacia. Todas as águas da bacia correm para
um exutório único que constitui uma rede de transmissão81.
As águas da bacia tendem a fluir em um sentido único e a formar um sistema
interconectado, que constitui uma unidade física e é parte de um ciclo hidrológico.
Geralmente, a bacia é delimitada na superfície pelas margens naturais. A bacia de
78 Édis MILARÉ, Direito do Ambiente, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, página
653. 79 Ludwik A. TECLAFF, Evolution of the River Basin Concept in National and International Water
Law, Natural Resources Journal, 1996, Volume 36, nº 2, páginas 359 e seguintes, 317 e 370. 80 J. MENDES, Direito Administrativo da Água, in Tratado de Direito Administrativo Especial, Paulo
Otero e Pedro Gonçalves (coordenadores), Volume II, Editora Almedina, 2009, páginas 12 a 131, 18, e
artigo 10º da Diretiva-Quadro da Água. 81 Juliana Cassano CIBIM, O desafio da governança nas bacias hidrográficas transfronteiriças
internacionais: um olhar sobre a Bacia do Rio da Prata, São Paulo, 2012, páginas 25 e 27.
drenagem internacional, a seu turno, é definida como aquela que se estende sobre dois ou
mais estados. Observa-se que o conceito é amplo. Abrange não apenas as águas
superficiais, mas também as subterrâneas que integram o sistema de águas
interconectadas82. A interligação das águas dentro de uma bacia de drenagem faz da bacia
a unidade ideal para se aplicar um regime legal a favor do desenvolvimento das águas83.
LOUKA registra a existência de quatro modelos principais de gestão da água. São
eles: i) modelo da bacia hidrográfica; ii) modelo hidrológico, no qual se pressupõe a
adequação entre o órgão gestor da água e a unidade hidrológica, através de uma
autoridade da bacia; iii) modelo administrativo, no qual as autoridades administrativas
são responsáveis pela gestão dentro da sua esfera de jurisdição; iv) modelo da
colaboração, no qual as várias autoridades com jurisdição sobre uma mesma bacia
colaboram entre si para gerir as respectivas águas84.
Independentemente do modelo adotado, o número de autoridades institucionais
com poder de veto e a existência de uma intensa rede de coordenação entre elas
influenciam no sucesso da gestão. Um aspecto de aprimoramento significativo da gestão
baseada na unidade da bacia hidrográfica, defendido por LOUKA, consiste no
estabelecimento de uma única autoridade por bacia. Mas mesmo nesse modelo é
necessário haver coordenação entre esta autoridade e as autoridades subnacionais que
ditam a política nacional interna do estado85. Se as autoridades nacionais não estiverem
coordenadas com a autoridade da bacia, a política da bacia dificilmente será
implementada, uma vez que ela depende de que todos os estados que integram a mesma
bacia estejam afinados entre si, buscando os objetivos estabelecidos de forma conjunta
para a bacia hidrográfica internacional. É dizer, de nada adianta o estabelecimento de um
plano para a bacia hidrográfica X, se os estados A e B decidem, por conta própria,
construir usinas hidrelétricas e os estados C e D executar de forma unilateral projetos de
irrigação sem considerar os objetivos e projetos da bacia. Nesse sentido, a coordenação
entre os estados A, B, C e D com a autoridade central da bacia é imprescindível para a
boa gestão da bacia hidrográfica internacional.
82 Ludwik A. TECLAFF, Evolution of the River Basin Concept in National and International Water
Law, Natural Resources Journal, 1996, Volume 36, nº 2, páginas 359 e seguintes, 360. 83 Stephen C. MCCAFFREY, International Organizations and the Holistic Approach to Water
Problems, Natural Resources Journal, 1991, Volume 31, páginas 139 e seguintes, 144, disponível em
http://digitalrepository.unm.edu/nrj/vol31/iss1/8, acesso em 19/07/2017. 84 Elli LOUKA, Water Law & Policy, Governance Without Frontiers, Oxford University Press, 2008,
páginas 123, 124 e 131. 85 Elli LOUKA, Water Law & Policy, Governance Without Frontiers, Oxford University Press, 2008,
páginas 131 e 135.
Feitas essas considerações acerca do critério mais adequado de gestão e da
necessidade de integração com outros bens ambientais, questiona-se quais os benefícios
decorrentes da abordagem da bacia hidrográfica como um ecossistema integrado?
O clima, a topografia, a geologia, o solo, a fauna e a flora interagem com o ciclo
hidrológico, que inclui cheias e secas. Qualquer mudança significativa em um desses
fatores, seja natural ou artificial - como por exemplo, a mudança climática global, a
poluição atmosférica ou da terra e a realização de obras de infraestrutura ao longo do
curso de água - provoca reação em todo o sistema através de ajustes de volume,
quantidade de fluxo, descarga, sedimentos e qualidade da água, desembocando em
interferências na água do mar. Os ecossistemas dos cursos de água sofrem impactos
decorrentes das intervenções humanas voltadas para o controle de inundações, produção
de energia, irrigação e demais tipos de usos que provocam alterações artificiais do fluxo86.
Qualquer modificação significativa da água, ainda que pontual, repercutirá em outros
pontos da bacia. Por isso, o uso da unidade natural da bacia como ponto de partida para o
desenvolvimento de políticas do setor estimula a avaliação de impactos mais realista,
considerando toda a sua extensão87.
A bacia hidrográfica fornece o contexto mais útil para se obter cooperação e
acordo entre os estados que compartilham seus cursos de água, visando o
desenvolvimento sustentável88, na medida em que considera todas as águas (superficiais,
subterrâneas, costeiras e interiores) como uma unidade geográfica e hidrológica, bem
como leva em conta o ecossistema adjacente ao qual as águas se associam, os múltiplos
tipos de uso da água e sua relação com os usos do solo. Assim, permite a clara delimitação
das fronteiras da área de abrangência territorial de uma dada bacia, possibilitando o
planejamento e a organização da gestão das águas no nível doméstico ou
transfronteiriço89.
86 Ludwik A. TECLAFF, Evolution of the River Basin Concept in National and International Water
Law, Natural Resources Journal, 1996, Volume 36, n.o 2, páginas 359 e seguintes, 360 e 375. Agenda 21,
Capítulo 18, disponível em http://bd.camara.gov.br, páginas 267 e seguintes. 87 Stephen C. MCCAFFREY, International Organizations and the Holistic Approach to Water
Problems, Natural Resources Journal, 1991, Volume 31, páginas 139 e seguintes, 144, disponível em
http://digitalrepository.unm.edu/nrj/vol31/iss1/8, acesso em 19/07/2017. 88 Stephen C. MCCAFFREY, International Organizations and the Holistic Approach to Water
Problems, Natural Resources Journal, 1991, Volume 31, páginas 139 e seguintes, 163 disponível em
http://digitalrepository.unm.edu/nrj/vol31/iss1/8, acesso em 19/07/2017. 89 Matilde de SOUZA, Franciely Torrente VELOSO, Letícia Britto dos SANTOS e Rebeca Bernardo da
Silva CAEIRO, Governança de recursos comuns: bacias hidrográficas transfronteiriças, Revista
Brasiliera de Política Interancional, Volume 57, N.o 2, 2014, páginas 152-175, 157.
A abordagem sistemática das bacias hidrográficas é apontada como o ponto de
partida para a gestão e a regulação dos cursos de água, diante da interdependência e da
diversidade dos componentes do ciclo hidrológico (águas superficiais, subterrâneas, a
interação água-atmosfera e águas superficiais e marinhas). Nesse sentido, permite
aprofundar a proteção dos ecossistemas associados à bacia hidrográfica, na medida em
que considera todos os bens ambientais envolvidos (água, terra, ar, fauna e flora) e suas
interferências recíprocas de forma holística, favorecendo a manutenção da condição
natural das águas e outros recursos suficientes para assegurar a integridade biológica,
química e física do meio aquático. Nessa linha de raciocínio, também permite a aplicação
de princípios que regem os sistemas dos cursos de água internacionais e as relações entre
a água, outros bens ambientais e as populações afetadas90.
A bacia hidrográfica respeita a unidade do ciclo hidrológico estabelecida pela
própria natureza e por isso apresenta limites mais estáveis do que os das fronteiras
políticas e administrativas criadas artificialmente pelo homem91. A bacia hidrográfica
compõe a fase terrestre desse ciclo e realça a interdependência entre as diferentes águas
que a integram, na medida em que determinada pressão em um certo ponto refletirá em
outra parte da mesma bacia ou até mesmo de uma bacia vizinha conectada
hidrologicamente92.
A Convenção de Nova Iorque perdeu a oportunidade de consolidar expressamente
a adoção do critério da bacia hidrográfica internacional como unidade administrativa de
gestão93, a exemplo da Diretiva-Quadro da Água (2000/60/CE, do Parlamento Europeu e
do Conselho, de 23 de Outubro), no plano regional, que determina a elaboração de um
plano único de gestão por bacia94.
No entanto, a adoção desse critério já se encontrava consagrada pela Convenção
de Helsinque, também das Nações Unidas, de acordo com a qual, “(...) As partes
90 Stephen C. MCCAFFREY, International Organizations and the Holistic Approach to Water
Problems, Natural Resources Journal, 1991, Volume 31, páginas 139 e seguintes, 163, disponível em http://digitalrepository.unm.edu/nrj/vol31/iss1/8, acesso em 19/07/2017. 91 J. G. LAMMERS, Pollution of International Watercourses, A Search for Substantive Rules and
Principles of Law, Holanda, 1984, página 558. 92 J. MENDES, Direito Administrativo da Água, in Tratado de Direito Administrativo Especial, Paulo
Otero e Pedro Gonçalves (coordenadores), Volume II, Editora Almedina, 2009, páginas 12 a 131, 17 e 18. 93 Amparo SERENO ROSADO, Rios que nos separam, águas que nos unem. Análise jurídica dos
Convénios Luso-Espanhóis sobre águas internacionais, Editora Fundação Lex Nova, 2011, páginas 27
e 28. 94 Artigos 2º, nº 15, e 13º.
ribeirinhas devem especificar a bacia hidrográfica ou as partes desta bacia que serão
objeto de cooperação. (...)”95.
A influência do Direito Internacional sobre o direito nacional não é vista com bons
olhos pelos estados. Assim, a previsão de regras extremamente rígidas de proteção das
águas não são bem aceitas pelos estados, que podem incorrer no risco de não serem
executadas.
As Convenções de Helsinque e de Nova Iorque, por questões relacionadas à
dificuldade de adesão, deixaram de prever a obrigação de elaboração de um plano único
de gestão por bacia, o que, além de essencial para a gestão que se pretende efetivamente
integrada e holística, facilita a conciliação entre o desenvolvimento econômico e a
preservação do ambiente96.
Embora a Convenção de Nova Iorque não adote expressamente o critério da bacia
hidrográfica como unidade de gestão97, estimula a gestão conjunta, inclusive mediante a
criação de um mecanismo institucional comum, e, nessa linha, possui orientação
nitidamente voltada aos deveres de diálogo, cooperação internacional mútua, boa
vizinhança e notificação entre os estados do curso de água, Para uma gestão que se
pretenda conjunta, o critério da bacia hidrográfica internacional apresenta-se como o mais
apropriado. Logo, ainda que implicitamente, ao estimular a gestão integrada adota
implicitamente o critério da bacia hidrográfica98.
“Curso de água” é definido pela própria Convenção como “um sistema de águas
de superfície e subterrâneas que, em virtude de sua relação física, constituem um conjunto
unitário e normalmente fluem para uma desembocadura comum.”99. Dessa forma, a opção
pela gestão integrada reflete indiretamente a adoção do critério da bacia hidrográfica
como unidade de gestão, uma vez que pressupõe a realização conjunta, entre todos os
estados do curso de água, de atividades de planejamento, adoção de medidas para
95 Artigo 9º, nº 1. 96 J. MENDES, Direito Administrativo da Água, in Tratado de Direito Administrativo Especial, Paulo
Otero e Pedro Gonçalves (coordenadores), Volume II, Editora Almedina, 2009, páginas 12 a 131, 19 e 20. 97 Embora sua “Parte IV” seja dedicada à “proteção, preservação e gestão” e traga definições importantes,
como de poluição e gestão (artigos 20 a 26). 98 DANTE A. CAPONERA, Principles of Water Law and Administration, National and International,
2ª edição revista e atualizada por Marcella Nanni, Londres, UK, Taylor & Francis Group, 2007, páginas
228 e 229. 99 Artigo 2º, alínea “a”.
execução dos planos adotados e a promoção da utilização racional, proteção e controle
do curso de água100.
A gestão dos cursos de água não se confunde com a gestão da bacia hidrográfica.
Esta última consiste em um subgrupo daquela e deve ser estruturada de acordo com as
necessidades da gestão integrada dos cursos de água. Embora na gestão da bacia
hidrográfica todo o processo seja realizado com base nessa unidade, determinadas
funções vão além do nível da bacia. É o caso, por exemplo, de decisões que afetam
políticas intersetoriais, definição de responsabilidades institucionais e legislação
específica101.
Em que pesem as críticas, observa-se que a Convenção de Helsinque e, ainda que
indiretamente, a Convenção de Nova Iorque, constituem as principais linhas de força
rumo à superação do paradigma de gestão setorizada da água em prol da unidade da bacia.
Isso não impede a inspiração em normas mais detalhadas de direito nacional ou regional
visando ao desenvolvimento do Direito Internacional.
A experiência tem demonstrado que lidar com problemas relacionados aos cursos
de água de forma holística produz melhores resultados do que se limitar às fronteiras
políticas.
A inspiração para o aprimoramento das normas de gestão integrada no plano
internacional pode estar no Direito Regional da União Europeia. Para reduzir a poluição
relacionada à superexploração e evitar conflitos, a Diretiva 2000/60/CE, do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro, prevê a necessidade de integração da gestão
entre os estados-Membros que compartilham uma mesma bacia hidrográfica. Nesse
sentido, os estados-Membros devem elaborar um único plano de gestão por bacia
hidrográfica internacional102, que abranja as águas superficiais e subterrâneas103. Em
relação a estas últimas, o plano deve conter o mapa da localização e dos limites das massas
de água subterrâneas104, já que os limites destas nem sempre coincidem com os das
100 DANTE A. CAPONERA, Principles of Water Law and Administration, National and
International, 2ª edição revista e atualizada por Marcella Nanni, Londres, UK, Taylor & Francis Group,
2007, páginas 228 e 229. 101 Rodrigo MAIA, IWRM and IRBM Approaches: International Rivers, in Making the Passage
through the 21st Century, Water as a Catalyst for Change, Charles Buchanan, Paula Vincente e Evan
Vlachos (editores), Lisboa, 2009, páginas 267 e seguintes, 281 e 282. 102 Artigo 13º da Diretiva 2000/60/CE. 103 Dentre os instrumentos de gestão, a Diretiva 2000/60/CE prevê os deveres de informação e consulta ao
público na elaboração do plano único, de acordo com os artigos 14º e 15º. 104 Anexo VII, item 1.2, da Diretiva 2000/60/CE.
superficiais. Para tanto, os estados-Membros deverão coordenar suas atividades para
monitorar, fixar limites e identificar substâncias perigosas relevantes105.
O Direito Europeu desafia as fronteiras da União Europeia e, nesse particular,
representa um avanço que merece ser seguido também pelo Direito Internacional. Mesmo
no caso de uma região hidrográfica internacional ultrapassar o território dos Estados-
Membros, a Diretiva-Quadro da Água determina que sejam empreendidos esforços para
a elaboração de um único plano de gestão por bacia106. Da mesma forma, a elaboração de
um programa de medidas permite negociar questões cruciais para atingir os objetivos
ambientais. Trata-se de um modelo ideal, defendido pela doutrina moderna especializada,
a ser seguido no plano internacional107.
Dentre os defensores do critério da unidade da bacia, VAN RIJSWICK aponta as
seguintes razões para a gestão dos cursos de água com base nesse critério: os limites da
bacia hidrográfica são fornecidos pela natureza e são bastante permanentes, assim como
as causas de poluição e alagamentos geralmente inserem-se no contexto da bacia.
Ademais, há uma relação entre e o uso da água a montante e a jusante e seus impactos,
bem como os usos e usuários são melhor identificados dentro de uma bacia e o fluxo da
água pode ser previsto e manipulado. Assim, conclui que o critério é adequado para uma
abordagem integral e faz justiça à interação entre o uso da água e o da terra108.
A primeira geração de planos de gestão com base nesse critério representa um
importante exercício de aprendizado sobre gestão de bens ambientais compartilhados,
coleta e troca de dados históricos e informações que possam impactar na gestão, como
níveis de turismo, notificação e consulta sobre novas atividades e projetos. A partir da
reunião de informações sobre todo o contexto da bacia, os estados envolvidos passam a
conhecer melhor e, por conseguinte, gerir melhor os cursos de água109, em uma superação
do paradigma anteriormente estabelecido.
105 16º considerando da Diretiva 2006/118/CE. O desenvolvimento de metodologia fiável, que permita a
comparação de dados, é um relevante instrumento para a monitorização e avaliação da qualidade das águas
subterrâneas, que permite escolher as medidas mais adequadas para atingir o bom estado (17º
considerando). 106 Artigo 13º, nº 3, da Diretiva 2000/60/CE. 107 Ana BARREIRA, Monitoring and Evaluation of the Convention Appliance: Public Involvement
and Participation, in Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos
(editores), Luso-American Foundation, Lisboa, 2003, páginas 451 e seguintes, 461. 108 H. F. M. W. VAN RIJSWICK, Moving Water and the Law on the Distribution of Water Rights and
Water Duties within River Basins in European and Dutch Water Law, Europa Law Publishing,
Groningen, 2008, página 6. 109 Francisco NUNES CORREIA, Closing Remarks, Water as a Catalyst for Change, in Making the
Passage through the 21st Century, Water as a Catalyst for Change, Charles Buchanan, Paula Vincente e
Evan Vlachos (editores), Lisboa, 2009, páginas 375 e seguintes, 380.
VAN RIJSWICK sintetiza essa mudança, ao afirmar que não é apenas a água que
se move, mas também o direito da água, de uma abordagem fragmentada para uma gestão
integrada e sustentável baseada no critério da bacia hidrográfica110.
Feitos esses esclarecimentos, surgem algumas dúvidas acerca do futuro da gestão
baseada na bacia hidrográfica. Diante das vantagens apontadas, a gestão integrada
baseada no critério da bacia hidrográfica ainda encontra resistência ou é amplamente
aceita?
A aceitação do critério da bacia hidrográfica é maior no direito nacional. No plano
internacional, as dificuldades são mais acentuadas, notadamente porque o critério
interfere no uso da terra, na medida em que inclui a “área geográfica” na sua definição.
Isso provoca resistência dos estados em abrir mão da soberania sobre a terra, mesmo por
parte daqueles que adotam esse critério internamente, e dificulta o cumprimento dos
deveres estabelecidos por organismos internacionais de gestão111.
Além disso, considerando que as fronteiras administrativas e políticas não
coincidem com os perímetros hidrográficos dos cursos de água, e que há inúmeras bacias
hidrográficas que ocupam o território de mais de um estado, a adoção da bacia
hidrográfica como unidade de gestão desencadeia um conflito entre a soberania e a
unidade da bacia. A gestão integrada com base nesse critério requer a supressão das
barreiras criadas pelas fronteiras políticas. Uma das maneiras de fazê-lo é através da
celebração de acordos internacionais. Para tanto, FISHER sugere a identificação de
determinadas condições que devem ser satisfeitas para que tais acordos sejam bem
sucedidos e efetivamente implementados, tais como o reconhecimento de que os outros
estados ribeirinhos possuem interesses diversos, porém igualmente legítimos, a serem
tutelados; a observância de determinados princípios, como o da boa-fé, da equidade, da
igualdade, da prioridade de interesses, da prioridade de necessidade e da sustentabilidade;
o conhecimento profundo sobre acontecimentos passados e presentes e previsões futuras
110 H. F. M. W. VAN RIJSWICK, Moving Water and the Law on the Distribution of Water Rights and
Water Duties within River Basins in European and Dutch Water Law, Europa Law Publishing,
Groningen, 2008, páginas 50, 54-55. 111 Ludwik A. TECLAFF, Evolution of the River Basin Concept in National and International Water
Law, Natural Resources Journal, 1996, Volume 36, nº 2, páginas 359 e seguintes, 389. Stephen C.
MCCAFFREY, International Organizations and the Holistic Approach to Water Problems, Natural
Resources Journal, 1991, Volume 31, páginas 139 e seguintes, 144, disponível em
http://digitalrepository.unm.edu/nrj/vol31/iss1/8, acesso em 19/07/2017.
que auxiliem a definição de estratégicas políticas e econômicas; e, por fim, a identificação
de impactos sociais e ambientais112.
Dificuldades são encontradas na gestão de bacias hidrográficas internacionais
relacionadas a estados que apresentam diferentes estruturas institucionais de gestão. Na
América do Sul, apesar do estabelecimento de diálogos sistemáticos entre os órgãos locais
responsáveis pelo gerenciamento das águas no Brasil, Bolívia, Paraguai, Peru e Uruguai,
o referido critério de gestão ainda não é adotado nas políticas de recursos hídricos
paraguaia e boliviana, por exemplo. Nesta última, a gestão é realizada a partir de três
regiões integradas. No Paraguai, existe uma proposta para adotar a bacia hidrográfica
como critério de gestão, ainda não consolidada. As diferenças existentes nos sistemas
internos de gestão constituem obstáculos para a integração entre os estados vizinhos que
compartilham a mesma bacia hidrográfica internacional. Dentre os estados mencionados,
o Brasil é o que apresenta estrutura de gestão mais próxima do modelo ideal, considerados
seis critérios identificados em convenções internacionais, indicadoras de inovação
institucional, quais sejam, integração, participação, descentralização, sistema de
informação, gestão por bacia hidrográfica e valor econômico da água113. Como se pode
perceber, há ainda inúmeros desafios a serem superados.
No capítulo a seguir, será realizada uma análise sobre o princípio da soberania e
da forma como compatibilizá-lo com a gestão integrada baseada na unidade da bacia
hidrográfica internacional.
112 Douglas FISHER, The Law and governance of water resources, The challenge of sustainability,
Cheltenham, UK, Edwar Elgar Publishing Limited, 2009, página 220. 113 Matilde de SOUZA, Franciely Torrente VELOSO, Letícia Britto dos SANTOS e Rebeca Bernardo da
Silva CAEIRO, Governança de recursos comuns: bacias hidrográficas transfronteiriças, Revista
Brasiliera de Política Interancional, Volume 57, N.o 2, 2014, páginas 152-175, 158, 161 e 162.
3. PRINCÍPIOS ORIENTADORES DA GESTÃO DAS BACIAS
HIDROGRÁFICAS INTERNACIONAIS
Critica-se a fragmentação do direito do ambiente e a ausência de um instrumento
obrigatório de aplicação universal que compile os princípios de direito internacional do
ambiente114. Não há um modelo global a ser seguido na gestão integrada das águas.
Particularidades locais e peculiaridades das bacias impedem que isso aconteça, já que as
soluções devem corresponder às necessidades dos estados que as integram, que são
variáveis115. Contudo, é possível identificar princípios aplicáveis de forma universal, que
posam fundamentar o desenvolvimento de regras materiais e procedimentais básicas dos
regimes jurídicos dos cursos de água e que estabeleçam deveres e direitos titularizados
pelos estados da bacia116.
A Convenção de Nova Iorque deu um passo importante no sentido de codificar
princípios gerais de Direito Internacional da Água, propostos em uma conferência aberta
à participação global117. Além de traçarem um caminho viável a ser percorrido nesse
sentido, ditos princípios orientam a promoção e o aprimoramento da governança do setor
para a elaboração de planos de gestão eficazes e compatíveis com as condições locais.
Seu descumprimento enseja o dever de cessar a conduta danosa e reparar os danos
comprovadamente causados118.
Dentre os princípios gerais de Direito Internacional Público, alguns se destacam
devido à importância para a gestão dos cursos de água. São eles os seguintes: i) utilização
equitativa; ii) obrigação de não causar dano significativo; iii) dever de cooperação -
114 Nicolas DE SADELEER, O Estatuto do Princípio da Precaução no Direito Internacional, in
Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo
Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 57 e seguintes,
57. 115 H. F. M. W. VAN RIJSWICK, Moving Water and the Law on the Distribution of Water Rights and
Water Duties within River Basins in European and Dutch Water Law, Europa Law Publishing,
Groningen, 2008, página 3. Tarek MAJZOUB e Fabienne QUILLERÉ-MAJZOUB, Contribution to the
Operationalization of the Principle of Equitable and Reasonable Utilization of International
Watercourses through Jurimetrics, Revue Hellénique de Droit Internactional, Sakkoulas Publications,
Atenas, 2012, páginas 371 e seguintes, 384. Ashok SUBRAMANIAN, Bridget BROWN e Aaron T. WOLF, Understanding and overcoming risks to cooperation along transboundary rivers, Water
Policy, N.o16, 2014, páginas 824-843, 841. 116 Bjorn-Oliver MAGSIG, International Water Law and the Quest for Common Security, Earthscan
Studies in Water Resource Management, Routedge, 2015, página 46. 117 Stephen C. MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of
the U.N. Convention, 1999, páginas 11-19, 16, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017. 118 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 397.
mediante notificação, troca de informações relevantes e consultas119. Esses princípios
serão abordados em tópicos próprios. A citada Convenção foca na transparência e na
alocação equitativa, sem se descuidar da qualidade e da quantidade das águas. Assemelha-
se, portanto, a uma Convenção-Quadro e contém, ainda, normas norteadoras para
negociações de futuros tratados internacionais envolvendo a água, com diretrizes e
parâmetros a serem observados pelos estados que compartilham umas mesma bacia
hidrográfica internacional.
CAPONERA elenca três princípios de direito internacional relativos à gestão de
recursos naturais que são aplicáveis também à gestão dos cursos de água internacionais
compartilhados, quais sejam, i) da responsabilização estatal por atos ilícitos, ii) da
princípio da comunidade de interesses, e iii) da obrigação de cooperar, informar e
consultar120.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, entidade
dedicada à promoção de políticas voltadas ao desenvolvimento econômico e bem-estar
social mundial, identificou que, apesar dos consideráveis avanços atualmente verificados
nas políticas da água, problemas de gestão têm dificultado sua implementação. Assim, a
fim de orientar os governos em seus diversos níveis de administração, prevê que os
princípios da eficácia, eficiência, confiança e compromisso121 devem ser universalmente
seguidos para o aprimoramento da governança nesse setor e assim possibilitar a
concretização de políticas voltadas à preservação e sustentabilidade dos cursos de água.
A eficácia compreende a capacitação para o desempenho das atribuições,
coerência das políticas e coordenação entre setores, escalas apropriadas no quadro de uma
gestão de bacias e atribuição clara de papéis e responsabilidades.
Para melhorar a eficácia, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico sistematizou os seguintes princípios e diretrizes: 1. Atribuir com clareza e de
forma distinta os papéis e responsabilidades entre os vários níveis de governo e entre as
instituições envolvidas na formulação de políticas da água, na sua implementação, na
gestão operacional e na regulação, e promover a coordenação entre as várias autoridades
119 Artigos 5 a 10 da Convenção de Nova Iorque. 120 Dante A. CAPONERA, Principles of Water Law and Administration, National and International,
2ª edição revista e atualizada por Marcella Nanni, Londres, UK, Taylor & Francis Group, 2007, páginas
232-234. 121 ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, Princípios
OCDE para a Governança da Água, páginas 3 e 4, disponível em
http://www.oecd.org/governance/regional-policy/OECD-Principles-Water-Governance-PT.pdf, acesso em
11/01/2016.
responsáveis. É importante definir prioridades na formulação de políticas e, na
implementação dessas políticas, dados e informações devem ser considerados, assim
como o envolvimento das partes interessadas. 2. Gerir a água em sistemas de governança
de bacia com respeito às condições locais e coordenação entre as diferentes escalas, de
maneira a fazer melhor uso dos recursos, prevenir riscos e gerir de forma integrada os
recursos hídricos. Requer a boa gestão do ciclo hidrológico, desde a captação e
distribuição até a rejeição de águas residuais que retornam ao meio natural depois de
utilizadas. 3. Encorajar a coerência das políticas através de uma efetiva coordenação entre
setores, especialmente entre as políticas da água e as do ambiente, saúde, energia,
agricultura, indústria, planejamento territorial e uso do solo. Isso inclui a gestão
coordenada da utilização, proteção e despoluição dos recursos hídricos. 4. Adaptar o nível
de capacitação das autoridades responsáveis à complexidade dos desafios que têm de ser
enfrentados no domínio da água e ao conjunto de competências que são necessárias para
o desempenho das suas obrigações, com enfoque na promoção da educação e qualificação
dos profissionais do setor, reforçando a capacidade das instituições e contribuindo para o
compartilhamento de conhecimento.
A eficiência requer produzir, atualizar e partilhar em tempo útil dados e
informações consistentes e politicamente relevantes e utilizá-los para orientar, avaliar e
melhorar as políticas da água; uso eficiente e transparente dos recursos financeiros;
quadros regulatórios sólidos (já tratados anteriormente) e práticas inovadoras de
segurança.
Já a confiança e o comprometimento da governança da água, por sua vez,
abrangem monitoração e avaliação regular de políticas, compromissos equilibrados entre
utilizadores, entre regiões rurais e urbanas e entre gerações, compromisso das partes
envolvidas, integridade e transparência. Para reforçar o comprometimento, a
Organização propõe a responsabilização dos tomadores de decisão por meio da previsão
de autoridades independentes com atribuições de investigação e aplicação da lei, bem
como estimular a elaboração de códigos de conduta e a fiscalização de sua aplicação.
Propõe, ainda, que sejam especialmente ouvidas as parcelas mais vulneráveis da
sociedade formadas pelos jovens, pobres, mulheres, povos indígenas e usuários
domésticos. A generalização de práticas de integridade e transparência em todas as
políticas, instituições e quadros de governança transmitem confiança nos processos de
decisão, assim como a prestação de contas clara e de fácil compreensão e o combate à
corrupção nas instituições que atuam no setor122.
Nos tópicos a seguir, será realizada uma abordagem crítica aos principais
princípios relacionados com as águas internacionais e como eles podem ser aplicados para
a melhoria da gestão compartilhada entre os estados.
3.1. O PRINCÍPIO DA SOBERANIA TERRITORIAL
O princípio da soberania territorial absoluta assegura ao estado o direito de gerir
com exclusividade os cursos de água situados em seu território, o que implica na
desconsideração de possíveis impactos em relação a terceiros estados. Nesse sentido,
acaba por favorecer estados a montante, tendo em vista o fluxo natural das águas de
montante para jusante. Eventuais restrições devem ser negociadas consensualmente,
porém não podem ser impostas.
A posição geográfica assume papel relevante. Historicamente, o princípio da
soberania territorial absoluta era defendido por estados situados a montante, para fazer
prevalecer o controle completo e exclusivo sobre seus respectivos territórios e os bens
ambientais nele inseridos - é o caso da Áustria e da Índia em relação aos seus respectivos
vizinhos123. Estados a jusante sofrem a maioria dos impactos, que são provocados a
montante e fluem através do curso de água, transcendendo fronteiras. Por isso, a postura
dos estados na solução de conflitos no plano internacional varia de acordo com a posição
geográfica em relação ao curso de água124.
O princípio da soberania permite aos estados, dentro dos limites do direito
internacional, a exploração dos recursos naturais situados em seu território de acordo com
122 ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, Princípios
OCDE para a Governança da Água, páginas 9-12, disponível em
http://www.oecd.org/governance/regional-policy/OECD-Principles-Water-Governance-PT.pdf, acesso em
11/01/2016 123 Paulo Canelas de CASTRO, Sinais de (nova) Modernidade no Direito Internacional da Água, in Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 101 e seguintes, 108 e 109.
Jutta BRUNÉE, The Challenge to International Law: Water Defying Sovereignty or Sovereignty
Defying Reality?, in Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 51 e
seguintes, 53. 124 Sinval NEVES SANTOS, O compartilhamento das águas transfronteiriças superficiais: um
subsistema da ordem ambiental internacional, Trabalho apresentado no II Encontro da ANPPAS,
Indaiatuba/SP, 2004, disponível em
http://www.anppas.organizadoresbr/encontro_anual/encontro2/GT/GT13/sinval_neves.pdf, acesso em
01/11/2016, página 8.
suas normas internas, livre de interferências externas, ainda que causem danos ao seu
próprio ambiente.
Os conflitos surgem quando da exploração unilateral de cursos de água
internacionais decorre poluição que também cruza fronteiras. Acidentes industriais,
despejo de resíduos, ausência de esgotamento sanitário adequado e outras formas de
poluição são comuns na fronteira. Crescimento da população, urbanização desorganizada,
e industrialização rápida aumentam a pressão sobre os cursos de água e intensificam os
conflitos.
No caso específico do México e dos Estados Unidos da América, esses fatores são
agravados por diferenças econômicas e políticas. Apesar de os dois estados terem
legislações ambientais desenvolvidas, o seu cumprimento não ocorre da mesma forma em
ambos os lados da fronteira. Do lado mexicano, as indústrias despejam resíduos sem
tratamento e os municípios não realizam a coleta e o despejo adequados do esgoto urbano
e industrial em cursos de água que fluem para o estado norte-americano125.
Nos Estados Unidos da América se desenvolveu a Doutrina Harmon - nome do
Procurador-Geral norte-americano conhecido por ter feito prevalecer a vontade soberana
dos Estados Unidos da América face ao México, no conflito envolvendo o Rio Grande,
em 1895. Valendo-se da posição a montante, os Estados Unidos da América prejudicaram
o direito de o México, a jusante, usufruir daquele curso de água compartilhado entre os
dois estados126.
A Doutrina Harmon privilegia o princípio da soberania territorial absoluta, ao
defender que o estado utilize os bens ambientais situados no interior do seu território de
forma irrestrita, ainda que tal uso provoque danos significativos aos estados vizinhos127.
O Rio Bravo, que constitui a fronteira entre os estados-Unidos da América e o
México, é um exemplo de como a adoção dessa doutrina pode acirrar conflitos entre
estados que compartilham bacias hidrográficas internacionais. Prevalecendo-se de sua
posição a montante em relação aos cursos de água transfronteiriços que percorrem seu
território, os Estados-Unidos da América realizaram obras de desvio desse curso de água
125Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, páginas 428 e 429. 126 Paulo Canelas de CASTRO, Sinais de (nova) Modernidade no Direito Internacional da Água, in
Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 101 e seguintes, 108 e 109.
Jutta BRUNÉE, The Challenge to International Law: Water Defying Sovereignty or Sovereignty
Defying Reality?, in Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 51 e
seguintes, 53. 127 P. GLEICK, Water and Conflict: Fresh Water Resources and International Security, International
Security, Volume 18, nº 1, 1993, páginas 79 a 112, 106.
para o desenvolvimento da irrigação, o que causou prejuízos aos agricultores do outro
lado da fronteira. A mesma postura foi adotada pelo estado norte-americano em relação
ao Rio Colorado, também compartilhado com o México. Nas relações com o Canadá, no
entanto, houve influência da International Water Comission, que orientou a celebração
do Boundary Water Treaty, em 1909. Este acordo, além de criar a International Joint
Comission, estabeleceu o dever de observância do princípio do uso equitativo,
solucionando conflitos envolvendo ambos os estados ribeirinhos128.
A doutrina Harmon foi aplicada pelos Estados Unidos da América até o ano de
1944, quando foi firmado um tratado com o México para a utilização das águas dos rios
Colorado, Grande e Tijuana. Embora naquela época ainda não houvesse preocupação com
o estabelecimento de princípios e obrigações claros, relacionados com a qualidade e a
regulação da poluição transfronteiriça, o Tratado de 1944 representou um passo para a
pacificação de conflitos na fronteira, notadamente através da criação de uma comissão
internacional com autoridade para decidir conflitos envolvendo poluição das águas
transfronteiriças. Atribuições para planejar, construir e gerir projetos relacionados com a
água transfronteiriça, aprofundar acordos de cooperação da água, iniciar investigações e
decidir disputas129.
O desenvolvimento do Direito Internacional do Ambiente e a consolidação de
princípios relacionados à redução da poluição transfronteiriça e à proteção das águas
refletiram nas relações entre México e Estados Unidos da América. Assim, acordos mais
recentes firmados entre os dois estados demonstram a preocupação com questões
ambientais e o desenvolvimento da gestão conjunta das águas compartilhadas entre os
dois estados. Nessa linha, contemplam deveres de controlar a poluição transfronteiriça da
água, mediante a adoção de medidas capazes de reduzir ou eliminar fontes de poluição
que afetem o território de outro estado, bem como de adotar medidas conjuntas para
solucionar problemas ambientais comuns, monitorar atividades potencialmente poluentes
e compartilhar toda informação obtida durante o monitoramento, além de avaliar os
potenciais impactos de novos projetos bem como daqueles já em execução130.
128 Amparo SERENO ROSADO, O Regime Jurídico das Águas Internacionais. O Caso das Regiões
Hidrográficas Luso-Espanholas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, páginas 105-109. 129Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, páginas 429 e 430. 130Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, páginas 430 e 432.
Outros exemplos de conflitos decorrentes da adoção do princípio da soberania
territorial absoluta por estados a montante são encontrados em diversas partes do mundo,
como aqueles envolvendo Áustria e Bavária (Rio Drava), Chile e Bolívia (Rio Mauri),
Sudão e Egito (Represa Aswan) e Índia e Paquistão (Rio Ganges).
No caso do Rio Ganges, a Índia inicialmente adotou o modelo unilateral de
segmentação territorial, no sentido de que ambos os estados teriam direito absoluto de
gerir e usufruir com exclusividade as águas que fluem por seus respectivos territórios.
Esse posicionamento era claramente benéfico para a Índia, que se situa a montante,
prejudicando seu vizinho Paquistão. O clímax do conflito foi a construção de uma
barragem pela Índia a aproximadamente 22 quilômetros da fronteira com o Paquistão.
Anos mais tarde, após duras negociações, a Índia reviu seu posicionamento e as partes
firmaram um acordo no âmbito das Nações Unidas, que posteriormente deu origem ao
Tratado sobre o Compartilhamento das Águas do Rio Ganges, de 1996.
A própria experiência da Convenção de Nova Iorque é um exemplo de como ainda
prevalece a primazia dos interesses nacionais no caso concreto. Não obstante 151 estados
tenham votado a favor da sua adoção, apenas 12 se tornaram efetivamente parte dessa
Convenção131, não obstante as duras e prolongadas negociações para chegar ao seu texto
final. Tal postura demonstra que ainda impera uma cultura de conservadorismo em
assuntos relacionados ao compartilhamento de águas internacionais e que o receio de abrir
mão de parcela da soberania sobre bens ambientais permanece sendo uma realidade na
comunidade internacional na assunção de deveres em face de demais estados.
A partir do período pós grandes guerras, contudo, o princípio da soberania
territorial absoluta perdeu aplicabilidade, não tendo mais sido aceita pela jurisprudência
internacional132. Apesar dos esforços de alguns estados interessados em defendê-lo, a
necessidade de compartilhamento e proteção da água exige que o referido princípio ceda
frente a outras obrigações internacionais, visando o aprimoramento da gestão das bacias
hidrográficas internacionais para assegurar que todos terão acesso aos seus cursos de
água.
131 Sinval NEVES SANTOS, O compartilhamento das águas transfronteiriças superficiais: um
subsistema da ordem ambiental internacional, Trabalho apresentado no II Encontro da ANPPAS,
Indaiatuba/SP, 2004, página 14, disponível em
http://www.anppas.organizadoresbr/encontro_anual/encontro2/GT/GT13/sinval_neves.pdf, acesso em
01/11/2016. 132 Amparo SERENO ROSADO, O Regime Jurídico das Águas Internacionais. O Caso das Regiões
Hidrográficas Luso-Espanholas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, página 111.
O aumento da disputa pela água escancarou o paradoxo envolvendo a soberania
sobre os cursos de água. Como geri-las unilateralmente, se elas não aceitam controle nem
respeitam os limites territoriais impostos pelo homem? A água reflete um verdadeiro
desafio à ideia de soberania. Se os cursos de água se movem ao longo de toda a bacia
hidrográfica, ultrapassando fronteiras territoriais, como é possível aceitar a existência de
controle exclusivo por parte de qualquer estado133?
Esses questionamentos têm provocado mudanças na forma de encarar a soberania,
destituindo-a de qualquer status negativo. Nessa linha, não deve constituir uma base legal
para exclusão de interferências internacionais, mas interpretada como um alicerce para a
inclusão e o comprometimento em prol da cooperação e do bem estar da comunidade
internacional como um todo134.
Não há qualquer inconsistência entre a noção de soberania e a ideia de que os
estados devem respeitar os direitos dos demais estados que compartilham um curso de
água internacional. Os direitos dos outros estados não são menos legítimos do que aqueles
que invocam a soberania para defender seus próprios interesses. Todos os estados têm
interesses igualmente soberanos e legítimos. Por essa razão, atualmente a maioria dos
estados rejeita a ideia da soberania territorial absoluta em relação aos cursos de água
internacionais, fato que refletiu na ausência de defesa desse princípio durante as
negociações que envolveram a Convenção de Nova Iorque135.
A Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas não reconhece a
soberania sobre cursos de água compartilhados como princípio de direito internacional.
No caso Gabčíkovo-Nagymaros, a Corte Internacional de Justiça referiu-se ao direito
básico dos estados a uma parcela equitativa e razoável dos recursos de um curso de água
internacional136. O reconhecimento desse direito é incompatível com a afirmação de que
os estados têm soberania absoluta sobre a parcela dos cursos de água internacionais que
banham o seu território. Esse raciocínio torna-se mais claro quando se pensa em aquíferos.
133 Jutta BRUNÉE, The Challenge to International Law: Water Defying Sovereignty or Sovereignty
Defying Reality?, in Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 51 e
seguintes, 53 e 54. José Manuel PUREZA e Paula Duarte LOPES, A Água, entre a Soberania e o interesse
comum, in Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 85 e seguintes, 88. 134 David FREESTONE e Ellen HEY, Implementando o Princípio da Precaução: Desafios e
Oportunidades, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau
(organizadores), Coleção Direito Ambiental em Debate, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério
Público da União, páginas 202 e seguintes, 203. 135 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 339. 136 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso Gabčíkovo-Nagymaros, Hungria versus Eslováquia,
25 de setembro de 1997, disponível em: http://www.icjcij.org, acesso em 29/08/2017.
Embora os estados possam reivindicar a soberania sobre as rochas - que são estáticas e
formam os aquíferos, não o podem fazer em relação às águas que se movem entre elas e
fluem entre os estados da bacia137.
Nessa linha, verifica-se que o direito soberano de exploração dos cursos de água
encontra-se indissociado da obrigação de não causar danos ao ambiente de outros estados
igualmente soberanos. E encontra-se expressa no Princípio 21 da Declaração de
Estocolmo e reafirmada no Princípio 2 da Declaração do Rio de 1992, de acordo com os
quais, “os estados têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos em aplicação
de sua própria política ambiental e a obrigação de assegurar-se de que as atividades que
se levem a cabo, dentro de sua jurisdição, ou sob seu controle, não prejudiquem o meio
ambiente de outros estados ou de zonas situadas fora de toda jurisdição nacional” 138.
Contrapondo-se ao princípio da soberania absoluta, o princípio da integridade
territorial absoluta fundamenta a inadmissibilidade de qualquer mudança unilateral que
prejudique o regime dos cursos de água em seu território e a necessidade de
consentimento prévio, embora também haja situações em que outros interesses levem ao
afastamento deste princípio139.
Assim, o princípio da integridade territorial absoluta favorece os estados a jusante,
na medida em que proíbe que a utilização dos cursos de água pelos estados situados a
montante provoque danos aos demais estados da bacia, assegurando-se a integridade
absoluta dos cursos de água até sua desembocadura final.
Conforme dito linhas acima, por se situarem próximos às nascentes, os estados a
montante aparentam estar em uma posição geográfica mais vantajosa e que lhes permite
utilizar os cursos de água antes que cheguem ao plano mais baixo da bacia. Contudo, isso
nem sempre ocorre. A topografia geralmente menos acentuada da parte mais baixa da
bacia favorece a irrigação e a urbanização nos estados a jusante. Consequentemente, o
137 Stephen C. MCCAFFREY, Politics And Sovereignty Over Transboundary Groundwater, 2008, página 354. 138 Philippe SANDS e Jacqueline PEEL, Principles of International Environmental Law, 3.ª edição,
Cambridge, Cambridge University Press, 2012, páginas 235 e 236, disponível em
https://books.google.pt/books?id=uHzFRub4KrAC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false, acesso em 17/02/2016. Dante A.
Caponera, Principles of Water Law and Administration, National and International, 2ª edição,
Londres, 2007, páginas 232-234. 139 J. G. LAMMERS, Pollution of International Watercourses, A Search for Substantive Rules and
Principles of Law, Holanda, 1984, página 361.
consumo pode ser maior nessa área do que na nascente, dependendo das características
do relevo140.
O exemplo mais citado pela doutrina relativo ao princípio da integridade territorial
absoluta refere-se à bacia do Rio Nilo. Embasado em um tratado local, o Egito e o Sudão
– a jusante – invocam o referido princípio contra a realização de obras hidráulicas na
Etiópia, prejudicando a irrigação e o abastecimento de água potável para a população
etíope141. Por conferir poder de veto excessivo e que pode legitimar abusos por parte dos
estados a jusante e afrontar a equidade, o princípio da integridade territorial absoluta
também não encontra aceitação unânime na doutrina e na jurisprudência.
É o que se observa dos julgamentos do Caso do Lago Lanoux e do Caso do Rio
Mosa. Extrai-se dos referidos casos julgados que a limitação ao exercício da soberania
sobre bens ambientais somente se justifica diante da comprovação de danos significativos
aos estados situados a jusante na bacia hidrográfica internacional. Logo, o princípio da
integridade territorial absoluta também não deve ser aplicado de forma indistinta e
absoluta como pretendido por alguns estados a jusante em negociações envolvendo
projetos unilaterais. Em ambos os conflitos, decidiu-se pela legitimidade da utilização
dos cursos de água pelos estados a montante, diante da ausência de comprovação de
danos, como poluição ou alteração das características naturais das águas a jusante. Isso
porque o princípio da integridade territorial absoluta, além de criar uma grande diferença
de oportunidades de uso da água entre os estados ribeirinhos, também impõe
injustificadas restrições ao uso dos cursos de água142.
Como se pode perceber, os princípios da soberania territorial absoluta e o da
integridade territorial absoluta são invocados pelos estados conforme seus interesses.
Contudo, ambos encontram resistência em razão da imposição de sacrifícios
desarrazoáveis.
Além disso, não é possível classificar os estados da bacia apenas em virtude de
sua localização a jusante ou a montante, uma vez que geralmente as águas da bacia fluem
140 Joseph W. DELLAPENNA, Rivers as Legal Structures: The Examples of the Jordan and the Nile,
Natural Resources Journal, Volume 36, 1996, páginas 217-250, 245 e 246. 141 Aurora SWANSON, The Grand Ethiopian Renaissance Dam: Sustainable Development or Not?,
Arlington, 2014, página 6, disponível em www.cligs.vt.edu, acesso em 27/04/2017. 142 Amparo SERENO ROSADO, O Regime Jurídico das Águas Internacionais. O Caso das Regiões
Hidrográficas Luso-Espanholas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, página 112-114. J. G.
LAMMERS, Pollution of International Watercourses, A Search for Substantive Rules and Principles
of Law, Holanda, 1984, página 562. Vitória PONTES, O princípio da utilização equitativa e razoável e
a sua aplicação na gestão dos cursos de água internacionais, in Temas de Direito da Água, João Cunha
Miranda, Rui Cunha Marques, Ana Luísa Guimarães e Mark Kirkby (coordenadores), Instituto de Ciências
Jurídico-Políticas, Lisboa, 2017, páginas 182 e seguintes, 193.
por mais de dois estados e, portanto, há estados “intermediários” que podem não se
beneficiar da adoção de qualquer dessas posições extremas. É o caso da bacia do Rio
Nilo. Por essa razão, vem se solidificando cada vez mais, em virtude do equilíbrio que
propõe, o princípio da soberania territorial limitada143.
Os cursos de água constituem uma fonte para a vida e para inúmeras atividades
humanas e, portanto, devem ser racionados entre aqueles que compartilhem a mesma
bacia. O direito de utilizar livremente os cursos de água que percorrem o território de um
estado é tão absoluto quanto o direito dos estados a jusante de não aceitarem a
deterioração de suas águas em virtude de ações praticadas no território de outros estados.
Mas certamente tal direito não pode ser exercido de forma a inviabilizar interesses
igualmente dos estados a jusante. Por outro lado, não parece razoável que os estados a
jusante possam exigir que o curso de água chegue até seu território intacto. Essa foi a
linha de raciocínio utilizada pela Suprema Corte Norte-Americana no início do século
XX em decisões envolvendo conflitos internos, contrariando a Doutrina Harmon,
defendida pelos Estados Unidos da América no plano internacional. Rejeita ambos os
princípios da soberania territorial absoluta e da integridade territorial absoluta e
reconhece que tanto os estados a montante quanto os a jusante têm interesses legítimos
em relação aos cursos de água internacionais que percorrem seus territórios e que devem
ser conciliados da melhor forma possível. Não se trata de uma disputa na qual um sai
como vencedor e o outro como vencido de maneira absoluta. O objetivo a ser alcançado
é assegurar a repartição equitativa e encontrar o equilíbrio que resultem no menor dano
possível para cada um dos estados envolvidos ou, alternativamente, que haja alguma
forma de compensação para o maior prejudicado144.
Os princípios da soberania territorial absoluta e o da integridade territorial
absoluta nunca foram aceitos de forma geral e uniforme. Mesmo os estados que os
invocam, o fazem em situações nas quais são claramente beneficiados. Porém, os rejeitam
naquelas em que podem sofrer impactos devido à sua posição a jusante, conforme se pode
verificar no exemplo do Rio Jordão.
O Rio Jordão, localizado no Oriente Médio – uma região marcada pela escassez
de água, é compartilhado entre Israel, Jordânia, Líbano, Síria e Palestina. No vale do
143 Bjorn-Oliver MAGSIG, International Water Law and the Quest for Common Security, Earthscan
Studies in Water Resource Management, Routedge, 2015, página 47. 144 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 326 e 327.
Jordão, é possível observar nitidamente o contraste entre o padrão de comportamento dos
estados a montante, que reclamam o princípio da soberania territorial absoluta com
liberdade para fazer o que bem entender com as águas que banham seu território, e o dos
estados a jusante, que defendem a aplicação do princípio da integridade territorial
absoluta, no sentido de que os estados a montante não podem utilizar os cursos de água
de forma a afetar a quantidade e a qualidade das águas que fluem para jusante. A solução
passa pelo desenvolvimento do princípio da soberania territorial limitada, que pressupõe
que a bacia hidrográfica é uma unidade de gestão, na qual cada estado tem direito a uma
parcela equânime do curso de água. Por se tratar de um princípio intermediário, favorece
principalmente estados em posição intermediária na bacia, isto é, a jusante ou a montante
dependendo da localização geográfica do outro estado145.
Como se pode perceber, o princípio da soberania territorial limitada procura
conciliar interesses legítimos dos estados envolvidos, sem que um prevaleça de forma
absoluta sobre o outro146, e por isso tem encontrado maior aceitação147.
O caso do Rio Mosa reflete a mitigação do princípio da soberania territorial nas
relações internacionais entre estados que compartilham cursos de água e realça a
interdependência entre eles.
O Rio Mosa flui pela Bélgica e pela Holanda. Em 1930, a Bélgica efetuou obras
de desvio de água do Rio Mosa para abastecimento do canal de Albert, que estava sendo
construído sem o consentimento da Holanda. Por sua vez, a Holanda alegou contrariedade
ao tratado firmado entre as partes em Hague, em 12 de maio de 1863, ao fundamento de
que tinha direito de supervisionar os planos de desvio da Bélgica e que o montante
ultrapassava a quantidade de água alocada para aquele estado nos termos do tratado. Em
28 de junho de 1937, a Corte Internacional de Justiça decidiu que as obras eram regulares
e que não havia violação ao tratado e que as partes têm o direito de usar regularmente os
canais que estejam integralmente situados em seus territórios, seja alargando-os,
transformando-os e até mesmo aumento seu volume a partir de novas fontes. No entanto,
de acordo com a referida Corte, os estados são soberanos para explorar e utilizar os
145 Joseph W. DELLAPENNA, Rivers as Legal Structures: The Examples of the Jordan and the Nile,
Natural Resources Journal, Volume 36, 1996, páginas 217-250, 228 a 230. 146 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, página 274. 147 Bjorn-Oliver MAGSIG, International Water Law and the Quest for Common Security, Earthscan
Studies in Water Resource Management, Routedge, 2015, página 47. Vitória PONTES, O princípio da
utilização equitativa e razoável e a sua aplicação na gestão dos cursos de água internacionais, in Temas
de Direito da Água, João Cunha Miranda, Rui Cunha Marques, Ana Luísa Guimarães e Mark Kirkby
(coordenadores), Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, Lisboa, 2017, páginas 182 e seguintes, 195.
recursos hídricos situados em seu respectivo território, desde que não provoquem danos
a outros estados, isto é, o nível e o fluxo dos cursos de água não devem ser afetados148.
Trata-se da aplicação da regra geral sic utere tuo ut alienum non laedas. Assim, a Corte
reconheceu a existência de uma limitação à soberania, ao impor a proibição de exploração
ou utilização do território de forma a violar direitos dos vizinhos149.
A decisão da Corte Internacional de Justiça é digna de elogios por ter reconhecido
a existência de uma limitação ao exercício da soberania, ao admitir a responsabilização
pela provocação de danos ambientais a terceiros estados. Por outro lado, embora tenha
enfraquecido o dever de diálogo, cooperação e coordenação internacional, ao permitir a
continuidade das obras de desvio de águas do Mosa sem o consentimento do estado
vizinho, reconheceu o direito da Holanda de supervisioná-las150.
3.2. O PRINCÍPIO DA INTEGRAÇÃO
Observa-se no direito internacional a superação do modelo de política setorizada
e a evolução para o desenvolvimento de mecanismos de gestão dos cursos de água
integrados e sustentáveis.
A gestão integrada da água é definida pela Global Water Partnership “como um
processo sistemático para o desenvolvimento, alocação e monitoramento sustentável dos
recursos hídricos nos contextos social, econômico e ambiental”151. A Convenção de Nova
Iorque define “gestão” como “o planejamento para o desenvolvimento sustentável de um
curso de água internacional e a adoção das medidas correspondentes para a execução dos
planos adotados; e a promoção por qualquer outro meio da utilização racional e ótima, a
proteção e o controle do curso de água”152.
148 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso do Rio Mosa, Holanda versus Bélgica, 28 de junho
de 1937, disponível em http://www.icj-cij.org/pcij/serie_AB/AB_70/01_Meuse_Arret.pdf, acesso em
05/01/2016. 149 Douglas FISHER, The Law and governance of water resources, The challenge of sustainability,
Cheltenham, UK, Edwar Elgar Publishing Limited, 2009, páginas 115-117. 150 Stephen C. MCCAFFREY, Second report on the law of the non-navigational uses of international
watercourses, Yearbook of the International Law Commission, 1986, Volume II, páginas 87 e seguintes,
114 e 115. 151 Fonte: Global Water Partnership, http://www.gwp.org/Global/GWP-
SAm_Files/Publicaciones/Sobre%20GIRH/Manual-Cap-Net-en-portugues-Marzo-2008.pdf, acesso em
21/07/2016. Rodrigo MAIA, IWRM and IRBM Approaches: International Rivers, in Making the
Passage through the 21st Century, Water as a Catalyst for Change, Charles Buchanan, Paula Vincente e
Evan Vlachos (editores), Lisboa, 2009, páginas 267 e seguintes, 268. 152 Artigo 24, §2º, “a” e “b”.
O conceito de “gestão” não se restringe ao desenvolvimento dos cursos de água
sob o aspecto econômico. Abrange a concepção dos cursos de água como componente
ambiental de um ecossistema no qual se encontra inserido e, nesse sentido, o
desenvolvimento da conscientização sobre a necessidade de preservação dos cursos de
água como forma de assegurar um ambiente saudável e equilibrado para as gerações
presentes e futuras. A seu turno, a “integração” pressupõe a abordagem conjunta dos
múltiplos usos dos cursos de água e dos bens ambientais associados no processo de
planejamento e a consideração de que a água, além de um recurso natural, é parte
integrante do ecossistema153.
A “gestão realista das águas”154 transparece uma “revolução azul” 155 que
demanda também a existência de diálogo entre tomadores de decisões e formuladores de
políticas públicas do setor156.
A Global Water Partnership sistematizou três objetivos estratégicos chave, ou
pilares da gestão integrada, conhecidos como os três “E`s”, que são a eficiência, a
equidade e a sustentabilidade ambiental. Eficiência para assegurar que a água, enquanto
recurso, dure o máximo possível e atinja os mesmos resultados da melhor forma157,
equidade na alocação da água entre os grupos socioeconômicos e sustentabilidade
ambiental para proteger a água como um bem integrante do ecossistema158.
A discussão levada a cabo na Conferência das Nações Unidas de 1992 reflete a
evolução da concepção da gestão da água. Após os debates, assentou-se que a gestão
integrada pressupõe a água como “uma parte integral do ecossistema, um recurso natural
e um bem econômico, cuja qualidade e quantidade determinam a natureza de sua
153 Rodrigo MAIA, IWRM and IRBM Approaches: International Rivers, in Making the Passage
through the 21st Century, Water as a Catalyst for Change, Charles Buchanan, Paula Vincente e Evan
Vlachos (editores), Lisboa, 2009, páginas 267 e seguintes, 268. 154 Paulo Canelas de CASTRO, Sinais de (nova) Modernidade no Direito Internacional da Água, in
Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 101 e seguintes, 118. 155 Paulo Canelas de CASTRO, Sinais de (nova) Modernidade no Direito Internacional da Água, in
Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 101 e seguintes, 118. 156 Andreas KRAEMER, Governing Water, International Law Development, The Principle of
Subsidiarity, in Making the Passage through the 21st Century, Water as a Catalyst for Change, Charles
Buchanan, Paula Vincente e Evan Vlachos (editores), Lisboa, 2009, páginas 233 e seguintes, 234. 157 GLOBAL WATER PARTNERSHIP, Catalyzing Change: Handbook for Developing IWRM and
Water Efficiency Strategies, nº 1, 2004, página 32, disponível em
http://www.gwp.org/Global/ToolBox/Publications/Catalyzing%20Change%20Handbook/01%20Catalyzi
ng%20Change.%20Handbook%20for%20developing%20IWRM%20and%20water%20efficiency%20stra
tegies%20(2004)%20English.pdf, acesso em 22/07/2016. 158 Fonte: http://www.gwp.org/en/ToolBox/ABOUT/IWRM-Plans/, acesso em 21/07/2016. Rodrigo
MAIA, IWRM and IRBM Approaches: International Rivers, in Making the Passage through the 21st
Century, Water as a Catalyst for Change, Charles Buchanan, Paula Vincente e Evan Vlachos (editores),
Lisboa, 2009, páginas 267 e seguintes, 269.
utilização”159. Nessa linha, os cursos de água devem ser protegidos levando em
consideração a perenidade e a funcionalidade dos ecossistemas aquáticos, de forma a
permitir a conciliação e a satisfação dos diferentes tipos de usos160.
A indivisibilidade da água e a interdependência entre as bacias, constituídas umas
a partir das outras por meio de interligações complexas, realça os desafios da gestão
integrada161.
Por abranger todos os elementos dos ecossistemas associados na manutenção da
biodiversidade e de habitats de reprodução das espécies, a gestão baseada na bacia de
drenagem apresenta-se como o melhor caminho para a integração dos cursos de água com
os demais bens ambientais162. Ela reconhece o papel fundamental exercido pelos
diferentes sistemas que integram um todo, como por exemplo, o sistema estuarino, o qual,
embora apresente vulnerabilidade ecológica, é dotado de relevante valor por ser o local
onde acontecem as principais interações entre os processos naturais e a pressão antrópica,
na interface entre as bacias hidrográficas e sua respectiva zona costeira163.
A proteção dos cursos de água internacionais é constantemente objeto de
discussões doutrinárias e documentos internacionais. Vem acompanhada da
conscientização acerca da necessidade de proteger também os ecossistemas integrados
pelos cursos de água, expressa no Capítulo 18 da Agenda 21. De acordo com o referido
dispositivo, “os recursos de água doce constituem um componente essencial da hidrosfera
da Terra e parte indispensável de todos os ecossistemas terrestres”. Extrai-se desse
159 NAÇÕES UNIDAS, Protection Of The Quality And Supply Of Freshwater Resources: Application
Of Integrated Approaches To The Development, Management And Use Of Water Resources, Conference on Environment and Development, Agenda 21, disponível em http://www.un-
documents.net/a21-18.htm, acesso em 18/03/2017. Ludwik A. TECLAFF, Evolution of the River Basin
Concept in National and International Water Law, Natural Resources Journal, 1996, Volume 36, nº 2,
páginas 359 e seguintes, 380. 160 NAÇÕES UNIDAS, Protection Of The Quality And Supply Of Freshwater Resources: Application
Of Integrated Approaches To The Development, Management And Use Of Water Resources,
Conference on Environment and Development, Agenda 21, disponível em http://www.un-
documents.net/a21-18.htm, acesso em 18/03/2017. 161 Andreas KRAEMER, Governing Water, International Law Development, The Principle of
Subsidiarity, in Making the Passage through the 21st Century, Water as a Catalyst for Change, Charles
Buchanan, Paula Vincente e Evan Vlachos (editores), Lisboa, 2009, páginas 233 e seguintes, 240 e 248. Paulo Canelas de CASTRO, Sinais de (nova) Modernidade no Direito Internacional da Água, in Nação
e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 101 e seguintes, 118. 162 NAÇÕES UNIDAS, Protection Of The Quality And Supply Of Freshwater Resources: Application
Of Integrated Approaches To The Development, Management And Use Of Water Resources,
Conference on Environment and Development, Agenda 21, disponível em http://www.un-
documents.net/a21-18.htm, acesso em 18/03/2017. 163 Maria da Graça SARAIVA, Gestão ambiental de sistemas fluviais, aplicação à bacia hidrográfica
do Rio Sado, Ilídio Moreira, Maria da Graça Saraiva e Francisco Nunes Correia (editores), ISAPress, 2004,
páginas 23-40, 26.
documento que os cursos de água não constituem um bem ambiental isolado, mas que
integra um ecossistema maior, para cujo funcionamento sua preservação é vital e vice-
versa.
Trata-se de uma percepção do ecossistema como um todo, integrado pelos cursos
de água164, que desconsidera a existência de fronteiras políticas para abranger todo o
contexto no qual a bacia hidrográfica se encontra inserida165. Considera as bacias
hidrográficas internacionais como ecossistemas transfronteiriços, a exemplo do que se
verificou na União Europeia com a Diretiva-Quadro da Água – inspiração para o direito
internacional do ambiente166.
No entanto, problemas como o intenso crescimento da população, o aumento da
quantidade e do modo de consumo, assim como determinados métodos de produção e de
gestão dos cursos de água afetam sensivelmente a biodiversidade aquática e são
responsáveis por doenças relacionadas à água, introduzidas por novas bactérias, fungos,
protozoários e mosquitos167.
A presença de uma comunidade rica em biodiversidade indica que o ambiente
também é sadio para a vida humana. A diminuição da presença de algumas espécies da
fauna e flora abre espaço para a entrada de outras alienígenas, o que altera a cadeia
alimentar e todo o funcionamento do ecossistema, facilitando invasões biológicas
indesejadas, com reflexos negativos sobre as expectativas econômicas locais. Foi o que
ocorreu no Mar Báltico a partir de 1790. Da mesma forma, a transposição de cursos de
água permite o deslocamento de espécies que invadem os ecossistemas de destino,
ameaçando as espécies locais. Nesse sentido, medidas de controle e prevenção de
deslocamentos devem ser adotadas especificamente para cada projeto de transposição168.
164 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 382. 165 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, páginas 399-400. 166 H. JEKEL, Sustainable Water Management in Europe – The Water Framework Directive, in
Transboundary Water Resources: Strategies for Regional Security and Ecological Stability, Hartmut
Vogtmann e Nikolai Dobrestov (editores), Earth and Environment Science, Volume 46, Rússia, 2003, páginas 121 e seguintes, 123. 167 R. KINZELBACH, Nature Conservation And Sustainable Management Of Biodiversity, in
Transboundary Water Resources: Strategies for Regional Security and Ecological Stability, Hartmut
Vogtmann e Nikolai Dobrestov (editores), Earth and Environment Science, Volume 46, Rússia, 2003,
páginas 109 e seguintes, 109, 110 e 115. 168 R. KINZELBACH, Nature Conservation And Sustainable Management Of Biodiversity, in
Transboundary Water Resources: Strategies for Regional Security and Ecological Stability, Hartmut
Vogtmann e Nikolai Dobrestov (editores), Earth and Environment Science, Volume 46, Rússia, 2003,
páginas 109 e seguintes, 114-115.
Por isso, é preciso coordenar a gestão dos cursos de água e da biodiversidade de
forma a reconciliá-los. O desenvolvimento do conhecimento científico tem demonstrado
que esse modelo de gestão não é aplicável à biodiversidade. A água, o ar e o solo são
passíveis de recuperação, dependendo da natureza e da proporção dos danos. Contudo,
em se tratando de biodiversidade, nem sempre é possível a restituição ao estado anterior.
Espécies extintas são irrecuperáveis. Por isso, é necessário preservar suas condições
ambientais e seus habitats, o que abrange o ar, o solo e a água169.
Nessa linha, a Convenção de Nova Iorque estabelece de forma expressa que os
estados do curso de água devem proteger e preservar os ecossistemas dos cursos de água
internacionais, seja de forma individual ou conjunta, quando apropriado170, impedir a
introdução de espécies alienígenas ou novas que possam ter efeitos nocivos ao
ecossistema e provocar danos significativos a outros estados e proteger e preservar o
ambiente marinho171. Isso porque a poluição marinha é causada, principalmente, pelos
dejetos carregados e transportados pelos cursos de água até o mar172.
É possível incluir à previsão da Convenção também a proteção da terra contra a
degradação decorrente do desmatamento e da superexploração, assim como o controle da
poluição por fontes difusas, como a agricultura e fontes de descarga direta, isto é, sem
tratamento173.
No mesmo sentido, o Princípio 2 da Declaração da Comissão Econômica para a
Europa, intitulada Declaration of Policy on Prevention and Control of Water Pollution,
including Transboundary Pollution, prevê que o controle da poluição da água deve levar
em conta a interação de poluentes no ar, terra e água174.
Através do Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos
Recursos Hídricos apresentado durante o 8º Fórum Mundial da Água, realizado no mês
de março de 2018, no Brasil, foram propostas soluções baseadas na natureza, ou seja, na
169 R. KINZELBACH, Nature Conservation And Sustainable Management Of Biodiversity, in
Transboundary Water Resources: Strategies for Regional Security and Ecological Stability, Hartmut
Vogtmann e Nikolai Dobrestov (editores), Earth and Environment Science, Volume 46, Rússia, 2003,
páginas 109 e seguintes, 114. 170 Artigo 20 da Convenção de Nova Iorque de 1997. 171 Artigos 22 e 23 da Convenção de Nova Iorque de 1997. 172 David FREESTONE e Salman M.A. SALMAN, Ocean and Freshwater Resources, in The Oxford
Handbook of International Environmental Law, Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores),
2008, páginas 338 e seguintes, 360. 173 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 382. 174 Declaration of Policy on Prevention and Control of Water Pollution, including Transboundary
Pollution, Genebra, 1980, disponível em http://www.fao.org/docrep/005/w9549e/w9549e05.htm, acesso
em 21/10/2016.
criação de “estruturas verdes”, para melhorar o abastecimento de água e reduzir impactos
decorrentes de catástrofes naturais. A proposta de criação de “estruturas verdes” reflete o
reconhecimento de que as bacias hidrográficas estão integradas com o ecossistema no
qual se encontram inseridas e que a relação entre elas e os demais bens ambientais é
complexa e de mão dupla, isto é, além da mútua dependência entre eles, os impactos sobre
um atingem o outro reciprocamente. Como decorrência dessa conclusão, as Nações
Unidas defendem a importância de aumentar a cobertura vegetal com o propósito de
proteger as bacias hidrográficas175.
A Global Water Partnership sistematizou três objetivos estratégicos chave, ou
pilares da gestão integrada, conhecidos como os três “E`s”, que são a eficiência, a
equidade e a sustentabilidade ambiental. Eficiência para assegurar que a água, enquanto
recurso, dure o máximo possível e atinja os mesmos resultados da melhor forma176,
equidade na alocação da água entre os grupos socioeconômicos e sustentabilidade
ambiental para proteger a água como um bem integrante do ecossistema177.
Embora as Regras de Berlim tenham ido além da Convenção de Nova Iorque,
inspiraram-se em suas previsões, o que demonstra a força e a influência da referida
convenção das Nações Unidas178. As Regras de Berlim representaram uma sensível
evolução ao adotar uma visão ecocêntrica da água, atribuindo valor intrínseco ao dano
ambiental e à qualidade da água. Dedica um artigo à integridade ecológica dentro do
capítulo destinado à proteção dos ambientes aquáticos, que traduz a verdadeira linha de
evolução do direito internacional do ambiente. No artigo 22, estabelece a obrigação de os
estados, ao utilizarem as águas da bacia, adotarem medidas para proteger a integridade
ecológica necessária para sustentar os ecossistemas dependentes dessas águas, assim
como os fluxos ecológicos naturais, protegendo-os contra espécies alienígenas,
175 NAÇÕES UNIDAS, United Nations World Water Assessment Programme, Relatório mundial das
Nações Unidas sobre desenvolvimento dos recursos hídricos 2018: soluções baseadas na natureza
para a gestão da água, Paris, 2018, disponível em
http://unesdoc.unesco.org/images/0026/002614/261424e.pdf, acesso em 19/03/2018. 176 Sobre estratégias de eficiência, GLOBAL WATER PARTNERSHIP, Catalyzing Change: Handbook
for Developing IWRM and Water Efficiency Strategies, nº 1, 2004, página 32, disponível em
http://www.gwp.org/Global/ToolBox/Publications/Catalyzing%20Change%20Handbook/01%20Catalyzing%20Change.%20Handbook%20for%20developing%20IWRM%20and%20water%20efficiency%20stra
tegies%20(2004)%20English.pdf, acesso em 22/07/2016. 177 Fonte: http://www.gwp.org/en/ToolBox/ABOUT/IWRM-Plans/, acesso em 21/07/2016. Rodrigo
MAIA, IWRM and IRBM Approaches: International Rivers, in Making the Passage through the 21st
Century, Water as a Catalyst for Change, Charles Buchanan, Paula Vincente e Evan Vlachos (editores),
Lisboa, 2009, páginas 267 e seguintes, 269. 178 David FREESTONE e Salman M.A. SALMAN, Ocean and Freshwater Resources, in The Oxford
Handbook of International Environmental Law, Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores),
2008, páginas 338 e seguintes, 354.
substâncias perigosas e insalubres e outras formas de poluição. Trata-se do
reconhecimento de que a integridade ecológica é indispensável para a sustentabilidade179.
A gestão integrada é parte do próprio conceito de uso sustentável, conforme se verifica
do artigo 3º das Regras de Berlim, em seu número 19, que define “uso sustentável”, como
“a gestão integrada dos recursos para assegurar uso eficiente e acesso equitativo à água
para o benefício das gerações presentes e futuras (...)”.
A adoção do critério da bacia hidrográfica, como unidade de referência das ações
de planejamento, reflete a opção pela gestão integrada dos cursos de água, baseada em
uma consideração holística que respeito os limites naturais das bacias hidrográficas e não
as fronteiras políticas e administrativas estabelecidas artificialmente pelo homem. A
gestão integrada pode ser abordada sob duas vertentes – externa (integrada) e interna
(conjuntiva).
Existe uma interrelação entre a gestão da água, enquanto elemento natural, e a
gestão ambiental que deve ser respeitada através da articulação de políticas
correlacionadas (água, solo e ar)180. Assim, a primeira vertente, externa, sugere a
necessidade de integração da proteção e da gestão sustentável dos cursos de água de forma
transversal com outras políticas ambientais, como as políticas energética, de transporte,
agrícola, de pesca, turística e de descarte de resíduos.
A integração pressupõe a abertura dos sistemas jurídicos e administrativos a
critérios ecológicos, com a consideração de aspectos biológicos, químicos e morfológicos
dos cursos de água, o que reflete uma evolução na forma de gestão, no caminho para uma
abordagem holística e ecossistêmica181.
Também denominada de “abordagem holística”, essa vertente considera todo o
ecossistema que envolve a bacia hidrográfica de maneira integrada. Decorre da evolução
do conhecimento científico acerca da unidade ambiental dos cursos de água e dos
ecossistemas e requer esforço dos estados da bacia para integrar as referidas políticas com
a da água.
179 INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION, Fourth Report, Berlin Conference, 2004, páginas 27-28. 180 Antônio Eduardo LANNA, A Inserção da Gestão das Águas na Gestão Ambiental, Interfaces da
Gestão de Recursos Hídricos, Desafios da Lei de Águas de 1997, páginas 75-108, 75 e 84. 181 Andreas KRAEMER, Governing Water, International Law Development, The Principle of
Subsidiarity, in Making the Passage through the 21st Century, Water as a Catalyst for Change, Charles
Buchanan, Paula Vincente e Evan Vlachos (editores), Lisboa, 2009, páginas 233 e seguintes, 235. Paulo
Canelas de CASTRO, Sinais de (nova) Modernidade no Direito Internacional da Água, in Nação e
Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 101 e seguintes, 118 e 119.
Reflete a perspectiva multidimensional dos ecossistemas e a complexidade das
bacias hidrográficas, que abrangem não apenas as águas superficiais e subterrâneas, mas
também os ecossistemas adjacentes, incluindo os sistemas estuarinos e a zona costeira.
Trata-se de uma perspectiva holística de gestão que pressupõe a integração das zonas de
transição entre sistemas ecológicos adjacentes, cujas características são determinadas
pelas suas interações mútuas numa escala temporal e espacial. Por estarem
intrinsecamente relacionadas e o uso de um elemento da natureza comprometer a
qualidade ou a quantidade de outro, ou mesmo alterar sua demanda, existe a necessidade
de articulação da política das águas com as demais políticas, como as de saúde, ambiental,
energética, de destinação de resíduos, de ordenamento territorial, de redução da pobreza
e das desigualdades regionais e urbanísticas182. No mesmo sentido, é necessário
considerar as intervenções sobre os corredores fluviais numa perspectiva integrada.
Assim, o planejamento deve considerar a conectividade do conjunto integrado das águas,
fauna e flora terrestres e marinhas, de forma a permitir o fluxo hidrológico e de espécies
biológicas que contribuam para a sustentabilidade do ecossistema e da biodiversidade
regionais da bacia. Nessa linha de raciocínio, é igualmente fundamental o papel exercido
pelos estuários na manutenção da biodiversidade, habitat de reprodução de diversas
espécies. O sistema estuarino é dotado de relevante valor, embora apresente
vulnerabilidade ecológica. É nele que acontecem as principais interações entre os
processos naturais e a pressão antrópica, na interface entre as bacias hidrográficas e sua
respectiva zona costeira. Por conseguinte, é interessante que a gestão considere bacias
contíguas, permitindo a incorporação da zona costeira adjacente sob influência indireta
da descarga fluvial, das bacias de captação de águas pluviais e dos trechos costeiros que
influenciam o ambiente marinho183.
“Ecossistema da bacia” sugere sistemas ambientais compostos por elementos
interligados. Logo, ações relacionadas a um dos elementos interferem no equilíbrio de
todo o sistema. Por isso, as políticas dos setores afins não devem ser dissociadas, mas
tratadas de forma transversal, com o propósito de integrá-las. Em se tratando de
ecossistema, tudo depende de todo o resto. Um impacto externo sobre um dos elementos
do ecossistema provoca reações em outros elementos e interfere no equilíbrio e na
182 Antônio Eduardo LANNA, A Inserção da Gestão das Águas na Gestão Ambiental, Interfaces da
Gestão de Recursos Hídricos, Desafios da Lei de Águas de 1997, páginas 75-108, 78 e 79. 183 Maria da Graça SARAIVA, Gestão ambiental de sistemas fluviais, aplicação à bacia hidrográfica
do Rio Sado, Editores Ilídio Moreira, Maria da Graça Saraiva e Francisco Nunes Correia, ISAPress, 2004,
páginas 23-40, página 26.
capacidade de funcionamento como um sistema de suporte à vida. Logo, o ecossistema
de um curso de água deve ser compreendido não apenas como a fauna e flora ao seu redor,
mas como todos os bens naturais existentes em sua área de captação que têm influência
nos cursos de água. O crescente conhecimento acerca da interação entre as diversas
espécies de flora e fauna demonstra que é cada vez mais difícil segregar os cursos de água
dos demais bens ambientais existentes na área de captação184.
A integração, sob essa vertente, denota a percepção da água como parte integrante
do ecossistema, um recurso natural e bem econômico e social, revelando-se seus aspectos
qualitativos e quantitativos fundamentais para a determinação dos usos, conforme
consagrado desde a década de 1990 pela Agenda 21, em seu Capítulo 18. Nessa linha, o
referido documento destaca a importância da preservação da água para o bom
funcionamento dos ecossistemas aquáticos e a perenidade do recurso, com o objetivo de
satisfazer as variadas necessidades humanas.
Os cursos de água não servem apenas para satisfazer as necessidades humanas,
econômicas e industriais. Eles também exercem papel fundamental na manutenção da
fauna, da flora e dos ecossistemas aquáticos e terrestres, os quais, por sua vez, são
importantes indiretamente para o bem-estar humano e a economia185.
Trata-se de uma vertente que procura minimizar danos ambientais e ecológicos e,
por isso, emergiu como o paradigma dominante da gestão nos níveis local, nacional,
regional e internacional, a exemplo do que preveem os considerandos 9 e 16 da Diretiva-
Quadro da Água no âmbito do direito regional da União Europeia. Nesse sentido, o
Direito da União Europeia pode inspirar o desenvolvimento do Direito Internacional do
Ambiente em favor do desenvolvimento de estratégias em prol da integração de políticas
afins.
Uma forma de promover a integração consiste na criação de conselhos com o
propósito de integrar políticas setoriais e atividades potencialmente causadoras de danos
na bacia, a título do que tem sido feito no Ártico. Os impactos negativos do turismo são
enormes na região, em razão do consumo de recursos ambientais para sustentá-lo e da
emissão de poluentes no ar, na água e no solo, além da poluição sonora. Com o escopo
184 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 393-394. 185 R. KINZELBACH, Nature Conservation And Sustainable Management Of Biodiversity, in
Transboundary Water Resources: Strategies for Regional Security and Ecological Stability, Hartmut
Vogtmann e Nikolai Dobrestov (editores), Earth and Environment Science, Volume 46, Rússia, 2003,
páginas 109 e seguintes, 109-110.
de implementar uma estratégia de proteção do ambiente, os estados do Ártico (Canadá,
Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega, Rússia, Suécia e EUA) e grupos indígenas
acordaram a realização de encontros permanentes e criaram o Conselho do Ártico em
1996. Trata-se de um fórum intergovernamental para discussão sobre os impactos de
atividades já desenvolvidas na região e de novas atividades. O objetivo do acordo é,
primordialmente, o estabelecimento da abordagem integrada de determinadas atividades
causadoras de impactos ao ambiente na região, com destaque para o turismo186.
O Capítulo 18 da Agenda 21 elenca quatro objetivos principais que devem ser
buscados através da gestão integrada. São eles: (a) promover uma abordagem dinâmica,
interativa, iterativa e multissetorial do manejo dos recursos hídricos, incluindo a
identificação e proteção de fontes potenciais de abastecimento, de água doce que
abarquem considerações tecnológicas, socioeconômicas, ambientais e sanitárias; (b) fazer
planos para a utilização, proteção, conservação e manejo sustentável e racional de
recursos hídricos baseados nas necessidades e prioridades da comunidade, dentro do
quadro da política nacional de desenvolvimento econômico; (c) traçar, implementar e
avaliar projetos e programas que sejam economicamente eficientes e socialmente
adequados no âmbito.de estratégias definidas com clareza, baseadas numa abordagem
que inclua ampla participação pública, inclusive da mulher, da juventude, dos populações
indígenas e das comunidades locais, no estabelecimento de políticas e nas tomadas de
decisão do manejo hídrico; e (d) identificar e fortalecer ou desenvolver, conforme seja
necessário, em particular nos países em desenvolvimento, os mecanismos institucionais,
legais e financeiros adequados para assegurar que a política hídrica e sua implementação
sejam um catalisador para o progresso social e o crescimento econômico sustentável187.
As dificuldades para a implementação da integração da gestão sustentável dos
cursos de água com outras políticas são notórias. Na bacia internacional do Rio Apa, por
exemplo, compartilhada entre Brasil e Paraguai, na América do Sul, observa-se o esforço
dos estados ribeirinhos para a integração da gestão ambiental em busca da exploração
sustentável dos recursos, através do diálogo para a promoção do saneamento básico, a
186 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, página 581. Armando Marques GUEDES, O Conselho do Ártico, JanusOnLine, 2015-2016,
páginas 160-161, 160. 187 Agenda 21, Capítulo 18.9, disponível em http://bd.camara.gov.br, página 269. NAÇÕES UNIDAS,
Protection Of The Quality And Supply Of Freshwater Resources: Application Of Integrated
Approaches To The Development, Management And Use Of Water Resources, Conference on
Environment and Development, Agenda 21, disponível em http://www.un-documents.net/a21-18.htm,
acesso em 18/03/2017.
manutenção de florestas e matas ciliares e os múltiplos usos da água. No entanto, as
dificuldades de aprovação de acordos internacionais que preveem essa integração
demonstram as limitações existentes. Apesar dos esforços, a vegetação tem sido afetada
pela conversão em pastagem para criação de gado, além da degradação provocada por
atividades de extração de mármore, calcário, pedra e areia, e pela presença da indústria
de laticínios na extensão da bacia. Essas atividades, somadas ao uso de pesticidas,
contribuem para a erosão do solo e a sedimentação do leito do Rio Apa188.
Acordos que regulam as relações entre estados geralmente não se referem ao
princípio da gestão integrada dos recursos hídricos. Limitam-se aos princípios do uso
equitativo e razoável e da obrigação de não causar danos significativos, como é o caso da
Convenção de Nova Iorque. Os estados signatários temiam que a menção à integração
interferisse na gestão do uso da terra, uma esfera sobre a qual impera o princípio da
soberania territorial absoluta189.
A segunda vertente da integração diz respeito ao aspecto interno dos cursos de
água. Busca o desenvolvimento de uma política internacional no domínio das águas que
promova a integração entre as águas superficiais e subterrâneas. Essa segunda vertente é
reconhecida pela Convenção de Nova Iorque que, ao definir “curso de água”, menciona
a relação física entre o sistema de águas de superfície e subterrâneas que constituem um
“conjunto unitário”. Observa-se que foram excluídos da Convenção os “aquíferos
fósseis”, isto é, aqueles que não interagem com as águas superficiais, mas, ainda que
parcialmente, foram incluídas as águas subterrâneas. Se por um lado a Convenção é digna
de elogios, ao incluir parcela das águas subterrâneas em seu texto, por outro isso motivou
que alguns estados se abstivessem na votação da Convenção190.
As Regras de Berlim (artigo 5) e as Regras de Seul (artigo 4) denominam essa
segunda vertente – que trata da integração entre as águas superficiais, subterrâneas e
outras fontes - de “gestão conjuntiva”, a fim de distingui-la da primeira vertente - “gestão
integrada” (artigo 6), que trata da integração da gestão das águas com a gestão de outros
188 Matilde de SOUZA, Franciely Torrente VELOSO, Letícia Britto dos SANTOS e Rebeca Bernardo da
Silva CAEIRO, Governança de recursos comuns: bacias hidrográficas transfronteiriças, Revista
Brasiliera de Política Interancional, Volume 57, N.o 2, 2014, páginas 152-175, 164 e 168. 189 Elli LOUKA, Water Law &Policy, Governance Without Frontiers, Oxford University Press, 2008,
página 258. 190 Stephen C. MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of
the U.N. Convention, 1999, páginas 11-19, 11, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017.
bens ambientais. Essa vertente, denominada “conjuntiva”, sugere a integração da gestão
interna das águas (superficiais e subterrâneas).
A gestão conjuntiva pressupõe um enquadramento transparente, eficaz e coerente,
que abranja critérios de qualidade e quantidade das águas subterrâneas e superficiais,
estuarinas e costeiras, e que imponha o controle da evolução do estado da água de forma
sistemática com informações disponíveis, com a intenção de fundamentar o
desenvolvimento de programas comuns e uniformes.
Comentários da Associação de Direito Internacional ao artigo 6 das Regras de
Berlim alertam que a alocação da água para usos que requerem o desvio de um curso de
água afetará diretamente a capacidade de assimilação de dejetos da fonte, mesmo que ela
não retorne poluída para aquela ou para uma outra fonte. Isso por si só já justifica a
necessidade de coordenação das funções de alocação da água e de regulação da qualidade
da água para evitar ineficiência191.
Essa vertente preocupa-se com a perspectiva multidimensional das bacias
hidrográficas. Revela ser indispensável integrar à política dos cursos de água também os
sistemas estuarinos e zonas costeiras ao conjunto da bacia hidrográfica.
Como se pode perceber, a integração, sob suas duas vertentes, requer a
consolidação do diálogo para o desenvolvimento de estratégias destinadas a uma maior
integração entre todas essas políticas. Nessa linha de raciocínio, a integração e a
coordenação da política da água aproxima as administrações e evita conflitos
transfronteiriços em razão da soberania.
FISHER destaca quatro desafios a serem enfrentados para a gestão integrada e o
aprimoramento da cooperação entre estados que compartilham bacias hidrográficas
internacionais: i) necessidade de vontade política (refere-se à capacidade de incorporar
acordos internacionais às normas internas, com a criação de direitos e deveres, de forma
a protegê-los e torná-los exequíveis no âmbito interno); ii) percepção conflitante das
normas legais relevantes (normas legais podem ensejar interpretações diferentes,
especialmente quando envolvem questões complexas e controversas objeto de
negociação. Ademais, normas flexíveis possuem maior nível de aceitabilidade, porém são
caracterizadas pela maior tendência à ambiguidade. A título de exemplo, a percepção de
uso equitativo e racional pode variar de acordo com a posição a jusante ou a montante
dos estados); iii) confronto de questões hidrológicas e a superação de controvérsias
191 INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION, Fourth Report, Berlin Conference, 2004, página 14.
técnicas (é recomendável a adoção de uma abordagem que considere a unidade
hidrológica como um todo – ao invés de um enfoque político ou administrativo – que
considere os usos e pressões a jusante e a montante. Para auxiliar a superação desse
desafio, especificamente, deve ser requerido auxílio a organizações internacionais
especializadas e adotada uma solução única); iv) necessidade de informação
compreensiva, de conhecimento e entendimento sobre o comportamento hidrológico da
bacia que permitam tomadas de decisões de qualidade, desde questões estratégicas até
quotidianas 192.
3.3. OS PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E DA PRECAUÇÃO
Nas palavras de MILARÉ, prevenção é “substantivo do verbo prevenir, e significa
ato ou efeito de antecipar-se, chegar antes; induz uma conotação de generalidade, simples
antecipação no tempo, é verdade, mas com intuito conhecido.”193.
A essência do Direito do Ambiente é preventiva, isto é, baseada na ação
antecipada e no planejamento para reduzir ou eliminar riscos suscetíveis de interferir no
equilíbrio do ecossistema, que o desenvolvimento científico tornou conhecidos ou
previsíveis, com o propósito de evitar a consumação de danos. Por isso, o princípio da
prevenção é apontado como o pilar do Direito do Ambiente194.
Diante de bens ambientais frágeis ou até mesmo não regeneráveis, a reparação é
sempre incerta e, ainda quando potencialmente reversíveis os danos ambientais, seu custo
tende a ser excessivamente oneroso, inviabilizando a recuperação do ambiente degradado.
Assim, a prevenção apresenta-se como a fórmula mais eficaz, senão como a única solução
viável195.
Como recuperar um curso de água poluído por agrotóxicos, uma espécie da fauna
extinta, a erosão do solo ou uma floresta completamente devastada pela ação humana?
Como reverter consequências gravosas decorrentes de um acidente nuclear? Danos dessa
192 Douglas FISHER, The Law and governance of water resources, The challenge of sustainability,
Cheltenham, UK, Edwar Elgar Publishing Limited, 2009, páginas 212 a 217. 193 Édis MILARÉ, Direito do Ambiente, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, página
165. 194 Carla AMADO GOMES, Introdução ao Estudo do Ambiente, Lisboa, Associação Acadêmica da
Faculdade de Direito de Lisboa, 2ª edição, 2014, página 89. 195 Édis MILARÉ, Direito do Ambiente, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, página
166.
espécie, embora teoricamente possam ser compensáveis, são irreparáveis196. Assim, o
princípio da prevenção é apontado como a regra de ouro para o ambiente, seja por razões
econômicas ou ecológicas197.
O princípio da prevenção impõe ao particular e ao poder público a adoção de
medidas específicas de proteção contra a ocorrência de danos ao ambiente - que envolvem
a realização de diligências e de avaliações de impactos -, a fim de evitar lesões. Busca-se
antecipar perigos naturais ou humanos que coloquem em risco a integridade do ambiente,
sem prejuízo da repressão a danos que eventualmente venham a ocorrer. Embora não se
vislumbra incompatibilidade entre a prevenção e a repressão, agir preventivamente é
sempre melhor do que reagir, especialmente diante da possibilidade de irreversibilidade
dos danos ambientais198, ou, pelo menos, minimizar os impactos a níveis toleráveis com
base nas melhores técnicas disponíveis, já que na sociedade tecnológica é raro o
desenvolvimento de atividades econômicas que não produzam qualquer risco. Nessa
linha, AMADO GOMES assinala que em um contexto de incertezas que permeiam a
sociedade de risco, no qual as atividades humanas poluidoras são intensas, não é razoável
acreditar que o princípio da prevenção seja capaz de evitar todo e qualquer risco ao
ambiente, devendo contentar-se com a minimização de danos na maioria das vezes. Por
isso, defende a ponderação de interesses, a partir do estabelecimento de medidas de
minimização de riscos, baseadas nas melhores técnicas disponíveis, que viabilizem o
desenvolvimento de atividades econômicas ao mesmo tempo em que evitem lesões
intoleráveis aos bens ambientais199.
O dever geral de prevenção de riscos ambientais vai de encontro ao princípio da
soberania territorial absoluta, uma vez que interfere na forma como os estados devem
utilizar bens ambientais situados no seu território, os quais também são fonte de energia
e de riqueza econômica. Como forma de viabilizar sua exigibilidade, inclusive erga
omnes, Carla AMADO GOMES defende a possibilidade de o princípio da proteção do
ambiente ser elevado à categoria de princípio geral de Direito Internacional200, embora
196 Édis MILARÉ, Direito do Ambiente, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, página 166. 197 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, Judicial handbook on Environmental Law, United Nations
Environment Programme, 2005, 20. 198 Vasco PEREIRA DA SILVA, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente, Editora
Almedina, Coimbra, 2005, 2ª impressão, páginas 65 a 73. 199 Carla AMADO GOMES, Introdução ao Estudo do Ambiente, Lisboa, Associação Acadêmica da
Faculdade de Direito de Lisboa, 2ª edição, 2014, página 89. 200 Carla AMADO GOMES, Os Bens Ambientais como Bens de Interesse Comum da Humanidade:
entre o Universalismo e a Razão de estado, in Direito Ambiental: o meio ambiente e desafios da
no estágio atual não se possa afirmar que a obrigação de prevenção de danos ambientais
ostente status erga omnes201.
Feitas essas considerações, importa tratar do princípio da precaução. MILARÉ
ensina que precaução origina-se do latim prae=antes e cavere=tomar cuidado. Seu ethos
remonta ao Juramento de Hipócrates, que afirma "primeiro não faça mal"202. Relaciona-
se com a tomada de cuidados antecipados, isto é, “cautela para que uma atitude ou ação
não venha a concretizar-se ou a resultar em efeitos indesejáveis” 203.
Agir com precaução significa pensar na frente, prever possíveis consequências e
antecipar ações para evitar riscos futuros incertos. Reflete “a expressão de uma filosofia
de ação antecipada”204.
O princípio da precaução é uma tendência atualmente observada nas políticas
ambientais, fundadas na abordagem holística, proativa, ecossistêmica e ecocêntrica.
Trata-se de um princípio essencial para se atingir o desenvolvimento sustentável,
protegendo o ambiente para a humanidade205. A própria concepção de unidade da bacia
hidrográfica constitui, em si mesma, uma expressão do princípio da precaução que vem
ganhando aceitação prática206. Desafia políticos a pensarem além das próximas eleições
e dos entraves econômicos. Por isso, o princípio da precaução provoca incômodos, ao
impor mudanças em normas materiais e procedimentais já consolidadas, como a
responsabilização, compensação e ônus da prova, e é taxado de radical e antipopular por
parcela dos seus críticos207.
contemporaneidade, Talden Farias, Francisco Seráphico da Nóbrega Coutinho (coordenadores), Belo Horizonte, Editora Fórum, 2010, páginas 21 e seguintes, 23 e 24. 201 Carla AMADO GOMES, Responsabilidade Internacional do Estado por Dano Ecológico: uma
Miragem?, in Questões de Responsabilidade Internacional, Maria de Assunção do Vale Pereira
(Coordenadora), Sociedade Portuguesa de Direito Internacional, 2016, páginas 11-41, 18. 202 Michael S. CAROLAN, The Precautionary Principle and Traditional Risk Assessment, Rethinking
How We Assess and Mitigate Environmental Threats, Organization & Environment, Volume 20, Nº 1,
2007, páginas 5-24, 7. 203 Édis MILARÉ, Direito do Ambiente, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, página
165 e 166. 204 Nicolas DE SADELEER, O Estatuto do Princípio da Precaução no Direito Internacional, in
Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 57 e seguintes,
57. 205 Arie TROUWBORST, Prevention, Precaution, Logic and Law, The Relationship Between the
Precautionary Principle and the Preventative Principle, International Law and Associated Questions,
Erasmus Law Review, Volume 02, Nº 02, 2009, páginas 105 e seguintes, 107 e 108. 206 Ludwik A. TECLAFF, Evolution of the River Basin Concept in National and International Water
Law, Natural Resources Journal, 1996, Volume 36, nº 2, páginas 359 e seguintes, 391. 207 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 2.
Se por um lado o princípio em comento é alvo de críticas, por outro é elogiado
pelos defensores da articulação estratégica a longo prazo das políticas do ambiente,
sociais e econômicas, bem como da elevação da proteção dos ecossistemas e da
biodiversidade como objetivos das políticas do setor208.
A distinção entre a lógica da prevenção e a lógica da precaução encontra-se na
incerteza. Ambos os princípios têm o propósito de proteger o meio ambiente. Porém, se
os efeitos decorrentes de uma atividade são desconhecidos, a lógica aplicável é a da
precaução.
A prevenção pressupõe ciência, controle da técnica e a noção de uma objetiva
avaliação de riscos visando reduzir a probabilidade de sua ocorrência. Medidas de
prevenção são destinadas a evitar riscos cuja relação de causa e efeito já é conhecida.
Já a precaução requer ação, ainda que a probabilidade de determinados riscos não
possa ser demonstrada de forma irrefutável. Quanto menor a margem de incerteza, maior
a fundamentação para a adoção de medidas de prevenção ao invés de precaução. Já
medidas de precaução serão cabíveis quando, apesar dos esforços científicos, não foi
possível descortinar a incerteza. Sob uma perspectiva prática, contudo, é difícil operar
uma distinção rígida entre os dois princípios209. Requer a capacidade de identificar
ameaças e oportunidades, prever cenários e seus potenciais desdobramentos, bem como
adotar medidas antecipadas para administrar as causas antes que consequências danosas
advenham. Exige ação em um estágio cedo diante de ameaças ao ambiente, inclusive em
situações de incerteza científica. O benefício da dúvida deve ser do ambiente, refletido
no brocardo in dúbio pro natura.
A ideia de avaliação e gestão de riscos, incluindo a precaução, acompanha a
humanidade há milênios e dela dependem a saúde e a prosperidade dos homens. Os
primeiros hominídeos já tinham que antever e evitar riscos (predadores, venenos e
condições climáticas adversas) como uma conduta imprescindível para a sobrevivência.
O homem moderno utiliza a análise de riscos para proteger, incluindo a precaução contra
riscos futuros incertos210.
208 Stephen DOVERS, Precaution, Prediction, Proof, and Policy Assessment, New Solutions, Volume
12, Nº 3, 2002, páginas 281-296, 281. 209 Arie TROUWBORST, Prevention, Precaution, Logic and Law, The Relationship Between the
Precautionary Principle and the Preventative Principle, International Law and Associated Questions,
Erasmus Law Review, Volume 02, Nº 02, 2009, páginas 105 e seguintes, 116, 118 e 119. 210 Jonathan B. WIENER, Precaution, in The Oxford Handbook of International Environmental Law,
Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 598 e seguintes, 598. Arie
TROUWBORST, Prevention, Precaution, Logic and Law, The Relationship Between the
Precautionary Principle and the Preventative Principle, International Law and Associated Questions,
Requer ação mesmo quando não houver conclusão científica, tendo em vista que
o adiamento da adoção de medidas de precaução pode resultar em custos ambientais tão
elevados que não justificam o sacrifício de não agir antecipadamente211.
Embora o princípio da prevenção já esteja presente em tratados internacionais
desde a década de 1930, o princípio da precaução surgiu como regra legal décadas mais
tarde no Swedish Environment Protection Act, editado alguns meses antes do National
Environmental Policy Act (NEPA), em 1970212.
Tradicionalmente, na avaliação de riscos de novas tecnologias, o ônus da prova é
atribuído aos órgãos reguladores e ao público em geral. No entanto, o princípio da
precaução fez despertar para a necessidade de inverter o ônus da prova, atribuindo a quem
produz uma nova tecnologia potencialmente prejudicial o dever de provar que ela é
segura, ao mesmo tempo em que retira do público o dever de suportar tal ônus. Pode ser
sintetizado no brocardo “culpado até provar sua inocência”213. Nessa linha, o Swedish
Environment Protection Act e o National Environmental Policy Act consistiram em
verdadeiras inovações no processo de tomada de decisões, com destaque para a inversão
do ônus da prova no procedimento de licenciamento. O mero risco (se não for remoto)
deve ser suficientemente considerado para exigir medidas protetivas ou mesmo impedir
a atividade, dispensando as autoridades reguladoras de demonstrarem a probabilidade de
ocorrência do dano214.
Reflexo de uma política geral de orientação denominada “modernização
ecológica”, o princípio da precaução surgiu como uma exigência de que a indústria
utilizasse as melhores técnicas disponíveis para minimizar a poluição na fonte, impondo
o planejamento cuidadoso do desenvolvimento para afastar danos ambientais215. Na
Erasmus Law Review, Volume 02, Nº 02, 2009, páginas 105 e seguintes, 108. David FREESTONE e Ellen
HEY, Implementando o Princípio da Precaução: Desafios e Oportunidades, in Princípio da Precaução,
Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e
Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 202 e seguintes, 224. 211 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 4 e 8. 212 Peter H. SAND, The Precautionary Principle: A European Perspective, Human and Ecological Risk
Assessment, Volume 6, Nº 3, páginas 445-458, 451. Neil CRAIK, The International Law of
Environmental Impact Assessment, Process, Substance and Integration, Cambridge, Cambridge
University Press, 2008, página 4. 213 Michael S. CAROLAN, The Precautionary Principle and Traditional Risk Assessment, Rethinking
How We Assess and Mitigate Environmental Threats, Organization & Environment, Volume 20, Nº 1,
2007, páginas 5-24, 6. 214 Peter H. SAND, The Precautionary Principle: A European Perspective, Human and Ecological Risk
Assessment, Volume 6, Nº 3, páginas 445-458, 451. 215 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 2.
Alemanha ocidental, emergiu na década de 1970 como uma articulação do termo alemão
Vorsorgeprinzip, que se traduz na Foresight, forecar ou "precaução"216, como um modelo
de busca por altos padrões ambientais que permitiu observar o surgimento de um discreto
setor “eco-industrial” gerador de empregos217.
No âmbito (regional) da União Europeia, a primeira política de precaução foi
adotada após o acidente de Seveso, na Itália, em 1976, através da Diretiva de Seveso de
1982. Mais recentemente, também foram adotadas a Diretiva dos Organismos
Geneticamente Modificados de 1990 e a Diretiva da Biotecnologia de 1998, que preveem
o referido princípio218.
A preocupação com danos ambientais acerca dos quais não há certeza científica
eclodiu durante a Conferência das Nações Unidas de 1992, na qual se adotou o Princípio
15 para estabelecer a obrigação de os estados implementarem medidas “economicamente
viáveis” para prevenir a degradação ambiental, de acordo com as capacidades dos estados,
quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, ainda que não haja certeza
científica absoluta. Pode ser sintetizado em duas premissas: “dano irreversível” e
“medidas economicamente viáveis”. No entanto, a interpretação literal desse dispositivo
possibilita o afastamento de medidas de precaução quando seus custos econômico-
financeiros forem excessivamente onerosos ou quando os estados não tiverem
capacidades para sua implementação. Assim, torna a precaução relativa, ao condicioná-
la à capacidade financeira e econômica dos estados219.
Evoluindo um passo a mais em direção à proteção do ambiente, as Regras de
Berlim adotaram esse princípio com um pouco mais de rigor, na medida em que não
exigem análise de custo-eficácia ou das capacidades dos estados na aplicação da
precaução220.
216 Michael S. CAROLAN, The Precautionary Principle and Traditional Risk Assessment, Rethinking
How We Assess and Mitigate Environmental Threats, Organization & Environment, Volume 20, Nº 1,
2007, páginas 5-24, 7. Rüdiger WOLFRUM, O Princípio da Precaução, in Princípio da Precaução,
Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Coleção Direito Ambiental em Debate,
Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, páginas 24 e seguintes, 24. 217 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 2 e 17. 218 Peter H. SAND, The Precautionary Principle: A European Perspective, Human and Ecological Risk
Assessment, Volume 6, Nº 3, páginas 445-458, 454. 219 Rüdiger WOLFRUM, O Princípio da Precaução, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e
Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do
Ministério Público da União, 2004, páginas 24 e seguintes, 27. 220 INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION, Fourth Report, Berlin Conference, 2004, páginas 28-29
(capítulo V, artigo 23).
A partir da década de 1990, o princípio da precaução passou a ser previsto em
quase todos os instrumentos ambientais internacionais221. De acordo com a Comissão de
Direito Internacional das Nações Unidas, o princípio da precaução está previsto,
implicitamente, também na Convenção de Nova Iorque. O dever de prevenir, reduzir e
controlar a poluição de um curso de água internacional, a fim de evitar danos
significativos a outros estados do curso de água ou a seu meio ambiente222 reflete uma
postura em prol da precaução. Estimula a tomada de medidas preventivas contra ameaças
de danos graves e irreversíveis aos ecossistemas dos cursos de água, mesmo na ausência
de evidências científicas claras de que as ameaças se concretizarão em danos graves.
Parte-se da concepção de que aguardar a existência de certeza científica pode ser muito
tarde para determinadas espécies da fauna e flora e de que a prudência deve prevalecer e
orientar a adoção de programas integrados transversalmente com outras políticas afins.
Valoriza-se, dessa forma, programas proativos e antecipatórios em detrimentos daqueles
reativos e remediais, muitas vezes onerosos e ineficientes sob o aspecto ambiental223.
Na mesma linha, a Convenção sobre Cursos de Água Transfronteiriços de 1992
prevê que que as partes devem guiar-se pelo princípio da precaução, nos seguinte termos:
“As partes não adiarão a aplicação de medidas destinadas a evitar que a descarga de substâncias
perigosas possa ter um impacto transfronteiriço em virtude de a investigação científica não ter
inteiramente demonstrado a existência de um nexo de causalidade entre, por um lado, estas
substâncias e, por outro, um eventual impacto transfronteiriço.”224.
A autonomia do princípio da precaução em relação ao da prevenção não é pacífica.
KRÄMER considera ambos sinônimos, sob o argumento de que não há qualquer ação
que possa ser adotada sob o princípio da precaução, mas não sob o princípio da prevenção
e vice-versa. Considera que são quase sempre usados conjuntamente, razão pela qual o
valor legal acrescido de um não é visível ao outro. Embora não faça distinção entre eles,
afirma que a aplicação do princípio da prevenção/precaução é de extrema importância
para qualquer política ambiental que se pretenda séria, na medida em que exige que
221 Alguns exemplos: Convenção do Mar Báltico de 1992, Acordo sobre Poluição Atmosférica
Transfronteiriça da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) de 2002, Convenção para a
Proteção do Meio Marinho do Atlàntico Nordeste (OSPAR) de 1992, Protocolo de Londres de 1996, Plano
Trilateral do Mar Wadden de 1997, Declaração de Wingspread de 1998. 222 Artigo 20 e seguintes. 223 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 395. 224 Artigo 2.o, n. o 5, “a”.
medidas sejam adotadas de forma antecipada à ocorrência de potenciais danos, e não
como forma de reparar aqueles já concretizados. Mesmo porque, nas hipóteses em que a
reparação é possível, os custos geralmente são bem mais altos do que os da adoção de
medidas preventivas225.
A lógica é a de que quando o princípio da precaução é aplicado, a substância do
princípio da prevenção também é, como se o princípio da precaução absorvesse o
princípio da prevenção ou, alternativamente, fosse sua versão mais evoluída. De uma ou
outra forma, o resultado é o mesmo. Com a consolidação do princípio da precaução no
direito internacional do ambiente, não se justifica a distinção entre princípio da
prevenção, associado à prevenção de certos danos, pautados pela certeza científica, e
princípio da precaução, associado a danos em relação aos quais há incerteza científica, já
que não existe interesse em combater determinados danos e deixar de enfrentar outros.
Na União Europeia, ainda se observa uma forte distinção entre os referidos princípios,
principalmente porque ambos são mencionados separadamente no Tratado da
Comunidade Europeia. Quando a situação prática se apresenta, contudo, o interesse é agir
antecipadamente em face de danos ambientais, sejam eles certos ou incertos226.
Também não atribuem autonomia ao princípio da precaução, AMADO GOMES
e PEREIRA DA SILVA227. AMADO GOMES reconhece que a prevenção é o pilar do
Direito do Ambiente, mas entende que a precaução corresponde, na verdade, “à prevenção
modulada pela proporcionalidade”, já que medidas mitigadoras não requerem certeza
absoluta sobre os potenciais impactos, contentando-se com dúvida séria sobre o risco228.
Defende que a prevenção “deve ser repensada no contexto de parâmetros de incerteza da
sociedade de risco, alargando o seu espectro de perigos (eventos prováveis, à luz de regras
de experiência e de ciência) a riscos (eventos possíveis, cujas eclosão e/ou magnitude não
reúnem consenso na comunidade científica), mas sem abdicar da ponderação de
interesses” 229. Entende que, diante da ausência de certeza científica sobre as
consequências de determinada conduta, o princípio da precaução pode fundamentar três
225 Ludwig KRÄMER, Environmental Law, Londres, 2000, 4ª edição, páginas 17 e 18. 226 Arie TROUWBORST, Prevention, Precaution, Logic and Law, The Relationship Between the
Precautionary Principle and the Preventative Principle, International Law and Associated Questions,
Erasmus Law Review, Volume 02, Nº 02, 2009, páginas 105 e seguintes, 126. 227 Vasco PEREIRA DA SILVA, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Editora
Almedina, 2005, 2ª impressão, páginas 65 a 73. 228 Carla AMADO GOMES, Introdução ao Estudo do Ambiente, Lisboa, Associação Acadêmica da
Faculdade de Direito de Lisboa, 2ª edição, 2014, páginas 89 e 91. 229 Carla AMADO GOMES, Introdução ao Estudo do Ambiente, Lisboa, Associação Acadêmica da
Faculdade de Direito de Lisboa, 2ª edição, 2014, página 89.
posturas distintas: na versão fraca, proíbe-se; na forte, impõe-se a adoção de medidas
minimizadoras, tornando-a inoperativa por conta dos custos elevados diante de tamanhas
incertezas; na média, sopesa-se o custo-benefício da medida, com base na
proporcionalidade e na ponderação de direitos igualmente legítimos, como o à iniciativa
econômica230.
Na mesma linha, PEREIRA DA SILVA prefere adotar uma visão ampla da
prevenção do que autonomizar o princípio da precaução. Justifica sua posição com razões
de ordem linguística (nas línguas latinas e no alemão, “prevenir” e “precaver” são
sinônimos. Já na língua inglesa, “prevention” e “precaution” possuem significados
distintos, estando este último associado à “cautela”. Por esse motivo, a autonomia da
precaução tenha origem em países de língua inglesa ou de tradição do common law), de
conteúdo material (inexiste unanimidade acerca dos critérios de distinção entre precaução
e prevenção) e de técnica jurídica (mais do que conferir autonomia à precaução, é
preferível adotar uma concepção ampla da prevenção que abranja perigos naturais e riscos
humanos, antecipação de perigos atuais e futuros)231.
Para aqueles que não veem diferença entre ambos os princípios, o princípio da
precaução não requer a adoção de medidas especiais. Trabalha com a noção de medidas
preventivas em caso de incerteza científica. A questão central é o momento em que as
medidas devem ser adotadas, isto é, antes de que o dano se materialize, o que demanda
reflexão sobre decisões políticas em casos de incerteza científica232.
Por outro lado, KISS entende que os princípios da precaução e da prevenção não
se confundem. A diferença entre eles centra-se na gravidade do risco, que é mais elevada
na precaução. Nesses casos, a ausência de certeza científica sobre a ocorrência do dano
não deve impedir ações para evitá-lo. Ainda de acordo com KISS, o princípio da
precaução também deve ser aplicado quando os benefícios forem manifestamente
desproporcionais aos danos ambientais. Nesses casos, é preciso cuidado especial para
preservar o ambiente para o futuro e nesse particular se destaca a conexão com os direitos
das gerações futuras233.
230 Carla AMADO GOMES, Introdução ao Estudo do Ambiente, Lisboa, Associação Acadêmica da
Faculdade de Direito de Lisboa, 2ª edição, 2014, páginas 89 a 91. 231 Vasco PEREIRA DA SILVA, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Editora
Almedina, 2005, 2ª impressão, páginas 67-71. 232 Rüdiger WOLFRUM, O Princípio da Precaução, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e
Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do
Ministério Público da União, 2004, páginas 24 e seguintes, 26. 233 Alexandre KISS, Os Direitos e Interesses das Gerações Futuras e o Princípio da Precaução, in
Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo
Embora reconheça a distinção entre os princípios da prevenção e da precaução,
amparado na doutrina de Michel Prieur, MILARÉ entende que aquele é mais amplo e
genérico, por isso, adota-o como “fórmula simplificadora”234.
ARAGÃO trata de ambos os princípios ao distinguir o dever de proteção
ambiental em três níveis:
“a) o dever de promover ativamente a melhoria do estado do ambiente, desenvolvendo ações de
aperfeiçoamento ambiental e investindo na reabilitação de habitats e ecossistemas. (...) b) o dever
de evitar a degradação progressiva e gradual dos ecossistemas, habitats e recursos naturais.
Estamos a pensar, neste caso, em medidas preventivas das formas mais graves de poluição
(mantendo apenas os níveis e inevitáveis de poluição) (...) c) o dever de prevenir e precaver a
ocorrência de acidentes ambientais graves com consequências irreversíveis e importantes
(catástrofes ou calamidades), resultantes de riscos ambientais.”.
De acordo ARAGÃO, o terceiro dever (“c”) integra o conteúdo mínimo do Estado
de Direito Ambiental e o grau mínimo de proteção ambiental235.
Também não há consenso acerca do conteúdo da precaução e da sua natureza
jurídica. Está incorporado em dispositivo de um texto de alcance normativo (enfoque
formal)? Até que ponto obriga seus destinatários (enfoque material)? Seria um princípio
inspiratório (vago e ambíguo, porém com pouca influência sobre a política) ou uma regra
vinculante (concreta, porém arbitrária)?
Não raras vezes, o princípio da precaução encontra-se inserido no preâmbulo (ou
em considerandos) de tratados e convenções. Nessas hipóteses, pode apenas inspirar
obrigações jurídicas que se encontram enunciadas em seus dispositivos. É o ocorre com
a Convenção da Diversidade Biológica236.
Por outro lado, quando enunciado em um dispositivo preciso de um tratado ou
convenção, assume natureza princípio de direito positivo – geral ou específico – com
Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 12 e seguintes, 22. 234 Édis MILARÉ, Direito do Ambiente, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, página
165 e 166. 235 Alexandra ARAGÃO, A prevenção de riscos em estados de direito ambiental na União Europeia,
Coimbra, páginas 3 e 4, disponível em
http://www.ces.uc.pt/aigaion/attachments/Prevencao%20de%20Riscos%20em%20Estados%20de%20Dir
eito%20Ambiental.pdf-1a14060ed87cb105d54a17036cac71fa.pdf, acesso em 17/03/2016. 236 NAÇÕES UNIDAS, Convenção da Diversidade Biológica, 1992, disponível em https://www.cbd.int/,
acesso em 12/09/2017.
alcance normativo237, como se verifica no artigo 3.o da Convenção-Quadro das Nações
Unidas sobre a Mudança do Clima238.
Apesar de a precaução estar prevista em inúmeros documentos internacionais
como um princípio, isso não lhe confere necessariamente força de regra jurídica, tendo
em vista que tais documentos não possuem natureza cogente. Embora seu valor enquanto
norma de direito internacional consuetudinário seja reconhecido pela doutrina239, há ainda
bastante resistência por parte dos tribunais internacionais em reconhecê-lo240.
Os críticos do princípio da precaução afirmam que ele constitui uma presunção
contra a incerteza, que muitas vezes vai contra conhecimentos científicos e econômicos
e a própria democracia241.
Consideram que, assim como a “sustentabilidade”, o princípio da precaução é um
princípio indefinido, vago e que não possui um conceito estável. Além de ser desprovido
de significado prático ou de uma definição dotada de alguma concretude242. Essa crítica
é reflexo da diversidade de definições conferidas pelos inúmeros documentos de direito
internacional, bem como pelas múltiplas aplicações que se lhe pretende conferir243.
Para essa parcela da doutrina, o princípio da precaução tornou-se uma tradução
imperfeita em códigos de conduta que capturam sentimentos de culpa e preocupação ou
um repositório de crenças aventureiras que desafiam o poder político, a ideologia, os
237 Nicolas DE SADELEER, O Estatuto do Princípio da Precaução no Direito Internacional, in
Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo
Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 57 e seguintes,
60, 61, 64. 238 NAÇÕES UNIDAS, Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, 1992,
disponível em http://unfccc.int/files/essential_background/background_publications_htmlpdf/application/pdf/conveng.p
df, acesso em 12/09/2017. 239 Philippe SANDS, O Princípio da Precaução, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana
Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério
Público da União, 2004, páginas 40 e seguintes, 48-49. Nicolas DE SADELEER, O Estatuto do Princípio
da Precaução no Direito Internacional, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia
Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público
da União, 2004, páginas 57 e seguintes, 67-68. 240 Nicolas DE SADELEER, O Estatuto do Princípio da Precaução no Direito Internacional, in
Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo
Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 57 e seguintes, 64, 66, 67. 241 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 18 e 19. 242 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 1-3. 243 Nicolas DE SADELEER, O Estatuto do Princípio da Precaução no Direito Internacional, in
Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo
Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 57 e seguintes,
58
direitos civis, a análise custo-benefício, a autoridade da ciência, a ausência de poder das
vítimas dos abusos ambientais e a ética não implementada de direitos naturais intrínsecos
e equidade intergeracional. O futuro do princípio da precaução parece promissor, mas não
está garantido e pode seguir o caminho perigosamente bem sucedido da sustentabilidade,
tendo em vista a acumulação acrítica de significados, geralmente contraditórios e pouco
práticos. Por outro lado, o princípio da precaução decorre da evolução de valores pós-
industriais, aliada às oportunidades trazidas pelo aprimoramento do conhecimento
científico, diante da flexibilização da cultura industrial, que permitiu a compatibilização
entre a qualidade ambiental e o desenvolvimento econômico244.
Assim, é possível defender que a sua força decorre justamente da sua imprecisão
e da sua ausência de operacionalidade, o que é perfeitamente compatível com a natureza
indeterminada dos ecossistemas que quer proteger. Sua fluidez permite aplica-lo a
diversas situações. Seria impossível prever abstratamente todas as ações e medidas de
precaução necessárias para todo e qualquer tipo de projeto e atividades. Até mesmo
porque as próprias atividades são inúmeras e muitas ainda impensáveis e
inimagináveis245.
Em que pese a resistência, é possível observar uma lenta evolução da comunidade
internacional no sentido de incluir o princípio da precaução em normas de caráter
obrigatório com previsão de sanções para o caso de descumprimento246.
Apesar das divergências existentes, há um conceito básico do princípio da
precaução que tem se consolidado em regime de proteção do ambiente e acerca do qual
há algum consenso. Trata-se da atuação nas fronteiras do conhecimento e apesar da
ausência de plena certeza científica247, associada às três versões do princípio da
precaução, a seguir expostas.
A primeira versão traduz a ideia de que a incerteza não justifica a inação. A
incerteza científica não deve ser utilizada como uma razão para deixar de lado a adoção
244 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 1-3. 245 Michael S. CAROLAN, The Precautionary Principle and Traditional Risk Assessment, Rethinking
How We Assess and Mitigate Environmental Threats, Organization & Environment, Volume 20, Nº 1,
2007, páginas 5-24, 7 e 9. 246 Nicolas DE SADELEER, O Estatuto do Princípio da Precaução no Direito Internacional, in
Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo
Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 57 e seguintes,
60 e 61. 247 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, Judicial handbook on Environmental Law, United Nations
Environment Programme, 2005, página 21.
de medidas de proteção ambiental248. O grande mérito da primeira versão é refutar a ideia
de que a incerteza justifica a inação, mas não esclarece “o que deve ser feito então?” –
esta sim é a verdadeira questão249
A segunda versão também não define ações concretas a serem adotadas, assim
como não resolve dilemas morais, éticos e econômicos que permeiam o princípio da
precaução, embora aprofunde a versão anterior. Reflete a ideia de que “a incerteza
justifica a ação”, isto é, diante de ameaça de dano, medidas de precaução devem ser
adotadas afirmativamente, ainda que a ciência não tenha estabelecido completamente a
relação entre causa e efeito. Aliás, quanto menos conhecido o risco maior a legitimidade
da intervenção. Assim, procedimentos devem ser implementados para avaliar os riscos e
adotar medidas temporárias e apropriadas para prevenir a ocorrência de danos250.
Isso requer a superação de padrões institucionais inapropriados e políticas
ultrapassadas e a adoção de medidas de precaução não apenas em face de ameaças diretas,
como a concessão de licenças ou de registros a novos produtos químicos, mas também de
afetações indiretas do ambiente em decorrência de decisões políticas, como incentivos à
produção de novas tecnologias baseadas em combustíveis fósseis251.
Se as duas versões até então apresentadas requerem ações materiais para abordar
ameaças graves ao ambiente, ainda que haja incerteza científica, a terceira versão é
procedimental. Trata da inversão do ônus da prova em favor do ambiente e do
estabelecimento de um padrão que defina o que deve ser demonstrado - ausência de risco,
risco mínimo, aceitável ou algo além?252. Mas como comprovar que uma nova tecnologia
é segura? Quais provas são exigidas? Métodos tradicionais de verificações positivas
repetidas poderiam ocasionar buscas exaustivas e universais, com a intenção de esgotar
todas as possibilidade de resultados diferentes, o que é inviável253.
248 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, Judicial handbook on Environmental Law, United Nations
Environment Programme, 2005, página 21 249 Jonathan B. WIENER, Precaution, in The Oxford Handbook of International Environmental Law,
Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 598 e seguintes, 604 e 605. 250 Jonathan B. WIENER, Precaution, in The Oxford Handbook of International Environmental Law,
Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 598 e seguintes, 604 e 605. 251 Stephen DOVERS, Precaution, Prediction, Proof, and Policy Assessment, New Solutions, Volume 12, Nº 3, 2002, páginas 281-296, 282. 252 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 5. David FREESTONE e Ellen HEY, Implementando o Princípio da
Precaução: Desafios e Oportunidades, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia
Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público
da União, 2004, páginas 202 e seguintes, 215 e 221. 253 Michael S. CAROLAN, The Precautionary Principle and Traditional Risk Assessment, Rethinking
How We Assess and Mitigate Environmental Threats, Organization & Environment, Volume 20, Nº 1,
2007, páginas 5-24, 9.
Atividades potencialmente causadoras de impactos devem ser proibidas enquanto
não for demonstrada a ausência de riscos ou que os riscos encontram-se dentro de um
nível de aceitabilidade. É como se determinadas atividades fossem consideradas
“culpadas” até que interessados provem sua “inocência”. A dificuldade probatória
decorre do fato de que a informação necessária para a avaliação dos potenciais impactos
geralmente encontra-se em poder do causador do dano. A parte interessada, que propõe o
projeto, detém a maior parte do conhecimento acerca da nova tecnologia e, portanto, tem
melhores condições de comprovar que a saúde pública e o ambiente estão a salvo254 do
que o poder público licenciador. A determinação do nível de aceitabilidade de um risco
para a sociedade insere-se na esfera de apreciação política que compete às autoridades
públicas255. No entanto, as informações sobre os riscos envolvidos na nova atividade
devem estar disponíveis para os estados, que são responsáveis por aceitar determinados
riscos em nome da coletividade e que por isso necessitam de ferramentas para calculá-los
de forma consciente e fundamentar a tomada de decisões políticas que afetam a vida dos
indivíduos - diante de um contexto de incertezas científicas e de acordo com o nível de
proteção almejado256.
No plano político, cabe às autoridades públicas desenvolver padrões de pesquisa
científica para superar incertezas e de avaliação periódica de riscos. A proteção do
ambiente é dinâmica e evolui de acordo com o estágio da técnica e da ciência. As
avaliações devem permitir comparações em casos similares, evitando discriminações
desproporcionais. Nesses processos de avaliação, as autoridades devem envolver a
sociedade civil e consultar as partes interessadas desde os primeiros estágios do processo
político, assim como coordenar estruturas de avaliação independentes257. Deve ser
254 Jonathan B. WIENER, Precaution, in The Oxford Handbook of International Environmental Law,
Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 598 e seguintes, 606. Philippe
SANDS, O Princípio da Precaução, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros
Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União,
2004, páginas 40 e seguintes, 48 e 49. 255 Olivier GODARD, O princípio da precaução frente ao dilema da tradução jurídica das demandas
sociais: Lições de método decorrentes do caso da vaca louca, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias
Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 155 e seguintes, 167, 169. 256 Marie-Angèle HERMITTE e Virginie DAVID, Avaliação dos riscos e princípio da precaução, in
Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo
Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 101 e
seguintes, 102 e 110. 257 Olivier GODARD, O princípio da precaução frente ao dilema da tradução jurídica das demandas
sociais: Lições de método decorrentes do caso da vaca louca, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias
Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior
do Ministério Público da União, 2004, páginas 155 e seguintes, 167 e 168.
conferido especial poder às potenciais vítimas, que têm direito (poder) de suscitar
questões sobre os potenciais impactos ambientais, diante de incertezas científicas258.
Importante ressaltar que nem todos os riscos estão protegidos pelo princípio da
precaução, mas apenas riscos graves e irreversíveis, sob pena de se impor custos elevados
e entraves excessivamente rigorosos ao desenvolvimento259.
A questão do ônus da prova no direito do ambiente foi levado à Corte
Internacional de Justiça no Caso dos Testes Nucleares envolvendo Nova Zelândia e
França. A Nova Zelândia fundamentou-se no princípio da precaução para questionar a
conduta da França e atribuiu a esta o ônus de demonstrar que os testes propostos não
impactariam o meio ambiente. Em sua defesa, a França argumentou que os procedimentos
probatórios previstos pelo direito internacional do ambiente são os mesmos do direito
internacional e que, portanto, não cabia a ela o ônus da prova. Não obstante a grande
oportunidade de enfrentar a questão, a referida Corte absteve de se manifestar sobre o
princípio da precaução e o ônus da prova no direito do ambiente260, assim como também
ocorreu no julgamento do Caso Gabčíkovo-Nagymaros261.
Diferentemente, o Tribunal Internacional do Direito do Mar, ao decidir os Casos
Blue-Fin Tuna, reconheceu expressamente o princípio da precaução, ao afirmar que,
apesar das incertezas científicas, medidas de cautela e precaução devem ser tomadas com
urgência para assegurar os direitos das partes e evitar deteriorações futuras dos estoques
258 David FREESTONE e Ellen HEY, Implementando o Princípio da Precaução: Desafios e
Oportunidades, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau
(organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004,
páginas 202 e seguintes, 222-223. José Joaquim GOMES CANOTILHO, O Princípio da sustentabilidade
como Princípio estruturante do Direito Constitucional, Revista de Estudos Politécnicos, Volume VIII,
nº 13, 2010, páginas 7-18, 17. 259 Olivier GODARD, O princípio da precaução frente ao dilema da tradução jurídica das demandas
sociais: Lições de método decorrentes do caso da vaca louca, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias
Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior
do Ministério Público da União, 2004, páginas 155 e seguintes, 165. 260 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso dos Testes Nucleares, Nova Zelândia versus França,
20 de Dezembro de 1974, disponível em: http://www.icjcij.org, acesso em 29/08/2017. Philippe SANDS,
O Princípio da Precaução, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau
(organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004,
páginas 40 e seguintes, 48. 261 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso Gabčíkovo-Nagymaros, Hungria versus Eslováquia,
25 de setembro de 1997, disponível em: http://www.icjcij.org, acesso em 29/08/2017. Nicolas DE
SADELEER, O Estatuto do Princípio da Precaução no Direito Internacional, in Princípio da
Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del
Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 57 e seguintes, 71. Marcelo Dias
VARELLA, Variações sobre um mesmo tema: O exemplo da implementação do princípio da
precaução pela CIJ, OMC, CJCE e EUA, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia
Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público
da União, 2004, páginas 268 e seguintes, 277-278.
de atum azul. Assim, determinou que a pesca daquela espécie deveria respeitar os limites
fixados no acordo comum firmado entre as partes e que mesmo programas de pesca
experimental estavam sujeitas àquele limite, cabendo às partes encetarem negociações262.
A Organização Mundial do Comércio também reconheceu o referido princípio,
ainda que indiretamente, em dois julgamentos emblemáticos, quais sejam, no Caso
Austrália-Salmão263, relativo a medidas que afetam a importação de salmão, e no Caso
Japão264, relativo a medidas que afetam produtos agrícolas265.
Da mesma forma, na decisão proferida no julgamento do caso E-3/00, EFTA
Surveillance Authority versus Norway266, a Associação Europeia de Comércio Livre
justificou a adoção de medidas restritivas diante da probabilidade de ameaças quando o
caráter insuficiente ou impreciso das conclusões tornam impossível determinar o risco ou
o perigo com alguma certeza. No entanto, ressalvou que o princípio da precaução jamais
deve justificar decisões arbitrárias e por isso tais medidas devem ser não discriminatórias
e objetivas, além de fundadas em uma política baseada nas melhores técnicas disponíveis
no momento267.
Feitas essas considerações acerca da vertente procedimental do princípio da
precaução, algumas questões também merecem reflexão. O ônus da prova deve ser apenas
de quem produz a nova tecnologia? Aqueles que terão lucros ou que de alguma forma
262 TRIBUNAL INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR, Southern Bluefin Tuna Cases, Nova
Zelândia versus Japão e Austrália versus Japão, 27 de Agosto de 1999, disponível em https://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no_3_4/Order.27.08.99.E.pdf, acesso em
21/04/2017. Philippe SANDS, O Princípio da Precaução, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias
Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior
do Ministério Público da União, 2004, páginas 40 e seguintes, 50 e 51. Sabino CASSESE, Global
Administrative Law: An Introduction, 2005, página 6. 263 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO, Caso Austrália-Salmão, WT/DS18/AB/R, Canadá
versus Austrália, 20 de Outubro de 1998, disponível em
https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds18_e.htm, acesso em 25/04/2017. 264 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO, Caso Japão, WT/DS76/AB/R, Japão versus Estados
Unidos da América, 22 de Fevereiro de 1999, disponível em
https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/542d.pdf, acesso em 25/04/2017. 265 Marcelo Dias VARELLA, Variações sobre um mesmo tema: O exemplo da implementação do
princípio da precaução pela CIJ, OMC, CJCE e EUA, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella
e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do
Ministério Público da União, 2004, páginas 268 e seguintes, 269-270. 266 UNIÃO EUROPEIA, Associação Europeia de Comércio Livre, E-3/00, EFTA Surveillance Authority
v. Norway, parágrafos 16-22, disponível em
http://www.eftacourt.int/uploads/tx_nvcases/3_00_Judgment_EN.pdf, acesso em 27/08/2017. 267 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, Judicial handbook on Environmental Law, United Nations
Environment Programme, 2005, página 22.
também se beneficiarão, como a própria sociedade, também estão incumbidas de tal
ônus?268 Trata-se de perguntas que ainda precisam ser respondidas.
Além disso, a interpretação científica muda em face de incertezas e
indeterminações. Como conciliar o ônus da prova com a ausência de capacidade da
ciência de determinar os benefícios de medidas de prevenção com segurança e precisão
ou de estabelecer as bases para a tomada de decisões sobre agir ou não agir e as
consequências advindas dessa ação ou não ação? A ausência de dados disponíveis e de
monitoramento por tempo necessário para a consolidação do conhecimento científico
dificultam o estabelecimento de limiares de tolerância de dano ao ambiente, na medida
em que cresce a percepção de que hipóteses científicas não podem ser generalizadas. Por
exemplo, o uso difundido de espécies marinhas indicadoras (espécie chave, como
prognosticadoras de resiliência e diversidade de ecossistemas marinhos) não pode ser
sustentado. Estudos de campo sugerem que a presença de espécies chave, supostamente
atreladas à existência de diversidade da fauna e à robustez do ecossistema em face de
mudanças ambientais, não pode ser garantida de um ecossistema para outro ou sequer no
mesmo ecossistema, diante de situações distintas de mudanças ambientais. A contestação
da verdade científica e objetiva, como reflexo da experiência da falibilidade da ciência, e
a aceitação da dúvida pela comunidade científica demonstram que é preciso lidar com a
indeterminação - a complexidade dos ecossistemas pode tornar inviável o
estabelecimento de parâmetros269.
Mas, ainda que não haja certeza científica absoluta acerca de lesões ambientais de
caráter futuro (com base em juízos de prognose seguros), GOMES CANOTILHO afirma
que o princípio da precaução não desvincula o estado do dever de assumir a
responsabilidade de proteção, reforçando os standards de precaução e proteção de
agressões e impondo a inversão do ônus da prova270. De acordo com o autor, se por um
lado não parece factível atingir o “grau zero” de risco ambiental, por outro “ignorâncias
268 Michael S. CAROLAN, The Precautionary Principle and Traditional Risk Assessment, Rethinking
How We Assess and Mitigate Environmental Threats, Organization & Environment, Volume 20, Nº 1,
2007, páginas 5-24, 8. 269 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 8, 9 e 19. Marie-Angèle HERMITTE e Virginie DAVID, Avaliação dos
riscos e princípio da precaução, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros
Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União,
2004, páginas 101 e seguintes, 102. 270 José Joaquim GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional Ambiental Português: tentativa de
compreensão de 30 anos das gerações ambientais no direito constitucional português, in Direito
Constitucional Ambiental Brasileiro, José Joaquim Gomes Canotilho e José Rubens Morato Leite
(organizadores), São Paulo, editora Saraiva, 2ª edição revista, 2008, páginas 1-11, 8-11.
tecnológicas” e “slogans políticos” devem ensejar a produção de regras densificadoras
das “ciências incertas”271.
Os defensores de um “programa forte” exigem prova absoluta de segurança antes
de autorizarem novas tecnologias, ao fundamento de que não é possível legitimar o lucro
advindo de novas tecnologias às custas da saúde e do ambiente. Portanto, os proponentes
devem suportar o ônus da prova, presumindo-se que novas tecnologias são prejudiciais
até que se produza prova em sentido contrário, reafirmando o brocardo “culpado até
provar sua inocência”272.
O eco-fundamentalismo dos defensores do “risco zero” é alvo de críticas. Não
parece razoável que a inversão do ônus da prova em prol do ambiente consubstancie-se
na exigência da demonstração da ausência absoluta de riscos por parte de quem pretenda
desenvolver uma atividade potencialmente danosa. Mesmo medidas “amigas do
ambiente” podem ter custos ambientais, como a construção de aterros sanitários, usinas
de tratamento de lixo e estações de tratamento de esgoto273.
O bom senso parece ser o caminho para o equilíbrio. A prevenção (em sentido
amplo) não pode se afastar da razoabilidade e, nessa linha, os custos econômicos também
devem ser considerados em busca da moderação, de forma que a persecução do objetivo
de “risco zero” é irreal e somente se justifica em circunstâncias extremas e excepcionais.
Isso porque a precaução absoluta pode levar à perda de oportunidades, à rejeição de
inovações tecnológicas (incluindo aquelas que poderiam resultar em melhorias da saúde
e do ambiente) e ao ceticismo sobre alertas de riscos274.
Por outro lado, parece irresponsável adiar ações preventivas com base na ausência
de certeza científica, notadamente no contexto de uma sociedade de risco com capacidade
de criar riscos irreversíveis em série, cujos efeitos são postergados. Além de frustrar a
expectativa dos indivíduos de gozar a vida de forma plena, isso colocaria a saúde pública
em risco. Diante dessas duas possibilidades, a solução parece estar na prudência275 para
271 José Joaquim GOMES CANOTILHO, O Princípio da sustentabilidade como Princípio estruturante
do Direito Constitucional, Revista de Estudos Politécnicos, Volume VIII, Nº 13, 2010, páginas 7-18, 17. 272 Michael S. CAROLAN, The Precautionary Principle and Traditional Risk Assessment, Rethinking
How We Assess and Mitigate Environmental Threats, Organization & Environment, Volume 20, Nº 1,
2007, páginas 5-24, 9. 273 Vasco PEREIRA DA SILVA, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Editora
Almedina, 2005, 2ª impressão, páginas 70 e 71. 274 Jonathan B. WIENER, Precaution, in The Oxford Handbook of International Environmental Law,
Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 598 e seguintes, 609. 275 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, Judicial handbook on Environmental Law, United Nations
Environment Programme, 2005, página 22. Nicolas DE SADELEER, O Estatuto do Princípio da
Precaução no Direito Internacional, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia
adotar medidas não discriminatórias, coerentes com aquelas adotadas para a gestão de
riscos similares, através de avaliações comparativas276. Requer um exercício de
ponderação entre a razoabilidade e o bom senso, que se traduz na demonstração da
ausência de riscos significativos277.
Por isso, é fundamental avaliar a irreversibilidade do risco catastrófico incerto. É
preciso analisar a probabilidade de risco, assim como os custos e o tempo necessários
para reverter o resultado indesejado. Uma probabilidade muito baixa de risco multiplicada
por um dano muito grande pode produzir um valor esperado significante. O princípio da
precaução pode ser necessário para evitar que riscos aparentemente baixos sejam
negligenciados em situações nas quais, multiplicados, podem gerar danos consideráveis.
Até porque os riscos não são isolados, mas múltiplos e concomitantes. Assim, a prudência
requer uma análise de todo o conjuntos das consequências esperadas278.
Considerando que nada é absolutamente seguro, não há como exigir provas
irrefutáveis da ausência de riscos. A moderação aproxima-se de um “programa fraco”,
que se traduz em uma garantia de não haver danos, mitigada pela razoabilidade, ou seja,
“riscos razoavelmente seguros”. Nessa linha, o princípio da precaução deve ser aplicado
somente se houver alguma prova de que a atividade ameace causar danos ao meio
ambiente e se tal dano for irreversível279. Seu limiar é fluído e varia de acordo com cada
caso concreto280.
Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público
da União, 2004, páginas 57 e seguintes, 79. Marie-Angèle HERMITTE e Virginie DAVID, Avaliação dos
riscos e princípio da precaução, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União,
2004, páginas 101 e seguintes, 101. 276 Olivier GODARD, O princípio da precaução frente ao dilema da tradução jurídica das demandas
sociais: Lições de método decorrentes do caso da vaca louca, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias
Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior
do Ministério Público da União, 2004, páginas 155 e seguintes, 167, 169. Paulo Affonso LEME
MACHADO, Princípio da Precaução no Direito Brasileiro e no Direito Internacional e Comparado,
in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo
Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 336 e
seguintes, 347. 277 Jonathan B. WIENER, Precaution, in The Oxford Handbook of International Environmental Law, Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 598 e seguintes, 606 e 607. 278 Jonathan B. WIENER, Precaution, in The Oxford Handbook of International Environmental Law,
Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 598 e seguintes, 608 e 609. 279 Rüdiger WOLFRUM, O Princípio da Precaução, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e
Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do
Ministério Público da União, 2004, páginas 24 e seguintes, 30. 280 Michael S. CAROLAN, The Precautionary Principle and Traditional Risk Assessment, Rethinking
How We Assess and Mitigate Environmental Threats, Organization & Environment, Volume 20, Nº 1,
2007, páginas 5-24, 9.
Além disso, a decisão que proíbe certa atividade com base no princípio da
precaução pode ser revista caso o desenvolvimento do conhecimento científico demonstre
a ausência da probabilidade de danos significativos ou a suficiência de determinadas
medidas para mitigá-los. Nessa linha, pode-se afirmar que o princípio da precaução
incentiva o desenvolvimento tecnológico, fomenta a comparação de processos e métodos
com base em experiências bem sucedidas, permite analisar a viabilidade econômica de
novas técnicas e obriga a substituição de atividades mais poluentes por outras menos
poluentes281.
O grande desafio consiste em identificar a razoabilidade do risco - o que é
“razoavelmente seguro”282. Envolve questões complexas, incluindo o equilíbrio entre
custos e benefícios, segurança e inovação, aversão ao risco e assunção de risco,
reconhecimento de vulnerabilidades e resiliência, equilíbrio entre falso negativo
(negligenciamento de riscos significativos) e falso positivo (superestimação de riscos
insignificantes), respostas adequadas para incertezas e instabilidades283.
A existência de incerteza não é uma condição para a aplicação do princípio da
precaução. A proporcionalidade requer que o rigor das medidas de precaução
correspondam à probabilidade e à gravidade esperada do dano. TROUWBORST afirma
que, mesmo quando haja certeza, pode ser o caso de aplicar o princípio da precaução.
Havendo certeza de que o dano ocorrerá caso não sejam adotadas medidas de prevenção,
a certeza é mais um motivo para agir. Se os limiares do dano e da probabilidade se
cruzarem, medidas de precaução proporcionais e efetivas devem ser adotadas, quer haja
incerteza ou não. É a preocupação com a ocorrência de um dano, e não a incerteza sobre
a sua ocorrência em si mesma, que fundamenta a aplicação do princípio da precaução.
Assim, o princípio da precaução afirma a necessidade de ação apesar da incerteza, e não
por causa dela. A questão não é quanta incerteza deve existir para que seja aplicado o
princípio da precaução, mas quanta incerteza pode existir. Qual o limiar mínimo de
probabilidade de dano necessário para que sejam adotadas medidas de precaução? A
resposta está na razoabilidade. Havendo bases razoáveis de preocupação, não se justifica
281 Rüdiger WOLFRUM, O Princípio da Precaução, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e
Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do
Ministério Público da União, 2004, páginas 24 e seguintes, 31 a 33. 282 Michael S. CAROLAN, The Precautionary Principle and Traditional Risk Assessment, Rethinking
How We Assess and Mitigate Environmental Threats, Organization & Environment, Volume 20, Nº 1,
2007, páginas 5-24, 16 e 18. 283 Jonathan B. WIENER, Precaution, in The Oxford Handbook of International Environmental Law,
Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 598 e seguintes, 599.
esperar ter absoluta certeza da periculosidade para a aplicação do princípio. Basta a
existência de uma ameaça ao ambiente suficientemente qualificada para que o dever de
agir se imponha284.
Além da pró-atividade, integra o núcleo do princípio da precaução a análise custo-
efetivo. Em termos práticos, analisar os ganhos ambientais e sociais em contraposição aos
custos das medidas de precaução é uma forma de justificar a adoção de medidas dessa
natureza. Nessa análise, deve-se investigar a vulnerabilidade (limite da irreversibilidade
do dano ambiental) dos ecossistemas diante de futuras mudanças e qual a sua capacidade
de resiliência e adaptação. Os custos do adiamento da ação devem justificar a ação
antecipada285.
Surgiu na doutrina o conceito de “espaço ecológico”, desenvolvido por
O’RIORDAN e JORDAN e de acordo com os quais se deve dar ao ambiente um espaço
para respirar, isto é, o gestor público deve preocupar-se em conferir uma “margem de
manobra” nas decisões relacionadas aos recursos ambientais, de forma a não permitir sua
exploração até os limites do sistema ecológico. Nessa “margem de manobra”, é preciso
considerar a legitimação do status do valor intrínseco dos sistemas naturais. Significa que
os ecossistemas mais vulneráveis e críticos, ou aqueles que são essenciais para a
regeneração natural e a preservação ambiental, devem ser protegidos a todo custo. Isso
impõe pressão nas análises de custo-benefício, incluindo o princípio da
proporcionalidade, e limitação na consideração de todas as opções viáveis no processo de
tomada de decisão acerca das medidas a serem adotadas, descartando-se aquelas que se
mostrem nocivas à preservação de determinados ecossistemas considerados essenciais286.
Em relação às decisões do passado, é preciso indagar se, naquele momento, os
tomadores de decisão tinham capacidade de agir com o rigor exigido hoje pelo princípio
da precaução. Seria possível atribuir responsabilidade àqueles que agiram com ausência
de cuidado no passado? A controvérsia reside na razoabilidade em atribuir
responsabilidade a quem tomou decisões no passado, em um contexto de ignorância ou
284 Arie TROUWBORST, Prevention, Precaution, Logic and Law, The Relationship Between the
Precautionary Principle and the Preventative Principle, International Law and Associated Questions,
Erasmus Law Review, Volume 02, Nº 02, 2009, páginas 105 e seguintes, 121 e 123. 285 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 4 e 5. 286 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 5 e 21. David FREESTONE e Ellen HEY, Implementando o Princípio da
Precaução: Desafios e Oportunidades, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia
Barros Platiau (organizadores), Coleção Direito Ambiental em Debate, Editora Del Rey e Escola Superior
do Ministério Público da União, páginas 202 e seguintes, 222.
em que não havia dever moral ou legal de cuidado para com o ambiente, como é exigido
modernamente. O Princípio 15 da Conferência das Nações Unidas ameniza esse rigor, ao
estabelecer que medidas de precaução devem ser adotadas de acordo com as capacidades
dos estados287.
Qualquer que seja a regra de decisão custo-benefício adotada, certamente terá um
viés político, e não puramente financeiro. Para aqueles que defendem a capacidade de
resiliência da natureza e de adaptação da sociedade humana a mudanças dos ecossistemas,
os custos da ação antecipada são mais elevados e por isso devem ser bem justificados. Já
para os ecocentristas, que veem nas alterações dos ecossistemas dificuldades para a
sobrevivência humana e de outras espécies, a justificativa requer menos esforços. Estes
últimos, amparados em conhecimentos científicos, consideram que o capital natural
possui margens irreversíveis e limiares de mudança em um futuro próximo, razão pela
qual a confiança exclusiva na economia pode ser inapropriada. Dessa forma, a gestão de
riscos depende menos de cálculos puramente econômicos do que de um ambiente social
de confiança e responsabilidade288.
Embora no direito internacional não haja exigência de que as medidas de
precaução sejam custo-efetivas em um sentido econômico estrito, existem diretrizes para
nortear, no caso concreto, a adoção de medidas de precaução proporcionais e efetivas.
Elas devem ser oportunas, ou seja, tempestivas; adequadas, individualizadas e ajustas às
especificidades do caso concreto; regularmente revistas e mantidas durante todo o tempo
necessário para prevenir os danos envolvidos, mas não mais que isso. Pesquisa, avaliação
de impactos ambientais, definição de margens de segurança e a inversão do ônus da prova
são exemplos de medidas tipicamente associadas à precaução289.
Registra-se uma sensível mudança na relação entre o princípio da precaução e a
análise custo-benefício no plano internacional. No período compreendido entre as
décadas de 1960 e 1970, as fronteiras do conhecimento científico foram notoriamente
expandidas. Verificou-se uma intensa atividade regulatória nos âmbitos da saúde e
proteção ambiental nos Estados Unidos da América. Nas décadas de 1960-1990, as regras
norte-americanas sobre saúde, segurança e ambiente eram bem mais rigorosas que as
287 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 6. 288 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 12 e 17. 289 Arie TROUWBORST, Prevention, Precaution, Logic and Law, The Relationship Between the
Precautionary Principle and the Preventative Principle, International Law and Associated Questions,
Erasmus Law Review, Volume 02, Nº 02, 2009, páginas 105 e seguintes, 110.
europeias. Foi neste período que, para assegurar altos níveis de proteção à saúde e ao
ambiente da população americana, foram criadas a Environmental Protection Agency
(EPA) e a Occupational Safety and Health Administration (OSHA). A partir da década
de 1990, a situação se inverteu. Se nos Estados Unidos da América houve grande pressão
por parte de grupos econômicos e resistência da indústria, preocupada com o reflexo sobre
suas atividades, na Europa o caminho que passou a ser percorrido foi o do enrijecimento
da regulação. Após uma série de escândalos relacionados à segurança alimentar e saúde
pública (como o episódio que ficou conhecido como “vaca louca”) ter evidenciado que a
política europeia nos setores de alimentação, agricultura, poluição, substâncias químicas,
substâncias perigosas e segurança dos consumidores não era capaz de proteger a
população contra riscos, intensificou-se a regulação europeia, tornando-se, atualmente,
mais rigorosa do que nos Estados Unidos da América290.
Embora alguns estados insistam na análise custo-benefício e sejam reticentes à
aplicação do princípio da precaução a questões ambientais, contraditoriamente adotam
medidas de precaução em matéria de segurança nacional, cujas estratégias são baseadas
na antecipação e prevenção de ataques externos, apesar das incertezas envolvidas291. É o
caso da aplicação da “teoria do um por cento”, adotada após os eventos de 11 de setembro
de 2001, a favor da atuação das forças de segurança diante de potencial ameaça terrorista,
mesmo que haja apenas um por cento de chance de o inimaginável se tornar realidade292.
Por outro lado, estados como os Estados-Membros da União Europeia aplicam a
precaução na esfera ambiental de forma bem mais rigorosa do que na política de
segurança293.
Essa aplicação seletiva da precaução por diferentes estados, contra riscos de
natureza distintas, geralmente orientadas por riscos visíveis ou que geram temor público,
não parece ser o caminho ideal, pois favorece o acirramento de disputas relacionadas ao
mercado internacional e serve à seleção de determinados riscos e medidas de precaução
de acordo com interesses meramente domésticos, em nada contribuindo para o debate
290 Thierry BALZACQ, The Rise of Precaution and the Global Governance of Risks, Political Studies
Review, Volume 13, 2015, páginas 546–559, 547. Jacqueline PEEL, Risk Regulation Under The WTO
SPS Agreement: Science as an International Normative Yardstick?, Nova Iorque, 2004, páginas 23, 33
e 34. 291 Jonathan B. WIENER, Precaution, in The Oxford Handbook of International Environmental Law,
Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 598 e seguintes, 611. 292 Arie TROUWBORST, Prevention, Precaution, Logic and Law, The Relationship Between the
Precautionary Principle and the Preventative Principle, International Law and Associated Questions,
Erasmus Law Review, Volume 02, Nº 02, 2009, páginas 105 e seguintes, 113-114. 293 Jonathan B. WIENER, Precaution, in The Oxford Handbook of International Environmental Law,
Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 598 e seguintes, 611.
global da precaução. Um debate global voltado ao conhecimento dos méritos e deméritos
do princípio da precaução pode ser o início de um processo global de obtenção de um
consenso sobre o critério para a aplicação ótima da precaução baseado na análise de
consequências, com reflexos na celebração de tratados e acordos internacionais sobre
ambiente, segurança, saúde e desenvolvimento, além de estimular a consolidação do
direito administrativo global, incluindo normas e regras compartilhadas de política
regulatória internacional. Esse consenso pode estimular a criação e o desenvolvimento
de uma rede de instituições nacionais e internacionais para conduzir as análises de
impactos de medidas de precaução nacionais e internacionais em diversos domínios
(ambiente, saúde, segurança), repelindo medidas desnecessárias e estimulando aquelas
desejáveis294.
De acordo com O’RIORDAN e JORDAN, o planejamento deve ser em meso-
escala. É preciso considerar os possíveis custos e benefícios durante um período
compreendido entre 25 a 100 anos, durante o qual as decisões tomadas no presente ainda
terão influência. A democracia também interfere na aplicação do princípio da precaução,
na medida em que se baseia em políticas de gratificações imediatas e de que lucrar hoje
é melhor do que preservar para o futuro. Nesse sentido, o princípio da precaução desafia
performances institucionais e até mesmo a noção de cidadania atualmente predominante
de valorização da sociedade atual em detrimento do estado do planeta futuramente295.
O conhecimento e a ciência evoluem com o tempo e por isso é preciso desenvolver
procedimentos para testar a confiabilidade científica. Precaução é “agir e aprender” para
preservar a opção de evitar danos irreversíveis. Assim, a precaução é temporária,
enquanto o novo conhecimento científico é agregado, ou seja, a previsibilidade aumenta
com o acúmulo de experiências. A partir dessas experiências passadas, é possível
modificar o presente para garantir um futuro mais sustentável. Além de vontade política
e estrutura adequada para adotar medidas de precaução, é preciso incentivar o
desenvolvimento de novos conhecimentos e aplicá-los às políticas atuais. Quando uma
política é adotada, instituições relutam em revisá-la, o que desestimula o avanço do
conhecimento científico e a adoção de novas técnicas296.
294 Jonathan B. WIENER, Precaution, in The Oxford Handbook of International Environmental Law,
Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 598 e seguintes, 611-612. 295 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 6. 296 Jonathan B. WIENER, Precaution, in The Oxford Handbook of International Environmental Law,
Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 598 e seguintes, 610.
Os limites entre política, economia, sociedade e ambiente são cada vez mais
tênues. Se por um lado o princípio da precaução promove conscientização cívica e coloca
freios às constantes necessidades de progresso e prosperidade estabelecidas pelo mercado
e pela sociedade, por outro sua legitimação política pode ser desenvolvida através de
acordos internacionais, da abertura de decisões comerciais e industriais a fóruns com o
intuito de estabelecer posições comuns sobre questões relevantes, ou de mecanismos de
compensação pela perda de direitos de propriedade em áreas onde existe uma incerteza
genuína sobre os limiares de resiliência. A avaliação e a mitigação de ameaças ambientais
é um processo complexo. Nesse rumo, o princípio da precaução estimula a “ciência
cíviva” e a “modernização ecológica”, com foco no equilíbrio e no meio termo, por meio
de trocas entre cidadãos e especialistas em busca de consenso em torno de incertezas. A
democratização da avaliação, isto é, a democratização da ciência mediante a interação
entre cientistas e especialistas de diferentes orientações com o público, mas sem abrir
mão da autoridade cognitiva dos peritos, favorece mudanças positivas no relacionamento
da sociedade com a natureza, conferindo à sua vulnerabilidade o potencial para que a
precaução possa ser implantada de forma mais confiável na transição297.
O dever de se antecipar a lesões ambientais atuais e futuras legitima a adoção de
regimes legais internos mais protetivos do que aquele previsto pela Convenção de Nova
Iorque e outros documentos internacionais, ainda tímidos em matéria de avaliação e
gestão de riscos atrelados a cursos de água. E a melhor maneira de concretizar esse dever
é através da exigência de uma avaliação prévia de impactos ambientais de projetos
potencialmente causadores de impactos de natureza significativa. Logo, observa-se que
os princípios em comento são indissociáveis da avaliação de impactos, que se constitui
em uma verdadeira estratégia para o enfrentamento de riscos ambientais298.
É o que se observa na Alemanha, em cuja legislação o princípio da precaução se
encontra bem consolidado em um vasto rol de normas e com reflexos na jurisprudência,
297 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 19 a 22. Michael S. CAROLAN, The Precautionary Principle and
Traditional Risk Assessment, Rethinking How We Assess and Mitigate Environmental Threats, Organization & Environment, Volume 20, Nº 1, 2007, páginas 5-24, 6 e 12. 298 Nesse sentido, B. Gove, RHW. Langston, A. McCluskie, JD. & Scrase Pullan, I. RSPB, BirdLife in the
UK, Wind Farms And Birds: An Updated Analysis Of The Effects Of Wind Farms On Birds, And
Best Practice Guidance On Integrated Planning And Impact Assessment, BirdLife International on
behalf of the Bern Convention on the conservation of european wildlife and natural habitats, Estrasburgo,
2013, páginas 43 e 44, disponível em
http://www.birdlife.org/sites/default/files/attachments/201312_BernWindfarmsreport.pdf, acesso em
21/03/2016. Carla AMADO GOMES, Risco e Modificação do Acto Administrativo Concretizador de
Deveres de Protecção do Ambiente, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, página 237.
igualmente ampla. Destacam-se os seguintes: Federal Act for Protection against
Pollution (BImSchG, 1974, article 5/1/2), e o Biotechnology Act (GenTG, 1990, article
6/2). Em sua maioria, as decisões dos Tribunais alemães procuram delimitar a
discricionariedade do administrador público quanto à aplicação do princípio da
precaução. No caso envolvendo permissão de operação de reatores nucleares, dois
julgamentos importantes – da Corte Constitucional Federal (Kalkar case, 1978) e da Corte
Administrativa Federal (Wyhl case, 1985) – explicitamente reconheceram o poder do
administrador público de adotar medidas de precaução contra perigos identificados e
contra riscos ainda não identificados. Contudo, admitiram a existência de um risco
residual que deveria ser tolerado pela sociedade299.
Em que pesem os avanços normativos, há um considerável vácuo entre a previsão
legal e a aplicação prática do princípio da precaução. A conscientização acerca de
questões ambientais globais modificou a forma de percepção do princípio da soberania e
da vulnerabilidade dos bens ambientais, já que atividades desenvolvidas em bens
compartilhados, ainda que dentro da fronteira dos estados, podem ter impactos
significativos sobre os sistemas ambientais globais e por isso são contestadas pela
comunidade internacional. Essa evolução científica permitiu uma maior aceitação do
princípio da precaução. O desafio consiste em implementá-lo. De forma geral, a
jurisprudência internacional tem se mostrado bastante resistente à aplicação do princípio
da precaução. Como defender a aplicação do referido princípio e inviabilizar uma
atividade legal, diante da ausência de evidências científicas de que ela possa causar danos
à saúde ou ao ambiente?300
Os tribunais internacionais deixam de exercer a função de reduzir o alto grau de
abstração e generalidade do mencionado princípio, de forma a suprir lacunas de tratados,
interpretar o direito convencional e conferir coerência ao sistema jurídico. É possível
verificar essa inércia nos julgamentos proferidos pela Corte Internacional de Justiça no
Caso dos testes nucleares, envolvendo França e Nova Zelândia, e no Caso Gabčíkovo-
Nagymaros, envolvendo Hungria e Eslováquia301.
299 Peter H. SAND, The Precautionary Principle: A European Perspective, Human and Ecological Risk
Assessment, Volume 6, n.º 3, páginas 445-458, 456 e 457. 300 David FREESTONE e Ellen HEY, Implementando o Princípio da Precaução: Desafios e
Oportunidades, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau
(organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004,
páginas 202 e seguintes, 202, 203, 209 e 210. 301 Peter H. SAND, The Precautionary Principle: A European Perspective, Human and Ecological Risk
Assessment, Volume 6, Nº 3, páginas 445-458, 449, 450 e 455.
O receio da Corte Internacional de Justiça em reconhecer expressamente o dever
de precaução como “princípio geral de direito”, com fundamento no artigo 38, alínea “c”
do seu Estatuto, justifica-se em razão de sua jurisdição ser decorrente do consentimento
dos estados. O reconhecimento expresso do referido princípio poderia ser considerado
um passo muito audacioso, que colocaria em risco sua credibilidade, já que sua
consagração poderia desagradar determinados estados, diante dos custos e entraves
econômicos que representa, além das controvérsias que o circundam302.
Em 2008, no Caso Colômbia versus Equador, a Corte Internacional de Justiça foi
acionada para decidir um conflito envolvendo o uso de herbicidas tóxicos aéreos na forma
de spray pela Colômbia na fronteira com o Equador, no qual o Equador acusou a
Colômbia de não ter agido com a precaução necessária303. Porém, as partes colocaram
fim à controvérsia, por meio de um acordo firmado em 9 de setembro de 2013, por meio
do qual estabeleceram a criação de uma zona de exclusão, na qual a Colômbia não
realizaria operações de pulverização aérea, criaram uma comissão conjunta para garantir
que as operações de pulverização fora dessa zona não causariam danos para o Equador304.
Feitas essas considerações sobre o princípio da precaução, é possível concluir que
a análise de risco baseia-se em três elementos: avaliação, gestão e comunicação do
risco305. A multiplicidade de mecanismos legais existentes, tais como a avaliação de
impactos ambientais, licenciamento, autorizações, limites de emissão de poluentes,
criação de espaços territoriais especialmente protegidos pelo Poder Público e a exigência
de utilização das melhores técnicas disponíveis, torna ainda mais complexa a
implementação do princípio da precaução. Também podem ser utilizados mecanismos de
dissuasão e desincentivo, tais como penalidades e responsabilização civil, além da adoção
de estratégias e programas estatais de educação da sociedade, do encorajamento da
302 Nicolas DE SADELEER, O Estatuto do Princípio da Precaução no Direito Internacional, in
Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo
Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 57 e seguintes,
70. 303 Arie TROUWBORST, Prevention, Precaution, Logic and Law, The Relationship Between the
Precautionary Principle and the Preventative Principle, International Law and Associated Questions,
Erasmus Law Review, Volume 02, Nº 02, 2009, páginas 105 e seguintes, 108. 304 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso da Pulverização Aérea de Herbicidas, Equador
versus Colômbia, 13 de setembro de 2013, disponível em http://www.icj-cij.org/en/case/138, acesso em
03/12/2017. 305 Marie-Angèle HERMITTE e Virginie DAVID, Avaliação dos riscos e princípio da precaução, in
Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo
Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 101 e
seguintes, 112.
adoção de técnicas de prevenção da poluição e do estímulo ao cumprimento de normas
regulatórias306.
No tópico a seguir, será analisada a avaliação de impacto ambiental - consagrada
ferramenta de gestão ambiental, fundamental para a implementação do princípio da
precaução307.
3.3.1. Avaliação de impacto ambiental
O método mais primário de implementação do princípio da precaução é a
avaliação de impactos, através do planejamento cuidadoso e da avaliação dos efeitos
prováveis de ações significativas antes da implementação de projetos308. O princípio da
precaução busca a segurança de novos projetos e tecnologias. Constitui a expressão mais
evoluída da obrigação geral de não causar danos ao ambiente, ao passo em que a avaliação
de impactos preocupa-se em impedir que a degradação ambiental ocorra, ao invés de
esperar que danos se concretizem para somente então tentar neutralizar seus efeitos309.
Por isso, embora o termo “avaliação” possa estar associado à ideia de análise posterior, a
avaliação ambiental enquanto instrumento de gestão ambiental deve ser realizada
previamente. Mas, nada impede, pelo contrário, recomenda-se, que também seja realizada
uma análise posterior a fim de monitorar resultados em seus aspectos socioambientais310.
Apesar de o termo “impacto” ser abstrato e incerto, o impacto aqui referido deve
ser interpretado de maneira ampla. Abrange impactos sobre relações ecológicas
complexas, saúde, segurança, atividades econômicas existentes e prospectivas, condições
socioeconômicas ou culturais e sustentabilidade do uso das águas311. Abrange, também,
impactos indiretos raramente previsíveis, embora em grande parte irreversíveis312.
306 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, Judicial handbook on Environmental Law, United Nations
Environment Programme, 2005, páginas 20 e 21. 307 Édis MILARÉ, Direito do Ambiente, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, página
529. 308 INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION, Fourth Report, Berlin Conference, 2004, páginas 28 e 29
(capítulo V, artigo 23). 309 Alexandre KISS, Os Direitos e Interesses das Gerações Futuras e o Princípio da Precaução, in
Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo
Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 12 e seguintes,
22. 310 Édis MILARÉ, Direito do Ambiente, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, página
529. 311 INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION, Fourth Report, Berlin Conference, 2004, páginas 31-32. 312 Stephen DOVERS, Precaution, Prediction, Proof, and Policy Assessment, New Solutions, Volume
12, Nº 3, 2002, páginas 281-296, 289.
De acordo com a Convenção sobre Avaliação dos Impactos Ambientais num
Contexto Transfronteiriço, conhecida como Convenção de Espoo, assinada na Finlândia,
em 25 de Fevereiro de 1991, no âmbito da Comissão Econômica para a Europa das
Nações Unidas, impacto abrange “todos os efeitos da atividade proposta sobre o
ambiente, nomeadamente sobre a saúde e a segurança, a flora, a fauna, o solo, a atmosfera,
as águas, o clima, a paisagem e os monumentos históricos ou outras construções ou a
interação entre estes fatores; designa, igualmente, os efeitos sobre o património cultural
ou as condições socioeconômicas que resultam das modificações destes fatores” (art. 1º,
nº 7).
O princípio, de origem consuetudinária, encontra previsão, ainda, no artigo 29 das
Regras de Berlim. Também no âmbito das Nações Unidas, os Princípios 17 e 19,
aprovados na Conferência de 1992, tratam da avaliação de impacto ambiental como
instrumento nacional de planejamento.
Considerando que as bacias hidrográficas internacionais ultrapassam as fronteiras
dos estados, é indispensável que a avaliação considere o impacto transfronteiriço,
definido pela Convenção de Espoo como “qualquer impacto e não exclusivamente um
impacto de carácter mundial, que a atividade proposta é suscetível de exercer dentro dos
limites de uma zona abrangida pela jurisdição de uma Parte e cuja origem física se situa,
no todo ou em parte, dentro da zona” (art. 1º, nº 8).
Embora a avaliação de impactos ambientais não seja exigida expressamente pela
Convenção de Nova Iorque, o seu artigo 12 não deixa dúvidas acerca da sua
imprescindibilidade, ao prever que a notificação “deverá ser acompanhada dos dados
técnicos e da informação disponível, incluindo os resultados de toda e qualquer avaliação
de impactos ambientais, para que os estados possam avaliar os efeitos que possam resultar
de tais medidas”. A inclusão dessa previsão foi o mais próximo que se conseguiu chegar
de uma avaliação de impactos ambientais durante as negociações da Convenção de Nova
Iorque, tendo em vista que os estados apresentaram resistência quanto à exigência dessa
avaliação313.
A Convenção de Espoo vai além da Convenção de Nova Iorque, para determinar
a realização de avaliação de impacto ambiental de determinadas atividades na fase inicial
313 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 408.
de planejamento, bem como a notificação e consulta relativamente a todos os projetos
suscetíveis de causarem impacto ambiental transfronteiriço significativo314.
Inspirados na Convenção de Espoo, acordos regionais também fornecem a base
necessária para a elaboração de avaliações de impactos ambientais transfronteiriços,
evitando, assim, que novos projetos e atividades coloquem em risco o ambiente da bacia
hidrográfica internacional.
É o caso da China, que é parte de acordos internacionais de cooperação sobre
impactos ambientais transfronteiriços, como na Bacia do Mekong, com a Rússia. O
próprio direito internacional costumeiro, após 1992, amparado no princípio da precaução
e no dever de não causar danos, impõe a obrigação de prevenir danos ambientais além
dos limites territoriais dos estados, sendo que a principal ferramenta disponível é a
avaliação de impacto ambiental transfronteiriços315.
Rigoroso, o Protocolo de Proteção do Tratado da Antártica, de 4 de outubro de
1991, exige a avaliação de impacto ambiental mesmo em atividades potencialmente
causadoras de impactos menores ou transitórios. À semelhança do procedimento do
NEPA, prevê um sistema de avaliação ambiental inicial para determinar se uma atividade
tem impactos menores ou transitórios, o que inclui a descrição da atividade, de seus
impactos, bem como de alternativas à ela. Na hipótese de a avaliação ambiental inicial
revelar mais do que um impacto menor ou transitório, deve ser preparada uma avaliação
ambiental abrangente, mais detalhada, com descrição das informações ambientais de
base, metodologia de análise, consideração dos impactos indiretos e cumulativos e
identificação de medidas de mitigação316.
No entanto, nem todos os documentos internacionais contêm esse nível de rigor.
A Convenção de Espoo contém duas listas com atividades sujeitas à avaliação de impacto
314 Fonte:
https://www.apambiente.pt/_zdata/Politicas/Assuntos%20Internacionais/Conveno%20de%20Espoo_lm.p
df, acesso em 01/08/2017. Ashok SUBRAMANIAN, Bridget BROWN e Aaron T. WOLF criticam a
postura da China, restrita a uma mera participação seletiva como mera observadora, quando deveria se
juntar aos demais estados da bacia para efetivamente negociar um acordo, Understanding and overcoming
risks to cooperation along transboundary rivers, Water Policy, N.o16, 2014, páginas 824-843, 826. 315 Rüdiger WOLFRUM, O Princípio da Precaução, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do
Ministério Público da União, 2004, páginas 24 e seguintes, 28. Nadia S. CASTILLO e Yongmin BIAN,
China's Obligation to Conduct Transboundary Environmental Impact Assessment (TEIA) in
Utilizing Its Shared Water Resources, Natural Resources Journal, Volume 55, 2015, páginas 105 e
seguintes, 105, 106, 108 e 111, disponível em: http://digitalrepository.unm.edu/nrj/vol55/iss1/5, acesso em
22/09/2017. 316 Artigo 8, n.º 1. Disponível em http://www.ats.aq/documents/recatt/Att006_e.pdf, aceso em 19/09/2017.
Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, páginas 136 e139.
ambiental, em relação às quais os impactos significativos são presumidos. O apêndice I
elenca as atividades “suscetíveis de impactos ambientais transfronteiriços prejudiciais
importantes”, sujeitas à avaliação de impacto ambiental, de acordo com o procedimento
previsto no apêndice II. Já o apêndice III estabelece “critérios gerais destinados a auxiliar
a determinação da importância dos impactos ambientais das atividades que não constam
da lista do apêndice I”. Nesta última hipótese, a avaliação de impacto ambiental não é
obrigatória. Os estados têm “apenas” o dever de discutir sobre a probabilidade de
impactos, de acordo com os critérios do apêndice III317.
Exceto nos casos em que há certeza acerca da insignificância ou da transitoriedade
dos impactos ambientais, a realização de um profundo estudo sobre os potenciais
impactos, inclusive que considere os impactos direitos, indiretos, cumulativos, de longo
e curto prazos, é de extrema relevância para evitar danos ao ambiente. Somente a partir
de um estudo dessa natureza é possível prever os possíveis impactos e, assim, limitar ou
até mesmo transpor os efeitos adversos de determinado projeto sobre o ambiente,
evitando alterações significativas no ecossistema da bacia hidrográfica.
A tradicional avaliação de riscos pressupõe que novas tecnologias são seguras até
provar que são perigosas. Cientistas percorrem quatros passos da avaliação de riscos -
identificação do problema, avaliação da exposição, avaliação de toxicidade e
caracterização do risco -, que é realizada de forma generalizada e abstrata. Análises de
profissionais locais e práticos produzem conhecimentos interacionais (concreto-práticos)
e permitem a interação entre a comunidade científica (que produz conhecimentos
abstratos-científicos) e a sociedade, já que a participação do público é fundamental no
processo de avaliação de impacto. Embora seja raro na prática, o conhecimento público
deve ser incorporado no processo de tomada de decisão, quando a abertura à sociedade é
admita durante o processo de produção legislativa318.
Na linha da Convenção de Espoo, as Regras de Berlim preveem a participação do
público na avaliação de impacto ambiental, inclusive o público potencialmente afetado
de outro estado, em igualdade de condições conferidas ao público do estado de origem.
Vão além do mero acesso à informação, para também assegurar oportunidade para efetiva
317 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, páginas 134 e 135. 318 Michael S. CAROLAN, The Precautionary Principle and Traditional Risk Assessment, Rethinking
How We Assess and Mitigate Environmental Threats, Organization & Environment, Volume 20, n.º 1,
2007, páginas 5-24, 9, 13 e 15.
participação no processo de avaliação de impacto em si mesmo319, que deve abranger
todos os indivíduos potencialmente afetados e não apenas um grupo privilegiado320.
A interação entre as expertises abstrata/científica (contributory expertise),
prática/local (interactional expertise) e pública (public expertise) pluraliza e democratiza
a avaliação de impactos e afasta preconcepções da comunidade científica que possam
influenciar o resultado final321.
Um instrumento interessante para avaliação de impactos potenciais consiste na
determinação de prestar informações especificadas à autoridade competente no plano da
bacia internacional, sobre características e efeitos no ambiente de projetos que
aparentemente não têm potencial para causar impacto significativo. A partir dos
resultados da verificação preliminar, a autoridade competente poderá exigir ou dispensar
uma avaliação do impacto ambiental, devendo fazê-lo fundamentadamente. Além de
assegurar maior proteção ao ambiente, a alteração introduzida confere maior segurança à
autoridade competente para justificar a necessidade ou dispensa da avaliação do impacto,
bem como assegura ao público o acesso à informação acerca dos potenciais riscos
relacionados ao projeto, uma vez que a determinação deve ser obrigatoriamente
disponibilizada.
Para saber se as medidas projetadas podem “exportar poluição” – sujeitas ao dever
de notificação prévia sobre projetos potencialmente causadores de efeitos adversos sobre
o ambiente de outros estados -, é preciso realizar uma avaliação de impactos. Essa
avaliação é importante tanto para conhecer e notificar os estados potencialmente
prejudicados acerca dos efeitos prejudiciais, facultando-lhes discutir os projetos, quanto
para permitir a participação de público e de demais interessados da comunidade
internacional322. Infelizmente, a avaliação de impacto é discutida de forma periférica pela
jurisprudência da Corte Internacional de Justiça323.
319 INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION, Fourth Report, Berlin Conference, 2004, páginas 32. 320 Michael S. CAROLAN, The Precautionary Principle and Traditional Risk Assessment, Rethinking
How We Assess and Mitigate Environmental Threats, Organization & Environment, Volume 20, n.º 1,
2007, páginas 5-24, 11. 321 Michael S. CAROLAN, The Precautionary Principle and Traditional Risk Assessment, Rethinking
How We Assess and Mitigate Environmental Threats, Organization & Environment, Volume 20, n.º 1,
2007, páginas 5-24, 13-15. 322 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 409. 323 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, página 111.
No julgamento do Caso Gabčíkovo-Nagymaros324, embora não tenha enfrentado
diretamente a questão atinente ao princípio da precaução, suscitada pela Hungria, a Corte
Internacional de Justiça demonstrou preocupação com as questões ambientais,
notadamente com a irreversibilidade do dano ambiental, destacando a importância da
avaliação dos impactos ambientais, apesar do silêncio do tratado de 1977. Assentou que
a vigilância e a prevenção são indispensáveis para a preservação do ambiente,
especialmente diante da frequente natureza irreversível de danos ambientais, bem como
das dificuldades e limitações inerentes à reparação desta espécie de dano. Logo, os
projetos devem ser analisados de acordo com os padrões ambientais vigentes e inclusive
com base em novas normas de avaliação de impactos. A Corte não estava preparada para
dizer quais eram esses padrões, mas ao decidir a controvérsia determinou que as partes
analisassem novamente os efeitos da operação das usinas sobre o ambiente, com destaque
para a importância de os estados alertarem uns aos outros sobre as consequências
ambientais dos projetos propostos. Assim, as partes deveriam empreender negociações
entre si, levando em conta os impactos ambientais e os princípios de direito internacional
do ambiente aplicáveis325.
Os inúmeros estudos científicos apresentados pelas partes à Corte demonstram
que, apesar de contraditórios, há evidências de que os impactos são significativos e não
devem ser desprezados. As partes têm o dever de manter a qualidade da água e proteger
o meio ambiente. A irreversibilidade de parte significativa dos danos ambientais requer
proteção, vigilância e prevenção por parte dos estados, tendo em conta a limitação dos
mecanismos de recuperação. Ao tratar do dever de vigilância e da irreversibilidade do
dano ambiental, é possível defender o reconhecimento pela Corte do princípio da
precaução, ainda que implicitamente 326.
De acordo com o voto proferido pelo juiz Weeramantry no caso em comento, a
avaliação de impacto ambiental não deve integrar apenas a fase de planejamento. É
necessário monitorar de forma contínua impactos de projetos de grande porte, diante do
risco de consequências inesperadas e desconhecidas. Assim, o referido magistrado
reconheceu o status do monitoramento pós-projeto como parte integral da avaliação de
324 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso Gabčíkovo-Nagymaros, Hungria versus Eslováquia,
25 de setembro de 1997, disponível em: http://www.icjcij.org, acesso em 29/08/2017. 325 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, páginas 426-427. 325 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment,
Process, Substance and Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, páginas 111-115. 326 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas194-195.
impacto ambiental no direito internacional. Esse monitoramento é descrito na Convenção
de Espoo como “análise a posteriori” (artigo 7º e Apêndice V)327.
A fundamentação jurídica que respaldou esse julgamento representa uma
evolução na jurisprudência da Corte Internacional de Justiça, na medida em que se
percebe um aprofundamento no trato das consequências ambientais de projetos que visam
o desenvolvimento econômico com destaque para a necessidade de ponderar os possíveis
danos de natureza transfronteiriça, a partir da avaliação de impactos ambientais.
A importância conferida à avaliação de impactos a fim de evitar danos
transfronteiriços sugere que o dever de realizar dita avaliação pode estar, pelo menos, em
um processo de emergir como uma norma internacional costumeira328.
Qualquer projeto que envolva modificação de um curso de água internacional
deve estar sujeito a uma avaliação ambiental inicial sobre a possibilidade de provocar
impactos ambientais significativos. Dependendo do resultado, deve ser exigida a
avaliação de impacto ambiental, hipótese em que consultas públicas devem ser
obrigatórias. Assim, garante-se que qualquer possível impacto seja analisado e
considerado no processo de licenciamento, além de assegurar ao público oportunidade de
participar do processo de avaliação.
Também é importante analisar como impactos semelhantes foram avaliados em
circunstâncias parecidas, de forma a eliminar casuísmos e a aprender com experiências
do passado, assim como criar mecanismos para que informações do passado possam
alimentar processos de avaliação ambiental futuros. Além disso, a avaliação de impacto
transfronteiriço fomenta a cooperação entre os estados, bem como promove a integração
de questões relevantes, ao considerar benefícios sociais, econômicos e ambientais para o
estado de origem e os potenciais impactos sobre estados afetados329.
Além disso, não se pode desconsiderar que acordos são dinâmicos. A realidade
muda ao longo do tempo e com ela as demandas por soluções. Avaliações periódicas
exercem um poderoso papel no sentido de diagnosticar as situações atuais e propor
respostas adequadas a elas330.
327 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, páginas 114, 115 e 120. 328 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 408. 329 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, páginas 137 e 163. 330 Ashok SUBRAMANIAN, Bridget BROWN e Aaron T. WOLF, Understanding and overcoming risks
to cooperation along transboundary rivers, Water Policy, N.o16, 2014, páginas 824-843, 842.
Assim, a elaboração de mapas estratégicos para o estabelecimento de metas, com
métodos de avaliação e monitoramento dos cursos de água de bacias hidrográficas
internacionais, com indicadores que permitam reavaliações periódicas previamente
determinadas, podem contribuir para a minimização dos impactos.
O regime alemão de mapeamento territorial para a produção de energia eólica
pode servir de inspiração para a preservação das bacias hidrográficas internacionais e
compatibilizá-la com a produção de energia hidrelétrica de forma sustentável. Trata-se de
uma nova categoria de zoneamento denominada “áreas apropriadas” (Eignungsgebiet).
Somente no interior dessas áreas é possível requerer a instalação de projetos. A técnica
adotada consiste no mapeamento das áreas proibidas (áreas relevantes de conservação da
natureza, zonas de amortecimento, áreas de alta sensibilidade paisagística, florestas,
zonas industriais e residenciais). Depois, analisa-se o potencial eólico das áreas
remanescentes, nas quais os interessados poderão requerer autorização para a instalação
de projetos. Além de proteger zonas sensíveis, nas quais sequer é permitido requerer
autorização para a instalação de projetos, esse regime de planejamento simplifica a
avaliação de impactos, uma vez que durante o processo de designação já são analisados
os possíveis efeitos adversos e excluídas as áreas ambientais mais sensíveis331. O modelo
alemão poderia ser adotado pelos estados que compartilham a mesma bacia hidrográfica
internacional, através da formalização de acordos internacionais para a exploração
sustentável dos recursos hídricos voltada para a produção de energia hidrelétrica. O
mapeamento de zonas de risco permitiria identificar previamente áreas nas quais a
execução de projetos de pequeno, médio e grande porte seriam permitidas ou proibidas.
Somente nas zonas permitidas seria possível aos estados da bacia autorizar projetos, cujo
porte deve ser compatível com o mapeamento previamente realizado em conjunto e com
previsão em acordo internacional.
O mapeamento possibilitaria delimitar áreas de intervenção, divididas em áreas de
ocupação restrita, essenciais para a proteção das águas destinadas ao consumo humano e
para a proteção, conservação e recuperação das fontes de água; áreas de ocupação
dirigida, cuja ocupação é controlada e dirigida à urbanização e à agricultura, mediante o
331 Gesa GEIßLER, Johann KÖPPEL e Pamela GUNTHER, Wind energy and environmental
assessments - A hard look at two forerunners' approaches: Germany and the United
States, Renewable Energy, 51, Editora Elsevier, 2013, páginas 71-78, 73-76, disponível em http://ac.els-
cdn.com/S0960148112005800/1-s2.0-S0960148112005800-main.pdf?_tid=a0380874-f749-11e5-95b8-
00000aacb35f&acdnat=1459433309_e5c7009d00236868ff55c12782f547b5, acesso em 01/04/2016.
atendimento de determinados objetivos estipulados; áreas de ocupação ambiental,
destinadas à recuperação ambiental, o uso ou a ocupação são incompatíveis332.
Uma outra questão deve ser debatida. Como empregar a avaliação de impacto
ambiental em processos de tomada de decisões que abordam questões ambientais de
dimensões internacionais?333 Reformas políticas, institucionais e legislativas para o
desenvolvimento de estratégias institucionais e políticas progressistas e articuladas
podem estimular incorporação de questões ambientais na política econômica334.
Compromissos decorrentes da avaliação de impacto ambiental, já aceitos
internacionalmente, podem estruturar considerações políticas, científicas e normativas de
forma a influenciar resultados substantivos335. Por exemplo, através da incorporação da
regra da inversão do ônus da prova em documentos internacionais, a título do que já se
verifica em legislações nacionais, como no Ato de Controle de Substâncias Tóxicas norte-
americano336.
A avaliação de impacto, no entanto, encontra dificuldades práticas que podem lhe
retirar a confiabilidade. É preciso superar o modelo tradicional de avaliações isoladas
através de mecanismos corretivos, pós-projeto e de feedback. A análise de risco setorial
individualizada mostra-se insuficiente, considerando que atualmente a exposição a
diversos tipos de riscos simultaneamente é comum. Em geral, não são considerados os
efeitos cumulativos que influenciam propostas individuais337.
Exemplo disso é a própria Convenção de Espoo. Ao definir avaliação de impacto
ambiental como “um processo nacional tendo como objetivo a avaliação dos impactes
prováveis de uma atividade proposta sobre o ambiente” (art. 1º, nº 6), não faz qualquer
referência a impactos cumulativos e de longo prazo.
É recomendável que os estudos de campo sejam realizados por um período
mínimo a ser estabelecido em comum acordo entre os estados da bacia, para identificar
332 A exemplo do que prevê a Lei n.o 9.866/97, do Estado de São Paulo, em relação ao Aquífero Guarani. 333 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, página 5. 334 Stephen DOVERS, Precaution, Prediction, Proof, and Policy Assessment, New Solutions, Volume
12, Nº 3, 2002, páginas 281-296, 294. 335 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, página 5. 336 Paolo F RICCI, Louis A COX JR e Thomas R MACDONALD, Precautionary principles: a
jurisdiction-free framework for decision-making under risk, Human & Experimental Toxicology,
Volume 23, 2004, páginas 579-600, 582, 587. 337 Stephen DOVERS, Precaution, Prediction, Proof, and Policy Assessment, New Solutions, Volume
12, Nº 3, 2002, páginas 281-296, 284. Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact
Assessment, Process, Substance and Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, página
79.
as espécies da fauna e da flora mais vulneráveis, bem como apurar quais delas poderão
ser afetadas por eventuais projetos que provoquem modificações dos cursos de água. Da
mesma forma, métodos padronizados de coletagem de dados utilizados na avaliação de
projetos propostos, que permitam uma comparação fidedigna entre antes, durante e após
a execução, nem sempre são utilizados, uma vez que tudo isso demanda tempo e
investimentos que encarecem os projetos.
O Protocolo da Antártica e o Protocolo de Kiev também preveem o
monitoramento contínuo como parte integrante da avaliação de impacto ambiental
utilizando o processo de avaliação ambiental como ferramenta de gestão adaptativa.
Decorre da obrigação de não causar danos e do princípio da cooperação, que vão além da
fase de planejamento do projeto338.
A evolução do conhecimento científico requer uma avaliação holística e integrada
que considere os riscos associados e combinados com outros riscos. Uma substância
química pode não ter efeitos tóxicos em determinada dosagem, porém quando combinada
com outras pode ter339.
As próprias bacias hidrográficas são distintas entre si. Os cursos de água, assim
como os ecossistemas que integram, apresentam características diferentes uns dos outros.
Embora os resultados de pesquisas de avaliação de riscos apresentem-se objetivos, claros
e concisos, estão longe do ideal científico. Se os efeitos de determinadas substâncias
podem variar de organismo para organismo dentro da mesma espécie pesquisada, de
acordo com a sensibilidade de cada organismo (mulheres, idosos, jovens, crianças,
pessoas com alguma enfermidade), da mesma forma, os impactos de determinada
atividade sobre uma bacia hidrográfica podem variar de acordo com a vulnerabilidade do
ecossistema e com sua capacidade de adaptação e resiliência340.
O reflexo da evolução do direito internacional em tema de avaliação de impactos
ambientais transfronteiriços, embora lenta, já pode ser percebido na jurisprudência.
Em 2010, a Corte Internacional de Justiça reconheceu que a obrigação de conduzir
avaliação de impacto ambiental transfronteiriço constitui norma de direito internacional
costumeiro, ao decidir o caso Pulp Mills, envolvendo fábricas de celulose uruguaias. A
338 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, páginas 154 e 158. 339 Stephen DOVERS, Precaution, Prediction, Proof, and Policy Assessment, New Solutions, Volume
12, Nº 3, 2002, páginas 281-296, 284. 340 Michael S. CAROLAN, The Precautionary Principle and Traditional Risk Assessment, Rethinking
How We Assess and Mitigate Environmental Threats, Organization & Environment, Volume 20, Nº 1,
2007, páginas 5-24, 9-10.
Argentina alegou que o Uruguai violou o Estatuto do Rio Uruguai, de 1975, ao autorizar
a construção de duas fábricas de celulose no Rio Uruguai, com referência em particular
aos efeitos das atividades sobre a qualidade das suas águas. A Corte afirmou que a
realização de avaliação de impactos ambientais de atividades que possam ter impactos
significativos em um contexto transfronteiriço, prevista no referido estatuto, ganhou
aceitação entre os estados e pode ser considerada uma obrigação geral de direito
internacional, notadamente em se tratando de recursos compartilhados. De acordo com a
referida Corte, os deveres de diligência e de vigilância e prevenção não poderiam ser
considerados cumpridos sem que seja realizada avaliação de impacto ambiental
transfronteiriço e que aqueles deveres são essenciais para assegurar a preservação do
equilíbrio ecológico, tendo em vista que as atividades humanas podem ter impactos sobre
os cursos de água e outros componentes dos respectivos ecossistemas341.
O mesmo posicionamento foi adotado pelo Tribunal Internacional do Mar no Caso
nº 17, que reconheceu a natureza de direito costumeiro da obrigação de avaliação de
impacto ambiental transfronteiriço342.
Na Ásia, China, Mongólia, Rússia, Coréia do Norte e Coréia do Sul assinaram um
acordo343 em 1995, através do qual estabelecem a realização de uma avaliação ambiental
regional periódica para analisar as implicações ambientais locais, nacionais, regionais e
globais dos planos de desenvolvimento contemplados para a região da bacia do Rio
Tumen344.
Ao contrário do que se imagina, a menor tolerância à poluição dos cursos de água
pode potencializar o desenvolvimento dos recursos hídricos. Legislações mais rigorosas
não necessariamente inviabilizam a expansão da exploração desses recursos. Ao
341 Carla AMADO GOMES, Introdução ao Estudo do Ambiente, Lisboa, Associação Acadêmica da
Faculdade de Direito de Lisboa, 2ª edição, 2014, página 142. Carla AMADO GOMES, O Princípio da
Gestão Racional dos Recursos Hídricos como Princípio de Direito Internacional e Ambiental, Revista
Esmat, Ano 9, N.o 13, 2017, páginas 61-76, 66. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Case
Concerning Pulp Mills On The River Uruguay. Argentina versus Uruguai, 20 de Abril de 2010,
disponível em: http://www.icjcij.org, acesso em 27/08/2017. Nadia S. CASTILLO e Yongmin BIAN,
China's Obligation to Conduct Transboundary Environmental Impact Assessment (TEIA), in
Utilizing Its Shared Water Resources, Natural Resources Journal, Volume 55, 2015, páginas 105 e
seguintes, 114 a 116, disponível em: http://digitalrepository.unm.edu/nrj/vol55/iss1/5, acesso em 22/09/2017. 342 TRIBUNAL INTERNACIONAL DO MAR, Caso n.o 17, de 14, 1 de fevereiro de 2011, disponível em
https://www.itlos.org/en/cases/list-of-cases/case-no-17/, acesso em 20/04/2017. 343 Memorandum of Understanding on Environmental Principles Governing the Tumen River
Economic Development Area and Northeast Asia, 1995. 344 Nadia S. CASTILLO e Yongmin BIAN, China's Obligation to Conduct Transboundary
Environmental Impact Assessment (TEIA) in Utilizing Its Shared Water Resources, Natural
Resources Journal, Volume 55, 2015, páginas 105 e seguintes, 117, disponível em:
http://digitalrepository.unm.edu/nrj/vol55/iss1/5, acesso em 22/09/2017.
contrário, estimula melhor o planejamento e, por conseguinte, a sociedade civil tende a
apresentar menor resistência à presença de empreendimentos dessa natureza do que em
estados mais tolerantes em relação à exploração dos recursos hídricos.
É o que se observa na Alemanha. Ao invés de um fator de desestímulo, o princípio
da precaução é considerado um facilitador positivo do crescimento econômico alemão,
que favorece a obtenção de novos mercados amigos do ambiente345.
3.3.2. Avaliação Ambiental Estratégica – AAE
A Convenção de Espoo vai além da tradicional avaliação de impacto ambiental
para estabelecer o compromisso de as partes se esforçarem para, na medida do possível,
aplicar os princípios da referida avaliação de impacto às políticas, planos e programas
(artigo 2.o, n.o 7). Nessa linha de evolução, para a gestão de impactos transfronteiriços no
ambiente e na saúde de planos e programas e, se for caso disso, de políticas e legislações,
em 21 de maio de 2003, foi firmado, em Kiev, o Protocolo relativo à Avaliação Ambiental
Estratégica à Convenção sobre a avaliação dos impactos ambientais num contexto
transfronteiriço, assinado na Quinta Conferência Ministerial “Ambiente para a Europa”.
Assim como a Convenção de Espoo, o Protocolo de Kiev está aberto a todos os estados
membros das Nações Unidas, e não apenas aos membros da Comissão Econômica das
Nações Unidas para a Europa (UNECE) 346.
A avaliação ambiental estratégica é definida pelo Protocolo de Kiev como a
“avaliação dos efeitos prováveis no ambiente, e na saúde, o que inclui a determinação do
âmbito de um relatório ambiental e a sua elaboração, a participação e consulta do público
e a tomada em consideração do relatório ambiental e dos resultados da participação e da
consulta do público num plano ou programa” (artigo 2.o, n.o 6).
Enquanto a avaliação de impacto ambiental é realizada a nível do projeto, a
avaliação ambiental estratégica vai além, para avaliar os potenciais efeitos dos processos
de formulação (ou de alterações significativas) de políticas, planos e programas nos
componentes físicos, biológicos e socioeconômicos do meio ambiente - e em suas
interações, e se necessário de atos legislativos. Traduz-se em um instrumento de gestão
345 Timothy O’RIORDAN e Andrew JORDAN, The Precautionary Principle, Science, Politics and
Ethics, 1995, páginas 1 a 26, 2 e 17. 346 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, páginas 155 e 159.
ambiental complementar que tem por objetivo prever, mensurar e estimar a magnitude e
a amplitude espacial e temporal do impacto ambiental potencialmente associado a
determinadas políticas, planos, programas347 e legislações que alterem significativamente
padrões de produção, consumo e governança, como incentivos fiscais a um determinado
setor. Geralmente, as consequências ambientais dos programas e planos decorrentes de
decisões políticas amplas não se sujeitam a análises rigorosas como ocorre com projetos.
Esse processo de avaliação exige estruturas e procedimentos transparentes destinados a
coordenar política, ciência e comunidade348.
Os setores estratégicos identificados pelo referido protocolo e que estão sujeitos à
avaliação estratégica são agricultura, silvicultura, pescas, energia e industrial, incluindo
extração minerária, transportes, desenvolvimento regional, gestão de resíduos, gestão de
recursos hídricos, telecomunicações, turismo, ordenamento do território ou afetação dos
solos349. Também estão sujeitos planos e projetos que “estabelecem o quadro de futura
aprovação de projetos”350.
Promove a integração entre ambiente, economia e sociedade na formulação de
políticas públicas, uma vez que exige a avaliação de impactos em um estágio prematuro
do processo de desenvolvimento, em aspectos temporais e espaciais mais amplos,
capturando impactos intersetoriais e cumulativos. O processo de tomada de decisões
políticas deve incorporar as consequências ambientais. Porém, quando os potenciais
impactos são sobre o ambiente de outro estado, ou sobre um recurso de interesse comum
global, há necessidade de também considerar questões normativas de outros estados e de
consultar os indivíduos dos estados afetados, além da própria comunidade internacional
em geral, abrangendo organizações internacionais e atores não-governamentais351.
Mais do que estar disponível formalmente, a avaliação de impactos ambientais e
a avaliação ambiental estratégica devem estar conectadas ao processo de aprovação do
347 BRASIL, Câmara dos Deputados, Projeto de Lei n.o 261, de 2011, que altera a Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, a fim de dispor sobre a avaliação ambiental estratégica de políticas, planos e programas. 348 Stephen DOVERS, Precaution, Prediction, Proof, and Policy Assessment, New Solutions, Volume
12, Nº 3, 2002, páginas 281-296, 284 e 285. Neil CRAIK, The International Law of Environmental
Impact Assessment, Process, Substance and Integration, Cambridge, Cambridge University Press,
2008, página 156. 349 Artigo 4º, n.o 2. 350 Artigo 4º, n.o 3. 351 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, páginas 3, 78 e 156.
projeto, com destaque para a avaliação de impactos cumulativos. Suas conclusões devem
ser objeto de deliberação no processo de licenciamento352.
Sugere-se, ainda, que decisões políticas que possam afetar a capacidade de
monitoramento, gestão e proteção do ambiente também devem sujeitar-se à avaliação de
impactos, assim como acordos internacionais sobre comércio, finanças ou defesa,
programas de assistência ao desenvolvimento, privatização de funções públicas,
processos de aprovação de propriedade estrangeira, orçamentos governamentais,
políticas, planos e programas setoriais (por exemplo, energia, água, transporte),
programas de ajustamento estrutural e sistemas fiscais353.
Também é necessária a articulação entre a avaliação de impacto ambiental e a
avaliação ambiental estratégica. A avaliação ambiental estratégica não exime a submissão
de projeto se atividades potencialmente causadoras de impactos significativos à
tradicional avaliação de impactos ambientais. A relação entre ambas deve ser de
complementaridade, e não de exclusão. Nas palavras de AMADO GOMES, “trata-se de
dois métodos distintos, aplicados em dois momentos diversos, preconizados por
diferentes entidades”354. Isso porque a avaliação de impactos ambientais não esgota todos
os aspectos da avaliação ambiental, na medida em que não analisa de forma substancial
impactos cumulativos decorrentes do conjunto de empreendimentos implantados em uma
mesma região. Ademais, não raras vezes a avalição de impactos é realizada já em fase
tardia, o que inviabiliza a opção por alternativas capazes de minimizar efeitos
indesejáveis355. Ações anteriores a intervenções ambientais geralmente não estão sujeitas
à avaliação de impacto ambiental, embora fomentem atividades potencialmente lesivas
ao ambiente, que buscam suprir prioridades estabelecidas pela Administração Pública,
decorrentes de programas governamentais. Assim, a avaliação ambiental estratégica
exerce a primordial função de preenchimento dessa lacuna existente no sistema de gestão
de riscos ambientais, saneando o mal em sua raiz, no sentido de evitar que políticas,
352 John DORE, Louis LEBEL e Francois MOLLE, A framework for analysing transboundary water
governance complexes, illustrated in the Mekong Region, Journal of Hydrology, 466–467, 2012,
páginas 23-36, 31, disponível em www.elsevier.com/locate/jhydrol, acesso em 27/04/2017. 353 Stephen DOVERS, Precaution, Prediction, Proof, and Policy Assessment, New Solutions, Volume
12, Nº 3, 2002, páginas 281-296, 285. 354 Carla AMADO GOMES, Introdução ao Estudo do Ambiente, Lisboa, Associação Acadêmica da
Faculdade de Direito de Lisboa, 2ª edição, 2014, páginas 175 e 176. 355 BRASIL, Câmara dos Deputados, Projeto de Lei n.o 261, de 2011, que altera a Lei nº 6.938, de 31 de
agosto de 1981, a fim de dispor sobre a avaliação ambiental estratégica de políticas, planos e programas.
planos, programas e atos legislativos inadequados possam resultar em atividades
potencialmente lesivas ao ambiente356.
Se houver previsão no direito interno de estruturas de governança comprometidas
com a avaliação ambiental estratégica previstos na Convenção de Espoo, os requisitos da
avaliação de impacto ambiental transfronteiriça podem ser implementados sem
necessidade de mudanças significativas na política interna, com interferências mínimas
na soberania territorial. Quanto mais desenvolvido o sistema de avaliação de impacto
ambiental interno, maior será a pré-disposição de assumir compromissos dessa natureza
no plano internacional. Assim, promove-se a interação entre a avaliação ambiental
estratégica doméstica e a internacional, integrando um processo único e abrangente357.
Em relação aos estados que não possuem um sistema bem desenvolvido, sua
sujeição no plano internacional é proporcional à sua capacidade de se obrigar, o que não
pode ser confundido com a possibilidade de descumprir, ainda que parcialmente,
obrigações assumidas no plano internacional, tais como a obrigação de cooperação e de
compartilhamento de dados e informações. No curto prazo, a avaliação ambiental
estratégica pode funcionar como um processo facilitador da coordenação entre estados e,
no longo prazo, exercer papel transformador, inclusive da conduta dos estados e de
interesses através da internalização de normas de direito internacional do ambiente no
direito doméstico. Uma boa estratégia para incentivar o comprometimento dos estados e
facilitar o processo de incorporação de valores ecológicos nos processos internos de
tomada de decisão e que possam ter impactos transfronteiriços consiste na previsão de
normas principiológicas, que são mais bem aceitas que normas impositivas e por isso
facilitam a coordenação de interesses na assunção de compromissos internacionais.
Aumentam o senso de legitimação das normas e, consequentemente, os estados tendem a
cumpri-las voluntariamente358.
Por se tratar de uma avaliação estratégica, deve estar atenta e vigilante aos
possíveis danos e preceder a ação, orientando-a de forma a evitar impactos indesejados359.
Nesse prisma, a avaliação ambiental estratégica considera o conjunto de ações e projetos
356 Édis MILARÉ, Direito do Ambiente, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, página
530. 357 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, páginas 159, 162 e 231. 358 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, páginas 159, 162, 163, 232 e 243. 359 Édis MILARÉ, Direito do Ambiente, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, página
530.
aparentemente inofensivos (legalizados e licenciados) e que a princípio não possuem
qualquer relação uns com os outros, mas que quando considerados cumulativamente,
decorrentes de obras sucessivas, podem provocar impactos significativos ao ambiente,
ultrapassando a capacidade de resiliência e de adaptação. De forma isolada, projetos
licenciados podem ser capazes de mitigar ou compensar impactos negativos. Todavia,
apesar de legais, os impactos ambientais podem ultrapassar padrões inicialmente
estabelecidas e provocar danos difusos, se considerado o conjunto de empreendimentos
em uma determinada área. A avaliação ambiental estratégica analisa os danos de forma
global e, assim, estabelece critérios estratégicos que possam embasar a formulação de
políticas, planos, programas e atos legislativos, fornecendo aos governantes elementos
para a tomada de decisões acertadas em prol da proteção do ambiente360.
Às atividades desenvolvidas e aos seus resultados (relatório de avaliação
ambiental) devem ser conferida ampla publicidade, assegurando-se também a efetiva
participação da população afetada. É recomendável que a função de aprovação do
relatório de avaliação ambiental (seja a tradicional ou a estratégica) não seja atribuída ao
mesmo órgão responsável por sua elaboração. Essa separação de funções visa resguardar
a imparcialidade e a objetividade do procedimento de avaliação ambiental361.
3.3.3. Realocação de populações
Catástrofes naturais aumentam os fluxos de migração internacional ambiental,
como por exemplo pelo aumento do nível dos oceanos. Ao lado das catástrofes naturais,
a degradação ambiental das bacias hidrográficas, provocada ou agravada pela ação do
homem - como tsunamis, secas, cheias, contaminação por acidentes industriais e químicos
e obras de infraestrutura –, é a principal causa da existência dos “refugiados ambientais”
ou “eco refugiados”, que se deslocam compulsoriamente para outros estados em busca de
melhores condições de vida362.
360 Édis MILARÉ, Direito do Ambiente, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, páginas
530-531. 361 Carla AMADO GOMES, Introdução ao Estudo do Ambiente, Lisboa, Associação Acadêmica da
Faculdade de Direito de Lisboa, 2ª edição, 2014, página 173. 362 Renata da Silva NOBREGA, Os Atingidos por Barragem: Refugiados de uma Guerra
Desconhecida, Revista Inter. Mob. Hum., Ano XIX, Nº 36, Brasília, 2011, páginas 125-143, 125. Érika
Pires RAMOS, Refugiados ambientais: em busca de reconhecimento pelo Direito Internacional,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, páginas 17, 18, 19 e 49.
O desenvolvimento acelerado, característico da sociedade tecnológica, traz
consigo o aumento da demanda por água363. A exploração dos recursos hídricos que
integram bacias hidrográficas internacionais não produz apenas impactos ambientais, mas
também sociais. Se de forma isolada esses impactos podem aparentar serem
insignificantes, cumulativamente considerados, em decorrência da concentração de vários
empreendimentos em uma mesma bacia hidrográfica internacional, podem ser graves. Por
isso, merecem especial atenção dos gestores públicos no procedimento de licenciamento.
É o que ocorre, por exemplo, com a exploração de potenciais hidráulicos para a
produção de energia elétrica. Motivado pela crise do petróleo na década de 1970 ou pela
crise energética do século XXI364, o número de barragens de grande porte saltou de 5.000
em 1950 para 45.000 em 2.000365.
A execução de projetos dessa natureza requer a inundação de vastas áreas, não
importa se de grande produtividade ou rica biodiversidade, o que, além de impactar
negativamente o ecossistema em si, não raras vezes expulsa massas populacionais,
geralmente rurais, com baixa escolaridade e caracterizadas pela desqualificação
profissional. Sem opção, essas populações são deslocadas para assentamentos sem
qualquer infraestrutura, inclusive para a produção agrícola de subsistência366.
O deslocamento compulsório também produz impactos sobre a identidade cultural
decorrente da desagregação social promovida pela abrupta e involuntária ruptura dos
vínculos com a terra de origem e com a vizinhança local, com as quais essas populações
guardam identidade. Lembranças, memórias e símbolos associados à paisagem e à terra
constituem a herança cultural responsável por unir os membros da comunidade local
através de um vínculo social que proporciona bem-estar e conforto emocional àquelas
nascidas e criadas no local. Também estabelecem relação entre o homem e o meio
ambiente. A ausência de informações sobre os projetos e de consulta à população
363 Marilaine TONELLO e Romilda de Souza LIMA VIANA, Projeto hidrelétrico Salto Grande – PR
impactos sobre a população local, Revista Faz Ciência, Volume 12, Nº 15, 2010, páginas 161-184, 162. 364 Romilda de Souza LIMA VIANA, O Projeto UHE Cachoeira da Providência: uma abordagem
etnográfica dos efeitos sobre a população local, Viçosa, 2000, página 12. 365 Aurora SWANSON, The Grand Ethiopian Renaissance Dam: Sustainable Development or Not?,
Arlington, 2014, página 11, disponível em www.cligs.vt.edu, acesso em 27/04/2017. 366 Romilda de Souza LIMA VIANA, O Projeto UHE Cachoeira da Providência: uma abordagem
etnográfica dos efeitos sobre a população local, Viçosa, 2000, 52. Marilaine TONELLO e Romilda de
Souza LIMA VIANA, Projeto hidrelétrico Salto Grande – PR impactos sobre a população local,
Revista Faz Ciência, Volume 12, Nº 15, 2010, páginas 161-184, 172.
diretamente afetada somente vem a agravar o quadro de tensão e angústia, com reflexos
na saúde e no bem-estar dessas pessoas367.
Uma pesquisa realizada por TONELLO e LIMA VIANA com 10% das famílias
afetadas pelo projeto da Usina Hidrelétrica de Salto Grande, na zona rural do sudoeste do
Estado do Paraná (Região Sul do Brasil), constatou que a média da população atingida é
adulta, extrai seu sustento da própria terra, da agricultura familiar ou da produção de leite
em pequenas propriedades. A maioria não possui qualificação para o trabalho e apresenta
baixo índice de escolaridade368.
O resultado da referida pesquisa condiz com o perfil das populações afetadas
traçado pela Comissão Mundial de Barragens. Constituem os segmentos mais pobres da
sociedade, compostos por minorias étnicas, indígenas, mulheres e pequenos proprietários
que extraem sua subsistência da pesca, da agricultura ou da criação de animais369.
Como se pode perceber, novos projetos repercutem na sociedade organizada que
vive no entorno das áreas afetadas. No entanto, os impactos socioambientais não atingem
a todos de forma igual. A experiência demonstra que as camadas sociais que mais sofrem
com os impactos são as menos favorecidas socioeconomicamente - denominadas
“desprivilegiados ambientais”. A linguagem do risco e da precaução, portanto, é a
linguagem da desigualdade, já que determinados indivíduos ou grupos são mais
vulneráveis que outros370.
A situação é especialmente agravada em hipóteses de projetos hidrelétricos
localizados em regiões de fronteiras, devido à complexidade típica de uma sociedade em
movimento. A mobilidade econômica e populacional acirra as vulnerabilidades,
367 Marilaine TONELLO e Romilda de Souza LIMA VIANA, Projeto hidrelétrico Salto Grande – PR
impactos sobre a população local, Revista Faz Ciência, Volume 12, Nº 15, 2010, páginas 161-184, 165,
168 e 172. 368 Marilaine TONELLO e Romilda de Souza LIMA VIANA, Projeto hidrelétrico Salto Grande – PR
impactos sobre a população local, Revista Faz Ciência, Volume 12, n.º 15, 2010, páginas 161-184, 166,
171, 172, 173. 369 COMISSÃO MUNDIAL DE BARRAGENS, Barragens e Desenvolvimento: Um Novo Modelo para
Tomada de Decisões, 2000, página 106, disponível em https://www.internationalrivers.org/sites/default/files/attached-
files/world_commission_on_dams_final_report.pdf, acesso em 01/05/2017. 370 Michael S. CAROLAN, The Precautionary Principle and Traditional Risk Assessment, Rethinking
How We Assess and Mitigate Environmental Threats, Organization & Environment, Volume 20, Nº 1,
2007, páginas 5-24, 10. Renata Patrícia de CARVALHO, Impacto Social Reduzido: Ações
Viabilizadoras para um Plano de Assistência Psicossocial em Comunidades Diretamente Afetadas
por Hidrelétricas, Rio de Janeiro, 2007, páginas 2 e 6. Letícia Nerone GADENS, Letícia Peret Antunes
HARDT e Klaus FREY, Das Práticas de Gestão de Grandes Projetos Urbanos, Saúde e Sociedade,
Volume 21, Supl. 3, 2012, páginas 21 e seguintes, 28.
fomentadas pela desigualdade e assimetria entre estados fronteiriços, realçando tensões
históricas371.
Mudanças drásticas em uma realidade social consolidada provocam o surgimento
dos denominados “refugiados ambientais”. A população afetada é expulsa de suas terras,
deslocada para outra região e obrigada a migrar para as periferias de centros urbanos, ou
até mesmo para outros estados, em busca de melhores condições de vida372. A baixa
qualificação profissional não contribui para a reinserção no mercado de trabalho urbano.
O resultado é a degradação da qualidade de vida dos deslocados, geralmente populações
acostumadas com o trabalho rural e que não se adaptam às novas funções urbanas. Da
mesma forma, a abrupta perda imaterial de laços de vizinhança e vínculo com a terra de
origem contribui para o aumento da fragilidade emocional e física, com reflexos na
deterioração da saúde desses indivíduos.
Apesar do discurso formal de preocupação com as populações deslocadas, na
prática observa-se o descaso. Projetos são licenciados sem que as populações diretamente
afetadas sejam consultadas. Informações sobre futuros projetos não são disponibilizadas,
até mesmo para evitar que o conhecimento se reverta em resistência por parte da
população local373.
Assim, empreendimentos de grande porte contribuem para que grandes
empreendedores consolidem seu enriquecimento às custas do agravamento da
marginalização da população do entorno374.
A população diretamente afetada é aquela que tem suas propriedades inundadas e
que precisa ser realocada. Contudo, é preciso ouvir também as populações que vivem no
entorno da área de inundação, mas que sobrevivem da exploração de pastos, da pesca, e
de produtos florestais, que são destruídos com a construção da hidrelétrica, assim como
aquelas afetados indiretamente pela infraestrutura das barragens375.
371 Rosa MOURA e Nelson Ari CARDOSO, Mobilidade Transfronteiriça: Entre o Diverso e o Efêmero,
in Cidade e Movimento: mobilidades e interações no desenvolvimento urbano, Renato Balbim, Cleandro
Krause e Clarisse Cunha Linke (organizadores), Brasília, 2016, páginas 205 e seguintes, 206 e 207,
disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=28489,
acesso em 27/04/2017. 372 Renata Patrícia de CARVALHO, Impacto Social Reduzido: Ações Viabilizadoras para um Plano de
Assistência Psicossocial em Comunidades Diretamente Afetadas por Hidrelétricas, Rio de Janeiro,
2007, páginas 2 e 6. 373 Marilaine TONELLO e Romilda de Souza LIMA VIANA, Projeto hidrelétrico Salto Grande – PR
impactos sobre a população local, Revista Faz Ciência, Volume 12, Nº 15, 2010, páginas 161-184, 169. 374 Letícia Nerone GADENS, Letícia Peret Antunes HARDT e Klaus FREY, Das Práticas de Gestão de
Grandes Projetos Urbanos, Saúde e Sociedade, Volume 21, Supl. 3, 2012, páginas 21 e seguintes, 28. 375 COMISSÃO MUNDIAL DE BARRAGENS, Barragens e Desenvolvimento: Um Novo Modelo para
Tomada de Decisões, 2000, página 240, disponível em
No caso do empreendimento objeto da pesquisa realizada por TONELLO e LIMA
VIANA, não houve audiência pública. A comunidade local afetada não foi consultada ou
informada sobre o projeto. As pessoas entrevistadas informaram terem tomado
conhecimento efetivamente acerca da intenção de construção de uma usina hidrelétrica
na região através de pessoas desconhecidas e técnicos que passaram a entrevistar
moradores, porém sem lhes dar informações sobre os dados coletados. Houve até mesmo
quem tenha sabido da construção da usina somente ao perceber pessoas estranhas dentro
de sua propriedade demarcando a área de inundação através de estacas376.
Os benefícios econômicos advindos do desenvolvimento do potencial hidrelétrico
são inegáveis para a sociedade moderna e são explorados como justificativa para as perdas
socioambientais e culturais da população local diretamente afetada377. Entretanto, essa
população – que sofre os ônus e pouco se beneficia dos bônus378 - precisa ser ouvida e
considerada desde a fase inicial de licenciamento da atividade, em respeito aos direitos à
informação e à participação379.
No caso da mencionada pesquisa, questionadas se a usina trará benefícios para si,
75% das famílias entrevistadas afirmaram que não, 12,5% acredita sim e 12,5% não
respondeu. As famílias entrevistadas foram unânimes em responder que não havia
negociação de pagamento de indenização em curso380.
À mesma conclusão chegou SWANSON, ao pesquisar os impactos sociais da
Grande Barragem Hidrelétrica Renaissance, no Rio Nilo, no sentido de que benefícios
mais imediatos são colhidos nos níveis nacionais e regionais, e não locais, e de que,
embora a população local se beneficie da energia que será produzida, as dificuldades
impostas são desproporcionais381.
https://www.internationalrivers.org/sites/default/files/attached-
files/world_commission_on_dams_final_report.pdf, acesso em 01/05/2017. 376 Marilaine TONELLO e Romilda de Souza LIMA VIANA, Projeto hidrelétrico Salto Grande – PR
impactos sobre a população local, Revista Faz Ciência, Volume 12, Nº 15, 2010, páginas 161-184, 175-
177. 377 AFRICAN DEVELOPMENT BANK GROUP, Environmental and Social Impact Assessment, GIBE
III Hydroelectric Power Project, Ethiopia, 2009. Marilaine TONELLO e Romilda de Souza LIMA
VIANA, Projeto hidrelétrico Salto Grande – PR impactos sobre a população local, Revista Faz
Ciência, Volume 12, Nº 15, 2010, páginas 161-184, 175-177. 378 Ghada SOLIMAN, Hoda SOUSSA e Sherif EL-SAYED, Assessment of Grand Ethiopian
Renaissance Dam impacts using Decision Support System, Journal of Computer Engineering, Volume
18, Issue 5, 2016, páginas 08-18, 10. 379 Os direitos à participação e à informação são tratados em capítulos específicos deste trabalho. 380 Marilaine TONELLO e Romilda de Souza LIMA VIANA, Projeto hidrelétrico Salto Grande – PR
impactos sobre a população local, Revista Faz Ciência, Volume 12, Nº 15, 2010, páginas 161-184, 175-
177. 381 Aurora SWANSON, The Grand Ethiopian Renaissance Dam: Sustainable Development or Not?,
Arlington, 2014, páginas 13 e 14, disponível em www.cligs.vt.edu, acesso em 27/04/2017.
O contexto se repete em todos os continentes. Dados da Comissão Mundial de
Barragens demonstram o deslocamento de milhões de pessoas no último meio século, em
razão da construção de barragens. A escala e a extensão dos impactos variam de acordo
com a localização, tamanho, área de inundação e densidade populacional382. Na América
do Norte, o estudo do caso do Projeto Grand Coulee, entre os anos de 1934-1975,
concluiu que os impactos de grandes empreendimentos hidrelétricos sobre a pesca foram
devastadores sobre a população de salmão, bloqueando sua passagem em rios da América
do Norte, além de afetar meios de subsistência, segurança alimentar e organizações
culturais de comunidades americanas nativas, o que deslocou de 5.000 a 6.500 pessoas383.
Indígenas e minorias étnicas sofreram com a ausência de cidadania e de título sobre as
terras que ocupavam, o que motivou sua inelegibilidade para o reassentamento384.
No entanto, o deslocamento de populações atinge maiores proporções nos
continentes africano, asiático e latino-americano. A Comissão Mundial de Barragens
registrou deslocamentos físicos em 68 de 123 barragens analisadas, o que corresponde ao
percentual de 56%. Dessas 68 barragens, 52 são localizadas na África, América Latina e
Ásia. Esses dados refletem o fato de que os mencionados continentes abrigam sistemas
de cursos de água que suportam economias locais e modos de vida culturais de grandes
populações contendo diversas comunidades385.
Na Etiópia, o projeto de instalação da hidrelétrica GIBE III, na bacia do Rio Omo,
que deságua no Lago Turkana, na fronteira com o Quênia, mais uma vez, apelou-se para
o benefícios socioeconômicos gerais decorrentes do empreendimento. Os estudos
apresentados para a aprovação do projeto compararam as hipóteses de instalação e de não
instalação da hidrelétrica e concluíram que, na ausência da hidrelétrica, a qualidade de
vida da população da Etiópia permaneceria baixa. Concluíram que, além de gerar
382 COMISSÃO MUNDIAL DE BARRAGENS, Barragens e Desenvolvimento: Um Novo Modelo para
Tomada de Decisões, 2000, páginas 102 e 103, disponível em
https://www.internationalrivers.org/sites/default/files/attached-
files/world_commission_on_dams_final_report.pdf, acesso em 01/05/2017. 383 COMISSÃO MUNDIAL DE BARRAGENS, Barragens e Desenvolvimento: Um Novo Modelo para
Tomada de Decisões, 2000, páginas 113 e 124, disponível em
https://www.internationalrivers.org/sites/default/files/attached-files/world_commission_on_dams_final_report.pdf, acesso em 01/05/2017. 384 COMISSÃO MUNDIAL DE BARRAGENS, Barragens e Desenvolvimento: Um Novo Modelo para
Tomada de Decisões, 2000, páginas 104 e 105, disponível em
https://www.internationalrivers.org/sites/default/files/attached-
files/world_commission_on_dams_final_report.pdf, acesso em 01/05/2017. 385 COMISSÃO MUNDIAL DE BARRAGENS, Barragens e Desenvolvimento: Um Novo Modelo para
Tomada de Decisões, 2000, páginas 102 e 103, disponível em
https://www.internationalrivers.org/sites/default/files/attached-
files/world_commission_on_dams_final_report.pdf, acesso em 01/05/2017.
desenvolvimento para um continente carente em vários aspectos, o projeto atrai
investimentos estrangeiros em busca de segurança energética, com potencial para
transformar a Etiópia em um exportador de energia elétrica. De acordo com o Banco de
Desenvolvimento Africano, o projeto contou com padrões internacionais de avaliação,
tendo sido realizados estudos de impactos ambientais e sociais e estabelecido um plano
de ação de reassentamento. Também foram apresentadas alternativas de layouts para
minimizar os impactos socioambientais. Não foram identificadas tribos ou minorias
étnicas próximas à região do projeto, cujos estilos de vida tradicionais pudessem ser
comprometidos. Assim, concluiu que o projeto é sustentável sob os aspectos ambientais
e sociais386.
No entanto, um estudo realizado por SWANSON aponta em sentido oposto. De
acordo com a pesquisadora, não houve esforço para consultar as diferentes etnias
diretamente afetadas na construção das represas ao longo do Rio Omo. Além disso, a
avaliação de impactos sociais foi realizada apenas dois anos após o início da execução
das obras, quando o projeto já estava aprovado e, portanto, sem oportunidade de
adaptações387. Não se pode desconsiderar que a população na área do entorno da
hidrelétrica GIBE III é predominantemente rural, organizada em pequenas vilas, nas quais
são desenvolvidas atividades de agricultura e criação de gado para subsistência
dependentes do sistema do Nilo 388. A bacia do Nilo representa o centro de cultura e
identidade daquela sociedade. As variações sazonais ditam o ritmo e as espécies de
plantio, da pesca, bem como de todas as atividades desenvolvidas pelos moradores do
entorno da área afetada389.
Também na Etiópia, está em construção a Grande Barragem Hidrelétrica
Renaissance, no Rio Nilo, prevista para ser a maior do continente africano. Não se nega
o desenvolvimento socioeconômico advindo do empreendimento – produção de energia
386 AFRICAN DEVELOPMENT BANK GROUP, Environmental and Social Impact Assessment, GIBE
III Hydroelectric Power Project, Ethiopia, 2009, páginas 1, 11, 12 e 22. 387 Aurora SWANSON, The Grand Ethiopian Renaissance Dam: Sustainable Development or Not?,
Arlington, 2014, páginas 13 e 14, disponível em www.cligs.vt.edu, acesso em 27/04/2017. COMISSÃO MUNDIAL DE BARRAGENS, Barragens e Desenvolvimento: Um Novo Modelo para Tomada de
Decisões, 2000, página 129, disponível em https://www.internationalrivers.org/sites/default/files/attached-
files/world_commission_on_dams_final_report.pdf, acesso em 01/05/2017. Fonte jornalística:
https://www.geopoliticalmonitor.com/water-conflict-egypt-and-the-great-ethiopian-renaissance-dam/,
acesso em 24/09/2017. 388 AFRICAN DEVELOPMENT BANK GROUP, Environmental and Social Impact Assessment, GIBE
III Hydroelectric Power Project, Ethiopia, 2009, páginas 1, 7, 8. 389 Aurora SWANSON, The Grand Ethiopian Renaissance Dam: Sustainable Development or Not?,
Arlington, 2014, página 14, disponível em www.cligs.vt.edu, acesso em 27/04/2017.
esperada de 6,000MW, geração de empregos e proteção contra a seca. Mas como
compatibilizar tais benefícios com os impactos sobre os meios de subsistência das
comunidades a jusante – como a população do Egito? Mudanças no sistema hidrológico
interferem no fluxo e nas inundações e, consequentemente, na subsistência das
populações ribeirinhas a jusante que sobrevive da agricultura, pesca, atividades pastorais
e coleta de produtos florestais nas planícies de inundação. Da mesma forma, mudanças
físicas e químicas decorrentes da degradação de funções ecossistêmicas e a perda de
biodiversidade impõem restrições a essas atividades390.
O enorme reservatório da Grande Barragem Hidrelétrica Renaissance levará anos
para ser enchido e durante esse período será inevitável a redução do fluxo a jusante,
afetando as populações do Sudão e do Egito. Entretanto, a Etiópia resiste ao diálogo, ao
fundamento de que as águas da barragem não serão utilizadas para irrigação e, portanto,
os estados a jusante não sofrerão redução de fluxo, agravando disputas pelo controle da
água. SWANSON critica o relatório da Agência de Proteção Ambiental da Etiópia
apresentado no processo de licenciamento do empreendimento em comento, ao
fundamento de que os impactos ambientais significativos não foram considerados
devidamente e que as medidas de mitigação previstas se mostram insignificantes diante
da magnitude do projeto. Conclui, ainda, que a ausência de transparência em relação às
informações disponibilizadas lhe retira a credibilidade. De acordo com a pesquisadora,
os impactos sociais também foram negligenciadas. A população deslocada foi
subestimada por estudos do governo da Etiópia, que concluíram que apenas 800 pessoas
seriam desalojadas. Porém, um estudo independente identificou que 5.100 pessoas seriam
desalojadas, incluindo as áreas que seriam inundadas e as pessoas que vivem perto do
complexo da barragem, e que outros 7.000 habitantes locais incorreriam em dificuldades
sociais por causa da barragem. Tais pessoas não foram compensadas ou reassentadas,
além do que a ausência de sistema de registro das terras gerou conflitos no processo de
reassentamento391.
390 COMISSÃO MUNDIAL DE BARRAGENS, Barragens e Desenvolvimento: Um Novo Modelo para
Tomada de Decisões, 2000, página 103, disponível em https://www.internationalrivers.org/sites/default/files/attached-
files/world_commission_on_dams_final_report.pdf, acesso em 01/05/2017. Fonte jornalística:
https://www.geopoliticalmonitor.com/water-conflict-egypt-and-the-great-ethiopian-renaissance-dam/,
acesso em 24/09/2017. 391 Aurora SWANSON, The Grand Ethiopian Renaissance Dam: Sustainable Development or Not?,
Arlington, 2014, páginas 13, 14 e 15, disponível em www.cligs.vt.edu, acesso em 27/04/2017. COMISSÃO
MUNDIAL DE BARRAGENS, Barragens e Desenvolvimento: Um Novo Modelo para Tomada de
Decisões, 2000, página 129, disponível em https://www.internationalrivers.org/sites/default/files/attached-
files/world_commission_on_dams_final_report.pdf, acesso em 01/05/2017. Fonte jornalística:
As situações aqui apresentadas demonstram que assistência social deve ser
prestada, não apenas aos habitantes de imóveis urbanos ou rurais desapropriados, mas
também aos que nele exerçam qualquer atividade econômica, aí incluídos comerciantes,
posseiros, assalariados, parceiros, arrendatários, meeiros e assemelhados, a exemplo do
que prevê a legislação do estado brasileiro de Minas Gerais, que criou o Programa de
Assistência às Populações Atingidas pela Construção de Barragens - PRÓ-ASSISTE392.
Conforme se verifica, os impactos socioeconômicos não respeitam fronteiras
geográficas e inexistem “zonas de proteção”393. Por isso, a gestão de bacias hidrográficas
internacionais deve envolver também a prevenção de danos transfronteiriços em razão da
alteração da condições de vida das populações afetadas, notadamente as deslocadas
compulsoriamente394. A gestão afeta todos os estados da bacia e requer cooperação entre
eles no sentido de conciliar interesses diversos e internalizar os impactos sociais,
minimizando-os395.
A proteção de grupos vulneráveis, dentre eles comunidades indígenas, quer
durante a fase de implementação, quer após sua conclusão, é objeto do artigo 20 das
Regras de Berlim, assim como o dever de compensar comunidades realocadas encontra
previsão no artigo 21 daquelas, em consonância com o aspecto social da água396.
A questão tem despertado inovações legislativas. A Constituição do Zimbábue, de
2013, reconhece expressamente o direito à realocação de populações em seu artigo 72, nº
2. A Constituição da Suazilândia, de 2005, também contém previsão sobre realocação de
populações em artigo 60, nº 9, ao tratar dos objetivos sociais.
O Estado de Minas Gerais, localizado na região sudeste do Brasil, possui um
significativo potencial hidrelétrico. A Constituição do Estado de Minas Gerais prevê que
“o Estado promoverá plano de assistência social às populações de áreas inundadas por
https://www.geopoliticalmonitor.com/water-conflict-egypt-and-the-great-ethiopian-renaissance-dam/,
acesso em 24/09/2017. 392 Artigos 1.o e 2.o da Lei n.o 12.812/98. 393 Érika Pires RAMOS, Refugiados ambientais: em busca de reconhecimento pelo Direito
Internacional, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, páginas 17 e 49. 394 AFRICAN DEVELOPMENT BANK GROUP, Environmental and Social Impact Assessment, GIBE
III Hydroelectric Power Project, Ethiopia, 2009, página 12. Ghada SOLIMAN, Hoda SOUSSA e Sherif
EL-SAYED, Assessment of Grand Ethiopian Renaissance Dam impacts using Decision Support
System, Journal of Computer Engineering, Volume 18, Issue 5, 2016, páginas 08-18, 10. 395 Ghada SOLIMAN, Hoda SOUSSA e Sherif EL-SAYED, Assessment of Grand Ethiopian
Renaissance Dam impacts using Decision Support System, Journal of Computer Engineering, Volume
18, Issue 5, 2016, páginas 08-18, 17. 396 Carla AMADO GOMES, O Princípio da Gestão Racional dos Recursos Hídricos como Princípio
de Direito Internacional e Ambiental, Revista Esmat, Ano 9, N.o 13, 2017, páginas 61-76, 71.
reservatórios”397. A política de assistência inclui a criação de um posto de atendimento
social, de referência para a comunidade urbana diretamente atingida pela construção da
usina, no qual são realizados atendimentos, encaminhamentos para outras instituições,
tiradas dúvidas e desenvolvidos projetos sociais398. A concessão de licenciamento
ambiental aos empreendimentos públicos ou privados de aproveitamento hídrico de que
trata a referida lei depende da apresentação de estudos ambientais que incluam plano de
assistência social aprovado pelo conselho estadual competente399, sendo que os recursos
do programa são oriundos do orçamento do estado, além daqueles repassados pelo
empreendedor e pelo Município e a União, através de convênios400. O plano de assistência
social requer o cadastramento de todos os atingidos, o levantamento da área das
propriedades atingidas, a garantia de reposição dos bens expropriados em espécie ou em
bens equivalentes e o reassentamento, por opção dos atingidos401. O programa permite o
estabelecimento de parcerias com o poder público e instituições privadas de capacitação
profissional para preparar os atingidos para novas atividades profissionais e realizar o
acompanhamento psicossocial com o objetivo de amenizar os impactos, preparando a
comunidade local para a realocação e o reassentamento402.
Um diploma normativo moçambicano inovador também pode inspirar outros
estados no plano internacional. Trata-se do Decreto 31/2012, de 8 de Agosto, que
regulamenta o processo de reassentamento resultante de atividades econômicas. Contém
um rol de princípios orientadores da elaboração do plano de reassentamento, com a
ressalva de que as populações não podem ser reassentadas em zonas inundáveis ou em
zonas protegidas. O licenciamento de projetos de infraestrutura de exploração de recursos
naturais está sujeito à aprovação desse plano pelo poder público. Há, ainda, previsão de
multa de 10% do valor do investimento para o caso de descumprimento do plano. Esta
multa é criticada por AMADO GOMES, ao fundamento de que pode ser mais
interessantes a empreendedores acrescentar o valor da multa ao custo do projeto do que
397 Artigo 194, parágrafo único. 398 Renata Patrícia de CARVALHO, Impacto Social Reduzido: Ações Viabilizadoras para um Plano de
Assistência Psicossocial em Comunidades Diretamente Afetadas por Hidrelétricas, Rio de Janeiro,
2007, página 4. 399 Artigo 5.o. 400 Artigo 4.o. 401 Artigo 6.o. 402 Renata Patrícia de CARVALHO, Impacto Social Reduzido: Ações Viabilizadoras para um Plano de
Assistência Psicossocial em Comunidades Diretamente Afetadas por Hidrelétricas, Rio de Janeiro,
2007, páginas 5 e 6.
cumprir o plano de reassentamento. Por isso, sugere que a sanção de suspensão do projeto
seria mais eficaz para o atingimento do objetivo proposto403.
Embora as legislações acima apontadas sejam dignas de elogios e possam inspirar
o surgimento de normas de direito internacional, a fiscalização é fundamental para que
suas previsões sejam efetivamente implementadas.
O exemplo de Moçambique demonstra que aspectos ambientais, sociais e
econômicos devem ser considerados associadamente no processo de licenciamento de
empreendimentos da bacia hidrográfica internacional. Os instrumentos mais adequados
para minimizar os impactos socioculturais são a avaliação de impactos socioculturais e a
instituição de planos de assistência social que minimizem a deterioração cultural,
inclusive de minorias étnicas, e permitam a adaptação humana à nova realidade,
reestabelecendo seu padrão de vida ou até melhorando-o 404. O desenvolvimento de planos
de assistência social para áreas afetadas por catástrofes naturais e empreendimentos
públicos ou privados, e negociações conjuntas com a população afetada evita o fluxo
migratório internacional405.
Os estados envolvidos e os empreendedores atraem para si o ônus de reassentar
satisfatoriamente todas as pessoas afetadas e de lhes assegurar efetivas melhorias na
qualidade de vida. Nessa linha, reassentamentos planejados a longo prazo permitem a
implementação de melhorias sociais e prepara a população afetada para mudanças
futuras406.
Mas não basta a realocação física. É preciso comprometimento com o
desenvolvimento social e econômico dos deslocados, com o objetivo de reestabelecer
seus meios de subsistência. O reconhecimento de direitos é a base para a identificação e
403 Carla AMADO GOMES, Justiça Ambiental, Justiça Espacial e Deveres de Protecção do Estado, in
Diálogo Ambiental, Constitucional e Internacional, Volume 5, Jorge Miranda e Carla Amado Gomes
(coordenadores), Bleine Queiroz Caúla, Valter Moura do Carmo (organizadores), Rio de Janeiro, Editora
Lumen Juris, 2016, páginas 1-16, 11 a 13. 404 AFRICAN DEVELOPMENT BANK GROUP, Environmental and Social Impact Assessment, GIBE
III Hydroelectric Power Project, Ethiopia, 2009, página 12. Renata Patrícia de CARVALHO, Impacto
Social Reduzido: Ações Viabilizadoras para um Plano de Assistência Psicossocial em Comunidades Diretamente Afetadas por Hidrelétricas, Rio de Janeiro, 2007, página 6. Solano ANDREIS, Usina
Hidrelétrica Foz do Chapecó: Remanejamento da População e Avaliação de Imóveis Rurais,
Florianópolis (Brasil), 2008, páginas 10 e 18. 405 COMISSÃO MUNDIAL DE BARRAGENS, Barragens e Desenvolvimento: Um Novo Modelo para
Tomada de Decisões, 2000, página 240, disponível em
https://www.internationalrivers.org/sites/default/files/attached-
files/world_commission_on_dams_final_report.pdf, acesso em 01/05/2017. 406 Aurora SWANSON, The Grand Ethiopian Renaissance Dam: Sustainable Development or Not?,
Arlington, 2014, página 14, disponível em www.cligs.vt.edu, acesso em 27/04/2017.
a inclusão de interessados afetados em negociações e mitigações conjuntas407. No caso de
populações deslocadas, os interessados devem estabelecer um comitê multi-interessados
de alto nível, com representantes governamentais, de empreendedores e das comunidades
afetadas. O comitê será responsável por direcionar a implementação das medidas de
mitigação, do reassentamento e dos programas de desenvolvimento, além de servir como
um fórum de apelação para ouvir queixas e resolver disputas. Um Plano de Ação de
Mitigação, Reassentamento e Desenvolvimento, aceito pelas comunidades afetadas, deve
ser formalizado através de dois instrumentos legais vinculantes: um contrato que delimite
as obrigações do governo e do empreendedor, de acordo com o plano de ação,
especificando penalidades, remédios e incentivos para facilitar sua implementação.
Contratos de performance conjuntamente assinados pelos governantes e empreendedores
com famílias individualmente e a comunidade, especificando direitos (compensações,
reassentamentos e benefícios diretos dos projetos)408.
Feitas essas considerações acerca dos principais princípios que devem orientar a
gestão das bacias hidrográficas internacionais, no capítulo a seguir, passa-se a abordar as
obrigações materiais dos estados em relação às bacias hidrográfica que compartilham no
plano internacional.
407 COMISSÃO MUNDIAL DE BARRAGENS, Barragens e Desenvolvimento: Um Novo Modelo para
Tomada de Decisões, 2000, páginas 108, 129 e 240, disponível em
https://www.internationalrivers.org/sites/default/files/attached-
files/world_commission_on_dams_final_report.pdf, acesso em 01/05/2017. 408 COMISSÃO MUNDIAL DE BARRAGENS, Barragens e Desenvolvimento: Um Novo Modelo para
Tomada de Decisões, 2000, páginas 242-243, disponível em
https://www.internationalrivers.org/sites/default/files/attached-
files/world_commission_on_dams_final_report.pdf, acesso em 01/05/2017.
4. OBRIGAÇÕES MATERIAIS
4.1. USO EQUITATIVO E RAZOÁVEL
A doutrina do uso equitativo surgiu nas decisões da Suprema Corte Norte-
Americana no início do século XX, embora encontre raiz no século XVI, com o
desenvolvimento da noção de bem comum como finalidade do direito humano. Trata-se
de uma doutrina que diz respeito à repartição ou à alocação da água entre estados que
compartilham um curso de água internacional e que estabelece que cada estado tem direito
ou está autorizado ao uso de uma equitativa parcela da água compartilhada com outros
estados409.
Posteriormente, o uso equitativo foi incorporado pela Associação de Direito
Internacional, através das Regras de Helsinque de 1966, como princípio básico aplicável
aos cursos de água internacionais410.
Atualmente, o princípio da equidade é considerado o “novo eixo estruturador dos
regimes internacionais” 411 e também constitui o ponto central da Convenção de Nova
Iorque, embora encontre algumas limitações, como a de não causar danos significativos
aos demais estados do curso de água, que será objeto de análise em tópico próprio412.
A primeira questão que merece ser tratada refere-se a como saber se determinado
uso é equitativo e razoável? A doutrina do uso equitativo é flexível, na medida em que as
circunstâncias para se aferir se determinados usos são equitativos variam, como as
condições físicas e climáticas do ambiente da bacia, as características e taxas de retorno
409 José Manuel PUREZA e Paula Duarte LOPES, A Água, entre a Soberania e o interesse comum, in
Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 85 e seguintes, 89. Anastasios
GOURGOURINIS, Delineating the Normativity of Equity in International Law, International
Community Law Review, n.o 11, 2009, páginas 327-347, 330. Stephen C. MCCAFFREY, The law of
international watercourses: non-navigational uses, Oxford University Press, 2001, página 326. P.
GLEICK, Water and Conflict: Fresh Water Resources and International Security, International
Security, Volume 18, nº 1, 1993, páginas 79 a 112, 106. 410 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 324-326. 411 José Manuel PUREZA e Paula Duarte LOPES, A Água, entre a Soberania e o interesse comum, in
Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 85 e seguintes, 89. Anastasios
GOURGOURINIS, Delineating the Normativity of Equity in International Law, International
Community Law Review, n.o 11, 2009, páginas 327-347, 330. 412 Stephen MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of the
U.N. Convention, 1999, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017,
páginas 11-19, 12. Aamparo SERENO ROSADO, O Regime Jurídico das Águas Internacionais. O Caso
das Regiões Hidrográficas Luso-Espanholas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, página 151.
do fluxo, a extensão dos usos históricos ou estabelecidos, a disponibilidade de água
armazenada, os efeitos do uso sobre áreas a jusante, assim como a análise do custo para
áreas a montante comparado aos benefícios para áreas a jusante se limitações forem
impostas a montante413.
Sob o aspecto temporal, também pode haver variação acerca da definição do uso
equitativo. A prioridade da apropriação, embora seja um princípio norteador, não é
suficiente para definir a repartição equitativa dos cursos de água. Novos usos podem ser
equitativos, ainda que impactem usos previamente estabelecidos, desde que configurem
uma justa e equitativa repartição das águas estabelecida de acordo com as características
da bacia414.
A complexidade do processo de identificação e manutenção da equidade na
utilização dos cursos de água de uma bacia hidrográfica internacional demonstra que a
utilização equitativa é um princípio de direito internacional que emana da ideia de justiça
na utilização da água, e não simplesmente uma questão de alocação da água. De acordo
com o referido princípio, cada estado tem igual direito a uma parcela equitativa dos cursos
de água compartilhados para atender às suas necessidades e prioridades,
independentemente de onde se localizam a nascente e a foz ou dos usos estabelecidos
previamente415. Logo, requer equilíbrio entre os usos, isto é, todos os estados da bacia
têm direito de se beneficiarem de forma equitativa dos cursos de água, ainda que a parcela
de água necessária para satisfazer suas necessidade não seja necessariamente idêntica à
dos demais estados da bacia416.
Embora a análise deva ser feita caso a caso, de acordo com as peculiaridades de
cada bacia, o artigo IV das Regras de Helsinque de 1966 traça alguns parâmetros para a
413 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 327 e 328. 414 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 328. 415 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 336. Joseph W. DELLAPENNA, Rivers as Legal Structures: The
Examples of the Jordan and the Nile, Natural Resources Journal, Volume 36, 1996, páginas 217-250,
247-249 e 344. 416 José Manuel PUREZA e Paula Duarte LOPES, A Água, entre a Soberania e o interesse comum, in
Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 85 e seguintes, 93. Paulo
Canelas de CASTRO, New age in the Luso-Spanish relations in the management of shared basins?
The challenge of cooperation in the protection and sustainable utilization of waters, in Implementing
Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation,
Lisboa, 2003, páginas 65 e seguintes, 69. Tarek MAJZOUB e Fabienne QUILLERÉ-MAJZOUB,
Contribution to the Operationalization of the Principle of Equitable and Reasonable Utilization of
International Watercourses through Jurimetrics, Revue Hellénique de Droit Internactional, Sakkoulas
Publications, Atenas, 2012, páginas 371 e seguintes, 389.
identificação do uso razoável e equitativo, quais sejam, a geografia e hidrologia da bacia,
o clima, a utilização histórica, as necessidades econômicas de cada estado, a população
dependente da água, o custo comparado com meios alternativos, a disponibilidade de
outros recursos, a verificação de perda na utilização, a praticidade de compensação aos
demais estados e o grau no qual a necessidade pode ser satisfeita sem causar danos a outro
estado na bacia.
Na mesma linha, a Convenção de Nova Iorque417 determina que os estados
deverão considerar fatores e circunstâncias pertinentes, tais como geográficos,
hidrográficos, hidráulicos, climáticos, ecológicos, entre outros de caráter natural; as
necessidades sociais e econômicas e a população dependente do curso de água dos estados
ribeirinhos interessados; os efeitos da utilização sobre os demais estados; utilizações
existentes e potenciais; conservação, proteção, desenvolvimento e economia da utilização
e custos; e disponibilidade de alternativas de valor comparável para uma utilização
concreta existente ou planejada418.
Extrai-se dos referidos documentos que o uso equitativo pressupõe a consideração
de três elementos principais - fatores hidrológicos, potenciais necessidades e usos
existentes419.
A doutrina tem se posicionado na mesma linha. PETER GLEICK destaca critérios
que devem ser considerados nas negociações entre os estados para a determinação do que
seria o uso equitativo, como população, geografia e disponibilidade de recursos
alternativos420.
Apesar de elencar tais fatores, que não são exaustivos, os referidos diplomas não
determinam a relevância atribuída a cada um deles. Limitam-se a estabelecer que todos
eles devem ser examinados conjuntamente, a partir de consultas “com um espírito de
cooperação”421 e que o peso de cada um decorrerá da importância diante da comparação
com os demais422. A ausência de critério para orientar a aplicação desses fatores e
circunstâncias dificulta a colocação em prática da Convenção em contextos variados,
417 Artigo 5.º. 418 Artigo 6.º, §1º. 419 Tarek MAJZOUB e Fabienne QUILLERÉ-MAJZOUB, Contribution to the Operationalization of the
Principle of Equitable and Reasonable Utilization of International Watercourses through
Jurimetrics, in Revue Hellénique de Droit Internactional, Sakkoulas Publications, Atenas, 2012, páginas
371 e seguintes, 383 e 391. 420 Peter GLEICK, Water and Conflict: Fresh Water Resources and International Security,
International Security, Volume 18, n.º 1, 1993, páginas 79 a 112, 107. 421 Artigo 6.º, §2.º. 422 Artigo 6.º, §3.º.
além de gerar insegurança jurídica, na medida em que não deixa claro quais deverão
prevalecer efetivamente diante das circunstâncias concretas423.
No julgamento do caso Gabčíkovo-Nagymaros424, a Corte Internacional de Justiça
posicionou-se acerca do princípio do uso equitativo, ao assentar que este, assim como o
dever de não provocar danos transfronteiriços, possui status de norma fundamental de
direito internacional, aplicável aos cursos de água425. O conflito que deu causa à disputa,
submetida à Corte Internacional de Justiça em 1993, envolveu a construção de barragens
hidrelétricas em Gabčíkovo e Nagymaros, na fronteira entre a Hungria e a Eslováquia. O
conflito teve origem em um tratado firmado entre as partes em 1977, que tinha por objeto
a partilha dos custos e benefícios advindos da construção de dois projetos para a
construção das hidrelétricas na bacia hidrográfica do Danúbio.
Em 1981, a Academia Húngara de Ciências realizou um estudo, posteriormente
confirmado por experts independentes, que concluiu que as consequências ambientais dos
projetos não haviam sido bem consideradas e propôs a postergação da execução ou
mesmo o cancelamento do projeto. Pressionada pela opinião pública, a Hungria paralisou
as obras em seu território, sob o fundamento da possibilidade de os projetos provocarem
impactos ambientais desconsiderados por ocasião da celebração do tratado. Diante da
paralisação da Hungria, a Eslováquia adotou uma solução provisória enquanto as
negociações entre os dois estados prosseguiam e notificou a Hungria sobre sua decisão
em 1991. Inconformada com o prosseguimento das obras, em 19 de maio de 1992 a
Hungria notificou a Eslováquia acerca da rescisão do Tratado de 1977. Diante do impasse,
a Hungria propôs submeter a disputa à Corte Internacional de Justiça, o que foi rejeitado
pela Eslováquia. Em 28 de outubro de 1992, chegaram a um acordo, porém com a
independência da então Tchecoslováquia, em 1993, a Eslováquia alegou que o novo
estado dependia da eletricidade produzida pela barragem de Gabčíkovo-Nagymaros426.
Em 7 de abril de 1993, as partes submeteram a disputa à Corte Internacional de
Justiça. Ao decidir o conflito, a Corte assentou que os potenciais impactos ambientais dos
423 Elli LOUKA, Water Law & Policy, Governance Without Frontiers, Oxford University Press, 2008, página 255. 424 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso Gabčíkovo-Nagymaros, Hungria versus Eslováquia,
25 de setembro de 1997, disponível em: http://www.icjcij.org, acesso em 29/08/2017. 425 No mesmo sentido CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, legality of the threat or ijse of nuclear
weapons, Advisory Opinion, de 8 de julho de 1996. Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International
Environmental Law, Transnational Publishers, 2.ª edição, página 424. Stephen C. MCCAFFREY, The
law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford University Press, 2001, página 325. 426 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2.ª
edição, páginas 419-423.
projetos não eram completamente imprevisíveis por ocasião das negociações do tratado
e que adaptações aos projetos eram admitidas pelo tratado de 1977, o qual previa a
possibilidade de as partes realizarem negociações a qualquer tempo para procederem aos
ajustes necessários entre os fatores econômicos e ambientais. A Corte afirmou que novas
normas de direito ambiental são relevantes para a implementação do tratado, porém
podem ser incorporadas através de acordo entre as partes e adaptações aos projetos, sendo
desnecessária a rescisão do Tratado de 1977. A abordagem do direito internacional da
água e da proteção ambiental da água, mencionados em diversas seções da decisão,
representa um grande avanço para a jurisprudência da Corte Internacional de Justiça,
embora não tenha havido um posicionamento em relação ao princípio da precaução e ao
dever de avaliar efeitos de longo prazo de novos projetos427.
Apesar das críticas, é digna de elogio a fundamentação da Corte no sentido de que
não cabe a ela estabelecer a solução final, mas que as próprias partes deveriam negociar
entre si até chegarem a um acordo sobre a forma de implementar o Tratado de 1977,
considerados os objetivos nele estabelecidos e as adaptações necessárias, permitidas pelo
tratado428.
Conforme se pode perceber a partir do julgamento do Caso Gabčíkovo-
Nagymaros, o princípio do uso equitativo tangencia o da comunidade de interesses. Isso
porque a utilização equitativa dos cursos de água assegura que os interesses de toda a
comunidade da bacia sejam respeitados.
Este último princípio baseia-se na ideia de interdependência física entre os estados
que compartilham a mesma bacia hidrográfica. Pressupõe que os estados da bacia
possuem interesses distintos, porém igualmente legítimos, e, portanto, todos são dignos
de serem atendidos a partir da livre utilização dos cursos de água da bacia, desde que
respeitados os interesses dos demais estados ribeirinhos. Parte da noção de que os cursos
de água constituem um componente da unidade ambiental e um patrimônio único comum
que deve ser compartilhado entre todas as comunidades integradas pelas gerações
presentes e futuras. Surge, assim, a ideia de “comunidade de interesses” ou “comunidade
de preocupações”, em contraposição à noção de que os estados soberanos são
proprietários dos cursos de água sob sua jurisdição. Trata-se de uma transição
427 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, páginas 425-427. 428 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 195-196.
desacelerada, porém perceptível se observada a longo prazo, marcada pela evolução de
valores e referências das sociedades no sentido do despertar para uma consciência
ecológica. A soberania, assim como comportamentos competitivos, vem gradualmente
cedendo espaço para a cooperação internacional, fundamentada na ética ambiental, e a
responsabilização estatal. Consequentemente, ocorre uma transformação do processo
decisório internacional associado à relação entre o homem e o ambiente429 e surge a
necessidade de os estados que compartilham cursos de água empreenderem acordos e
negociações para encontrar o equilíbrio na utilização desses bens ambientais e, assim,
conciliar interesses competitivos sem prejudicar a sustentabilidade430.
O princípio do uso equitativo funciona como uma ferramenta de solução pacífica
de conflitos que reflete o princípio da comunidade de interesses e reconhece a existência
de direitos iguais a todos os estados da bacia. Foi a tese adotada pelo Tribunal Permanente
de Justiça Internacional na decisão do caso da Comissão do Rio Oder431, relativo à
extensão, ou não, da jurisdição territorial da Comissão do Danúbio a dois afluentes
situados no território da Polônia. Baseado na comunidade de interesses, o Tribunal
entendeu que o conceito de “rio internacional” abrange todo o sistema fluvial, inclusive
afluentes situados exclusivamente no território de um determinado estado, e que os
interesses de um estado não podem prevalecer em prejuízo dos interesses dos demais
membros da comunidade ribeirinha432.
4.1.1. O equilíbrio entre o uso equitativo e sustentável
A água constitui um bem indispensável para o equilíbrio do planeta e a
manutenção da vida. A forma como é utilizada diz respeito a toda a comunidade
internacional que sofre impactos e não apenas aos estados da bacia, que são diretamente
429 Paulo Canelas de CASTRO, Sinais de (nova) Modernidade no Direito Internacional da Água, in
Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 101 e seguintes, 109, 110, 113,
114, 115 e 117. 430 Jutta BRUNÉE, The Challenge to International Law: Water Defying Sovereignty or Sovereignty
Defying Reality?, in Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 51 e
seguintes, 53 e 54. 431 José Manuel PUREZA e Paula Duarte LOPES, A Água, entre a Soberania e o interesse comum, in
Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 85 e seguintes, 93. 432 Attila TANZI, The Economic Commission for Europe, Water Convention and the United Nations,
Watercourses Convention: An analysis of their harmonized contribution to international water Law,
Water Series, nº 6, Nações Unidas, 2015, páginas 40 e 41. Stephen C. MCCAFFREY, Second report on
the law of the non-navigational uses of international watercourses, Yearbook of the International Law
Commission, 1986, vol. II, páginas 87 e seguintes, 113-114.
atingidos. Logo, o interesse na proteção das bacias hidrográficas internacionais é de toda
a comunidade internacional.
A noção unitária de bacia pressupõe que cada bacia hidrográfica constitui um todo
sob os aspectos físico e econômico. Por isso, a gestão deve se preocupar também com a
proteção dos ecossistemas associados à bacia, e não apenas com o atendimento das
necessidades específicas dos estados da bacia. A finalidade do regime jurídico dos cursos
de água internacionais é proteger o ecossistema que abrange a bacia hidrográfica
internacional e tutelar o meio ambiente para a comunidade internacional, inclusive as
gerações presente e futura – e nesse particular relaciona-se com o princípio da
solidariedade intra e intergeracional433.
Embora a doutrina majoritária não faça distinção entre a unidade da bacia e a tese
da comunidade de interesses, aquela que o faz preocupa-se com o interesse da
comunidade internacional na preservação da bacia hidrográfica internacional para que
esta possa servir à humanidade, e não apenas aos estados da bacia434. Pressupões que a
preservação do ambiente é de grande significância para toda a humanidade, já que se trata
de um espaço vital, que confere qualidade de vida e saúde aos seres humanos, incluindo
as gerações que ainda estão por nascer435. Nesse particular, aproxima-se do princípio da
utilização sustentável, na medida em que este princípio constitui uma ferramenta para
resguardar os interesses da comunidade internacional de preservação dos cursos de água
e do ecossistema da bacia.
As Regras de Berlim definem uso sustentável, no artigo 3.19, como “a gestão
integrada dos recursos para assegurar o uso eficiente da água e o acesso equitativo a ela,
para o benefício das gerações atuais e futuras, ao mesmo tempo preservando os recursos
renováveis e mantendo os não renováveis pelo máximo de tempo razoavelmente
possível.”436. Trata-se, nas palavras de GOMES CANOTILHO, do “novo paradigma
secular” ou de um princípio aberto que figura ao lado de outros princípios437.
Conforme previsto no Princípio 4 da Declaração do Rio, a proteção ambiental
deve constituir parte integrante do processo de desenvolvimento econômico. Assim, o
433 Amparo SERENO ROSADO, Rios que nos separam, águas que nos unem. Análise jurídica dos
Convénios Luso-Espanhóis sobre águas internacionais, Editora Fundação Lex Nova, 2011, página 31. 434 Amparo SERENO ROSADO, Rios que nos separam, águas que nos unem. Análise jurídica dos
Convénios Luso-Espanhóis sobre águas internacionais, Editora Fundação Lex Nova, 2011, página 26. 435 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 190. 436 INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION, Fourth Report, Berlin Conference, 2004, página 10. 437 José Joaquim GOMES CANOTILHO, O Princípio da sustentabilidade como Princípio estruturante
do Direito Constitucional, Revista de Estudos Politécnicos, Volume VIII, nº 13, 2010, páginas 7-18, 8.
direito ao desenvolvimento econômico encontra-se limitado pelo dever de proteção do
ambiente – o que inclui os cursos de água - para as gerações presentes e futuras. A
utilização sustentável dos bens ambientais é necessária para o atingimento do
desenvolvimento sustentável438.
De acordo com WEISS, o desenvolvimento sustentável possui uma estreita
relação com o princípio da solidariedade intergeracional e intrageracional439, como um
compromisso de equidade com as futuras gerações, garantindo, no mínimo, o nível atual
de bem estar a todas as gerações440, seja sob os aspectos (i) da sustentabilidade forte, que
pressupõe a infungibilidade dos bens naturais, ou (ii) da sustentabilidade fraca, atrelada à
ideia de fungibilidade dos bens naturais, de acordo com a qual não há necessidade de
manutenção exatamente dos mesmos bens naturais, desde que sejam conferidas às
gerações futuras as mesmas oportunidades daquelas conferidas às presentes441.
Assim como o princípio do desenvolvimento sustentável se aproxima do ideal de
justiça distributiva e se preocupa com a solidariedade entre gerações, também deve haver
“equidade entre gerações” 442, de forma que os interesses ambientais das gerações futuras
sejam considerados no processo de tomada de decisões das gerações atuais no exercício
do seu direito ao desenvolvimento econômico. Isso inclui decisões sobre a utilização das
bacias hidrográficas443.
Em relação aos cursos de água, a base normativa da equidade abrange três
aspectos, quais sejam, a conservação das opções (aspecto quantitativo) dos cursos de
água, a conservação da qualidade dos cursos de água e a conservação do acesso das
gerações aos cursos de água444.
A sustentabilidade intergeracional configura uma das três dimensões básicas da
sustentabilidade. Impõe a equidade entre indivíduos atualmente vivos e indivíduos que
438 Ian BROWNLIE, Principles of Public International Law, Oxford University Press, 6ª edição, 2003,
páginas 276-277. 439 A Convenção de Aarhus, de 25 de Junho de 1998, reconhece o direito de todas as pessoas das gerações
presentes e futuras de viver em um ambiente adequado à sua saúde e bem-estar (artigo 1º). 440 Edith Brown WEISS, In Fairness to Future Generations and Sustainable Development, American
University International Law Review, Volume 8, Issue 1, Article 2, 1992, páginas 19-26, 19 e 21. 441 Rute SARAIVA e Nuno ALEIXO, Energia e desenvolvimento sustentado. O caso das energias
renováveis e da eólica em especial em Portugal, in Cadernos O Direito, nº 3, 2008, páginas 215-277,
232. 442 Paulo Canelas de CASTRO, Sinais de (nova) Modernidade no Direito Internacional da Água, in
Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 101 e seguintes, 116. José
Manuel PUREZA e Paula Duarte LOPES, A Água, entre a Soberania e o interesse comum, in Nação e
Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 85 e seguintes, 90. 443 Ludwig KRÄMER, Environmental Law, Londres, 2000, 4ª edição, página 7. 444 Edith Brown WEISS, In Fairness to Future Generations and Sustainable Development, American
University International Law Review, Volume 8, Issue 1, Article 2, 1992, páginas 19-26, 22 e 23.
nascerão no futuro445. Se por um lado as gerações atuais têm direito ao desenvolvimento
econômico, por outro têm o dever de proteger o meio ambiente para as gerações futuras,
uma vez que estas têm direito às mesmas oportunidades de escolha das gerações atuais.
Esse direito abrange a possibilidade de melhoria dos padrões de vida e bem-estar e de
desfrutar das mesmas capacidades do ecossistema, dos bens ambientais e da diversidade
biológica existentes no presente446.
A compatibilização entre o direito e o dever mencionados é viabilizada pelo
desenvolvimento sustentável. A qualidade de vida das gerações futuras, assim como as
suas oportunidades de escolha, dependerá da qualidade e da quantidade de bens
ambientais que receberão das gerações atuais447.
Não se desconhece as críticas doutrinárias de que a noção de desenvolvimento
sustentável é vaga e imprecisa, além de ser difícil determinar seu conteúdo jurídico.
Funciona mais como uma diretriz a ser observada no desenvolvimento de políticas
públicas do que como um conceito legal propriamente448. No entanto, o fato de constituir
um princípio aberto lhe garante certa flexibilidade e capacidade de adaptação às inúmeras
situações, imprevisíveis a priori pelo legislador. Além disso, permite extrair um
imperativo categórico, nas palavras de GOMES CANOTILHO, de que o homem não deve
viver à custa da natureza nem esgotar seus recursos449.
Há quem entenda que o princípio da sustentabilidade é vinculante em várias
dimensões, devendo o tomador de decisão orientar-se pela busca do desenvolvimento
compatível com a preservação do ambiente e propício à saúde em sentido amplo, de forma
a abranger componentes éticos, sociais, ambientais e políticos450.
É possível extrair alguma concretude da sustentabilidade em sua versão ambiental,
aplicável aos cursos de água. GOMES CANOTILHO aponta para os deveres de
planejamento, economia e obrigações de condutas e resultados. Nessa linha de raciocínio,
445 José Joaquim GOMES CANOTILHO, O Princípio da sustentabilidade como Princípio estruturante
do Direito Constitucional, Revista de Estudos Politécnicos, Volume VIII, nº 13, 2010, páginas 7-18, 8 e
9. 446 Ludwig KRÄMER, Environmental Law, Londres, 2000, 4ª edição, página 7. Joseph E. STIGLITZ,
Amartya SEN e Jean-Paul FITOUSSI, Report by the Commission on the Measurement of Economic
Performance and Social Progress, 2009, disponível em: www.stiglitz-sen-fitoussi.fr, acesso em
15/11/2017, página 233. 447 BRASIL, BANCO CENTRAL DO BRASIL, Boletim Responsabilidade Social e Ambiental do
Sistema Financeiro, Ano 5, n.o 51, junho de 2010, página 2. 448 Ludwig KRÄMER, Environmental Law, Londres, 2000, 4ª edição, página 7. 449 José Joaquim GOMES CANOTILHO, O Princípio da sustentabilidade como Princípio estruturante
do Direito Constitucional, Revista de Estudos Politécnicos, Volume VIII, nº 13, 2010, páginas 7-18, 8. 450 Juarez, FREITAS, Sustentabilidade: direito ao futuro, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2011, página
40.
a sustentabilidade impõe a estabilidade e o respeito ao tempo necessário e à capacidade
de regeneração dos cursos de água. Deve haver equilíbrio entre o tempo necessário para
a recuperação temporal e a poluição decorrente da utilização dos cursos de água. A
eficiência deve nortear o seu consumo, assegurando que as futuras gerações também
tenham acesso a eles. Riscos duradouros e alterações irreversíveis dos cursos de água,
que também podem decorrer do efeito cumulativo, devem ser evitados a qualquer
custo451.
O índice de desenvolvimento humano foi reformulado em 2008/2009 por uma
comissão composta por Amartya Sen, Joseph Stiglitz e Jean Paul Fitoussi, na França, para
incluir a sustentabilidade ambiental como um dos fatores a serem considerados na análise
da performance econômica e progresso social, ao lado da renda, longevidade e educação)
e mensurar os impactos da economia sobre os ecossistemas452.
Nessa linha de raciocínio, além de satisfazer as necessidades das gerações atuais,
uma política da água que se pretenda sustentável e preocupada com o desenvolvimento
humano deve assegurar a proteção dos cursos de água e dos ecossistemas associados para
que as próximas gerações tenham acesso aos mesmos padrões de qualidade e quantidade.
Assim, a utilização dos cursos de água pelas gerações presentes não deve inviabilizar seu
uso pelas gerações futuras, sob pena de comprometimento do desenvolvimento
humano453.
De acordo com a Convenção de Nova Iorque, para ser razoável e equitativo, o uso
deve proteger adequadamente os cursos de água contra a poluição e outras formas de
degradação. Embora não sejam propriamente antagônicos, os princípios do uso
sustentável e do uso equitativo nem sempre se harmonizam diante de um caso concreto.
Não se trata de uma colisão, mas de um conflito entre dois princípios igualmente válidos.
Encontrar o equilíbrio entre ambos não constitui tarefa fácil, já que eles se distinguem
451 José Joaquim GOMES CANOTILHO, O Princípio da sustentabilidade como Princípio estruturante
do Direito Constitucional, Revista de Estudos Politécnicos, Volume VIII, nº 13, 2010, páginas 7-18, 9 e
15. 452 Juarez, FREITAS, Sustentabilidade: direito ao futuro, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2011, páginas
42 e 43. BRASIL, BANCO CENTRAL DO BRASIL, Boletim Responsabilidade Social e Ambiental do
Sistema Financeiro, Ano 5, n.o 51, junho de 2010, páginas 1 e 2. 453 António Gonçalves Henriques, The Portuguese-Spanish Convention on Shared River Basins: A
Framework for Co-operation for Protection and Sustainable Use of Waters, in Implementing
Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation,
Lisboa, 2003, Páginas 251 e seguintes, 256. Edith Brown WEISS, In Fairness to Future Generations and
Sustainable Development, American University International Law Review, Volume 8, Issue 1, Article 2,
1992, páginas 19-26, 19, 20 e 23.
quanto à prioridade ou ao foco da tutela454. Requer o sopesamento entre dois interesses
conflitantes, que abstratamente têm o mesmo status, mas, diante de uma situação
concreta, um dos princípios deve prevalecer, sem que o outro seja invalidado455.
As Regras de Helsinque de 1966, assim como a Convenção de Nova Iorque,
conferem validade a ambos os princípios do uso sustentável e do uso equitativo, ao prever
o direito à utilização razoável, equitativa e sustentável das águas dentro do território de
cada estado456.
Embora abstratamente estejam no mesmo nível, observa-se uma dificuldade de
ponderação acerca de qual dos mencionados princípios deve ter maior peso diante de um
caso concreto. O princípio da equidade prioriza a satisfação dos interesses da comunidade
da bacia, que são diversos e variam de estado para estado457. Pressupõe que a finalidade
do regime jurídico das águas internacionais é a resolução pacífica dos conflitos, o que
pode ser alcançado com a equitativa partilha dos recursos hídricos entre os estados que
integram uma mesma bacia hidrográfica. Admite que os estados da bacia utilizem
livremente as águas de acordo com seus diversos interesses, desde que observem a
equidade e não prejudiquem os demais em termos de qualidade e quantidade458. É a
doutrina adotada pela Suprema Corte Norte-Americana para a solução pacífica de
conflitos no âmbito interno459.
Embora a equidade aparentemente seja um princípio orientador, por conferir
igualdade de oportunidade a todos os estados da bacia, o uso baseado exclusivamente
neste princípio pode induzir à sobre-exploração e à contaminação dos cursos de água,
454 Amparo SERENO ROSADO, Rios que nos separam, águas que nos unem. Análise jurídica dos
Convénios Luso-Espanhóis sobre águas internacionais, Editora Fundação Lex Nova, 2011, páginas 25
e 26. 455 Robert ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais, 5.a edição, tradução de Virgílio Afonso da Silva,
Editora Malheiros, São Paulo, 2006, páginas 95 e 96. 456 O artigo 5º da Convenção de Nova Iorque de 1997 fala em “utilização e participação equitativas e
razoáveis”, e seu §1º em “utilização ótima e sustentável e sua máxima fruição, de forma compatível com a
sua adequada proteção, e tendo em conta os interesses dos respectivos estados do curso de água”. 457 Douglas FISHER, The Law and governance of water resources, The challenge of sustainability,
Cheltenham, UK, Edwar Elgar Publishing Limited, 2009, página 220. 458 Amparo SERENO ROSADO, Rios que nos separam, águas que nos unem. Análise jurídica dos
Convénios Luso-Espanhóis sobre águas internacionais, Editora Fundação Lex Nova, 2011, página 25. Philippe SANDS e Jacqueline PEEL, Principles of International Environmental Law, 3.ª edição,
Cambridge, Cambridge University Press, 2012, páginas 213 e 214, disponível em
https://books.google.pt/books?id=uHzFRub4KrAC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false, acesso em 17/02/2016. 459 O princípio da utilização equitativa da água foi utilizado como fundamento pela Suprema Corte Norte-
Americana no julgamento do caso Kansas versus Colorado (disponível em
https://supreme.justia.com/cases/federal/us/206/46/, acesso em 06/01/2016) e também no caso Nova Jersey
versus Nova Iorque (disponível em http://supreme.justia.com/us/283/336/case.html, acesso em
06/01/2016).
colocando em risco os ecossistemas adjacentes e a segurança do abastecimento de água
potável para a população.
Parcela da doutrina critica a adoção puramente do critério da equidade, ao
fundamento de que este princípio admite um dano negociável ou tolerado e,
consequentemente, pode conduzir à sobre-exploração e à poluição da bacia
hidrográfica460. Ademais, a equidade não necessariamente respeita o tempo e a
capacidade de recuperação dos cursos de água, como por exemplo, o tempo de recarga
dos aquíferos e de alimentação dos cursos de água superficiais461.
Logo, o princípio do uso equitativo não deve ser sobreposto ao princípio do uso
sustentável, mas conciliado. Explica-se. Diante de uma situação concreta de tensão, na
qual exista o risco da sobre-exploração, de forma a colocar em risco o ecossistema da
bacia, a sustentabilidade deve ser considerada um limite inegociável e por isso deve ter
precedência sobre o uso equitativo. A análise deve ser invertida. Primeiramente, devem
ser identificados os limiares da sustentabilidade de uma bacia hidrográfica. Somente após
os estados passam a poder negociar equitativamente a utilização dos recursos hídricos
disponíveis462.
FISHER sintetiza a ideia aqui defendida, ao afirmar que o uso equitativo e
razoável, associado à prevenção da poluição e à proteção do ambiente, constitui a norma
base fundamental subjacente à gestão dos cursos de água internacionais, em prol do
desenvolvimento sustentável463.
4.2. NÃO CAUSAR DANOS SIGNIFICATIVOS
Em um mundo globalizado no qual as vulnerabilidades socioambientais
transcendem fronteiras, determinadas ações humanas provocam impactos significativos
sobre os cursos de água compartilhados.
460 Amparo SERENO ROSADO, Rios que nos separam, águas que nos unem. Análise jurídica dos
Convénios Luso-Espanhóis sobre águas internacionais, Editora Fundação Lex Nova, 2011, páginas 25,
26, 28 e 29. 461 Paulo Canelas de CASTRO, Sinais de (nova) Modernidade no Direito Internacional da Água, in
Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 101 e seguintes, 119. 462 Amparo SERENO ROSADO, Rios que nos separam, águas que nos unem. Análise jurídica dos
Convénios Luso-Espanhóis sobre águas internacionais, Editora Fundação Lex Nova, 2011, páginas 25,
26, 28 e 29. 463 Douglas FISHER, The Law and governance of water resources, The challenge of sustainability,
Cheltenham, UK, Edwar Elgar Publishing Limited, 2009, páginas 125 e 126.
Nesse contexto, consolidou-se no Direito Internacional a obrigação de não causar
danos significativos464, de acordo com a qual os estados devem prevenir a poluição
transfronteiriça dos cursos de água internacionais que possa causar danos significativos a
outros estados da bacia, o que inclui “lesões à saúde e à segurança humanas, à utilização
das águas para qualquer fim benéfico ou aos recursos vivos do curso de água”, conforme
previsto no artigo 21, §2.o, da Convenção de Nova Iorque.
A obrigação de não causar danos constitui a pedra angular do direito ambiental
internacional e demonstra que os estados estão sujeitos a limites ambientais no exercício
da sua soberania na exploração de recursos naturais465. Requer a adoção de medidas
adequadas para prevenir, controlar e reduzir a ocorrência de danos significativos a outros
estados da bacia, o que abrange também aqueles relacionados ao ecossistema no qual os
cursos de água se encontram inseridos.
Pressupõe que nenhum tipo de uso é superior a outro, embora a satisfação de
necessidades humanas vitais mereça especial consideração466, e determina que os estados
são responsáveis por prevenir ações dentro de seu território que possam provocar danos
significativos a outros estados467. A título de exemplo, devem ser adotadas medidas para
evitar inundações ou que possam aumentar os riscos de inundações em outros estados468.
Na prática, a depreciação de qualquer desses interesses tem sido motivo para
suscitar queixas sobre a deterioração da qualidade da água no plano internacional. No
julgamento do Caso do Canal Corfu, a Corte Internacional de Justiça reconheceu que os
estados têm a obrigação de não permitir que seu território seja usado para atos contrários
a outros estados469.
464 Previsto em sua forma mais completa no princípio 21 da Declaração de Estocolmo de 1972, o princípio
da não provocação de danos significativos também encontra previsão no artigo 7.o da Convenção de Nova
Iorque e no artigo 2.o, n.o 1, da Convenção de Helsinque. 465 Philippe SANDS e Jacqueline PEEL, Principles of International Environmental Law, 3.ª edição,
Cambridge, Cambridge University Press, 2012, páginas 235 e 236, disponível em
https://books.google.pt/books?id=uHzFRub4KrAC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false, acesso em 17/02/2016. Dante A.
Caponera, Principles of Water Law and Administration, National and International, 2ª edição revista
e atualizada por Marcella Nanni, Londres, UK, Taylor & Francis Group, 2007, páginas 232 e 234. 466 Artigo 10, §2.o, da Convenção de Nova Iorque de 1997. 467 Peter GLEICK, Water and Conflict: Fresh Water Resources and International Security,
International Security, Volume 18, nº 1, 1993, páginas 79 a 112, 107. 468 Artigo 7.o, §4.o da Diretiva 2007/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro.
Andrea M. KEESSEN, Jasper J.H. VAN KEMPEN e Helena F.M.W. VAN RIJSWICK, Transboundary
river basin management in Europe Legal instruments to comply with European water management
obligations in case of transboundary water pollution and floods, Utrecht Law Review, volume 4, Issue
3, Dezembro de 2008, página 41. 469 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso do Canal Corfu, Reino Unido versus Albânia, 1949,
disponível em http://www.icj-cij.org/docket/files/1/1645.pdf, acesso em 26/02/2017. Stephen C.
De acordo com FISHER, os estados devem prevenir qualquer nova forma de
poluição ou o aumento daquela já existente em uma bacia de drenagem que possa causar
dano substancial ao território de um estado ribeirinho, bem como adotar todas as medidas
cabíveis para reduzir a poluição já existente em cursos de água situados em seu
território470.
Os estados podem cumprir o dever de prevenir e evitar danos através da colocação
em prática de instrumentos legais que assegurem às autoridades responsáveis poderes
para adotar medidas adequadas para prevenir ou minimizar a poluição transfronteiriça dos
cursos de água. Tais medidas abrangem a adoção de um sistema de licenciamento prévio,
exigência de autorização prévia para atividades poluentes, como descarga de poluentes
nas águas, a cobrança de taxas pela disposição de efluentes, desenvolvimento de padrões
de qualidade da água e de padrões de descarga, aplicação de instrumentos econômicos,
como incentivos financeiros – por exemplo, pela limitação da quantidade de poluentes
dispensados nas águas, a adoção de medidas mais restritivas ou até mesmo proibitivas
sempre que a qualidade das águas receptoras ou o ecossistema adjacente o exigir, a
aplicação da melhor tecnologia possível para reduzir as descargas provenientes de fontes
industriais e urbanas, o desenvolvimento e a implementação de práticas ambientais mais
corretas a fim de reduzir as descargas de nutrientes e de substâncias perigosas
provenientes de fontes difusas, sobretudo da agricultura, a exigência de avaliação de
impacto ambiental, a promoção da gestão sustentável dos recursos hídricos, incluindo a
abordagem ecossistêmica, a colocação em funcionamento dos planos de contingência, a
adoção de medidas específicas adicionais para evitar a poluição das águas subterrâneas,
a redução ao mínimo do risco de poluição acidental, a adoção de objetivos e critérios de
qualidade da água, a adoção, de forma cooperada, de programas de investigação e
desenvolvimento de técnicas de redução dos impactos transfronteiriços471.
Embora, em regra, a recuperação ambiental seja inviável sob os aspectos
ecológico e econômico, e por isso o dano transfronteiriço deva ser evitado a todo custo,
o dever de não provocar danos não pode ser considerado uma obrigação absoluta. Trata-
se, na verdade, de um dever de diligência, cujo grau varia de acordo com a natureza da
MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford University Press,
2001, página 355. 470 Douglas FISHER, The Law and governance of water resources, The challenge of sustainability,
Cheltenham, UK, Edwar Elgar Publishing Limited, 2009, páginas 118 e 119. 471 J. G. LAMMERS, Pollution of International Watercourses, A Search for Substantive Rules and
Principles of Law, Holanda, 1984, páginas 350 e 351. Artigo 3º da Convenção de Nova Iorque de 1997.
atividade – quanto maior o risco, maior o dever de evitar danos -, as circunstâncias fáticas
e a capacidade dos estados envolvidos472.
Pequenos danos são tolerados pelo Direito Internacional, de modo que esse
princípio encontra mitigações diante das circunstâncias do caso concreto473. A realização
de consultas entre estados e o fornecimento de informações sobre atividades
potencialmente poluidoras demonstram que existe certo nível de tolerância, bem como
que o recurso às instâncias judiciais é evitado em um primeiro momento474.
Nesse sentido, o §2.o do artigo 7.o da Convenção de Nova Iorque admite, ainda
que implicitamente, a legitimidade de determinados danos, ao prever que o pagamento de
indenização ocorrerá, não em qualquer hipótese, mas apenas “quando cabível”475.
De forma alguma tal previsão afasta a obrigação de observância dos deveres de
cuidado e diligência, no sentido de evitar riscos de danos significativos. Isso significa que
os estados devem dispor de meios para neutralizar a poluição transfronteiriça das águas.
No entanto, respeitados esses deveres, se ainda assim ocorrer algum dano não intencional
ou que não derive de negligência, é possível afirmar que houve violação ao princípio em
questão? Mais do que proibir a provocação do dano propriamente, importam as
circunstâncias que levaram à sua ocorrência. Na análise da conduta do causador do dano,
o dever de diligência é fator importante para aferir o nível de sua responsabilidade. Por
outro lado, o dever de diligência deve ser definido em termos estritos para evitar que
estados se esquivem de suas obrigações sob o argumento de que agiram com diligência476.
Em se tratando de poluição transfronteiriça dos cursos de água, é difícil
estabelecer abstratamente um padrão mínimo de conduta dos estados no cumprimento do
dever de diligência, com padrões de conduta bem desenvolvidos, uniformizados e
472 Andrea M. KEESSEN, Jasper J.H. VAN KEMPEN e Helena F.M.W. VAN RIJSWICK,
Transboundary river basin management in Europe Legal instruments to comply with European
water management obligations in case of transboundary water pollution and floods, Utrecht Law
Review, volume 4, Issue 3, Dezembro de 2008, página 38. 473 Attila TANZI, The Economic Commission for Europe, Water Convention and the United Nations,
Watercourses Convention: An analysis of their harmonized contribution to international water Law,
Water Series, nº 6, Nações Unidas, 2015, página 30. 474 J. G. LAMMERS, Pollution of International Watercourses, A Search for Substantive Rules and
Principles of Law, Holanda, 1984, páginas 346 e 347. 475 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 310. 476 J. G. LAMMERS, Pollution of International Watercourses, A Search for Substantive Rules and
Principles of Law, Holanda, 1984, páginas 348 a 352. Stephen C. MCCAFFREY, The law of
international watercourses: non-navigational uses, Oxford University Press, 2001, páginas 371 e 374.
estruturados, considerando-se as peculiaridades de cada bacia hidrográfica e a escassez
de instrumentos globais477.
A Convenção de Nova Iorque não estabelece padrões de conduta para o
cumprimento do dever de diligência. Prevê, de forma genérica, que os estados devem
“prevenir, reduzir e controlar” a poluição dos cursos de água que possa provocar danos a
outros estados478. Em seguida, determina que os estados realizem consultas com o
propósito de determinar medidas e métodos mutuamente aceitáveis para prevenir, reduzir
e controlar a poluição de um curso de água internacional, tais como: a) formular objetivos
e critérios comuns sobre a qualidade da água; b) estabelecer técnicas e práticas para lidar
com a poluição de fontes localizadas e difusas; c) estabelecer lista de substâncias cuja
introdução nas águas de um curso de água internacional deva ser proibida, limitada,
investigada ou monitorada479.
Não há padrões pré-estabelecidos sobre a significância de um dano capaz de
ensejar o dever de evitá-lo ou minimizar seus impactos. A linha é bastante tênue e a
análise deve ser feita caso a caso. Um risco aparentemente pequeno pode produzir danos
significativos e irreversíveis caso venha a se concretizar. Nesse caso, um risco que
aparentemente é pequeno pode provocar prejuízos significantes ou deficiências no uso
das águas480. Por isso, a significância dos impactos deve ser definida de acordo com as
vulnerabilidades de cada curso de água, a partir da realização de consultas entre os estados
envolvidos e do estabelecimento de métodos, como aqueles indicados no artigo 21, §3.o,
da Convenção de Nova Iorque de 1997481.
LOUKA critica a complexidade conceitual do limiar da significância do dano
capaz de ensejar o dever de eliminar, mitigar ou mesmo compensar os prejuízos causados.
Mas reconhece que dita dificuldade não impediu a previsão do dever de não causar danos
significativos em inúmeros acordos sobre o uso de cursos de água compartilhados482,
apesar da sua implicação em mais uma limitação ao princípio da soberania territorial.
477 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 374-375. 478 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford University Press, 2001, páginas 377. 479 Artigo 21, §3.o, da Convenção de Nova Iorque. 480 J. G. LAMMERS, Pollution of International Watercourses, A Search for Substantive Rules and
Principles of Law, Holanda, 1984, páginas 351 e 355. 481 Attila TANZI, The Economic Commission for Europe, Water Convention and the United Nations,
Watercourses Convention: An analysis of their harmonized contribution to international water Law,
Water Series, nº 6, Nações Unidas, 2015, páginas 29 a 31. 482 Elli LOUKA, Water Law & Policy, Governance Without Frontiers, Oxford University Press, 2008,
página 255.
Isso porque, aparentemente, há uma séria tensão entre a liberdade de explorar os
cursos de água situados em seu território e a obrigação de assegurar que as atividades
exercidas dentro de sua jurisdição não provoquem danos ambientais transfronteiriços.
Não há dúvidas de que o princípio da soberania cede em prol do bem comum e é
mitigado pela vedação à utilização do território de forma a produzir impactos ambientais
transfronteiriços, sob pena de responsabilização internacional pelos danos provocados483.
No entanto, uma interpretação razoável desse princípio não conduz à proibição
absoluta à ocorrência de qualquer tipo de dano e sob qualquer circunstância, mas à
necessidade de uma atuação com diligência. Foi como decidiram a Corte Internacional de
Justiça no Caso Gabčíkovo-Nagymaros484 e o Tribunal Arbitral no Caso Trail Smelter485.
Neste último, discutiu-se a responsabilidade do Canadá pela poluição atmosférica
provocada pela emissão de dióxido de enxofre por uma fábrica (Consolidated Mining And
Smelting Co. of Canada) situada em seu território, que transbordou a fronteira e atingiu
o território dos Estados Unidos da América.
O caso foi submetido a um tribunal arbitral ad hoc que, ao concluir o julgamento,
em 1941, decidiu que nenhum estado tem o direito de usar seu território de forma a causar
dano ao do vizinho e que danos substanciais, sejam de natureza contínua ou acidental,
estão sujeitos à responsabilização. Por outro lado, assentou que danos pequenos ou
insignificantes são tolerados e não ensejam o pagamento de indenização486.
Embora se trate de um julgamento relacionado à poluição atmosférica, os
fundamentos utilizados para fundamentar a limitação ao direito de utilização do território
de determinado estado e a existência do dever de respeitar o ambiente de outros estados
da comunidade internacional também podem ser aplicados à utilização das águas, uma
vez que a poluição transfronteiriça do ar provoca danos análogos àqueles relacionados
aos cursos de água.
483 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, páginas 274 e 277. Carla AMADO GOMES, Os Bens Ambientais como Bens de Interesse
Comum da Humanidade: entre o Universalismo e a Razão de estado, in Direito Ambiental: o meio
ambiente e desafios da contemporaneidade, Talden Farias, Francisco Seráphico da Nóbrega Coutinho (coordenadores), Belo Horizonte, Editora Fórum, 2010, páginas 21 e seguintes, 23. 484 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 358-359. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso Gabčíkovo-
Nagymaros, Hungria versus Eslováquia, 25 de setembro de 1997, disponível em: http://www.icjcij.org,
acesso em 29/08/2017. 485 O Governo dos Estados Unidos da América apresentou queixa à Comissão Mista Internacional contra o
Canadá, alegando violação ao Tratado de Águas de Fronteira (Boundary Waters Treaty), de 1909. 486 J. G. LAMMERS, Pollution of International Watercourses, A Search for Substantive Rules and
Principles of Law, Holanda, 1984, página 524.
Apesar de este caso ser normalmente mencionado como paradigma da aplicação
do dever de não causar danos transfronteiriços, na doutrina, há quem defenda que esta
decisão priorizou muito mais o princípio da utilização equitativa do que o dever de não
causar danos. Isso porque, apesar das sérias consequências ambientais, o tribunal arbitral
não determinou a cessação das atividades da indústria canadense. Pelo contrário,
preocupado em conciliar os interesses de ambas as partes envolvidas – e em viabilizar o
desenvolvimento econômico, buscou encontrar o equilíbrio entre os interesses da empresa
e os da comunidade de agricultores americanos afetada. Assim, permitiu a continuação
da operação da Trail Smelter sob um detalhado regime de restrições, com o propósito de
reduzir a ocorrência de danos futuramente487.
Mas o tribunal arbitral assentou que, mesmo com a observância do regime
restritivo de emissões imposto à indústria canadense, se ocorrerem novos danos à
comunidade americana, esta faria jus a uma indenização, ainda que não se possa
considerar a conduta canadense ilícita488. Significa o reconhecimento de que mesmo
condutas lícitas - que observam o dever de diligência estabelecido em um rigoroso
regime, podem provocar danos e ensejar responsabilização.
Além da relação entre a obrigação de não causar danos e o princípio da soberania,
a sua relação com o princípio do uso equitativo também merece algumas considerações.
O artigo 10, §2.o, da Convenção de Nova Iorque remete ao pacote de princípios
de não causar danos e do uso equitativo e razoável como critério de solução de conflitos
envolvendo vários tipos de usos. De acordo com MCCAFFREY, a expressão “não causar
dano significativo” poderia ser substituída por “não exceder sua parcela equitativa” ou
“não privar outro estado de sua parcela equitativa”489, de forma que a obrigação de não
causar danos significativos não seja interpretada como um “direito de veto”490.
De acordo com o artigo 7.o, §1.o, da Convenção de Nova Iorque, ao utilizarem
cursos de água internacionais, os estados “deverão adotar todas as medidas apropriadas
para impedir que se causem danos significativos a outros estados do curso de água”.
487 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 353 e 354. 488 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 354 e 355. 489 Stephen C. MCCAFFREY, Second Report on the Law of the Non-Navigational Uses of
International Watercourses, Yearbook of the International Law Commission, 1986, Volume II (1),
Nações Unidas, página 133. 490 Bjorn-Oliver MAGSIG, International Water Law and the Quest for Common Security, Earthscan
Studies in Water Resource Management, Routedge, 2015, página 48.
Na eventual hipótese de danos significativos serem causados, o estado responsável
deverá, na ausência de acordo internacional, “adotar todas as medidas apropriadas, tendo
devidamente em conta o disposto nos artigos 5.o e 6.o, em consulta com o estado afetado,
para eliminar ou mitigar esses prejuízos e, quando cabível, examinar a questão de
indenização”491.
A referência à adoção de “todas as medidas apropriadas” remete à aplicação das
melhores tecnologias disponíveis, às melhores práticas ambientais, à prévia avaliação de
impactos ambientais e ao princípio da precaução492. Argumentos de natureza
socioeconômica e de impossibilidade técnica podem justificar a não adoção de medidas
para redução da poluição abaixo do nível que causa danos significantes?
Embora se observe certa tolerância entre os estados em relação à adoção gradativa
de medidas para redução da poluição, argumentos técnicos ou de natureza
socioeconômica não legitimam a provocação continuada de danos significativos. Logo,
atividades cujas técnicas disponíveis são incapazes de reduzir danos a níveis
insignificantes devem ser cessadas. Em outras palavras, deve-se buscar outro meio de
utilização dos cursos de água, uma vez que não se admite o prolongamento de danos
significativos493.
Interessante observar que a Convenção de Nova Iorque associa as medidas
apropriadas ao princípio do uso equitativo e razoável, previsto nos artigos 5.o e 6.o. Desde
que adotadas medidas mitigadoras, admite-se a ocorrência de danos significativos, uma
vez demonstrado que o estado poluidor atuou com diligência. Assim, apesar de exigir a
adoção de “medidas apropriadas”, a Convenção admite a ocorrência de danos
significativos, o que é alvo de duras críticas pela doutrina 494.
Embora discordem da opção feita, MCCAFFREY e SERENO ROSADO
reconhecem que o artigo 7.o, §2.o, da Convenção de Nova Iorque, implicitamente
privilegia o princípio da equidade e admite a ocorrência de danos significativos495. Ainda
491 Artigo 7º, §2º. 492 Attila TANZI, The Economic Commission for Europe, Water Convention and the United Nations,
Watercourses Convention: An analysis of their harmonized contribution to international water Law, Water Series, nº 6, Nações Unidas, 2015, páginas 29 e 30. 493 J. G. LAMMERS, Pollution of International Watercourses, A Search for Substantive Rules and
Principles of Law, Holanda, 1984, páginas 352-353. 494 Stephen C. MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of
the U.N. Convention, 1999, páginas 11-19, 12-13, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017. 495 Amparo SERENO ROSADO, O Regime Jurídico das Águas Internacionais. O Caso das Regiões
Hidrográficas Luso-Espanholas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, página 763. Amparo
SERENO ROSADO, Rios que nos separam, águas que nos unem. Análise jurídica dos Convénios
que adotadas certas cautelas, a equidade no uso dos cursos de água não deveria justificar
danos significativos transfronteiriços, como admite a Convenção de Nova Iorque496. Isso
porque, mesmo que tenham sido adotadas medidas para reduzir os danos, não se pode
afirmar que o estado se desincumbiu da sua obrigação perante os outros, se danos
transfronteiriços substanciais continuarem a existir497.
Como esperado de uma convenção discutida em uma conferência diplomática
aberta à participação universal, há disposições que favorecem todas as posições. A
princípio, todos os interesses são defensáveis, uma vez que a Convenção de Nova Iorque
não adotou uma posição clara em favor de um ou outro princípio498.
Em que pesem as críticas, a redação do referido dispositivo permite defender que
o uso equitativo constitui o ponto central da Convenção de Nova Iorque e que a não
provocação de danos significativos se trata de apenas de mais um fator a ser analisado
para considerar se o uso pretendido pelo estado causador do dano é razoável499.
De acordo MCCAFFREY, a decisão da Corte Internacional de Justiça no Caso
Gabčíkovo-Nagymaros apoia esta conclusão. Nesse julgamento, a Corte referiu-se em
inúmeros trechos ao princípio da utilização equitativa, por exemplo, ao reconhecer à
Hungria o direito a uma parcela razoável e equitativa dos recursos de um curso de água
internacional. Por outro lado, em nenhum momento mencionou o dever de não provocar
danos significativos, apesar de este princípio ter sido reiteradamente reivindicado pela
Hungria - exceto de forma genérica, relacionada a danos ambientais em geral500.
Luso-Espanhóis sobre águas internacionais, Editora Fundação Lex Nova, 2011, páginas 29-30. Stephen C. MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of the U.N.
Convention, 1999, páginas 11-19, 13 e 14, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017. 496 Jutta BRUNÉE, The Challenge to International Law: Water Defying Sovereignty or Sovereignty
Defying Reality?, in Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 51 e
seguintes, 61. 497 J. G. LAMMERS, Pollution of International Watercourses, A Search for Substantive Rules and
Principles of Law, Holanda, 1984, página 352. 498 Stephen C. MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of
the U.N. Convention, 1999, páginas 11-19, 12 e 13, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017. 499 David FREESTONE e Salman M.A. SALMAN, Ocean and Freshwater Resources, in The Oxford
Handbook of International Environmental Law, Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores),
2008, páginas 338 e seguintes, 352. Stephen C. MCCAFFREY critica esse posicionamento, International
Water Law For The 21st Century: The Contribution of the U.N. Convention, 1999, páginas 11-19, 12
e 13, disponível em http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso
em 19/2/2017. 500 Stephen C. MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of
the U.N. Convention, 1999, páginas 11-19, 16, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017.
Em sentido diverso, embora preveja que os estados da bacia devam zelar para que
as águas transfronteiriças sejam utilizadas, a Convenção de Helsinque de 1992 confere
primazia ao dever de não causar danos em relação ao direito de utilização das águas501.
Seu foco é a proteção das águas das bacias hidrográficas internacionais contra impactos
transfronteiriços e a gestão duradoura, incluindo a aplicação de uma abordagem
ecossistemática502.
MCCAFFREY propõe a seguinte questão. Um estado a montante, que não
desenvolveu seu sistema hídrico devido ao seu terreno montanhoso, séculos após, planeja
executar um projeto hidrelétrico. Como conciliar seus interesses com os usos previamente
estabelecidos pelos estados a jusante, que utilizam os cursos de água na irrigação
agrícola? O estado a montante poderia legitimamente executar novos projetos, na medida
em que estaria sendo respeitado o princípio do uso equitativo entre todos os estados da
bacia, mesmo sabendo que os novos usos impactariam significativamente os usos já
estabelecidos há séculos a jusante? A questão não é simples. Privilegiar o dever de não
causar danos significativos inviabilizaria o desenvolvimento do sistema hídrico a
montante, ainda que os novos usos pretendidos sejam razoáveis e equitativos503.
Tendo em vista o fluxo natural dos cursos de água – de montante para jusante, ao
impedir que os estados utilizem os cursos de água de forma a causar danos significativos,
favorece-se aqueles situados nos níveis mais baixos504. Por isso, estados a jusante tendem
a defender a obrigação de não provocar danos significativos, com o propósito de
resguardar os usos já existentes. Isso dificulta o estabelecimento de novos usos a
montante505.
A priorização de usos historicamente estabelecidos encorajaria uma espécie de
“corrida para o rio”, beneficiando-se o vencedor com proteção absoluta contra qualquer
501 David FREESTONE e Salman M.A. SALMAN, Ocean and Freshwater Resources, in The Oxford
Handbook of International Environmental Law, Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores),
2008, páginas 338 e seguintes, 352. 502 António GONÇALVES HENRIQUES, O Direito Internacional das Águas e a Convenção de
Albufeira de 1998 sobre as Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas, página 7. 503 Stephen C. MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of
the U.N. Convention, 1999, páginas 11-19, 12 e 13, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017. 504 Sinval NEVES SANTOS, Águas Transfronteiriças Superficiais: o caso da bacia do Rio Danúbio,
São Paulo, 2005, página 110. 505 Bjorn-Oliver MAGSIG, International Water Law and the Quest for Common Security, Earthscan
Studies in Water Resource Management, Routedge, 2015, página 48. David FREESTONE e Salman M.A.
SALMAN, Ocean and Freshwater Resources, in The Oxford Handbook of International Environmental
Law, Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 338 e seguintes, 351 e 352.
outro novo uso futuro. Além disso, poderia condenar estados com desenvolvimento tardio
a permanecer em uma situação de subdesenvolvimento506.
A solução deve ser buscada a partir de consultas, diálogo e negociação com o
propósito de conciliar as obrigações de não causar danos significativos e da utilização
razoável e equitativa, sem privilegiar qualquer tipo de uso em detrimento de outros.
Importa também respeitar o limite da sustentabilidade da bacia hidrográfica, de forma que
não ocorra a sua sobre-exploração507.
A solução passa, igualmente, pela aplicação do princípio da proporcionalidade
entre os ônus e os bônus da nova atividade, mais precisamente entre os benefícios
gerados, os custos da redução da poluição e a significância dos danos. No entanto, os
riscos podem ser menores do que os custos relacionados à adoção de medidas de proteção
contra potenciais danos. Diante dessa nítida desproporção, LAMMERS propõe algumas
soluções com base no Direito Internacional: a) o pagamento de uma compensação pelos
danos causados ao estado vítima; b) a adoção de medidas repressivas para reduzir os
danos a níveis insignificantes, de acordo com as melhores tecnologias disponíveis508,
enquanto não houver o pagamento de uma compensação; c) a não obrigação do estado de
origem a adotar medidas desproporcionais. Embora sua conduta não configure um ilícito,
não está isento de indenizar o estado vítima509.
Conforme se pode observar, em caso de determinados danos significativos a
compensação e a mitigação de danos são admitidas510.
Na prática, ao invés de regras aprioristicamente definidas, as circunstâncias do
caso concreto indicarão a solução. Cada estado tende a determinar unilateralmente se os
seus usos de um curso de água internacional são equitativos e razoáveis em relação aos
demais estados da bacia. No entanto, o ideal é que casos complexos sejam negociados
506 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 338. 507 Stephen C. MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of
the U.N. Convention, 1999, páginas 25, 26, 28 e 29, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017,
páginas 11-19, 13-14. Amparo SERENO ROSADO, Rios que nos separam, águas que nos unem. Análise
jurídica dos Convénios Luso-Espanhóis sobre águas internacionais, Editora Fundação Lex Nova, 2011. 508 A aplicação das melhores tecnologias disponíveis encontra previsão no Princípio 8 da Declaração da
Comissão Econômica para a Europa de Genebra, 1980, intitulada Declaration of Policy on Prevention
and Control of Water Pollution, including Transboundary Pollution, disponível em
http://www.fao.org/docrep/005/w9549e/w9549e05.htm, acesso em 21/10/2016. 509 J. G. LAMMERS, Pollution of International Watercourses, A Search for Substantive Rules and
Principles of Law, Holanda, 1984, páginas 354 e 356. 510 Peter GLEICK, Water and Conflict: Fresh Water Resources and International Security,
International Security, Volume 18, nº 1, 1993, páginas 79 a 112, 107.
através de redes de cooperação e compromisso baseadas na boa-fé e não em regras rígidas
pré-definidas. A prática requer cooperação e compromisso para a resolução de conflitos,
conforme reconhece, embora de forma tímida, a parte final do artigo 7º, §2º, da
Convenção de Nova Iorque ao determinar que as medidas adotadas para eliminar ou
mitigar os danos causados sejam estabelecidas “em consulta com o estado afetado”.
Transforma-se uma obrigação quase absoluta de não causar danos em um dever de
diligência embasado na cooperação entre os estados511.
Além disso, observa-se também uma tendência de regulamentação da poluição
transfronteiriça dos cursos de água, amparada no princípio da razoabilidade. Trata-se de
uma tentativa de compatibilização da obrigação de não causar danos com a obrigação de
utilização equitativa e razoável dos cursos de água compartilhados. Ao invés de proibir
rigorosamente qualquer tipo de dano, reconhece-se a existência de um “direito equitativo
à poluição”, baseado na perspectiva de que os impactos são uma decorrência “natural” da
sociedade moderna e que proibições absolutas somente seriam aceitas pelos estados em
situações extremas, como a da poluição tóxica transfronteiriça dos cursos de água512.
Como se pode perceber, o dever de não causar danos não tem caráter absoluto.
Deve ser invocado de forma razoável, de acordo com as circunstâncias do caso concreto,
e não legitima a intolerância em face de todo e qualquer novo uso, sob pena de configurar
abuso de direito. O estado a montante que a posteriori pretende desviar um trecho de um
curso de água compartilhado para fins de irrigação ou construção de uma barragem para
geração de eletricidade, certamente provocará danos aos usos já estabelecidos pelos
estados a jusante. Contudo, se após a análise de outros fatores envolvidos concluir-se que
o novo projeto é equitativo, os danos deverão ser tolerados, uma vez que encontram
respaldo na legislação internacional, sendo que qualquer tentativa de contrapor-se àquele
poderá configurar abuso de direito513.
Dessa forma, a vedação ao abuso de direito flexibiliza a proibição de provocar
danos. Os cursos de água internacionais devem ser utilizados com base na boa-fé e em
511 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 308, 339 e 364. Stephen C. MCCAFFREY, International Water Law For
The 21st Century: The Contribution of the U.N. Convention, 1999, páginas 11-19, 14, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017. 512 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 325, 362, 363, 378. 513 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 328 e 346.
benefícios de todos os estados que compartilham a bacia hidrográfica, partindo-se do
pressuposto de que a bacia constitui uma unidade física514.
O princípio da proibição do abuso de direito constitui mais uma limitação à
utilização dos cursos de água transfronteiriços. Observa-se uma relação muito próxima
entre este princípio e a obrigação de não causar danos significativos,
embora seja difícil comprovar o abuso de direito na utilização dos curso de água, o que
exige demonstração de que o estado agiu de má-fé, de forma maliciosa ou arbitrária515.
Como definir quando determinado de uso é abusivo? Não é possível determinar
de forma abstrata o uso abusivo. A análise deve ser casuística e depende de um processo
de ponderação de interesses para avaliar se o uso excedeu a própria razão de existência
do direito. Algumas balizas são conferidas pela doutrina, como por exemplo, quando a
utilização de um curso de água tem potencial para provocar danos a terceiros e produza
poucos benefícios ou até mesmo nenhum benefício, mostrando-se desproporcional516.
KISS entende que, apesar da divergência doutrinária acerca da natureza, o princípio da
vedação ao abuso de direito encontra-se previsto em todos os sistemas legais e também
integra o direito internacional. Afirma que o abuso resta configurado quando o direito é
exercido de maneira arbitrária, injustificada, ou nos casos em que os benefícios são
ínfimos se comparados à magnitude das consequências produzidas a estados terceiros. A
título de exemplo de abuso, menciona a hipótese em que a instalação de um
empreendimento de pequena importância provoca a poluição de um curso de água
internacional de forma a privar um estado vizinho do direito de acesso à água potável517.
O abuso de direito também pode restar caracterizado diante da utilização de
determinado curso de água sem considerando dos deveres procedimentais de notificação,
consulta e troca de dados e informações, de forma a prejudicar os demais estados da bacia.
Igualmente configura abuso de direito na utilização dos cursos de água, e pode
ensejar responsabilização no plano internacional, a ausência de igualdade de acesso às
vias administrativas e judiciais a residentes e não-residentes afetados, visando a reparação
514 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford University Press, 2001, páginas 352 e 353. 515 Douglas de CASTRO, The Shared Management of the Guarani Aquifer: The South American
Exemple in Global Governance over Water Resources, Yearbook of International Environmental Law,
Volume 22, Oxford University Press, 2011, páginas 140-157, 152. 516 J. G. LAMMERS, Pollution of International Watercourses, A Search for Substantive Rules and
Principles of Law, Holanda, 1984, páginas 572 e 573. 517 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, pp. 272-273. No mesmo sentido, Alexandre KISS e Jean-Pierre BEURIER, Droit International de
L´environnement, Editora Pedone, 2ª edição, Paris, 2000, página 103.
dos danos ambientais transfronteiriços, assim como a discriminação da legislação em
relação ao dano produzido fora do território nacional518.
Analisadas as questões até aqui colocadas, KISS propõe algumas indagações que
também merecem reflexão, devido à sua complexidade. Como estabelecer o nexo de
causalidade entre condutas praticadas a longas distâncias ou quando os danos somente
virão à tona anos mais tarde, em razão dos efeitos cumulativos? A quem deve ser atribuída
a responsabilidade nas situações em as fontes de poluição são difusas ou que o dano é
agravado pela combinação dessas fontes519? Trata-se de questionamentos que precisam
ser discutidos e amadurecidos pela doutrina, bem como na jurisprudência e na via
consensual entre os estados.
518 Alexandre KISS, Direito Internacional do Ambiente, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1996,
páginas 151-153. 519 Alexandre KISS, Direito Internacional do Ambiente, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1996,
página 153.
5. MEDIDAS PARA O APRIMORAMENTO DA GESTÃO DAS BACIAS
HIDROGRÁFICAS INTERNACIONAIS
5.1. REDUÇÃO DE CONFLITOS
A água é um bem que possui natureza tridimensional (econômica, social e
ambiental), na medida em que satisfaz múltiplas necessidades de forma complementar,
quais sejam, usos industriais, abastecimento urbano, transporte, geração de energia,
satisfação de necessidade humanas (consumo, alimentação e higiene), além de ser
essencial para o equilíbrio do ecossistema520.
A gestão da água é a gestão de conflitos521. Apesar de aparentemente abundante
em algumas regiões, a água é um bem escasso522. O fato de ser insubstituível e ao mesmo
tempo imprescindível para a vida gera uma propensão para conflitos relacionados ao seu
uso523. O planeta possui água em quantidade suficiente para sustentar a vida. O problema
não é de quantidade, mas da forma desigual como a água se encontra distribuída, além do
uso insustentável desse recurso524. A forma assimétrica como a água encontra-se
distribuída no planeta acentua a vulnerabilidade de estados menos favorecidos sob o
aspecto do abastecimento natural de água, notadamente daqueles situados a jusante.
Ao lado do aspecto quantitativo, relacionado à escassez em determinadas regiões
do planeta e aos múltiplos usos, a pressão demográfica, as atividades agropecuárias, as
alterações climáticas e a degradação da qualidade também constituem foco relevante de
conflito525.
520 Carla AMADO GOMES, O Princípio da Gestão Racional dos Recursos Hídricos como Princípio de
Direito Internacional e Ambiental, Revista Esmat, Ano 9, N.o 13, 2017, páginas 61-76, 62. 521 Ashok SUBRAMANIAN, Bridget BROWN e Aaron T. WOLF, Understanding and overcoming risks
to cooperation along transboundary rivers, Water Policy, N.o16, 2014, páginas 824-843, 825. 522 Carlos José Saldanha MACHADO, A Gestão Francesa dos Recursos Hídricos: Descrição e Análise
dos Princípios Jurídicos, Revista Brasileira de Recursos Hídricos, Volume 8, N.o 4, 2003, páginas 31-47,
31. 523 YU. I. VINOKUROV, I.V. ZHERELINA, e V.I. ZANOSOVA, Transboundary Water Problems in
the Basin of the Irtysh River, in Transboundary Water Resources: Strategies for Regional Security and
Ecological Stability, Hartmut Vogtmann e Nikolai Dobrestov (editores), Earth and Environment Science, Volume 46, Rússia, 2003, páginas 83 a 92, 84. Aaron T. WOLF, Conflict and cooperation along
international waterways, Water Policy, Volume 1, Elsevier, 1998, páginas 251-265, 251. 524 Douglas de CASTRO, The Shared Management of the Guarani Aquifer: The South American
Exemple in Global Governance over Water Resources, Yearbook of International Environmental Law,
Volume 22, Oxford University Press, 2011, páginas 140-157, 141. 525 Carla AMADO GOMES, O Princípio da Gestão Racional dos Recursos Hídricos como Princípio de
Direito Internacional e Ambiental, Revista Esmat, Ano 9, N.o 13, 2017, páginas 61-76, 62. Juliana
Cassano CIBIM, O desafio da governança nas bacias hidrográficas transfronteiriças internacionais:
um olhar sobre a Bacia do Rio da Prata, São Paulo, 2012, páginas 76 e 77.
As zonas mais propícias a conflito são a Ásia e a África, o que se deve aos maiores
índices de escassez registrados, mas problemas associados ao compartilhamento de
cursos de água atingem praticamente todos os continentes. Contudo, mesmo na Oceania,
problemas complexos decorrentes da ausência de coordenação interferem na gestão
interna das águas526.
A quantidade da água – o que abrange seu uso e distribuição – constitui o maior
risco de tensão, seguido por questões relacionadas à infraestrutura527. No entanto, os
conflitos não podem ser generalizados e variam de acordo com fatores socioambientais,
econômicos, políticos e legislativos pertinentes aos estados envolvidos, bem como com
as complexidades próprias da dinâmica das bacias hidrográficas internacionais.
No continente africano, por exemplo, ocorrem grandes variações climáticas e
pluviais no tempo e no espaço, com períodos de secas prolongas e cheias devastadoras.
Ao mesmo tempo, o crescimento da produção de energia hidrelétrica contribui para o
aumento da escassez de água a jusante, atingindo estados que possuem estruturas
sociopolíticas e econômicas especialmente vulneráveis. Zonas de conflitos armados, que
abrigam bacias internacionais, também acirram conflitos e dificultam a integração528.
A natureza do domínio das águas também pode interferir no grau de tensão.
Estados de tradição do common law recusam o conceito de domínio público e observam
o sistema de pleno direito, com pouca intervenção administrativa na gestão. Esse sistema
influenciou a elaboração da Convenção de Nova Iorque de 1997, que adotou a teoria da
equidade, embora também haja menção à utilização razoável e sustentável. Atribui-se a
esse sistema o alto grau de litígios existentes nos Estados Unidos da América. Por outro
lado, a maioria dos estados-membros da União Europeia adota um sistema de gestão
baseado na interferência administrativa e no conceito de domínio hídrico público, o que
reduz sensivelmente o número de conflitos. Este último sistema influenciou a Diretiva-
Quadro da Água, notadamente no que se refere ao conceito de “Autoridade de Região
Hidrográfica”, previsto no artigo 3º, nº 2529.
526 Mario Baptista COELHO, The international scene and geopolitical challenges: a new agenda, in
Shared Water Systems and Transboundary Issues with special emphasis on the Iberian Peninsula, Evan Vlachos e Francisco Nunes Correia (coordenadores), Luso-American Foundation, 1999, páginas 67 e
seguintes, 73. 527 Juliana Cassano CIBIM, O desafio da governança nas bacias hidrográficas transfronteiriças
internacionais: um olhar sobre a Bacia do Rio da Prata, São Paulo, 2012, página 55. 528 Paulo Canelas de CASTRO, The Issue of Transboundary Rivers in Southern Africa, in Implementing
Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation,
Lisboa, 2003, páginas 209 e seguintes, 212 e 213. 529 Amparo SERENO ROSADO, Rios que nos separam, águas que nos unem. Análise jurídica dos
Convénios Luso-Espanhóis sobre águas internacionais, Editora Fundação Lex Nova, 2011, página 25.
GLEICK alerta para quatro indicadores da vulnerabilidade dos estados
relacionados ao compartilhamento de bacias hidrográficas, que refletem fatores naturais,
sociais e econômicos. São eles a relação entre demanda e disponibilidade de água; o
aumento da população; o grau de compartilhamento das fontes hídricas ou a relação entre
o abastecimento interno e externo; e a dependência da hidroeletricidade como fonte
energética530.
Já a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO), identificou os seguintes indicadores de conflito potencial: bacias
internacionalizadas que incluem estruturas de gestão de países que conquistaram sua
independência recentemente; bacias nas quais predominam projetos unilaterais e os
estados ribeirinhos não são cooperativos; bacias nas quais os governos são hostis a
respeito de questões não relacionadas à água531.
De acordo com a UNESCO, a demanda maior que a disponibilidade de água,
decorrentes do aumento populacional e da dependência da energia hidrelétrica, associada
à má-distribuição no planeta, contribui para o aumento das tensões internacionais,
inclusive com risco de conflitos armados. Esses conflitos são ainda mais evidentes em
estados áridos e semiáridos, como a Índia, Paquistão, China e México, e menos evidentes
em estados como a Noruega e a Suécia532.
Some-se a isso a independência recente de estados que abrigam bacias hídricas
internacionais e a elaboração de planos de gestão unilaterais por estados que não dedicam
esforços à cooperação internacional. Um exemplo é o da região da Península Balcânica,
no sudeste da Europa. Muitos dos estados dos Balcãs adquiriram a independência
recentemente. Nacionalismos exacerbados, sentimentos de injustiça e vingança e disputas
530 Sinval NEVES SANTOS, O compartilhamento das águas transfronteiriças superficiais: um
subsistema da ordem ambiental internacional, Trabalho apresentado no II Encontro da ANPPAS,
Indaiatuba/SP, 2004, páginas 9 e 10, disponível em
http://www.anppas.organizadoresbr/encontro_anual/encontro2/GT/GT13/sinval_neves.pdf, acesso em
01/11/2016. Peter H. GLEICK, Amarga água dulce: los conflitos por recursos hídricos, Revista Ecologia
Política, nº 8, Barcel, 1994, páginas 85-106, 100. 531 Sinval NEVES SANTOS, O compartilhamento das águas transfronteiriças superficiais: um
subsistema da ordem ambiental internacional, Trabalho apresentado no II Encontro da ANPPAS,
Indaiatuba/SP, 2004, páginas 9 e 10, disponível em http://www.anppas.organizadoresbr/encontro_anual/encontro2/GT/GT13/sinval_neves.pdf, acesso em
01/11/2016. UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION,
Water for people, water for life: UN World Water Development Report, Paris, 2003, página 320. 532 Ramón LLAMAS, New and old paradigms on water management and planning in Spain, in Shared
Water Systems and Transboundary Issues with special emphasis on the Iberian Peninsula, Evan Vlachos e
Francisco Nunes Correia (coordenadores), Luso-American Foundation, 1999, páginas 219 e seguintes, 220.
Mario Baptista COELHO, The international scene and geopolitical challenges: a new agenda, in Shared
Water Systems and Transboundary Issues with special emphasis on the Iberian Peninsula, Evan Vlachos e
Francisco Nunes Correia (coordenadores), Luso-American Foundation, 1999, páginas 67 e seguintes, 73.
territoriais geram instabilidade sociopolítica e resultam em disputas pela água e
dificuldade de negociação para a gestão conjunta533.
Desafios precisam ser superados. A deficiência de pessoal e de conhecimento
técnico especializado, necessário para a cooperação transfronteiriça, realça a necessidade
de compatibilização dos recursos administrativos disponíveis com as demandas
administrativas.
Não obstante as dificuldades apontadas, as crises internacionais podem
representar oportunidades para a superação de desafios. A necessidade de assegurar
acesso equitativo aos cursos de água é responsável por uma sensível evolução da
regulamentação do setor e o fortalecimento dos sistemas de gestão em diversos níveis -
global, regional, sub-regional e local534. Na União Europeia, por exemplo, a Diretiva-
Quadro da Água consolidou uma política regional integrada no domínio das águas, focada
na sustentabilidade e no uso equitativo.
Essa mudança tem sido orientada pela revisão dos parâmetros de gerenciamento
e planejamento das políticas públicas da água. O direito do ambiente pós-moderno,
especialmente a partir da década de noventa do século XX, é caracterizado pelo
desenvolvimento de sistemas de gestão ambiental que incluem privatizações,
normatização indireta, criação de órgãos reguladores e instrumentos econômicos de
intervenção indireta535, além de contarem com a participação de instituições
internacionais, como o Banco Mundial, Nações Unidas e organizações não
governamentais
É o que se verifica em relação aos estados com independência recente na região
da antiga União Soviética. Um projeto das Nações Unidas, intitulado “Cooperação sobre
as águas transfronteiriças em países com independência recente”, propõe medidas para o
fortalecimento da cooperação bilateral e multilateral, que estimularam a realização de
533 Jacques GANOULIS, The International Network of Water-Environment Centres for the Balkans
(INWEB), in Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation, Lisboa, 2003, páginas 197 e seguintes, 197. Kathy HOCHSTETLER,
International Environmental Politics and Transboundary Waters, in Implementing Transboundary
River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation, Lisboa, 2003,
páginas 437 e seguintes, 438. 534 Paulo Canelas de CASTRO, The Issue of Transboundary Rivers in Southern Africa, in Implementing
Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation,
Lisboa, 2003, páginas 209 e seguintes, 216. 535 Carla AMADO GOMES e José Eduardo FIGUEIREDO DIAS, Notas reflexivas sobre sistemas de
gestão ambiental, Revista do CEDOUA, nº 31, 2013/I, páginas 9 e seguintes, 11 e 12.
acordos, assim como o interesse de organizações internacionais, para a promoção da
cooperação envolvendo águas transfronteiriças536.
Enquanto se alerta para o potencial conflitivo na disputa pelas águas
transfronteiriças, curiosamente, observa-se uma tendência histórica de cooperação entre
estados que compartilham bacias hidrográficas537. A forma como a água encontra-se
disposta na natureza cria a necessidade de cooperação e soluções cooperativas tornam-se
mais prováveis que disputas prolongadas, contrariando expectativas pessimistas538.
Estudos das Nações Unidas demonstram que, nos últimos 50 anos, foram
registradas 1.228 ações cooperativas e 507 casos envolvendo algum tipo de conflito,
porém sem guerras formais. No mesmo período, foram firmados cerca de 200 tratados
referentes a cursos de água internacionais539.
Um estudo realizado pela Universidade de Oregon, em 2001, documentou 1.831
interações conflitivas e cooperativas e identificou apenas 37 conflitos violentos
(denominados “eco-conflitos”)540 nos últimos 50 anos, ao passo em que, no mesmo
período, mais de 150 tratados foram negociados e assinados, o que demonstra que a
cooperação, mais que o conflito, tem sido a regra nas relações internacionais envolvendo
cursos de água. Estudos apontam que estados que têm histórico de cooperação em geral
tendem a cooperar naturalmente também em questões envolvendo cursos de água. No
entanto, mesmo nações inimigas seguem a tendência mundial de firmar acordos para
resolver questões envolvendo águas internacionais e é possível observar uma tendência
de cooperação mesmo onde há problemas de escassez541.
536 NAÇÕES UNIDAS, Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa, Transboundary Water
Cooperation in the Newly Independent States, Moscou-Genebra, 2003, páginas 3 e 8. 537 Aaron T. WOLF, Jeffrey A. NATHARIUS, Jeffrey J. DANIELSON, Brian S. WARD e Jan K.
PENDER, International River Basins of the World, Water Resources Development, Vol. 15, N.o 4, 1999,
páginas 387-427, 387-388. 538 Joseph W. DELLAPENNA, The costumary international Law of internationally shared fresh
Waters, in Shared Water Systems and Transboundary Issues with special emphasis on the Iberian
Peninsula, Evan Vlachos e Francisco Nunes Correia (coordenadores), Luso-American Foundation, 1999,
páginas 79 e seguintes, 81. Ashok SUBRAMANIAN, Bridget BROWN e Aaron T. WOLF, Understanding
and overcoming risks to cooperation along transboundary rivers, Water Policy, N.o16, 2014, páginas
824-843, 825. 539 Sinval NEVES SANTOS, O compartilhamento das águas transfronteiriças superficiais: um
subsistema da ordem ambiental internacional, 2004, página 9. UNITED NATIONS EDUCATIONAL,
SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION, Water for people, water for life: UN World Water
Development Report, Paris, 2003. 540 Paulo Canelas de CASTRO, Sinais de (nova) Modernidade no Direito Internacional da Água, in
Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 101 e seguintes, 106. 541 Meredith A. GIORDANO e Aaron T. WOLF, Sharing waters: Post-Rio internacional water
management, Natural Resources Forum 27, 2003, páginas 163-171, 165-169, disponível em
http://www.transboundarywaters.orst.edu/publications/abst_docs/narf_051_Giordano.pdf, acesso em
13/01/2016. Kathy HOCHSTETLER, International Environmental Politics and Transboundary
GLEICK ressalta que muito tem sido estudado sobre a criação de mecanismos
capazes de reduzir conflitos no plano internacional. No entanto, alerta que conflitos
violentos em âmbito nacional, envolvendo disputas internas por água, constituem uma
realidade, com registro do aumento do número de casos e com potencial para interferir
em disputas internacionais542. Assim, não se pode desconsiderar o surgimento de novos
fatores de estresse capazes de aumentar a disputa, temidos pelo risco de desencadear
futuros conflitos, como a intensificação de mudanças climáticas543.
A título de exemplo, destaca-se o incidente envolvendo a construção da Usina de
Belo Monte, no estado do Pará, situado no norte do Brasil, e afirma que a escassez de
água é um fator desencadeador de conflitos, ao lado do terrorismo, da violência e da
competição local544.
Com o intuito de provocar uma reflexão sobre a importância do aprimoramento
da gestão integrada, a seguir serão abordados os principais mecanismos internacionais
existentes e como eles podem contribuir para a redução de conflitos.
5.2. OBRIGAÇÕES PROCEDIMENTAIS
5.2.1. Cooperação Internacional
A maioria dos conflitos envolvendo disputas pela água são resolvidos de forma
consensual, sendo que a violência constitui a exceção. A bacia do Nilo, cujas águas são
85% originadas na Etiópia, é um nítido exemplo de como as tensas relações históricas
entre os nove estados que compartilham as águas do Nilo tiveram que ser gradativamente
Waters, in Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores),
Luso-American Foundation, Lisboa, 2003, páginas 437 e seguintes, 439. Juliana Cassano CIBIM, O
desafio da governança nas bacias hidrográficas transfronteiriças internacionais: um olhar sobre a
Bacia do Rio da Prata, São Paulo, 2012, página 63. 542 Peter GLEICK e Mathew HEBERGER, Water and Conflict: Events, Trends, and Analysis (2011–
2012), Pacific Institute, Water Brief 3, páginas 165, 168 e 169, disponível em http://worldwater.org/wp-
content/uploads/2013/07/www8-water-conflict-events-trends-analysis.pdf, acesso em 21/11/2016. Peter GLEICK, Water and Conflict: Fresh Water Resources and International Security, International
Security, Volume 18, nº 1, 1993, página 112. 543 Ashok SUBRAMANIAN, Bridget BROWN e Aaron T. WOLF, Understanding and overcoming risks
to cooperation along transboundary rivers, Water Policy, N.o16, 2014, páginas 824-843, 825. 544 Peter GLEICK e Mathew HEBERGER, Water and Conflict: Events, Trends, and Analysis (2011–
2012), Pacific Institute, Water Brief 3, páginas 165, 168 e 169, disponível em http://worldwater.org/wp-
content/uploads/2013/07/www8-water-conflict-events-trends-analysis.pdf, acesso em 21/11/2016. Peter
GLEICK, Water and Conflict: Fresh Water Resources and International Security, International
Security, Volume 18, nº 1, 1993, página 112.
substituídas por negociações visando resolver as significativas diferenças existentes entre
eles. Trata-se do principal modelo de gestão cooperativa e compartilhada do Oriente
Médio. A necessidade de superação dos entraves à cooperação tornou-se uma questão de
sobrevivência, por exemplo, para o Egito, que tem nessa bacia sua principal fonte de
água545.
Nesse prisma, o desenvolvimento de novas estruturas de cooperação e
coordenação, para o estabelecimento dos procedimentos necessários à integração,
apresenta-se como uma ferramenta para o estabelecimento da segurança e da paz546. A
gestão das bacias hidrográficas internacionais depende de planejamento
institucionalizado, baseado na cooperação, em detrimento dos superados planos
setoriais547. Esse modelo de gestão permite a realização de princípios de direito
internacional, assim como o cumprimento das obrigações materiais do uso equitativo e
razoável e de não causar danos significativos, além da promoção de benefícios
econômicos, como a gestão melhorada e operação coordenada das infraestruturas hídricas
e a escolha da melhor localização para estas infraestruturas548.
Diante do aumento da demanda por água e da redução da qualidade e da
quantidade, observa-se uma tendência mundial de cooperação multissetorial e
multidisciplinar, não apenas entre órgãos internos no plano do direito nacional, mas em
múltiplos níveis, regional e da bacia, como no caso da cooperação entre estados e comitês
de bacia. Tais ferramentas permitem a definição do plano de gestão da região hidrográfica
e das próprias estruturas administrativas existentes, criadas por esses tratados e que
podem ser aproveitadas para enriquecer a gestão549.
545 Jutta BRUNÉE, Law and Politics in the Nile Basin, 2008, páginas 359 e 360. Joseph W.
DELLAPENNA, Rivers as Legal Structures: The Examples of the Jordan and the Nile, Natural
Resources Journal, Volume 36, 1996, páginas 217-250, 237. 546 H. JEKEL, Sustainable Water Management in Europe – The Water Framework Directive, in
Transboundary Water Resources: Strategies for Regional Security and Ecological Stability, Hartmut
Vogtmann e Nikolai Dobrestov (editores), Earth and Environment Science, Volume 46, Rússia, 2003,
páginas 121 e seguintes, 123. Ashok SUBRAMANIAN, Bridget BROWN e Aaron T. WOLF,
Understanding and overcoming risks to cooperation along transboundary rivers, Water Policy, N.o16,
2014, páginas 824-843, 825. 547 Édis MILARÉ, Direito do Ambiente, 4ª edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2005, página
655. 548 Ashok SUBRAMANIAN, Bridget BROWN e Aaron T. WOLF, Understanding and overcoming risks
to cooperation along transboundary rivers, Water Policy, N.o16, 2014, páginas 824-843, 825. 549 Andrea M. KEESSEN, Jasper J.H. VAN KEMPEN e Helena F.M.W. VAN RIJSWICK,
Transboundary river basin management in Europe Legal instruments to comply with European
water management obligations in case of transboundary water pollution and floods, Utrecht Law
Review, volume 4, Issue 3, Dezembro de 2008, páginas 37, 39 e 55. Protecção das águas subterrâneas
na Europa, A nova directiva da água subterrânea – consolidando o quadro regulamentar da UE,
páginas 30, 31 e 35, disponível em http://ec.europa.eu/environment/water/water-
framework/groundwater/pdf/brochure/pt.pdf, acesso em 27/04/2016.
Alguns princípios importantes fundamentam a cooperação internacional, dentre
os quais se destacam o da obrigação de prevenir impactos transfronteiriços e danos
significativos, da boa vizinhança, da igualdade de acesso, do uso equitativo e racional, da
reciprocidade de interesses e da boa-fé550. Esses princípios representam a aceitação da
existência de limitações ao exercício da soberania, o abandono da ideia de exclusividade
e o reconhecimento de que a poluição e as pressões antropogênicas repercutem em todo
o contexto da bacia hidrográfica, bem como na consciência de que os interesses dos
estados da bacia são igualmente legítimos e devem ser respeitados551.
A gestão integrada reflete a necessidade de transversalizar a regulamentação, no
sentido do desenvolvimento de regras globais plurais e de boa governança ambiental, uma
vez que a poluição das bacias hidrográficas também é transversal552. Além disso, a
cooperação internacional otimiza os usos e a geração de benefícios mútuos. Dessa forma,
permite-se superar interesses restritos dos estados e servir aos melhores interesses da
comunidade internacional553.
Nessa linha, é preciso que os sistemas integrados de gestão sejam
compatibilizados com os sistemas nacionais. Para isso, a formalização da cooperação é
imprescindível, acompanhada do fortalecimento das autoridades nacionais responsáveis
pela gestão das águas transfronteiriças, com foco na ação coordenada554.
No plano internacional, os estados têm o dever de adotar uma postura preventiva
para evitar a ocorrência de impactos e danos significativos transfronteiriços, seja através
da informação, da consulta, da participação pública, da elaboração de estudos de impacto
ambientais, da notificação de acidentes e de novos projetos. Dessa forma, busca-se
550 Dante A. CAPONERA, Principles of Water Law and Administration, National and International, 2ª
edição revista e atualizada por Marcella Nanni, Londres, UK, Taylor & Francis Group, 2007, páginas 215-
221 e 248-254. Xavier Oliveras GONZÁLEZ, La Cooperación Transfronteriza En La Cerdanya
(Frontera España-Francia), Boletin de La Asociación de Geógrafos Españoles, nº 62, 2013, páginas 25-
48, 35 e 36, disponível em http://boletin.age-geografia.es/articulos/62/02-OLIVERAS.pdf, acesso em
06/01/2016. Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa, disponível em
http://www.unwater.org/fileadmin/user_upload/unwater_new/docs/ece_mp.wat_42_eng_web.pdf, acesso
em 09/08/2016. 551 Douglas FISHER, The Law and governance of water resources, The challenge of sustainability,
Cheltenham, UK, Edwar Elgar Publishing Limited, 2009, páginas 220-221. 552 Alexandre KISS, Direito Internacional do Ambiente, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1996,
páginas 155 e 160. José Joaquim GOMES CANOTILHO, O Princípio da sustentabilidade como
Princípio estruturante do Direito Constitucional, Revista de Estudos Politécnicos, Volume VIII, nº 13,
2010, páginas 7-18, 11. 553 Stephen C. MCCAFFREY, International Organizations and the Holistic Approach to Water
Problems, Natural Resources Journal, Volume 31, 1991, páginas 139 e seguintes, disponível em
http://digitalrepository.unm.edu/nrj/vol31/iss1/8, acesso em 19/07/2017, 139 e 140. 554 NAÇÕES UNIDAS, Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa, Transboundary Water
Cooperation in the Newly Independent States, Moscou-Genebra, 2003, páginas 8 e 9.
fortalecer a relação de confiança e responsabilidade que deve existir entre eles555. A título
de exemplo da adoção de cautela na execução de novos projetos que possam impactar
terceiros, o Tratado de Cooperação Amazônica prevê que o Conselho de Cooperação
Amazônica tem, dentre suas atribuições, o dever de considerar os projetos apresentados
pelas partes e avaliar o cumprimento de projetos de interesse bilateral ou multilateral
(artigo XXI, n.os 4 e 5).
A experiência demonstra que a cooperação internacional é mais eficiente quando
é institucionalizada556. A formalização do regime de cooperação assegura sua efetividade
e resiliência ao longo do tempo. São maiores as chances de a cooperação ser efetivamente
implementada e cumpridas as obrigações correlatas, ainda que entre estados hostis e que
haja conflitos sobre outras questões557. As Nações Unidas também recomendam o
desenvolvimento de um quadro normativo e sua implementação pelos estados da bacia, o
que pode ser previsto em tratados558. Também facilita o controle do cumprimento das
metas ambientais e a realização de adaptações, caso surjam mudanças.
A interação direta entre administrações, por meio de rede, permite a troca
constante de informações atualizadas (envolve permuta sobre legislação, estruturas
organizatórias e práticas administrativas), que deverão ser consideradas na elaboração de
novos projetos559. Também possibilita o estabelecimento de modelos mínimos conjuntos
para a alocação da água, a qualidade e o desenvolvimento sustentável560.
O dever de cooperação abrange, ainda, a obrigação de responder a comunicações
e pedidos de informações enviados por outros Estados em tempo hábil e não reter
555 Carla AMADO GOMES, Risco tecnológico, comunicação do risco e direito a saber, in Direito (s)
dos Riscos Tecnológicos, Lisboa, 2014, Editora AAFDL, páginas 17 e seguintes, 21 e 22. 556 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 343. 557 Aaron T. WOLF, Conflict and cooperation along international waterways, Water Policy, Volume 1,
Elsevier, 1998, páginas 251-265, 260. Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses:
non-navigational uses, Oxford University Press, 2001, página 400. 558 NAÇÕES UNIDAS, Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa, Transboundary Water
Cooperation in the Newly Independent States, Moscou-Genebra, 2003, página 10. 559 É o que ocorre, por exemplo, nos acordos firmados entre a Suécia e a Noruega em 1929, baseados nos
princípios da consulta, cooperação e tratamento nacional, mencionados por Douglas FISHER, The Law
and governance of water resources, The challenge of sustainability, Cheltenham, UK, Edwar Elgar
Publishing Limited, 2009, páginas 116, 117, 217 e 218. 560 Diogo PIGNATARO DE OLIVEIRA e Yanko Marcius de ALENCAR XAVIER, As águas
transfronteiriças e o direito internacional público: integração necessária à proteção ambiental,
Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, Volume 1, 2007, páginas 16-33, 22, disponível em
http://www.ppgd.ccsa.ufrn.br/rdcgd, acesso em 30/11/2015.
informações, consoante discutido pelo Tribunal Internacional do Direito do mar no MOX
(Provisional Measures) case, envolvendo a Irlanda e o Reino Unido561.
Um exemplo no plano internacional é o Tratado de Cooperação Amazônica, que,
embora timidamente, prevê o intercâmbio permanente de informações e a necessidade de
colaboração estreita e recíproca entre os estados que integram o território amazônico, para
a promoção do desenvolvimento regional sustentável, inclusive em relação à realização
de pesquisas científicas e tecnológicas, através da realização conjunta de programas e a
criação de instituições de pesquisa, por exemplo562.
Assinado em 1978, por Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru,
Suriname e Venezuela, o Tratado de Cooperação Amazônica teve por objetivo solucionar
três problemas enfrentados na região: pressão internacional pela exploração dos recursos
ambientais da região amazônica; baixa densidade populacional; fracas relações entre os
estados da bacia. A partir de 1998, as fracas relações entre os estados da região foram
fortalecidas com a criação da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, que
consistiu em algo inovador para a região e revolucionou a forma de gestão, ao introduzir
a perspectiva holística de gestão, promover a pesquisa conjunta e instituir um sistema de
trocas regulares de informações entre os estados, de acordo com os mais modernos
princípios de direito internacional públicos563.
A tarefa não é simples. Dificilmente estados abrem mão de parcela de sua
soberania para se submeterem à autoridade de órgãos internacionais, ainda que criados
por meio de tratados. O próprio Tratado de Cooperação Amazônica, apesar de inovador
no contexto da América Latina, desdobra-se para compatibilizar mecanismos de
governança compartilhada com o princípio da soberania, ao prever que o uso e o
aproveitamento dos recursos naturais em seus respectivos territórios é direito inerente à
soberania dos estados e que as restrições admitidas são apenas aquelas típicas do Direito
Internacional564.
561 Philippe SANDS e Jacqueline PEEL, Principles of International Environmental Law, 3.ª edição,
Cambridge, Cambridge University Press, 2012, páginas 205 e 206, disponível em https://books.google.pt/books?id=uHzFRub4KrAC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false, acesso em 17/02/2016. 562 Artigos I, parágrafo único, IX e XV. 563 Douglas de CASTRO, The Shared Management of the Guarani Aquifer: The South American
Exemple in Global Governance over Water Resources, Yearbook of International Environmental Law,
Volume 22, Oxford University Press, 2011, páginas 140-157, 145 a 147. 564 Artigo 4º. Douglas de CASTRO, The Shared Management of the Guarani Aquifer: The South
American Exemple in Global Governance over Water Resources, Yearbook of International
Environmental Law, Volume 22, Oxford University Press, 2011, páginas 140-157, 140.
A experiência brasileira demonstra que estados que compartilham bacias
hidrográficas tendem a ganhar mais com a cooperação do que com a competição pelo uso
da água. Aprofundando a gestão das bacias compartilhadas, é possível reunir forças para
promover a integração e o desenvolvimento da bacia em prol do benefício de todos565.
Já no âmbito interno, em respeito ao princípio da publicidade, o público deve ser
informado sobre possíveis impactos de novos projetos e assegurada publicidade aos
relatórios de avaliação de impactos ambientais566.
A adoção de uma postura cooperativa promove a preservação dos cursos de água,
na medida em que permite o estabelecimento de condutas análogas em prol do
desenvolvimento, otimizando os usos de forma sustentável e os trabalhos de prevenção
de danos567.
A cooperação permite a troca de experiências do passado para a superação de
falhas, por exemplo, a partir da criação de uma rede de alerta de acidentes que possa
minimizar os impactos de eventuais danos em relação aos estados que compartilham uma
bacia hidrográfica. Nesse particular, vale destacar o acidente envolvendo o Rio Reno,
ocorrido em 1 de Novembro de 1986, em que houve o escoamento de águas utilizadas
para combater o incêndio de uma indústria química localizada perto da Basileia, na Suíça.
Cerca de 30 toneladas de produtos químicos foram derramadas no Rio Reno durante 28
horas. O sistema de aviso falhou e a poluição atingiu a França e a Alemanha, passando
ainda pela Holanda, até chegar ao mar do Norte. Os alertas aos países vizinhos só
aconteceram 24 após o acidente. A poluição tóxica chegou até a cidade de Colônia, na
Alemanha e, em seguida, alcançou o mar do Norte. Metais pesados infiltraram-se no leito
do rio, provocando a morte da fauna aquática. Em duas cidades alemãs, a água potável
foi completamente contaminada, tornando necessário o fornecimento externo. Esse
acidente demonstra que a simples existência de um sistema de alerta não foi suficiente
para evitar a ocorrência de danos aos Estados-Membros que compartilham a bacia
hidrográfica do Reno com a Suíça, já que houve falha no seu funcionamento, colocando
em risco a segurança hídrica e a boa qualidade das águas em todo o contexto da bacia.
Aprendendo com o erro, a referida empresa concordou em estabelecer uma estação de
565 Douglas de CASTRO, The Shared Management of the Guarani Aquifer: The South American
Exemple in Global Governance over Water Resources, Yearbook of International Environmental Law,
Volume 22, Oxford University Press, 2011, páginas 140-157, 140-141. 566 Carla AMADO GOMES, Risco tecnológico, comunicação do risco e direito a saber, in Direito (s)
dos Riscos Tecnológicos, Lisboa, 2014, Editora AAFDL, páginas 17 e seguintes, 21 e 22. 567 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 400.
medição de poluentes e uma estação de alerta para informação das cidades vizinhas em
caso de novos acidentes, além de ter sido obrigada a recuperar o ecossistema ribeirinho e
indenizar os prejuízos568. Em que pese o acidente da indústria química Sandoz ter
ocorrido no ano de 1986, o aumento do número de estados com diagnósticos de segurança
hídrica e ferramentas de gestão continua a ser uma realidade atual e é identificado como
uma das seis metas mundiais de governança discutidas por um conjunto de especialistas
juntamente com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico no 6º
Fórum Mundial da Água realizado em 2012.
Experiências negativas devem servir para aprofundar o processo de cooperação
estabelecido na bacia hidrográfica internacional, por exemplo, para prever sistemas de
alerta ou detecção de incidentes, incluindo acidentes imprevisíveis, bem como para
prevenir perdas significativas de poluentes industriais.
Por outro lado, a liberdade excessiva sobre bens comuns gera a ruína para todos.
A ausência de comunicação pode levar ao uso não equitativo, já que cada estado poderá
tentar obter os máximos benefícios possíveis de forma unilateral, desencadeando a
superexploração569.
Convenções para a gestão do Rio Reno570 e do Rio Danúbio já previam a
cooperação para a gestão de bacias hidrográficas internacionais. Criada em 1994, esta
última é precursora da cooperação para a proteção e gestão sustentável de bacias
hidrográficas internacionais, focada na coordenação de esforços para a redução da
poluição de suas águas571. Da mesma forma, na Península Ibérica, a harmonização das
estruturas administrativas de Portugal e Espanha permitiu o desenvolvimento de
organismos de cooperação nas regiões hidrográficas Luso-Espanholas, através da criação
de uma comissão específica para coordenar a gestão das cinco bacias compartilhadas572.
568 Ricardo Bruno S. M. RODRIGUES, Os Rios Internacionais, Faculdade de Direito de Lisboa, Tese
apresentada no Curso de Mestrado do ano letivo 2001/2002, páginas 18 a 22. 569 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford University Press, 2001, página 400. 570 Fonte:
http://ec.europa.eu/environment/water/participation/pdf/waternotes/WATER%20INFO%20NOTES%201
%20-%20PT.pdf, acesso em 08/03/2016. 571 Fonte:
http://ec.europa.eu/environment/water/participation/pdf/waternotes/WATER%20INFO%20NOTES%201
%20-%20PT.pdf, acesso em 08/03/2016. 572 Amparo SERENO ROSADO, O Regime Jurídico das Águas Internacionais. O Caso das Regiões
Hidrográficas Luso-Espanholas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, páginas 732 a 747.
Embora a cooperação não seja novidade, a necessidade de evitar danos ambientais
de grandes proporções intensificou a cooperação entre os estados, visando consolidá-la
como um verdadeiro dever de direito internacional.
A necessidade de cooperação decorre do reconhecimento da limitação dos estados
diante da localização e da extensão das bacias hidrográficas internacionais, bem como
dos benefícios advindos da adoção do critério da bacia hidrográfica para a melhoria da
gestão que se pretenda integrada.
Alternativamente à defesa unilateral de interesses nacionais, observa-se uma
tendência internacional de cooperação voltada à negociação de soluções de conflitos
relacionadas com a utilização de bacias hidrográficas compartilhadas573.
FISHER sugere a satisfação de determinadas condições para que os acordos sejam
bem sucedidos e efetivamente implementados na solução de conflitos. Dentre essas
condições, destaca o reconhecimento de que os estados da bacia possuem interesses
diversos, porém igualmente legítimos, a serem tutelados; a observância de determinados
princípios, como o da boa-fé, da equidade, da igualdade, da prioridade de interesses, da
prioridade de necessidade e da sustentabilidade; o conhecimento profundo sobre
acontecimentos passados e presentes e previsões futuras que auxiliem a definição de
estratégicas políticas e econômicas; e, por fim, a identificação de potenciais impactos
socioambientais. A aceitação de princípios de direito internacional do ambiente,
relacionados à gestão da água, facilita as negociações, funcionando como parâmetros a
serem observados durante as discussões. Por outro lado, a ausência de vinculação jurídica
favorece a aceitação desses princípios pelos estados574.
Acordos internacionais visam essencialmente a proteção de bacias internacionais
contra riscos. Certamente, se o objetivo primordial dos acordos fosse econômico, seu
número seria maior575. No entanto, o custo da resolução de conflitos, notadamente os
armados, é bem mais alto do que a cooperação, o que por si só já constitui um considerável
fator de estímulo à negociação para a gestão da água576.
573 Sinval NEVES SANTOS, O compartilhamento das águas transfronteiriças superficiais: um
subsistema da ordem ambiental internacional, Trabalho apresentado no II Encontro da ANPPAS, Indaiatuba/SP, 2004, página 9, disponível em
http://www.anppas.organizadoresbr/encontro_anual/encontro2/GT/GT13/sinval_neves.pdf, acesso em
01/11/2016. 574 Douglas FISHER, The Law and governance of water resources, The challenge of sustainability,
Cheltenham, UK, Edwar Elgar Publishing Limited, 2009, página 220. 575 Ashok SUBRAMANIAN, Bridget BROWN e Aaron T. WOLF, Understanding and overcoming risks
to cooperation along transboundary rivers, Water Policy, N.o16, 2014, páginas 824-843, 826. 576 Aaron T. WOLF, Conflict and cooperation along international waterways, Water Policy, Volume 1,
Elsevier, 1998, páginas 251-265, 262.
Além da análise dos custos e benefícios, a percepção de riscos exerce um papel
fundamental na tomada de decisões sobre a cooperação. Estados podem ter percepções
distintas sobre riscos e sobre medidas a serem adotadas para minimizá-los ou evitá-los, o
que dificulta a cooperação577.
Para incrementar a celebração de acordos, defende-se que os estados da bacia
devem ter acesso a informações corretas e suficientes para assegurar confiança na
capacidade de firmar acordos justos, ser ouvidos nas tomadas de decisões, ter autonomia
para tomar decisões independentes e que os beneficiem, ter acesso aos benefícios de
forma equitativa e ter estabilidade e suporte do acordo578.
Como regra, os estados buscam resolver conflitos relacionados aos cursos de água
compartilhados através de acordos, e não por meio de órgãos judiciais ou extrajudiciais,
motivo que explica a escassez de casos julgados sobre a matéria579.
Poucas demandas foram submetidas à jurisdição internacional. Vários fatores
justificam esse cenário, tais como relutância em conferir a disputas relacionadas aos
cursos de água internacionais o perfil internacional; a hesitação de submeter disputas a
um tribunal composto por membros não nomeados diretamente pelas partes, como a Corte
Internacional de Justiça, e o alto custo de litigar perante cortes internacionais580.
Esse fenômeno explica-se também devido ao fato de que conflitos decorrentes da
utilização das águas internacionais compartilhadas têm origem em causas diversas. Tais
variações, decorrentes das particularidades de cada caso concreto, dificultam o
estabelecimento de solução uniforme que possa ser aplicada de forma generalizada581.
Por outro lado, o número de casos dessa natureza submetidos à Corte Internacional
de Justiça tem aumentado, o que demonstra a popularização da referida Corte na solução
de disputas relacionadas à água. O caso Gabčíkovo-Nagymaros recebeu grande atenção
pública e reflete esse quadro582.
577 Ashok SUBRAMANIAN, Bridget BROWN e Aaron T. WOLF, Understanding and overcoming risks
to cooperation along transboundary rivers, Water Policy, N.o16, 2014, páginas 824-843, 825. 578 Ashok SUBRAMANIAN, Bridget BROWN e Aaron T. WOLF, Understanding and overcoming risks
to cooperation along transboundary rivers, Water Policy, N.o16, 2014, páginas 824-843, 827. 579 Amparo SERENO ROSADO, O Regime Jurídico das Águas Internacionais. O Caso das Regiões
Hidrográficas Luso-Espanholas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, página 122. 580 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 198. 581 Christian G. CAUBET, A Água Doce nas Relações Internacionais, Barueri/SP, Editora Manole, 2006,
páginas 13 e 14. 582 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 198.
Apesar das dificuldades práticas, a cooperação é o principal expoente do
paradigma atualmente predominante da gestão dos cursos de água, baseado em uma
perspectiva holística e amiga do ambiente. Retrata a evolução da gestão setorizada e
individualizada, de relações esporádicas baseadas na noção de autossuficiência, para um
processo de gestão cooperativa em múltiplos níveis, fundamentado em relações
plurilaterais entre todos os atores relevantes, ainda que privados.
Requer o estabelecimento de uma rede de cooperação entre os estados da bacia,
que envolva a comissão da bacia e os estados, mas que também permita o diálogo com a
sociedade através da cooperação do público e de interessados no processo de tomada de
decisões583.
No nível dos estados ribeirinhos, a cooperação pressupõe o estabelecimento de
medidas administrativas, tais como troca constante de dados e informações; notificação e
consultas sobre novos projetos584; elaboração conjunta de estudos sobre os cursos de água
compartilhados; avaliação dos impactos de novos projetos previamente à sua aprovação
e dos seus efeitos após sua execução; avaliação estratégica dos impactos dos planos e
programas de medidas585; estabelecimento de sistemas de emergência e aviso para
situações de secas, inundações e poluições acidentais.
Embora seja difícil definir a obrigação de cooperação em abstrato, ela ganha
significância em contextos específicos, através, por exemplo, do compromisso de manter
os níveis de carga mais baixos que os de descarga, de prevenir a poluição da água, de
engajar em discussões com os demais estados antes de levar adiante medidas planejadas,
isto é, negociar com boa-fé com o propósito de obter um acordo, trabalhar conjuntamente
para estabelecer uma alocação equitativa e razoável586.
Um exemplo de cooperação com o propósito de promover o uso equitativo é
encontrado nas negociações para a construção da Usina de Itaipu, localizada na bacia
583 Paulo Canelas de CASTRO, New age in the Luso-Spanish relations in the management of shared
basins? The challenge of cooperation in the protection and sustainable utilization of waters, in
Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 65 e seguintes, 94-96. 584 Paulo Canelas de CASTRO, New age in the Luso-Spanish relations in the management of shared
basins? The challenge of cooperation in the protection and sustainable utilization of waters, in
Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 65 e seguintes, 88, 92, 94. 585 Essas medidas foram extraídas da Convenção de Albufeira (artigos 8º e 9º). Ana BARREIRA,
Monitoring and Evaluation of the Convention Appliance: Public Involvement and Participation, in
Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 451 e seguintes, 456. 586 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 400-403.
internacional do Rio Prata, na América Latina, e compartilhada entre Brasil, Argentina,
Paraguai, Uruguai e Bolívia. A usina é a maior central hidrelétrica do mundo atualmente
em operação e sua construção decorreu do tratado bilateral do Prata, firmado entre Brasil
e Paraguai. Toda a energia produzida é igualmente repartida entre os dois estados, assim
como a equipe de trabalhadores e construtores é integrada por brasileiros e paraguaios em
partes iguais. O sucesso do tratado em minimizar disputas decorre do fato de que se trata
de uma bacia situada em uma zona semitropical e com água abundante, além de envolver
estados com um senso de unidade regional decorrente da independência longa de estados
europeus colonizadores587.
5.2.2. Dever de notificação
O dever de notificação e informação sobre novos usos e modificações dos usos
existentes, embora controverso no passado, encontra-se solidificada no direito
internacional atualmente, com previsão em relevantes documentos de direito
internacional, dentre os quais se destacam as Regras de Helsinque de 1966, o Princípio
19 da Declaração do Rio de 1992, a Convenção de Bonn de Proteção do Reno, através da
criação de sistemas internacionais de alerta588, a Parte III da Convenção de Nova Iorque
e o artigo 57 das Regras de Berlim. As Regras de Berlim vai além, para prever que
organizações internacionais também devem ser notificadas, e não apenas os estados da
bacia que possam ser afetados.
No caso de medidas projetadas que possam causar impactos significativos, a
Convenção de Nova Iorque determina que o estado responsável deverá notificar os
possíveis estados da bacia, encaminhando-lhes dados técnicos e informações disponíveis,
incluindo resultados de avaliações de impactos ambientais589.
Hipóteses de risco de danos ambientais transfronteiriços devem ser informados,
assim como deve ser prestada assistência internacional aos demais estados da bacia em
587 B. BRAGA e C. TUCCI, Transboundary Water Management in the Plata River Basin, in
Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 181 e seguintes, 191, 192 e 194. 588 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, página 282. 589 Artigo 12.
situações ambientais críticas590. A fim de evitá-las, os estados também deverão criar
planos de ação prévios a acidentes e planos de contingência para emergências591.
Trata-se de uma medida de precaução indireta que permite aos estados negociarem
medidas de mitigação, contestar ou modificar projetos potencialmente causadores de
danos significativos. Decorre da boa-fé e, por isso, deve ser oportuna e tempestiva, já que
a notificação tardia inviabiliza a negociação de soluções, deixando de servir ao seu
propósito592.
Em que pese a existência do dever de notificação de outros estados sobre uma
situação emergencial que possa atingi-los, na prática os estados são desestimulados a
observá-lo, tendo em vista que a notificação, além de onerar o projeto, pode provocar
atrasos na execução das medidas projetadas, já que o estado notificado tem o prazo de
seis meses para estudar e avaliar possíveis impactos antes de comunicar suas
conclusões593.
A avaliação acerca da possibilidade de medidas projetadas causarem danos
significativos e do dever de notificação constitui uma decisão política do estado autor das
medidas. No entanto, o caráter político da decisão encontra limites nos “procedimentos
aplicáveis na ausência de notificação”, previstos no artigo 18 da Convenção de Nova
Iorque. O mencionado dispositivo reconhece ao estado potencialmente afetado, caso
tenha “motivo razoável para crer que outro Estado do curso de água pretende tomar
medidas que lhe possam resultar em efeitos prejudiciais significativos”, o direito de
requerer que o outro o notifique tempestivamente das medidas projetadas, bem como
forneça os dados técnicos e informações disponíveis, incluindo os resultados da avaliação
de impacto ambiental, para que possa avaliar os potenciais impactos das medidas, nos
termos do artigo 12 da referida Convenção594.
590 Alexandre KISS, Direito Internacional do Ambiente, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1996,
páginas 151 a 153. 591 Artigo 28. 592 David FREESTONE e Ellen HEY, Implementando o Princípio da Precaução: Desafios e
Oportunidades, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau
(organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União, 2004,
páginas 202 e seguintes, 207. Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-
navigational uses, Oxford University Press, 2001, páginas 404 e 405. 593 Artigo 13. Elli LOUKA, Water Law & Policy, Governance Without Frontiers, Oxford University
Press, 2008, página 257. 594 Reni URUENA, The Boundaries of the Law of International Watercourses, 2008, página 369.
O dever de notificação foi reconhecido pela Corte Internacional de Justiça no
julgamento do Caso do Canal Corfu595, relativo ao desastre de 22 de outubro de 1946
entre Albânia e Reino Unido, envolvendo navios da marinha britânica que foram
atingidos por minas em território albanês ao passarem pelo Canal Corfu. Submeteu-se à
Corte a questão acerca da possibilidade de responsabilizar internacionalmente a Albânia
pelas mortes e danos materiais causados aos navios britânicos, ao exercerem o direito de
passagem inocente pelo Canal Corfu, diante da sua omissão em notificar sobre a
existência de minas no local596.
A Corte Internacional de Justiça afirmou que não há evidências de que a Albânia
efetivamente tenha colocado as minas que atingiram os navios britânicos no Canal Corfu.
No entanto, reconheceu que tais minas não poderiam ter sido colocadas sem
conhecimento da Albânia, o que atrai para si o dever de notificar navios em operação na
região acerca dos riscos existentes no local. Fundamentou seu posicionamento no dever
de não utilização do território nacional – incluindo as águas sob sua jurisdição - de forma
a provocar danos a outros estados597.
Embora não trate especificamente da questão atinente à poluição transfronteiriça
das águas internacionais, interessa a este estudo o reconhecimento pela Corte
Internacional de Justiça da existência do dever de notificação no caso de potencial risco
a direitos de outro estado e do dever de não utilizar o território nacional de forma a violar
direitos de outros estados.
Apesar de afirmar que o território não pode ser utilizado de forma a violar direitos
de outros estados, a decisão foi extremamente pontual e relacionada à lide envolvendo os
dois estados litigantes. A Corte Internacional de Justiça não deu qualquer indicação sobre
quais seriam os “direitos de outros estados” em um contexto de utilização dos cursos de
água não destinados à navegação598.
Dessa forma, a Corte perdeu a oportunidade de aprofundar o exame do dever de
não provocar danos a direitos de outros estados, abordando os princípios da utilização
595 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso do Canal Corfu, Reino Unido versus Albânia, 1949,
disponível em http://www.icj-cij.org/docket/files/1/1645.pdf, acesso em 26/02/2017. 596 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso do Canal Corfu, Reino Unido versus Albânia, 1949,
página 22, disponível em http://www.icj-cij.org/docket/files/1/1645.pdf, acesso em 26/02/2017. J. G.
LAMMERS, Pollution of International Watercourses, A Search for Substantive Rules and Principles
of Law, Holanda, 1984, páginas 527 e 528. Stephen C. MCCAFFREY, The law of international
watercourses: non-navigational uses, Oxford University Press, 2001, páginas 185 e 186. 597 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 185 e 186. 598 J. G. LAMMERS, Pollution of International Watercourses, A Search for Substantive Rules and
Principles of Law, Holanda, 1984, páginas 528 e 529.
equitativa e da comunidade de interesse, como fez, posteriormente, ao decidir o Caso
Gabčíkovo-Nagymaros.
O dever de notificação não constitui um regime de consentimento prévio capaz de
conferir ao estado notificado poder de veto em relação ao estado notificante. Apesar de
reconhecer a existência do dever de notificação, e estabelecer procedimentos aplicáveis
na ausência de notificação, a Convenção de Nova Iorque não condiciona o planejamento
e a execução de medidas projetadas ao consentimento prévio599.
5.2.3. Dever de Consulta
As obrigações de consulta e de troca de dados e informações conferem suporte às
obrigações de cooperação e de notificação prévia, pois permitem aos demais estados da
bacia participarem do processo de tomada de decisão em prol da gestão conjunta600.
O procedimento a ser adotado encontra-se previsto na Parte III da Convenção de
Nova Iorque e no artigo 58 das Regras de Berlim, de acordo com as quais os estados
deverão realizar consultas recíprocas e poderão criar mecanismos de gestão conjunta.
Além de consultarem entre si, as Regras de Berlim determinam que os estados devem
também realizar consultas com organizações internacionais competentes.
O desenvolvimento de mecanismos administrativos e institucionais de consulta
permite a disponibilização de assistência mútua para situações emergenciais, tais como
poluição acidental, secas, cheias e doenças relacionadas à água. Em relação à assistência
em situações emergenciais, as Nações Unidas recomendam, ainda, que o procedimento
inclua a direção, controle, coordenação e supervisão da assistência e dos recursos locais
e serviços a serem prestados ao estado que requerer assistência, além de medidas de
compensação e reembolso pelos serviços de assistência prestados601.
Além das situações emergenciais, os estados devem realizar consultas baseadas
na reciprocidade, lealdade, boa-fé e boa-vizinhança602, bem como fornecer informações
599 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 407. 600 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 398. 601 NAÇÕES UNIDAS, Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa, Transboundary Water
Cooperation in the Newly Independent States, Moscou-Genebra, 2003, página 12. 602 NAÇÕES UNIDAS, Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa, Transboundary Water
Cooperation in the Newly Independent States, Moscou-Genebra, 2003, página 12.
previamente sobre atividades planejadas que tenham potenciais impactos
transfronteiriços.
O dever de consulta possui relação com o dever de informar os demais estados da
bacia, uma vez que requer que um estado compartilhe as informações que tem sobre seu
projeto com os estados potencialmente afetados, permitindo que façam observações
pertinentes603.
Não se trata de uma obrigação puramente formal que se exaure em si. Em
observância ao princípio da boa-fé, o estado tem a obrigação de levar em consideração os
interesses dos demais estados na composição da decisão final do estado notificante, além
de dar satisfação e demonstrar boa vontade em conciliar os seus interesses próprios com
os dos estados que compartilham a mesma bacia hidrográfica604.
Embora não consista em um meio de solução de conflitos envolvendo a utilização
de bacias internacionais, a consulta de boa-fé contribui para a prevenção de conflitos, na
medida em que viabiliza negociações entre os estados ribeirinhos e compatibiliza
interesses diversos, porém igualmente legítimos605.
Isso não significa, contudo, que os estados consultados tenham um “direito de
veto”. Abusos no exercício desse direito não são tolerados. Conforme reconheceu o
Tribunal Arbitral no julgamento do Caso Lanoux, envolvendo França e Espanha, o desvio
de águas do Lago Lanoux configura legítimo exercício do direito da França de utilização
das águas situadas em seu território e independe da aquiescência da Espanha ou da
celebração de acordo prévio. Isso porque, de acordo com o Tribunal, haveria a posterior
compensação, a partir de transferência de águas do Rio Ariege para o Rio Carol, de forma
que este último atingiria o território espanhol com a mesma vazão, isto é, sem que
houvesse alteração no volume das águas devolvidas ao Rio Carol606.
Se por um lado a decisão do Tribunal Arbitral consistiu em uma notável evolução
da jurisprudência internacional ao reconhecer os princípios da comunidade de interesses,
603 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, página 288. 604 Stephen C. MCCAFFREY, Second report on the law of the non-navigational uses of international
watercourses, Yearbook of the International Law Commission, 1986, vol. II, páginas 87 e seguintes, 118-
119. Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 409. 605 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 407. 606 Stephen C. MCCAFFREY, Second report on the law of the non-navigational uses of international
watercourses, Yearbook of the International Law Commission, 1986, vol. II, páginas 87 e seguintes, 118-
119.
da boa-fé, da não provocação de danos ambientais e dos deveres de notificação e de
consulta, algumas críticas merecem ser destacadas.
A ausência de alteração no volume de águas do Rio Carol não deve levar à simples
conclusão de que inexistem impactos na bacia hidrográfica. O desvio de qualquer curso
de água tem potencial para provocar alterações no seu fluxo natural com possíveis
reflexos em todo o ecossistema no qual a bacia se encontra inserida. Nessa linha de
raciocínio, somente a realização de uma avaliação de impacto ambiental séria, mediante
troca de dados e informações entre os estados envolvidos, permitiria identificar com
segurança as consequências ambientais do projeto francês607.
O órgão julgador optou por fazer prevalecer a gestão individualizada das águas,
ao fundamento principal de que o Lago Lanoux se situa integralmente no interior da
França e que o Rio Carol atingiria o estado vizinho com o mesmo volume,
desconsiderando possíveis impactos sobre o ecossistema da bacia hidrográfica.
O controle unilateral das águas que banham o território de determinado estado
dificulta a gestão, na medida em que inviabiliza o diálogo, a cooperação e a adoção de
um plano que aborde de forma integrada todo o ecossistema da bacia hidrográfica. A
abordagem setorizada desconsidera características relevantes da bacia e dificulta a
coordenação de medidas relativas às águas que pertencem ao mesmo sistema ecológico,
hidrológico e hidrogeológico. Dessa forma, diálogo e cooperação entre França e Espanha,
em prol da identificação de potenciais impactos, seriam fundamentais para a manutenção
da integridade do ecossistema da bacia hidrográfica compartilhada608.
Acerca do dever de realização de consultas sobre medidas projetadas, destaca-se
um outro caso envolvendo a bacia do Rio Prata, compartilhada entre Argentina, Bolívia,
Brasil, Paraguai e Uruguai, integrada pelas sub-bacias dos Rios Paraná, Paraguai e
Uruguai.
Na década de 1970, a Argentina temia que o projeto brasileiro-paraguaio de
construção da Represa de Itaipu no Rio Paraná (o mais importante da Bacia do Prata)
pudesse interferir no projeto argentino de construção de uma barragem em conjunto com
o Paraguai, a jusante, onde o Rio Paraná forma a fronteira entre Argentina e Paraguai.
Assim, a Argentina alegou que o Brasil tinha dever de prestar informações sobre detalhes
607 Douglas FISHER, The Law and governance of water resources, The challenge of sustainability,
Cheltenham, UK, Edwar Elgar Publishing Limited, 2009, página 220. 608 Xavier Oliveras GONZÁLEZ, La Cooperación Transfronteriza En La Cerdanya (Frontera España-
Francia), Boletin de La Asociación de Geógrafos Españoles, nº 62, 2013, páginas 25-48, 35 e 36,
disponível em http://boletin.age-geografia.es/articulos/62/02-OLIVERAS.pdf, acesso em 06/01/2016.
técnicos do projeto de Itaipu e de realizar consultas de forma que as ponderações
argentinas fossem consideradas pelo Brasil tanto na elaboração quanto na execução do
projeto609.
A seu turno, o Brasil negou a existência de deveres de notificação prévia e de
consultas em relação aos estados a montante. Como a Argentina dificilmente conseguiria
remover uma das maiores represas do mundo após sua construção, satisfez-se com uma
compensação financeira paga pelo Brasil - o que MCCAFFREY denominou de uma
expropriação involuntária pelo Brasil das águas argentinas. Durante as discussões, os
interesses soberanos do Brasil prevaleceram em detrimento do princípio geral de
notificação prévia, já consolidado no plano internacional. A Argentina viu-se obrigada a
contentar-se com o pagamento de uma compensação financeira pelos danos ambientais
decorrentes do projeto brasileiro-paraguaio de construção de uma das maiores represas
hidrelétricas do mundo610.
De acordo com MCCAFFREY, a postura do Brasil inviabilizou a inclusão na
Declaração de Estocolmo, em 1972, da previsão de notificação prévia dos demais estados
acerca de novos projetos e de modificações daqueles já existentes. Essa previsão somente
foi possível vinte anos mais tarde, na Declaração do Rio de 1992 (Princípio 19) 611.
Posteriormente, contudo, Brasil e Argentina chegaram a um acordo amigável, no
sentido de coordenar os projetos planejados por ambos os estados. O acordo estabelece
aspectos técnicos importantes, como o nível operacional normal máximo da represa
argentina e as variações mínimas do fluxo do projeto brasileiro, bem como determina a
notificação prévia e o dever de disponibilizar dados referentes ao preenchimento dos
reservatórios. O acordo estabelece, ainda, que as entidades responsáveis pela
operacionalização dos dois projetos (argentinos e brasileiros) deveriam estabelecer
procedimentos adequados de coordenação operacional para o atingimento de benefícios
recíprocos, incluindo a troca de informações hidrológicas612.
609 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 265 e 266. 610 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 265 e 266. 611 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 405. 612 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 265 e 266.
De forma interessante, observa-se que os princípios que estavam no centro da
disputa – notificação prévia e consultas – foram contemplados no acordo que resolveu
amigavelmente o conflito613.
5.2.4. Dever de Troca de Dados e Informações em Bases Regulares
Assim como a água é fluida e sua disponibilidade depende de vários fatores
ambientais – como o clima, a chuva e os processos de recarga -, os interesses dos estados
também são diversos e variam de acordo com o contexto socioeconômico e ambiental.
Da mesma forma que a notificação prévia sobre novos projetos, a troca de dados
e informações em bases regulares, prevista no artigo 9º da Convenção de Nova Iorque e
no artigo 56 das Regras de Berlim, configura pressuposto para que os estados da bacia
possam determinar conjuntamente se os usos que fazem da água são razoáveis e
equitativos614.
A previsão de intercâmbio abrange dados e informações relevantes e disponíveis
sobre aspectos qualitativos e quantitativos dos cursos de água da bacia, sobre o estado do
ambiente aquático e sobre eventuais mudanças deste ou daqueles – incluindo cargas e
poluição -, bem como qualquer informação técnica relevante relativas a programas,
planos, projetos ou atividades e respectivos relatórios de impactos ambientais615.
Também deve abranger informações sobre a identificação dos usuários e os
limites dos sistemas de recursos para subsidiar a gestão da bacia hidrográfica baseada em
escolhas racionais616.
Os dados e informações devem ser disponibilizados em bases regulares entre os
estados da bacia ou requeridos por um deles. Ainda que os dados requeridos não estejam
disponíveis, o estado solicitado deverá esforçar-se para disponibilizá-los, com base nos
princípios da boa-fé e da boa vizinhança. É o que preveem o artigo 9.o da Convenção de
Nova Iorque e o artigo 56 das Regras de Berlim.
613 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 265 e 266. 614 Douglas de CASTRO, The Shared Management of the Guarani Aquifer: The South American
Exemple in Global Governance over Water Resources, Yearbook of International Environmental Law,
Volume 22, Oxford University Press, 2011, páginas 140-157, 146. 615 Artigo 9.o da Convenção de Nova Iorque e artigo 56 das Regras de Berlim. 616 Elinor OSTROM, Governing the commons. The evolution of institutions for collective action,
Cambridge, Cambridge University Press, 1990, página 90.
O desenvolvimento de programas de coleta, monitoramento e troca de dados da
bacia permite definir estratégias para o aprimoramento da gestão. Sem dados, as
autoridades competentes não têm elementos para tomar decisões necessárias para a boa
gestão das bacias. Por isso, os estados devem definir quais são as informações necessárias
para a gestão das águas transfronteiriças e o desenvolvimento de programas de
monitoramento e estabelecer bases regulares de troca dessas informações e dados. O
sucesso dos programas de monitoramento depende da troca regular de dados e
informações que permitam tanto a operação quanto a revisão desses programas617.
Somente a partir da troca de dados sobre os usos e programas executados pelos
ribeirinhos é possível conhecer as reais condições da bacia e, consequentemente, ter
elementos para definir os limites do uso razoável e equitativo com base em fatores
estabelecidos pelo artigo 6º da Convenção de Nova Iorque de 1997. Nessa linha de
raciocínio, informações como índices de precipitações, qualidade e quantidade do fluxo
de água nos níveis mais altos da bacia são imprescindíveis para que os estados otimizem
os usos a jusante618.
O estabelecimento de critérios de uso equitativo e sustentável não é uma tarefa
estática, já que novos usos surgem a todo instante, assim como usos preexistentes também
sofrem modificações. Essas constantes modificações exigem a troca de dados e
informações em bases regulares, com o intuito de manter o equilíbrio do regime de
utilização equitativa e razoável e, consequentemente, reduzir conflitos envolvendo
disputas.
Por isso, o princípio do uso equitativo e razoável encontra-se intimamente
relacionado com o dever de troca de dados e informações, de caráter procedimental, tendo
em vista que aquele requer a consideração de fatores em constante mutação, como
variações de demanda associadas ao aumento populacional e alterações dos volumes de
disponibilidade de água. Somente assim será possível prevenir secas, cheias e poluições
de qualquer forma.
Essa tarefa requer a consolidação de estruturas e mecanismos de gestão conjunta
cooperativa que permitam estabelecer redes de informação com trocas recíprocas e
617 NAÇÕES UNIDAS, Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa, Transboundary Water
Cooperation in the Newly Independent States, Moscou-Genebra, 2003, páginas 9 e 12. 618 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 311 e 341.
constantes de dados e informações. Como se pode perceber, o dever de troca de dados e
informações é um importante objetivo da cooperação619.
É ideal que haja uma comissão conjunta ou um órgão independente para
estabelecer uma rede de troca de dados e informações e, assim, definir o regime de
utilização razoável e equitativa para a bacia hidrográfica620.
Como se pode perceber pelo que foi exposto até aqui, a notificação, a realização
de consultas e a troca de dados e informações são fundamentais para a gestão de bacias
hidrográficas internacionais, na medida em que permitem a coleta de informações, a
formação de um banco de dados e de uma rede geral de informações, bem como o
estabelecimento de procedimentos a serem adotados de forma sistemática621.
Feitas essas considerações, a seguir serão abordados o dever de informação ao
público e como a participação pública contribui para a eficiência da gestão.
5.2.5. Dever de Informação e Participação Pública
A partir da Declaração do Rio de 1992, é possível observar uma maior organização
da “sociedade civil internacional” e o crescimento da conscientização acerca de questões
ambientais decorrentes do desenvolvimento, dentre as quais a utilização dos cursos de
água internacionais. Grupos da sociedade civil, tais como organizações profissionais e
organizações ambientais, passaram a desempenhar relevante papel ao lado dos estados
em discussões ambientais internacionais, como reflexo da concepção de que a
preservação do meio ambiente é do interesse de todos e não se restringe aos estados622.
O regime internacional de participação pública é marcado pela superação da
antiga concepção de que a função de encontrar soluções ambientais era de
responsabilidade exclusiva dos estados. A Declaração do Rio de 1992623 refere à
importância da abordagem de todos os atores da sociedade (indivíduos, organismos não
619 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford University Press, 2001, página 411. 620 Stephen C. MCCAFFREY, International Water Law For The 21st Century: The Contribution of
the U.N. Convention, 1999, páginas 11-19, 12, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre, acesso em 19/2/2017. 621 Milton CEDRAZ, Gerenciamento dos Recursos Hídricos - um Tema em Discussão, Interfaces da
Gestão de Recursos Hídricos, Desafios da Lei de Águas de 1997, páginas 110-125, 115. 622 Alexandre KISS, Direito Internacional do Ambiente, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1996,
páginas 150 e 151. 623 Princípio 10 e seção 3 da Agenda 21, disponível em http://bd.camara.gov.br.
governamentais, planejadores e políticos) para a proteção do ambiente624. A seção III da
Agenda 21 também trata do fortalecimento dos grupos principais na participação de
questões ambientais.
Na prática, os estados pressupõem as medidas adequadas para a proteção do
ambiente e têm a participação popular como algo incômodo. Como forma de manter o
público desinformado e afastar interferências indesejadas, a comunicação e o acesso à
informação ambiental são dificultados.
No entanto, o direito à participação e à informação não estão na esfera de
disponibilidade estatal. Os indivíduos são os verdadeiros titulares do ambiente, e não os
estados. A sociedade civil internacional, composta por atores não governamentais, tem
direito de ser informada sobre potenciais riscos e de participar da proteção do ambiente,
inclusive no plano internacional. Por isso, e a partir de acidentes ambientais ocorridos no
final do século XX, consolidou-se na década de 1980 o “direito a saber”, ganhando
envergadura legislativa625.
Na União Europeia, o “direito a saber” tem origem na Diretiva Seveso (Diretiva
82/501/CEE, do Conselho, de 24 de Junho), a partir de um grave acidente ocorrido na
Itália. Na mesma década, nos Estados Unidos da América, consolidou-se no plano da
coletividade com o Emergency Planning and Community Right-to-Know Act, de 1986,
como uma reação ao desastre de Bhopal, na Índia. A consolidação do direito a saber em
instrumentos legislativos lhe confere uma dimensão que vai além de um direito básico à
mera disponibilização de informação a posteriori sobre as decisões tomadas. Abrange,
também, o direito do público de participação nos processos de avaliação de impactos e de
tomadas de decisões que envolvam riscos, com o intuito de evitá-los ou minimizá-los.
Revela-se como um importante instrumento de proteção do ambiente, na medida em que,
ao determinar a democrática publicitação de estudos de impacto, reduz a
imprevisibilidade de acidentes e aumenta a fiscalização pela população sobre a adoção de
medidas de prevenção por parte de empreendedores e do próprio estado626.
624 Ana BARREIRA, Monitoring and Evaluation of the Convention Appliance: Public Involvement
and Participation, in Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos
(editores), Luso-American Foundation, Lisboa, 2003, páginas 451 e seguintes, 452. 625 Ludwig KRÄMER, Environmental Law, Londres, 2000, 4ª edição, página 37. Neil CRAIK, The
International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and Integration,
Cambridge, Cambridge University Press, 2008, página 79. 626 Carla AMADO GOMES, Justiça Ambiental, Justiça Espacial e Deveres de Protecção do Estado, in
Diálogo Ambiental, Constitucional e Internacional, Volume 5, Jorge Miranda e Carla Amado Gomes
(coordenadores), Bleine Queiroz Caúla, Valter Moura do Carmo (organizadores), Rio de Janeiro, Editora
Lumen Juris, 2016, páginas 1-16, 7 a 9.
A Administração Pública democrática e aberta à sociedade civil internacional
pressupõe a coparticipação do público na tomada de decisões, como uma forma de
assegurar o direito de defender seus legítimos interesses. A disponibilização de
informações desperta o interesse e conscientiza a população sobre problemas
relacionados aos cursos de água que possam lhe afetar direta ou indiretamente. A
informação é requisito indispensável para a participação efetiva. Uma vez informado, o
público tem viabilizado o exercício do direito de participação ativa durante o processo
decisório, legitimando-o627.
O público em geral é impactado pelas decisões tomadas e por isso suas
considerações, preocupações e valores são igualmente relevantes. O direito de ser
consultado e o envolvimento do público em geral no processo de decisão, além de
democratizar e legitimar a decisão administrativa, coleta informação para as autoridades,
capacitando-as para decidir de forma mais consciente628.
A consulta às populações potencialmente afetadas auxilia a identificação de
alternativas adequadas e angaria fontes adicionais de informações ambientais locais
relevantes às quais o poder público, mais distante, nem sempre tem acesso. O contato
precoce com comunidades locais, inclusive indígenas e quilombolas, permite ter acesso
aos valores e conhecimentos adquiridos por tais comunidades, o que complementa o
conhecimento científico sobre o ambiente das bacias hidrográficas e enriquece o trabalho
de avaliação de impacto ambiental de novos projetos629.
A participação dos usuários e do público em geral pode ocorrer em três diferentes
graus: i) disponibilização de informações ao público, mas sem que este tenha
oportunidade de influenciar a tomada de decisão. Refere-se ao nível mínimo de
participação; ii) preparação prévia do plano de gestão com a consulta posterior ao público.
627 Andreas KRAEMER, Governing Water, International Law Development, The Principle of
Subsidiarity, in Making the Passage through the 21st Century, Water as a Catalyst for Change, Charles
Buchanan, Paula Vincente e Evan Vlachos (editores), Lisboa, 2009, páginas 233 e seguintes, 248. Pedro
Cunha SERRA e Carlos MENDONÇA, Water Legislation and Institutional Models, in Implementing
Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation,
Lisboa, 2003, páginas 407 e seguintes, 412. Alberto GARRIDO, The Role of the New Water Economy, in Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-
American Foundation, Lisboa, 2003, páginas 421 e seguintes, 421. Ana BARREIRA, Monitoring and
Evaluation of the Convention Appliance: Public Involvement and Participation, in Implementing
Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation,
Lisboa, 2003, páginas 451 e seguintes, 452. 628 Vasco PEREIRA DA SILVA, The Aahrus Convention: a “bridge” to a better environment, in
Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, nº 18-19, Dez-Jun 2003, páginas 133 a 140, 135. 629 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, página 143 e 150.
É o que se verifica, por exemplo, no direito regional da União Europeia com a Diretiva-
Quadro da Água, a qual prevê que calendários, programas de trabalhos, lista de medidas
a tomar, síntese das questões significativas detectadas e projetos do plano devem ser
disponibilizados ao público, facultando-lhe a apresentação de observações escritas630; iii)
envolvimento efetivo na elaboração do plano de gestão da bacia hidrográfica, conforme
determinado pelo artigo 14º da diretiva, “especialmente na elaboração, revisão e
actualização dos planos de gestão de bacia hidrográfica”. Embora a participação direta do
público em geral seja desejável, na prática observa-se sua apatia em relação ao
planejamento da bacia, diante da ausência de interesse direto631.
A abertura do processo de decisão a partes não estatais contribui para a segurança
hídrica internacional e para a preservação dos ecossistemas das bacias hidrográficas, além
de permitir que diversos atores não institucionais da sociedade trabalhem conjuntamente
para o desenvolvimento de capacidades para prevenir e solucionar conflitos632. Trata-se
de um mecanismo para democratizar decisões sobre bens ambientais comuns em
coerência com a natureza generalizada desses bens633.
Além dos inúmeros instrumentos de soft Law, a Convenção de Aarhus, de 25 de
Junho de 1998, consagrou no plano internacional em um instrumento de hard Law o
direito ao público não, apenas de ter acesso à informação, mas de efetivamente participar
no processo de tomada de decisão e ter acesso à justiça em matéria de ambiente634.
A Convenção de Aarhus estabelece padrões mínimos de acesso à informação e
participação pública em matéria de ambiente, além de um conjunto de obrigações aos
estados de notificar o público sobre novas atividades que possam ter impactos ambientais,
identificadas em uma lista contida no anexo. A legitimação é necessária no plano interno
630 14º considerando e artigo 14º. 631 Elli LOUKA, Water Law & Policy, Governance Without Frontiers, Oxford University Press, 2008,
páginas 64 e 65. 632 Kathy HOCHSTETLER, International Environmental Politics and Transboundary Waters, in
Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 437 e seguintes, páginas 446 e 447. 633 Carla AMADO GOMES, Introdução ao Estudo do Ambiente, Lisboa, Associação Acadêmica da
Faculdade de Direito de Lisboa, 2ª edição, 2014, página 39. 634 Artigo 1º da Convenção de Aarhus. Alan BOYLE, Human Rights or Environmental Rights? A
Reassessment, 2007, páginas 6 e 7, disponível em
http://www.law.editoresac.uk/includes/remote_people_profile/remote_staff_profile?sq_content_src=%2B
dXJsPWh0dHAlM0ElMkYlMkZ3d3cyLmxhdy5lZC5hYy51ayUyRmZpbGVfZG93bmxvYWQlMkZwd
WJsaWNhdGlvbnMlMkYwXzEyMjFfaHVtYW5yaWdodHNvcmVudmlyb25tZW50YWxyaWdodHNhc
mVhc3Nlcy5wZGYmYWxsPTE%3D, acesso em 27/07/2016. Ana BARREIRA, Monitoring and
Evaluation of the Convention Appliance: Public Involvement and Participation, in Implementing
Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation,
Lisboa, 2003, páginas 451 e seguintes, 452.
porque poderes discricionários que impactarão indivíduos são conferidos a agentes não
eleitos. No plano internacional, decisões discricionárias e sem acordo prévio podem afetar
direitos de outros estados igualmente soberanos. Em ambos os casos, devem ser
considerados os interesses das partes afetadas635.
A participação do público, notadamente da população potencialmente afetada,
confere maior transparência aos processos de decisão ambiental. Além de ter
oportunidade de influenciar nas decisões sobre a gestão – e por isso é considerado
codecisionmaker, o público experimenta a implementação de suas próprias decisões. Isso
legitima o processo como um todo, na medida em que os valores dos próprios indivíduos
que serão afetados são refletidos nas políticas públicas636.
Viabilizar o acesso do público às informações e dados disponíveis sobre a bacia
fomenta a participação de indivíduos e de organizações não governamentais, favorecendo
o estabelecimento de estratégias637. No nível das bacias hidrográficas transfronteiriças,
toda a população potencialmente afetada, independentemente da nacionalidade e do
domicílio, deve ter acesso à informação e o direito de participação efetiva nos processos
de avaliação de impactos e de tomada de decisões, com base no princípio da não
discriminação, conforme determina a Convenção de Espoo em caráter vinculante. Trata-
se de uma tendência em direção ao transnacionalismo no direito do ambiente e à
administração global, que visa atribuir direitos ambientais diretamente a indivíduos,
reforçada pela Convenção de Aahrus638.
Instituições ambientais internacionais não estatais, que promovem transparência
e oportunidade de participação, também devem ser informadas para que possam participar
do processo de tomada de decisões639. Tais instituições devolvem o poder de decisão à
população local, promovendo decisões mais legítimas e eficientes, na medida em que
ajudam a reduzir a influência exercida por grupos econômicos existentes nas estruturas
políticas nacionais. Reflete a aplicação do princípio da subsidiariedade na governança, de
635 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, páginas 79, 148 e 168. 636 Elli LOUKA, Water Law & Policy, Governance Without Frontiers, Oxford University Press, 2008,
página 63. Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process,
Substance and Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, página 79. 637 NAÇÕES UNIDAS, Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa, Transboundary Water
Cooperation in the Newly Independent States, Moscou-Genebra, 2003, páginas 9 e 13. 638 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, páginas 143, 146 e 148. 639 Ludwig KRÄMER, Environmental Law, Londres, 2000, 4ª edição, página 37.
acordo com o qual as decisões devem ser tomadas o mais próximo possível das pessoas
afetadas640.
O envolvimento de grupos da sociedade civil nas tomadas de decisões ambientais
é perceptível, por exemplo, nos “rótulos verdes” e nas parcerias público-privadas para o
estabelecimento de estratégias de desenvolvimento sustentável641.
Como destaca AMADO GOMES, a informação sobre o risco constitui um
importante instrumento de gestão do risco, a partir do empoderamento das populações,
lhes permitindo realizar “escolhas conscientes, evitar manipulações e prevenir a tomada
de decisões lesivas para o ambiente e para a saúde”642.
A Convenção de Helsinque de 1992 determina que informações sobre as
condições das águas transfronteiriças, medidas adotadas ou planejadas para prevenir,
controlar e reduzir impactos sejam disponibilizadas ao público. Embora não aprofunde
sobre a participação do público, ela foi adotada poucos meses antes da Conferência do
Rio em 1992. Mesmo assim, o artigo 15 do seu Protocolo sobre Água e Saúde prevê o
envolvimento público643.
A participação no nível mínimo pode ser viabilizada através da divulgação de
informações sobre objetivos, projetos, atividades e programas da bacia em websites das
comissões internacionais, não apenas na língua oficial, mas também em outras línguas
dos estados da bacia. A disponibilização de minutas de grupos de trabalho e das sessões
plenárias facilita o acesso de seu conteúdo ao público644. Assim como a abertura de um
espaço para sugestões, críticas e envio de informações por via eletrônica também
aproxima os tomadores de decisões daqueles que serão diretamente afetados pelas
decisões daqueles.
No plano da bacia hidrográfica, há documentos internacionais que asseguram os
direitos de informação e de participação no nível máximo, dentre os quais se destaca a
640 Neil CRAIK, The International Law of Environmental Impact Assessment, Process, Substance and
Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 2008, página 230. 641 Benedict KINGSBURY, Global Environmental Governance as Administration: Implications for
International Law, in The Oxford Handbook of International Environmental Law, Daniel Bodansky, Jutta
Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 64 e seguintes, 71. 642 Carla AMADO GOMES, Justiça Ambiental, Justiça Espacial e Deveres de Protecção do Estado, in
Diálogo Ambiental, Constitucional e Internacional, Volume 5, Jorge Miranda e Carla Amado Gomes
(coordenadores), Bleine Queiroz Caúla, Valter Moura do Carmo (organizadores), Rio de Janeiro, Editora
Lumen Juris, 2016, páginas 1-16, 9. 643 Ana BARREIRA, Monitoring and Evaluation of the Convention Appliance: Public Involvement
and Participation, in Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos
(editores), Luso-American Foundation, Lisboa, 2003, páginas 451 e seguintes, 455. 644 Elli LOUKA, Water Law & Policy, Governance Without Frontiers, Oxford University Press, 2008,
página 374.
Convenção para a Proteção do Rio Reno. A referida convenção assegura a cooperação
não apenas entre estados, mas também entre a Comissão e outras organizações e experts,
além da troca de informações e consultas antes da tomada de decisões que possam ter
impactos ambientais. Essas organizações têm direito de submeter informações relevantes
à Comissão, bem como participar das reuniões, porém sem direito a voto. Observa-se que
cada vez mais os estados perdem espaço para instituições que exercem função
supranacional. Atores privados, como as Nações Unidas, o Banco Mundial, interessados,
usuários e comissões de natureza internacional vêm se fortalecendo no exercício de
funções de destaque na gestão de bacias internacionais645.
O estabelecimento de consultas regulares com grupos selecionados de
interessados, assegurando-lhes status de observadores, constitui uma das funções das
comissões internacionais. Dito status lhes confere o papel de consultores no âmbito das
comissões, além de garantir a participação em conferências sobre a matéria, nas quais
podem apresentar informações, opiniões e relatórios, a exemplo do que ocorre nas
Convenções dos Rio Mosa e Danúbio. Os procedimentos e requisitos para a participação
de observadores em deliberações são previstas pelas próprias comissões, assim como seus
direitos e obrigações. Geralmente, se trata de instituições intergovernamentais e não
governamentais que, embora não participem da formulação da política da água nem
tenham direito a voto ou façam recomendações, contribuem para a implementação dos
objetivos e princípios da convenção, fornecendo ideias valorosas que possam influenciar
a formação de políticas internacionais sobre a água646.
No Mar Negro, para fortalecer a participação de interessados, foi criada uma rede
de organizações não governamentais. O objetivo dessa rede é melhorar a qualidade da
água do Mar Negro e promover democratização na região, além de estimular os estados
que o compartilham a protegê-lo. Para isso, foi criado o “dia do Mar Negro”, bem como
realizadas campanhas itinerantes, realizados debates públicos e seminários647.
645 Artigo 15 da Convenção para a Proteção do Rio Reno, de 1999. Ana BARREIRA, Monitoring and
Evaluation of the Convention Appliance: Public Involvement and Participation, in Implementing
Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation,
Lisboa, 2003, páginas 451 e seguintes, 456. Kathy HOCHSTETLER, International Environmental
Politics and Transboundary Waters, in Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia
e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation, Lisboa, 2003, páginas 437 e seguintes, 444 e 445. 646 Elli LOUKA, Water Law & Policy, Governance Without Frontiers, Oxford University Press, 2008,
páginas 359, 360 e 362. 647 Elli LOUKA, Water Law & Policy, Governance Without Frontiers, Oxford University Press, 2008,
páginas 367 e 368.
Extrai-se do que foi exposto até aqui que a cooperação constitui uma ferramenta
essencial para o sucesso da gestão das bacias hidrográficas compartilhadas, quer porque
permite a otimização dos recursos hídricos, quer porque contribui para o desenvolvimento
sustentável da bacia e, assim, favorece o cumprimento das obrigações materiais pelos
estados da bacia.
No entanto, das 276 bacias hidrográficas compartilhadas existentes no planeta,
apenas 110 são objeto de acordos internacionais, sendo que, destes, muitos não
compreendem todos os estados ribeirinhos648. Os acordos celebrados também são dignos
de críticas em relação à atuação deficiente das partes e à ausência de atribuições e poderes
conferidos aos comitês das bacias, limitando sua atuação.
Os acordos atuam como facilitadores para o cumprimento dos deveres de
notificação, consulta, troca de dados e informações e participação do público, na medida
em que, além de reforçarem ditas obrigações, também preveem os procedimentos
aplicáveis.
As obrigações procedimentais aqui tratadas (cooperação internacional,
notificação, consulta, troca de dados e informações e informação e participação pública)
mostram-se essenciais para o diálogo entre os estados que compartilham uma bacia
hidrográfica internacional e, nesse sentido, podem ser considerados um dever de
cooperação em sentido amplo649.
Isso porque os instrumentos legais existentes dependem da cooperação entre os
estados para que sejam efetivos na redução ou eliminação de impactos de dimensões
internacionais. A cooperação, por sua vez, somente se afigura viável caso os estados da
bacia se empenhem no cumprimento dos deveres de notificação, consulta e troca de
dados, bem como permitam verdadeiramente o acesso de informações ao público,
permitindo sua participação nos níveis mínimo, médio e máximo.
Assim, a observância dessas obrigações procedimentais é imprescindível para o
aprimoramento de uma gestão verdadeiramente integrada, com respeito aos princípios
que devem reger a gestão das bacias hidrográficas internacionais, bem como para o
cumprimento das obrigações materiais de uso equitativo e razoável e de não causar danos
significativos.
648 Ashok SUBRAMANIAN, Bridget BROWN e Aaron T. WOLF, Understanding and overcoming risks
to cooperation along transboundary rivers, Water Policy, N.o16, 2014, páginas 824-843, 826. 649 Douglas de CASTRO, The Shared Management of the Guarani Aquifer: The South American
Exemple in Global Governance over Water Resources, Yearbook of International Environmental Law,
Volume 22, Oxford University Press, 2011, páginas 140-157, 146.
5.3. DESCENTRALIZAÇÃO DA GESTÃO
Observa-se uma tendência global de fragmentação dos sistemas de gestão dos
cursos de água compartilhados, com a atribuição de competências regulatórias, executivas
e de desenvolvimento a diferentes órgãos. Se no Direito Administrativo interno as
decisões administrativas possuem legitimidade democrática, no Direito Administrativo
global as decisões são tomadas por comitês de especialistas, e não por agentes eleitos650.
Sistemas centralizados falharam no passado e a experiência demonstra que
organizações descentralizadas, porém ricas em informações e com poderes para tomar
decisões em rede, têm se mostrado eficientes. Além disso, o diálogo democratiza a gestão,
de forma a compensar a reduzida interferência de atores estatais eleitos pelo público651.
A gestão descentralizada encontra fundamento no Princípio nº 2 da Conferência
Internacional de Água e Meio Ambiente (ICWE), realizada em Dublin, em 1992, e na
Declaração Ministerial de Haia sobre Segurança Hídrica no século XXI, de 2000652.
A eficiência da gestão requer uma estruturação regional descentralizada e a
previsão de instrumentos que lhe confiram sustentabilidade653.
Não são raros os casos de bacias hidrográficas constituídas tanto por cursos de
água nacionais quanto internacionais. Especialmente nesses casos, a gestão das águas
deve ser horizontal e baseada na negociação – e não vertical. No plano interno, os estados
devem participar da gestão, adotando medidas de proteção adequadas em nível nacional,
no qual os recursos e o orçamento públicos estão concentrados e as decisões sobre
investimento são tomadas. A descentralização da gestão internamente também tem se
mostrado eficiente para conferir um nível de proteção elevado aos cursos de água
650 Francisco de Abreu DUARTE, À descoberta do fundamento constitucional do direito
administrativo global, Revista Eletrônica de Direito Público do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, nº 1, 2014, página 4. 651 Thomas DIETZ, Elinor OSTROM e Paul C. STERN, The Struggle to Govern the Commons, 2003,
páginas 14 e 15, disponível em
http://stephenschneider.stanford.edu/Publications/PDF_Papers/DietzOstromStern.pdf, acesso em
24/02/2016. 652 Celso Maran de OLIVEIRA, A Política Brasileira de Recursos Hídricos e as Agências de Água,
Temas de Intergeração, Editora Almedina, Coimbra, 2008, páginas 135 e seguintes, 137. 653 Milton CEDRAZ, Gerenciamento dos Recursos Hídricos - um Tema em Discussão, Interfaces da
Gestão de Recursos Hídricos, Desafios da Lei de Águas de 1997, páginas 110-125, 114.
compartilhados. Requer interação entre autoridades nacionais e locais em prol da boa
governança ambiental654.
Para isso, as instituições nacionais devem ser fortalecidas, em observância ao
critério da maior proximidade possível do local do dano ou do impacto no processo de
tomada de decisões. O empoderamento dos níveis inferiores permite uma atuação com
maior liberdade e flexibilidade no atendimento de necessidades locais655, porém sem se
afastar dos objetivos nacionais. A valorização da atuação local, no entanto, não impede a
interação entre instituições de nível nacional e internacional e a coordenação entre todas
as unidades gestoras como pressuposto para evitar conflitos656.
A exaustão de órgãos judiciais e administrativos locais, tanto quanto possível,
também resolve de forma mais rápida e eficiente eventuais conflitos do que
procedimentos diplomáticos, além de evitar politizações desnecessária657.
A articulação horizontal e vertical entre organismos subnacionais, nacionais e
internacionais é necessária. Quer porque questões internas podem impactar no plano
internacional, quer porque decisões tomadas por órgãos supranacionais precisam ser
executadas localmente. Quanto mais centralizada, maiores são as dificuldades para
implementar medidas de gestão. Quanto mais descentralizada, maiores os desafios para
coordenar todos os níveis. Por isso, deve ser estabelecida uma interação de mão dupla
entre as instituições de níveis iguais (horizontal), bem como de níveis diferentes
(vertical), que facilite a coordenação de todos os níveis de gestão descentralizada658.
No nível vertical, a coordenação deve operar-se não apenas de forma descendente,
mas também ascendente, de modo que as instituições dos níveis mais baixos possam
participar do processo de decisão e planejamento do setor. Além de se encontram mais
654 Andreas KRAEMER, Governing Water, International Law Development, The Principle of
Subsidiarity, in Making the Passage through the 21st Century, Water as a Catalyst for Change, Charles
Buchanan, Paula Vincente e Evan Vlachos (editores), Lisboa, 2009, páginas 233 e seguintes, 244. 655 Andreas KRAEMER, Governing Water, International Law Development, The Principle of
Subsidiarity, in Making the Passage through the 21st Century, Water as a Catalyst for Change, Charles
Buchanan, Paula Vincente e Evan Vlachos (editores), Lisboa, 2009, páginas 233 e seguintes, 244. 656 Mark SMITH e Torkil Jonch CLAUSEN, Integrated water resource management, A discussion
Paper of the World Water Council Task Force on IWRM, World Water Council, Abril de 2015, página
16, disponível em
http://www.worldwatercouncil.org/fileadmin/world_water_council/documents/publications/forum_docum
ents/WWC_IWRM_DiscussionPaper.pdf, acesso em 23/02/2016. 657 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, páginas 437 e 438. 658 Amparo SERENO ROSADO, O Regime Jurídico das Águas Internacionais. O Caso das Regiões
Hidrográficas Luso-Espanholas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, páginas 25, 26, 770 e
771.
próximas dos problemas locais, estas instituições possuem maior conhecimento sobre as
dificuldades que podem surgir na execução do plano da bacia659.
Ao mesmo tempo em que a gestão da água com base no critério da bacia
hidrográfica requer a descentralização do planejamento e a atribuição de
responsabilidades a autoridades de níveis inferiores, percebe-se também um movimento
de centralização de algumas atividades que eram desempenhadas de forma fragmentada
por autoridades locais. Modelos centralizados no plano internacional têm sucedido
modelos nacionais tradicionais de gestão que falharam. Ao mesmo tempo em que se
observa a descentralização e a capilarização das funções administrativas, a gestão é
centralizada na unidade da bacia hidrográfica e operacionalizada por comissões de
natureza internacional. Não se trata de uma incoerência, mas do desenvolvimento de
múltiplos níveis de gestão coordenados nos planos ascendente e descendente, horizontal
e vertical, em substituição aos modelos puramente centralizados ou descentralizados. No
modelo da bacia hidrográfica internacional, a coordenação pode ocorrer por meio da
centralização de cima para baixo ou do estabelecimento de redes horizontais de consulta
- caso haja várias autoridades competentes660.
Em superação ao tradicional modelo de instituições intergovernamentais criadas
a partir de tratados, despontam estruturas de administração em rede e agências de
governança global que agem como administradores diretos, seja limitando privilégios de
um estado em descumprimento de um padrão internacional, seja emitindo certificados ou
avisos que alteram as condições de mercado, afetando aquele estado. Atuam através de
mecanismos institucionais descentralizados. O principal exemplo atualmente consiste no
Mecanismo de Desenvolvimento Limpo do Protocolo de Quioto. Trata-se de um acordo
ambiental interestatal que confere poderes materiais a uma instituição internacional para
administrar diretamente um regime que afeta tanto o mercado privado internacional
quanto os estados. A informalidade das redes de administração é responsável pelos
poucos poderes administrativos que lhe são conferidas, embora seja notório seu crescente
fortalecimento. Em alguns casos, a rede opera diretamente como uma administração
internacional. Em outros, utiliza-se de técnicas para exercer poderes de administração,
659 Amparo SERENO ROSADO, O Regime Jurídico das Águas Internacionais. O Caso das Regiões
Hidrográficas Luso-Espanholas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, páginas 770 e 771. 660 Elli LOUKA, Water Law & Policy, Governance Without Frontiers, Oxford University Press, 2008,
páginas 117, 118, 119, 131 e 132.
como revisão participativa de objetivos. As vantagens percebidas a partir desse modelo
têm contribuído para sua expansão661.
As vantagens da administração em rede são notórias e explicam o seu
fortalecimento. Ela age de forma ágil e sem a burocracia típica dos modelos
administrativos tradicionais geridos por estados representados por seus ministros. Normas
são criadas sem a necessidade de aprovação pelo Poder Legislativo. O controle fica a
cargo de mecanismos de supervisão previamente estabelecidos. Agências governamentais
especializadas gerem as políticas, o que facilita convergências entre negociadores e
articulações entre políticas adotadas pela rede e políticas das agências governamentais.
Assim, reduz-se conflitos diplomáticos. As redes de administração ambientais são menos
intrusivas, uma vez que seus poderes são mais limitados, mas podem ser bastante
significantes, como é o caso da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento
Econômico662.
A descentralização realiza os princípios da democracia e da participação de
interessados e do público em geral no processo de tomada de decisões663. A
democratização da gestão operacionaliza-se através da inclusão da participação pública
de interessados, como entes privados envolvidos, da comunidade e dos usuários nos
processos de tomada de decisão e na elaboração do plano de gestão. Desde 1992, já há a
previsão, dentre os Princípios de Dublin, de que o desenvolvimento e a gestão da água
devem basear-se numa abordagem participativa, envolvendo usuários, planejadores e
tomadores de decisões em todos os níveis664.
Estimula-se a participação popular e de atores não estatais, como associações,
organizações e grupos de experts na tomada de decisões, em complementação à
administração governamental direta.
661 Benedict KINGSBURY, Global Environmental Governance as Administration: Implications for
International Law, in The Oxford Handbook of International Environmental Law, Daniel Bodansky, Jutta
Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 64 e seguintes, 75, 76 e 79. 662 Benedict KINGSBURY, Global Environmental Governance as Administration: Implications for
International Law, in The Oxford Handbook of International Environmental Law, Daniel Bodansky, Jutta
Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 64 e seguintes, 79. 663 Paulo Canelas de CASTRO, New age in the Luso-Spanish relations in the management of shared
basins? The challenge of cooperation in the protection and sustainable utilization of waters, in
Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 65 e seguintes, 94 e 95. 664 Princípio 2. Fonte:
http://www.worldwatercouncil.org/fileadmin/world_water_council/documents/publications/forum_docum
ents/WWC_IWRM_DiscussionPaper.pdf, acesso em 23/02/2016, página 7. Global Water Partnership,
http://www.gwp.org/Global/GWP-SAm_Files/Publicaciones/Sobre%20GIRH/Manual-Cap-Net-en-
portugues-Marzo-2008.pdf, acesso em 21/07/2016.
Assim, permite-se ao público exprimir opiniões e preocupações relevantes que
devem ser consideradas pelas autoridades com poder de decisão, contribuindo para o
aumento da responsabilidade e da transparência nos processos de tomada de decisões,
além de legitimá-las, ao mesmo tempo em que sensibiliza o público em relação às
questões ambientais.
Exemplo de mecanismos institucionais descentralizados para a proteção dos
cursos de água é a Comissão Conjunta Internacional, de natureza bilateral, criada para
aplicar o tratado firmado entre Canadá e Estados Unidos da América que trata sobre
cursos de água compartilhados entre os dois estados. Considerada instituição de
referência pela excelência do trabalho realizado, a referida comissão tem competência
para analisar ações sobre utilização, obstrução ou desvio de cursos de água
compartilhados, quando houver alteração do fluxo ou nível (quantidade); recolher e
analisar dados; avaliar programas nacionais; definir políticas e divulgar informações ao
público. As decisões são tomadas por consenso e raros são os desacordos665.
Nessa linha, é preciso que instituições da bacia desenvolvam novas capacidades
transnacionais. O estímulo à promoção de uma comunidade da água praticante da
governança, que conte com a participação de técnicos especializados, constitui uma
relevante ferramenta para a promoção de uma política da água mais participativa e global.
Deliberações de múltiplos interessados, sensíveis a interesses de variados níveis e escalas,
mostram-se necessárias para equilibrar poderes e aumentar a transparência e a
responsabilidade na formulação da política da água666.
5.4. CRIAÇÃO DE ESTRUTURAS SUPRANACIONAIS PERMANENTES:
AUTORIDADES INTERNACIONAIS DA ÁGUA
A unidade ambiental das bacias internacionais revelou a necessidade de adoção
de mecanismos conjuntos de gestão desses bens ambientais. A consciência de que os
impactos de determinadas atividades potencialmente poluentes repercutem em todo o
665 José Manuel PUREZA e Paula Duarte LOPES, A Água, entre a Soberania e o interesse comum, in
Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 85 e seguintes, 94. 666 John DORE, Louis LEBEL e Francois MOLLE, A framework for analysing transboundary water
governance complexes, illustrated in the Mekong Region, in Journal of Hydrology, 466–467, 2012,
páginas 23 a 36, página 33, disponível em www.elsevier.com/locate/jhydrol, acesso em 27/04/2017.
ambiente da bacia é responsável pelo notório fortalecimento de instrumentos de gestão
conjunta667.
Mas como definir responsabilidades de estados que se encontram em diferentes
níveis de desenvolvimento econômico e que possuem necessidades e capacidades
distintas? É possível contornar essa dificuldade a partir do princípio da responsabilidade
comum mas diferenciada, que considera as peculiaridades socioeconômicas, políticas e
culturais dos estados, bem como ambientais, tais como os tipos de uso, a alocação de
recursos naturais compartilhados e a distribuição equitativa dos benefícios do
desenvolvimento668.
Na bacia do Danúbio, por exemplo, as disparidades socioeconômicas dos estados
ribeirinhos têm gerado dificuldades de implementação dos objetivos da Convenção do
Danúbio, notadamente pelos estados menos favorecidos. A concretização de medidas de
redução da poluição e de proteção do ambiente, condição de acesso à União Europeia,
igualmente não tem sido tarefa fácil669.
O princípio da responsabilidade comum mas diferenciada apresenta-se como o
caminho encontrado para diferenciar estados desenvolvidos e em desenvolvimento, ao
definir o grau de responsabilidade de cada estado na solução de questões ambientais,
como clima, camada de ozônio, paz e saúde pública. Diferenças dificultam a adoção de
medidas uniformes e por isso o mencionado princípio constitui o ponto chave para a
discussão da equidade no direito internacional, a partir da atribuição de obrigações não
uniformes a estados desiguais sob diversos aspectos670.
A previsão de deveres diferenciados de acordo com as capacidades de cada estado
não afasta a responsabilidade da comunidade internacional de prestar suporte em relação
à estruturação do sistema legal e ao estabelecimento de programas de desenvolvimento
667 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, página 582. 668 Philippe SANDS e Jacqueline PEEL, Principles of International Environmental Law, 3.ª edição, Cambridge, Cambridge University Press, 2012, páginas 213 e 214, disponível em
https://books.google.pt/books?id=uHzFRub4KrAC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false, acesso em 17/02/2016. 669 J. BENDOW, Challenges of Transboundary Water Management in the Danube River Basin, in
Transboundary Water Resources: Strategies for Regional Security and Ecological Stability, Hartmut
Vogtmann e Nikolai Dobrestov (editores), Earth and Environment Science, Volume 46, Rússia, 2003,
páginas 73 e ss, 75. 670 Bjorn-Oliver MAGSIG, International Water Law and the Quest for Common Security, Earthscan
Studies in Water Resource Management, Routedge, 2015, páginas 93-94.
dos estados mais vulneráveis, bem como de facilitar o acesso a mecanismos de
financiamento e de harmonização da legislação nacional com a internacional671.
Seu principal objetivo é introduzir um consenso baseado nas ideias de ação
coletiva, interdependência e ética na cooperação das águas transfronteiriças. Introduz uma
abordagem de solidariedade na cooperação das águas transfronteiriças, também
conhecida como “hidrosolidariedade”, de acordo com a qual a solução de conflitos
envolvendo águas compartilhadas deve ser baseada na solidariedade entre todos os
estados da bacia, colocando o interesse comum acima do individual, e que também
funciona como base ética para a boa governança672.
Assim, a instituição de comissões da bacia constitui um meio para a superação de
diferenças que interferem na gestão e viabiliza a atribuição de responsabilidades distintas
de acordo com as capacidades dos estados.
Além disso, a simples coordenação de decisões entre os estados da bacia não é
suficiente para garantir o sucesso da implementação de políticas internacionais. Nesse
sentido, as comissões da bacia se apresentam como plataformas para a coordenação da
gestão, que também podem evoluir para agências internacionais da água673.
Na Bacia do Rio Acre (compartilhada entre Brasil - 41%, Bolívia - 33% e Peru -
26%), foi criada a Comissão Trinacional Brasil–Bolívia–Peru para o Desenvolvimento
Sustentável e a Gestão Integrada da Bacia Hidrográfica do Rio Acre, composta por
membros do Ministério das Relações Exteriores de cada parte, bem como por
representantes de órgãos responsáveis pela gestão de recursos hídricos em cada estado.
Suas funções vão desde promover o desenvolvimento econômico sustentável da região,
fiscalizar a situação ambiental da bacia, estudar e coordenar os assuntos técnicos,
científicos, econômicos e sociais relacionados ao desenvolvimento da Bacia, até
671 J. BENDOW, Challenges of Transboundary Water Management in the Danube River Basin, in
Transboundary Water Resources: Strategies for Regional Security and Ecological Stability, Hartmut Vogtmann e Nikolai Dobrestov (editores), Earth and Environment Science, Volume 46, Rússia, 2003,
páginas 73 e ss, 75. 672 Bjorn-Oliver MAGSIG, International Water Law and the Quest for Common Security, Earthscan
Studies in Water Resource Management, Routedge, 2015, páginas 68, 70. Carla AMADO GOMES,
Responsabilidade Internacional do Estado por Dano Ecológico: uma Miragem?, in Questões de
Responsabilidade Internacional, Maria de Assunção do Vale Pereira (Coordenadora), Sociedade
Portuguesa de Direito Internacional, 2016, páginas 11-41, 19. 673 Elli LOUKA, Water Law & Policy, Governance Without Frontiers, Oxford University Press, 2008,
página 385.
implantar projetos elaborados para a região em parceria com os governos e fiscalizar o
processo de sua execução674.
Na América do Sul, são notórias as dificuldades de estabelecer diretrizes e de
implementá-las na governança coordenada entre estados marcados por diferenças de
estrutura de gestão. No entanto, o histórico de cooperação em outras áreas favorece o seu
alargamento também para o setor da água, ao mesmo tempo em que é possível observar
a liderança dos estados que possuem um modelo de gestão desenvolvido e consolidado
há mais tempo675.
A gestão integrada pressupõe a participação dos estados que compartilham a
mesma bacia hidrográfica no processo tomada de decisões que possam impactar os
demais estados da bacia. Geralmente, é instrumentalizada através da criação de comissões
conjuntas – por meio de tratados - com poderes para negociar disputas, investigar queixas
e resolver questões atinentes à alocação da água na bacia676. Essas comissões podem ser
definidas como “organizações internacionais” ou “supra-estados”677.
Para assegurar o uso equitativo e sustentável e a prevenção contra danos, os
estados da bacia devem estabelecer comissões ou agências conjuntas com autoridade para
coordenar a gestão integrada dos cursos de água da bacia hidrográfica compartilhada. É
o que determina o artigo 64 das Regras de Berlim, na linha do artigo 7 das Regras de
Montreal.
A Convenção de Nova Iorque prevê a criação de comissões ou mecanismos
institucionais conjuntos com o propósito de facilitar a cooperação. Contudo, é omissa em
relação aos requisitos dos organismos de cooperação necessários para o estabelecimento
de um modelo institucional, limitando-se a remeter ao exemplo das “comissões
internacionais”, porém, sem identificá-las678.
674 Matilde de SOUZA, Franciely Torrente VELOSO, Letícia Britto dos SANTOS e Rebeca Bernardo da
Silva CAEIRO, Governança de recursos comuns: bacias hidrográficas transfronteiriças Revista
Brasiliera de Política Interancional, Volume 57, N.o 2, 2014, páginas 152-175, 163 e 164. 675 Matilde de SOUZA, Franciely Torrente VELOSO, Letícia Britto dos SANTOS e Rebeca Bernardo da
Silva CAEIRO, Governança de recursos comuns: bacias hidrográficas transfronteiriças, Revista
Brasiliera de Política Interancional, Volume 57, N.o 2, 2014, páginas 152-175, 167 e 169. 676 P. GLEICK, Water and Conflict: Fresh Water Resources and International Security, in
International Security, Volume 18, nº 1, 1993, página 108. 677 Nesse sentido caminhou a Convenção de Albufeira (artigos 2º, §1º, e 3º, §1º), conforme Paulo Canelas
de CASTRO, New age in the Luso-Spanish relations in the management of shared basins? The
challenge of cooperation in the protection and sustainable utilization of waters, in Implementing
Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation,
Lisboa, 2003, páginas 65 e seguintes, 88. 678 Amparo SERENO ROSADO, O Regime Jurídico das Águas Internacionais. O Caso das Regiões
Hidrográficas Luso-Espanholas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, páginas 763 e 767.
A previsão de um organismo especializado de natureza internacional assegura a
existência de mecanismos de monitoramento da implementação das obrigações
assumidas pelos estados da bacia. O desafio consiste na necessidade de conciliar
interesses diversos dos estados679.
A criação de estruturas internacionais, compostas por representantes dos estados
da bacia – seja através de comissão ou agência -, viabiliza a gestão integrada. Não se trata
de uma novidade, no entanto. A Comissão Central para a Navegação do Reno foi uma
das pioneiras e inspirou a criação das Comissões do Danúbio, do Elba, do Oder e do
Niemen. Assegura o interesse da comunidade internacional através da participação de
estados ribeirinhos e não ribeirinhos680.
Nos Grandes Lagos – compartilhados entre Canadá e Estados Unidos da América,
a gestão conjunta foi implementada em 1909 e é operacionalizada através de uma
comissão bilateral independente, criada a partir de um tratado firmado entre as partes681.
Em que pese a existência de algumas comissões, como as mencionadas, em muitas
bacias hidrográficas essas instituições ainda precisam ser criadas ou adaptadas e, com
elas, virão dificuldades proporcionais à grandeza de sua importância, tais como o
delineamento de responsabilidades, garantia de autonomia e credibilidade perante os
atores envolvidos682.
As funções típicas das comissões da bacia consistem, primeiramente, em elaborar
um plano de gestão dos cursos de água da bacia. Em seguida, promover, coordenar,
supervisionar e controlar o planejamento de acordo como plano estabelecido, além de
investigar projetos de desenvolvimento dos recursos hídricos na bacia e assegurar a
manutenção do fluxo, compatilizando-o com os períodos de seca e cheia683.
679 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, página 419. 680 Amparo SERENO ROSADO, O Regime Jurídico das Águas Internacionais. O Caso das Regiões
Hidrográficas Luso-Espanholas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, página 86. 681 Alexandre KISS e Dinah SHELTON, International Environmental Law, Transnational Publishers, 2ª
edição, página 583. 682 Paulo Canelas de CASTRO, New age in the Luso-Spanish relations in the management of shared
basins? The challenge of cooperation in the protection and sustainable utilization of waters, in
Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 65 e seguintes, 102. 683 Greg BROWDER e Leonard ORTOLANO, The Evolution of an International Water Resources
Management Regime in the Mekong River Basin, Natural Resources Journal, Volume 40, nº 3, 2000,
páginas 499-531, 505-506.
As comissões também podem estabelecer regras claras sobre os direitos dos
usuários da bacia, monitorar o seu comportamento e aplicar sanções em casos de
descumprimento684.
As comissões devem instituir um plano de gestão dos cursos de água da bacia,
considerado o principal instrumento de planejamento estratégico e integrado da bacia
hidrográfica. Este plano busca o desenvolvimento da bacia e, para isso, deve estimar as
necessidades de curto, médio e longo prazo, além de incorporar considerações ambientais,
econômicas e sociais685. A própria elaboração de um plano de gestão e a interlocução
deste plano com os ordenamentos jurídicos nacionais constitui um desafio686.
Tais comissões, além de coordenar a implementação de tratados e convenções,
têm condições técnicas de realizar estudos sobre a bacia hidrográfica, proceder a
averiguações e resolver questões relacionadas às obrigações dos estados da bacia.
Recomenda-se a criação de grupos de experts especializados em questões técnicas
no plano da bacia. Por exemplo, grupo de gestão da bacia, grupo ecológico voltado para
a conservação, restauração e gestão sustentável dos ecossistemas aquáticos, grupo de
emissões, grupo de monitoramento, laboratório e gestão da informação, grupo de
prevenção de acidentes, grupo de proteção contra cheias e grupos de estratégia, como
ocorreu no âmbito da Comissão do Danúbio687.
A criação de comissões representa um desafio à implementação da gestão
integrada com base no critério da bacia hidrográfica, na medida em que exige a
conciliação da soberania dos estados da bacia com os princípios da utilização equitativa
e sustentável.
Duas capacidades são importantes para o desenvolvimento de estruturas
administrativas permanentes de gestão: a capacidade legal internacional de criar normas
e a capacidade institucional. Para o fortalecimento da capacidade legal, importa a
684 Elinor OSTROM, Governing the commons. The evolution of institutions for collective action,
Cambridge, Cambridge University Press, 1990, página 90. 685 Édis MILARÉ, Direito do Ambiente, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, página
654. 686 Nesse sentido caminhou a Convenção de Albufeira (artigos 2º, §1º, e 3º, §1º), conforme Paulo Canelas
de CASTRO, New age in the Luso-Spanish relations in the management of shared basins? The
challenge of cooperation in the protection and sustainable utilization of waters, in Implementing
Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation,
Lisboa, 2003, páginas 65 e seguintes, 101. 687 J. BENDOW, Challenges of Transboundary Water Management in the Danube River Basin, in
Transboundary Water Resources: Strategies for Regional Security and Ecological Stability, Hartmut
Vogtmann e Nikolai Dobrestov (editores), Earth and Environment Science, Volume 46, Rússia, 2003,
páginas 73 e seguintes, 76 e 77.
constante criação de normas a nível global. As normas existentes ainda precisam ser
complementadas e há dificuldades para a implementação daquelas já existentes688.
Em relação à capacidade institucional, as instituições devem ser capazes de
promover cooperação, bem como estabelecer um ambiente propício para a tomada de
decisões coletivas e para resolver conflitos. O fator tempo também é necessário para a
aquisição de experiência e o amadurecimento necessário para administrar situações de
crise e evitar conflitos armados689.
Em que pese o esforço de documentos internacionais para prever a criação de
comissões, a simples previsão não garante uma gestão efetiva e bem sucedida.
Primeiramente, é preciso vencer a resistência dos estados em atribuir poderes para
organismos multinacionais. Essas instituições devem transcender fronteiras estatais,
assim como o fazem os cursos de água. Para isso, necessitam de recursos financeiros e
poderes para exercer com independência as funções que lhe são conferidas. No entanto,
o receio faz com que estas instituições, na prática, não tenham a autonomia desejada. O
empoderamento exige a delegação de responsabilidades econômicas, financeiras, legais,
administrativas e técnicas, como a coleta e troca de dados técnicos e hidrológicos, a
formulação de um plano único da bacia, o controle da qualidade da água, dos usos
benéficos e de ameaças decorrentes de inundações, secas, erosão do solo, salinização,
drenagem, dragagem, controle de sedimentação690.
Receosos do empoderamento de instituições que não lhes são subordinadas, os
estados deixam de lhes destinar recursos e conferir poderes. Uma forma de exercitar o
desenvolvimento dessas instituições e ganhar a confiança dos estados é através da
atribuição de pequenos e específicos poderes a uma autoridade legítima não-estatal e a
instituições com capacidade para tomar decisões com efeitos transfronteiriços691.
É interessante que as comissões da bacia desenvolvam projetos e programas. Para
isso, devem revisar os usos da água propostos e formular acordos subsidiários sobre as
688 Kathy HOCHSTETLER, International Environmental Politics and Transboundary Waters, in
Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 437 e seguintes, 441 e 442. 689 Kathy HOCHSTETLER, International Environmental Politics and Transboundary Waters, in
Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 437 e seguintes, 442. 690 Dante A. Caponera, Principles of Water Law and Administration, National and International, 2ª
edição revista e atualizada por Marcella Nanni, Londres, UK, Taylor & Francis Group, 2007, páginas 248-
254. 691 Kathy HOCHSTETLER, International Environmental Politics and Transboundary Waters, in
Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 437 e seguintes, 443.
regras da utilização dos curso de água. Também devem formular um plano de
desenvolvimento da bacia - focado no desenvolvimento dos recursos hídricos para evitar
futuros conflitos e ao mesmo tempo preocupado com a manutenção do ambiente
ecológico da bacia692.
Além dessas funções, tarefas mais complexas também podem ser atribuídas à
comissão, como o planejamento do desenvolvimento dos recursos hídricos, ou até mesmo
a construção e a operacionalização de projetos relacionados à bacia, a exemplo do que se
verificou no Comitê da Bacia do Mekong - compartilhada entre Vietnã, Camboja,
Tailândia e Laos - e que perdurou entre os anos de 1958 e 1975, tendo sido substituída
pelo Acordo de Mekong de 1995, que criou a Comissão do Rio Mekong693.
O Comitê da Bacia do Mekong é uma instituição supranacional que possui uma
estruturação interna atípica, com diversos níveis de representação - nacionais e
internacionais -, além de um enorme corpo técnico, especializado em diversas áreas, com
capacidade de planejamento e de execução694.
Mas para que a comissão da bacia tenha atribuição de executar as medidas
planejadas, são necessários poderes específicos e maior autonomia. Essa nem sempre é a
realidade. Na bacia do Amazonas, a implementação de medidas planejadas é atribuída a
ministros dos estados signatários e a um conselho de alto escalão de representantes
diplomáticos. As entidades criadas para guiar e coordenar o planejamento estão limitadas
em poderes e a execução dos planos é relegada às instituições nacionais existentes nos
estados da bacia, o que dificulta a implementação de medidas planejadas695.
Para o sucesso do o futuro direcionamento dos problemas relacionados às bacias
internacionais, é imprescindível que as comissões incluam todos os estados da bacia, o
que não ocorreu, por exemplo, com a Comissão Técnica do Nilo, criada por um acordo
692 Greg BROWDER e Leonard ORTOLANO, The Evolution of an International Water Resources
Management Regime in the Mekong River Basin, Natural Resources Journal, Volume 40, nº 3, 2000,
páginas 499-531, 520 a 523. 693 Greg BROWDER e Leonard ORTOLANO, The Evolution of an International Water Resources
Management Regime in the Mekong River Basin, Natural Resources Journal, Volume 40, nº 3, 2000,
páginas 499-531, 505, 506 e 518. Ludwik A. TECLAFF, Evolution of the River Basin Concept in
National and International Water Law, Natural Resources Journal, 1996, Volume 36, nº 2, páginas 359
e seguintes, 386. 694 Ludwik A. TECLAFF, Evolution of the River Basin Concept in National and International Water
Law, Natural Resources Journal, 1996, Volume 36, nº 2, páginas 359 e seguintes, 386. 695 Ludwik A. TECLAFF, Evolution of the River Basin Concept in National and International Water
Law, Natural Resources Journal, 1996, Volume 36, nº 2, páginas 359 e seguintes, 386.
entre o Egito e o Sudão em 1959 e que deixou de fora outros sete estados que
compartilham a bacia do Nilo696.
Além de possuir poderes consultivos e coordenativos, executivos ou operacionais,
regulatórios e judiciais, às comissões deve ser delegada a atribuição de prevenir e decidir
disputas entre estados. Nessa linha, as comissões também podem suprir a ausência de
uma jurisdição compulsória para solução de disputas internacionais no âmbito da bacia
hidrográfica internacional. Para isso, seus técnicos devem estar capacitados para
identificar previamente potenciais focos de crise e evitar conflitos.
A solução de conflitos deve ocorrer, preferencialmente através de negociações na
instância da comissão da bacia ou outra via diplomática aceita pelas partes. Mesmo onde
não haja órgãos formalmente instituídos, recomenda-se tentar a solução de conflitos a
nível técnico (corpos ad hoc) antes de submetê-los a procedimentos formais de resolução
de disputas697. Como última ratio, a controvérsia poderá ser submetida a um tribunal
arbitral, na ausência de previsão diversa na respectiva convenção internacional da
bacia698.
696 Peter GLEICK, Water and Conflict: Fresh Water Resources and International Security,
International Security, Volume 18, nº 1, 1993, página 108. 697 Stephen C. MCCAFFREY, The law of international watercourses: non-navigational uses, Oxford
University Press, 2001, página 439. 698 Nesse sentido, é o artigo 26º da Convenção de Albufeira.
6. CONCLUSÃO
O estabelecimento de um regime global eficaz de gestão de bacias hidrográficas
internacionais requer a consolidação de princípios que visem assegurar o
desenvolvimento, a proteção e a recuperação dos aspectos quantitativo e qualitativo da
água, a preservação dos ecossistemas aquáticos e a preservação contra a poluição699.
Além da previsão de um arcabouço de princípios e normas comuns, a adoção da
bacia hidrográfica como unidade de gestão apresenta-se como o critério ideal para o
enquadramento de ações de uma política global da água, pois assegura a integração da
gestão em todo o âmbito da bacia. Para o estabelecimento de mecanismos e instrumentos
de gestão de caráter supranacional, é preciso superar fronteiras e considerar a amplitude
territorial ocupada pelos cursos de água da bacia, bem como os diferentes aspectos
hídricos regionais, incluindo desequilíbrios entre oferta e demanda700.
A gestão com base no critério da bacia hidrográfica reduz conflitos, ao permitir
que os estados da bacia tenham acesso razoável e equitativo aos seus recursos, ao mesmo
tempo em que preserva a sustentabilidade e, assim, promove o desenvolvimento
sustentável da bacia.
Apesar dos benefícios identificados, a implementação do critério da bacia
hidrográfica encontra obstáculos no princípio da soberania territorial, ainda invocado
diante de situações concretas que envolvem interesses nacionais. A evolução da doutrina
e da jurisprudência, notadamente a partir do caso Trail Smelter, demonstra que dito
princípio não ostenta natureza absoluta e cada vez mais deve ceder diante de direitos
igualmente legítimos de outros estados da bacia, que também encontram amparo no
Direito Internacional.
Outro desafio a ser superado consiste em encontrar o equilíbrio entre o princípio
do uso equitativo e razoável e o princípio do uso sustentável. Conquanto não sejam
antagônicos, a aplicação pura da equidade pode induzir à utilização da água acima dos
limites de sustentabilidade da bacia, de forma a interferir em seu desenvolvimento.
Nessa linha de raciocínio, este estudo demonstra que a cooperação permite que os
estados superem desafios relacionados à utilização dos cursos de água de bacias
699 Carlos José Saldanha MACHADO, A Gestão Francesa dos Recursos Hídricos: Descrição e Análise
dos Princípios Jurídicos, Revista Brasileira de Recursos Hídricos, Volume 8, N.o 4, 2003, páginas 31-47,
33. 700 Milton CEDRAZ, Gerenciamento dos Recursos Hídricos - um Tema em Discussão, Interfaces da
Gestão de Recursos Hídricos, Desafios da Lei de Águas de 1997, páginas 110-125, 113.
internacionais701. O sopesamento de riscos e oportunidades é fundamental para a
cooperação. Benefícios imediatos são mais atraentes do que aqueles a longo prazo. No
entanto, a oportunidade política pode ser um fator de estímulo à cooperação na gestão de
bacias hidrográficas compartilhadas, ainda que os custos econômicos sejam altos e os
benefícios sejam poucos. Uma vez tomada a decisão pela cooperação, o seu sucesso
depende do estabelecimento de soluções adequadas às necessidades concretas de cada
bacia hidrográfica702.
Embora não haja um modelo universalmente aplicável, a experiência demonstra
que o estabelecimento de sistemas de gestão descentralizados e a formalização de
instituições de governança regional com a atribuição de competências regulatórias,
executivas e de desenvolvimento a diferentes órgãos, são importantes instrumentos para
o fortalecimento da cooperação e o aprimoramento da gestão dos cursos de água
internacionais.
A formalização de tratados ou acordos internacionais, com o envolvimento de
todos os estados da bacia, reforçam e prolongam o compromisso assumido e, assim,
estabelecem mecanismos para assegurar o seu cumprimento.
Por outro lado, cresce o número de estruturas de administração em rede, às quais
são atribuídos poderes de administração direta. Funcionam através de agências de
governança global, que têm o propósito de atuação ágil e desburocratizada, embora seus
poderes ainda sejam limitados na prática. Por exemplo, são editadas normas sem a
necessidade de observância de processo legislativo. O controle fica a cargo de
mecanismos de supervisão previamente estabelecidos. Assim, conflitos são reduzidos, na
medida em que estruturas administrativas especializadas têm maior capacidade de
convergir políticas de gestão e interesses de negociadores.
Este estudo tem o intuito de estimular o debate sobre os mecanismos disponíveis
para o aprimoramento da gestão de bacias hidrográficas internacionais, não apenas com
o propósito de reduzir conflitos entre estados ribeirinhos, mas também de promover o
desenvolvimento e assegurar a proteção das bacias internacionais e, indiretamente, dos
ecossistemas que integram.
701 Ashok SUBRAMANIAN, Bridget BROWN e Aaron T. WOLF, Understanding and overcoming risks
to cooperation along transboundary rivers, Water Policy, N.o16, 2014, páginas 824-843, 829. 702 Ashok SUBRAMANIAN, Bridget BROWN e Aaron T. WOLF, Understanding and overcoming risks
to cooperation along transboundary rivers, Water Policy, N.o16, 2014, páginas 824-843, 827.
Embora desde as Conferências das Nações Unidas o tema seja debatido pela
doutrina, ainda há muito a evoluir. Na prática, as convenções internacionais caminham a
passos lentos, já que qualquer tentativa de avanço pode implicar em rejeição por parte
dos estados parte, receosos de que limitações aos usos dos cursos de água prejudiquem
interesses nacionais. Esse receio também se reflete na resistência em atribuir poderes a
organismos não estatais por medo de interferências em seus interesses soberanos.
Na jurisprudência internacional, a discussão sobre deveres e direitos relacionados
diretamente à proteção de bacias hidrográficas internacionais é igualmente tímida. No
entanto, o julgamento do caso Gabčíkovo-Nagymaros representa uma sensível evolução
da matéria e demonstra que, apesar da pressão dos estados integrantes da Corte
Internacional de Justiça, não há mais como evitá-la. É preciso enfrentá-la.
REFERÊNCIAS
DOUTRINA
1. AMADO GOMES, Carla, Justiça Ambiental, Justiça Espacial e Deveres de
Protecção do Estado, in Diálogo Ambiental, Constitucional e Internacional,
Volume 5, Jorge Miranda e Carla Amado Gomes (coordenadores), Bleine Queiroz
Caúla e Valter Moura do Carmo (organizadores), Rio de Janeiro, Editora Lumen
Juris, 2016, páginas 1-16.
2. AMADO GOMES, Carla, O Princípio da Gestão Racional dos Recursos
Hídricos como Princípio de Direito Internacional e Ambiental, Revista Esmat,
Ano 9, N.o 13, 2017, páginas 61-76.
3. AMADO GOMES, Carla, Os Bens Ambientais como Bens de Interesse
Comum da Humanidade: entre o Universalismo e a Razão de Estado, in
Direito Ambiental: o meio ambiente e desafios da contemporaneidade, Talden
Farias, Francisco Seráphico da Nóbrega Coutinho (coordenadores), Belo
Horizonte, Editora Fórum, 2010, páginas 21 e seguintes.
4. AMADO GOMES, Carla, Responsabilidade Internacional do Estado por
Dano Ecológico: uma Miragem?, in Questões de Responsabilidade
Internacional, Maria de Assunção do Vale Pereira (Coordenadora), Sociedade
Portuguesa de Direito Internacional, 2016, páginas 11-41.
5. AMADO GOMES, Carla e FIGUEIREDO DIAS, José Eduardo, Notas reflexivas
sobre sistemas de gestão ambiental, Revista do CEDOUA, nº 31, 2013/I, páginas
9 e seguintes.
6. ANDREIS, Solano, Usina Hidrelétrica Foz do Chapecó: Remanejamento da
População e Avaliação de Imóveis Rurais, Florianópolis (Brasil), 2008.
7. ARAGÃO, Alexandra, A prevenção de riscos em estados de direito ambiental
na União Europeia, Coimbra, páginas 3-4, disponível em
http://www.ces.uc.pt/aigaion/attachments/Prevencao%20de%20Riscos%20em%
20Estados%20de%20Direito%20Ambiental.pdf-
1a14060ed87cb105d54a17036cac71fa.pdf, acesso em 17/03/2016.
8. BALZACQ, Thierry, The Rise of Precaution and the Global Governance of
Risks, Political Studies Review, Volume 13, 2015, páginas 546–559.
9. BRASIL, BANCO CENTRAL DO BRASIL, Boletim Responsabilidade Social
e Ambiental do Sistema Financeiro, Ano 5, n.o 51, junho de 2010.
10. BARREIRA, Ana, Monitoring and Evaluation of the Convention Appliance:
Public Involvement and Participation, in Implementing Transboundary River
Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 451 e seguintes.
11. BOYLE, Alan, Human Rights or Environmental Rights? A Reassessment,
2007, disponível em
http://www.law.ed.ac.uk/includes/remote_people_profile/remote_staff_profile?s
q_content_src=%2BdXJsPWh0dHAlM0ElMkYlMkZ3d3cyLmxhdy5lZC5hYy5
1ayUyRmZpbGVfZG93bmxvYWQlMkZwdWJsaWNhdGlvbnMlMkYwXzEy
MjFfaHVtYW5yaWdodHNvcmVudmlyb25tZW50YWxyaWdodHNhcmVhc3N
lcy5wZGYmYWxsPTE%3D, acesso em 27/07/2016.
12. BRAGA, B. e TUCCI, C., Transboundary Water Management in the Plata
River Basin, in Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia
e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation, Lisboa, 2003, páginas 181
e seguintes.
13. BROWDER, Greg e ORTOLANO, Leonard, The Evolution of an International
Water Resources Management Regime in the Mekong River Basin, Natural
Resources Journal, Volume 40, nº 3, University of New Mexico School of Law,
2000, páginas 499-531.
14. BROWNLIE, Ian, Principles of Public International Law, Oxford University
Press, 6ª edição, 2003.
15. BRUNÉE, Jutta, The Challenge to International Law: Water Defying
Sovereignty or Sovereignty Defying Reality?, in Nação e Defesa, Instituto da
Defesa Nacional, nº 86, 1998, 2ª série, páginas 51 e seguintes.
16. BRUNÉE, Jutta, Law and Politics in the Nile Basin, 2008.
17. CAROLAN, Michael S., The Precautionary Principle and Traditional Risk
Assessment, Rethinking How We Assess and Mitigate Environmental
Threats, Organization & Environment, Volume 20, Nº 1, 2007, páginas 5-24.
18. CARVALHO, Renata Patrícia de, Impacto Social Reduzido: Ações
Viabilizadoras para um Plano de Assistência Psicossocial em Comunidades
Diretamente Afetadas por Hidrelétricas, Rio de Janeiro, 2007.
19. CASSESE, Sabino, Global Administrative Law: An Introduction, 2005.
20. CASTILLO, Nadia S e BIAN, Yongmin, China's Obligation to Conduct
Transboundary Environmental Impact Assessment (TEIA) in Utilizing Its
Shared Water Resources, Natural Resources Journal, Volume 55, 2015, páginas
105 e seguintes, disponível em: http://digitalrepository.unm.edu/nrj/vol55/iss1/5,
acesso em 22/09/2017.
21. CASTRO, Douglas de, The Shared Management of the Guarani Aquifer: The
South American Exemple in Global Governance over Water Resources,
Yearbook of International Environmental Law, Volume 22, Oxford University
Press, 2011, páginas 140-157.
22. CASTRO, Paulo Canelas de, New age in the Luso-Spanish relations in the
management of shared basins? The challenge of cooperation in the protection
and sustainable utilization of waters, in Implementing Transboundary River
Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 65 e seguintes.
23. CASTRO, Paulo Canelas de, Sinais de (nova) Modernidade no Direito
Internacional da Água, in Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86,
1998, 2ª série, páginas 101 e seguintes.
24. CASTRO, Paulo Canelas de, The Issue of Transboundary Rivers in Southern
Africa, in Implementing Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan
Vlachos (editores), Luso-American Foundation, Lisboa, 2003, páginas 209 e
seguintes.
25. CAUBET, Christian G., A Água Doce nas Relações Internacionais, Barueri/SP,
Editora Manole, 2006.
26. CEDRAZ, Milton, Gerenciamento dos Recursos Hídricos - um Tema em
Discussão, Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos, Desafios da Lei de Águas
de 1997, páginas 110-125.
27. CIBIM, Juliana Cassano, O desafio da governança nas bacias hidrográficas
transfronteiriças internacionais: um olhar sobre a Bacia do Rio da Prata,
São Paulo, 2012.
28. COELHO, Mario Baptista, The international scene and geopolitical
challenges: a new agenda, in Shared Water Systems and Transboundary Issues
with special emphasis on the Iberian Peninsula, Evan Vlachos e Francisco Nunes
Correia (coordenadores), Luso-American Foundation, 1999, páginas 67 e
seguintes.
29. CRAIK, Neil, The International Law of Environmental Impact Assessment,
Process, Substance and Integration, Cambridge, Cambridge University Press,
2008.
30. DELLAPENNA, Joseph W., The costumary international Law of
internationally shared fresh Waters, in Shared Water Systems and
Transboundary Issues with special emphasis on the Iberian Peninsula, Evan
Vlachos e Francisco Nunes Correia (coordenadores), Luso-American Foundation,
1999, páginas 79 e seguintes.
31. DELLAPENNA, Joseph W., Rivers as Legal Structures: The Examples of the
Jordan and the Nile, Natural Resources Journal, Volume 36, 1996, páginas 217-
250.
32. DIETZ, Thomas, OSTROM, Elinor e STERN, Paul C., The Struggle to Govern
the Commons, 2003, páginas 14 e 15, disponível em
http://stephenschneider.stanford.edu/Publications/PDF_Papers/DietzOstromSter
n.pdf, acesso em 24/02/2016.
33. DORE, John, LEBEL, Louis, e MOLLE, Francois, A framework for analysing
transboundary water governance complexes, illustrated in the Mekong
Region, Journal of Hydrology, 466–467, 2012, páginas 23–36, disponível em
www.elsevier.com/locate/jhydrol, acesso em 27/04/2017.
34. DOVERS, Stephen, Precaution, Prediction, Proof, and Policy Assessment,
New Solutions, Volume 12, Nº 3, 2002, páginas 281-296.
35. DUARTE, Francisco de Abreu, À descoberta do fundamento constitucional do
direito administrativo global, Revista Eletrônica de Direito Público do Instituto
de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, nº 1, 2014.
36. FISHER, Douglas, The Law and governance of water resources, The
challenge of sustainability, Cheltenham, UK, Edwar Elgar Publishing Limited,
2009.
37. FREESTONE, David e SALMAN, Salman M.A., Ocean and Freshwater
Resources, in The Oxford Handbook of International Environmental Law, Daniel
Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey (editores), 2008, páginas 338 e seguintes.
38. FREESTONE, David e HEY, Ellen, Implementando o Princípio da Precaução:
Desafios e Oportunidades, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e
Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e
Escola Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 202 e seguintes.
39. FREITAS, Juarez, Sustentabilidade: direito ao futuro, Belo Horizonte, Editora
Fórum, 2011.
40. GADENS, Letícia Nerone, HARDT, Letícia Peret Antunes e FREY, Klaus, Das
Práticas de Gestão de Grandes Projetos Urbanos, Saúde e Sociedade, Volume
21, Supl. 3, 2012, páginas 21 e seguintes.
41. GANOULIS, Jacques, The International Network of Water-Environment
Centres for the Balkans (INWEB), in Implementing Transboundary River
Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 197 e seguintes.
42. GARRIDO, Alberto, The Role of the New Water Economy, in Implementing
Transboundary River Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores),
Luso-American Foundation, Lisboa, 2003, páginas 421 e seguintes.
43. GIORDANO, Meredith A. e WOLF, Aaron T., Sharing waters: Post-Rio
internacional water management, Natural Resources Forum 27, 2003, páginas
163-171, disponível em
http://www.transboundarywaters.orst.edu/publications/abst_docs/narf_051_Gior
dano.pdf, acesso em 13/01/2016.
44. GLEICK, Peter, Water and Conflict: Fresh Water Resources and
International Security, International Security, Volume 18, nº 1, 1993, páginas
79 a 112.
45. GLEICK, Peter e HEBERGER, Matthew, Water and Conflict: Events, Trends,
and Analysis (2011–2012), Pacific Institute, Water Brief 3, disponível em
http://worldwater.org/wp-content/uploads/2013/07/www8-water-conflict-events-
trends-analysis.pdf, acesso em 21/11/2016.
46. GODARD, Olivier, O princípio da precaução frente ao dilema da tradução
jurídica das demandas sociais: Lições de método decorrentes do caso da vaca
louca, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros
Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do
Ministério Público da União, 2004, páginas 155 e seguintes.
47. GONÇALVES HENRIQUES, António, O Direito Internacional das Águas e a
Convenção de Albufeira de 1998 sobre as Bacias Hidrográficas Luso-
Espanholas.
48. GONÇALVES HENRIQUES, António, The Portuguese-Spanish Convention
on Shared River Basins: A Framework for Co-operation for Protection and
Sustainable Use of Waters, in Implementing Transboundary River Conventions,
Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation, Lisboa,
2003, Páginas 251 e seguintes.
49. GOURGOURINIS, Anastasios, Delineating the Normativity of Equity in
International Law, International Community Law Review, n.o 11, 2009, páginas
327-347.
50. GUEDES, Armando Marques, O Conselho do Ártico, JanusOnLine, 2015-2016,
páginas 160-161.
51. HERMITTE, Marie-Angèle e DAVID, Virginie, Avaliação dos riscos e
princípio da precaução, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana
Flávia Barros Platiau (Org.), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior
do Ministério Público da União, 2004, páginas 101 e seguintes.
52. HOCHSTETLER, Kathy, International Environmental Politics and
Transboundary Waters, in Implementing Transboundary River Conventions,
Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation, Lisboa,
2003, páginas 437 e seguintes.
53. HUTEN, Nicolas, A Carta Francesa do Meio Ambiente, in Direito Público Sem
Fronteiras,Vasco Pereira da Silva e Ingo Wolfang Sarlet (coordenadores),
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, Lisboa, 2011, páginas 887 e seguintes.
54. JEKEL, H., Sustainable Water Management in Europe – The Water
Framework Directive, in Transboundary Water Resources: Strategies for
Regional Security and Ecological Stability, Hartmut Vogtmann e Nikolai
Dobrestov (editores), Earth and Environment Science, Volume 46, Rússia, 2003,
páginas 121 e seguintes.
55. KINZELBACH, R., Nature Conservation And Sustainable Management Of
Biodiversity, in Transboundary Water Resources: Strategies for Regional
Security and Ecological Stability, Hartmut Vogtmann e Nikolai Dobrestov
(editores), Earth and Environment Science, Volume 46, Rússia, 2003, páginas 109
e seguintes.
56. KISS, Alexandre, Direito Internacional do Ambiente, Centro de Estudos
Judiciários, Lisboa, 1996.
57. KISS, Alexandre, Os Direitos e Interesses das Gerações Futuras e o Princípio
da Precaução, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia
Barros Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola
Superior do Ministério Público da União, 2004, páginas 12 e seguintes.
58. KISS, Alexandre e BEURIER, Jean-Pierre, Droit International de
L´environnement, Editora Pedone, 2ª edição, Paris, 2000.
59. KISS, Alexandre e SHELTON, Dinah, International Environmental Law,
Transnational Publishers, 2ª edição.
60. KISS, Alexandre e SHELTON, Dinah, Judicial handbook on Environmental
Law, United Nations Environment Programme, 2005.
61. KRAEMER, Andreas, Governing Water, International Law Development,
The Principle of Subsidiarity, in Making the Passage through the 21st Century,
Water as a Catalyst for Change, Charles Buchanan, Paula Vincente e Evan
Vlachos (editores), Lisboa, 2009, páginas 233 e seguintes.
62. KRAEMER, Andreas e KAMPA, Eleftheria, The Rhine – A History and a
Model in Regime Development, in Implementing Transboundary River
Conventions, Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American
Foundation, Lisboa, 2003, páginas 157 e seguintes.
63. KRÄMER, Ludwig, Environmental Law, Londres, 2000, 4ª edição.
64. LAMMERS, J. G., Pollution of International Watercourses, A Search for
Substantive Rules and Principles of Law, Holanda, 1984.
65. LANNA, Antônio Eduardo, A Inserção da Gestão das Águas na Gestão
Ambiental, Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos, Desafios da Lei de Águas
de 1997, páginas 75-108.
66. LEME MACHADO, Paulo Affonso, Princípio da Precaução no Direito
Brasileiro e no Direito Internacional e Comparado, in Princípio da Precaução,
Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo
Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União,
2004, páginas 336 e seguintes.
67. LIMA VIANA, Romilda de Souza, O Projeto UHE Cachoeira da Providência:
uma abordagem etnográfica dos efeitos sobre a população local, Viçosa, 2000.
68. LLAMAS, Ramón, New and old paradigms on water management and
planning in Spain, in Shared Water Systems and Transboundary Issues with
special emphasis on the Iberian Peninsula, Coordenadores Evan Vlachos e
Francisco Nunes Correia, Luso-American Foundation, 1999, páginas 219 e
seguintes.
69. LOUKA, Elli, Water Law & Policy, Governance Without Frontiers, Oxford
University Press, 2008.
70. MACHADO, Carlos José Saldanha, A Gestão Francesa dos Recursos Hídricos:
Descrição e Análise dos Princípios Jurídicos, Revista Brasileira de Recursos
Hídricos, Volume 8, N.o 4, 2003, páginas 31-47.
71. MAIA, Rodrigo, IWRM and IRBM Approaches: International Rivers, in
Making the Passage through the 21st Century, Water as a Catalyst for Change,
Charles Buchanan, Paula Vincente e Evan Vlachos (editores), Lisboa, 2009,
páginas 267 e seguintes.
72. MAJZOUB, Tarek e QUILLERÉ-MAJZOUB, Fabienne, Contribution to the
Operationalization of the Principle of Equitable and Reasonable Utilization
of International Watercourses through Jurimetrics, Revue Hellénique de
Droit Internactional, Sakkoulas Publications, Atenas, 2012, páginas 371 e
seguintes.
73. MAGSIG, Bjorn-Oliver, International Water Law and the Quest for Common
Security, Earthscan Studies in Water Resource Management, Routedge, 2015.
74. MCCAFFREY, Stephen C., Second Report on the Law of the Non-
Navigational Uses of International Watercourses, Yearbook of the
International Law Commission, 1986, vol. II, páginas 87 e seguintes.
75. MCCAFFREY, Stephen C., International Organizations and the Holistic
Approach to Water Problems, Natural Resources Journal, 1991, Volume 31,
páginas 139 e seguintes, disponível em
http://digitalrepository.unm.edu/nrj/vol31/iss1/8, acesso em 19/07/2017.
76. MCCAFFREY, Stephen C., International Water Law For The 21st Century:
The Contribution of the U.N. Convention, 1999, disponível em
http://opensiuc.lib.siu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1169&context=jcwre,
acesso em 19/2/2017, páginas 11-19.
77. MCCAFFREY, Stephen C., The law of international watercourses: non-
navigational uses, Oxford University Press, 2001.
78. MCCAFFREY, Stephen C., Politics And Sovereignty Over Transboundary
Groundwater, 2008.
79. MENDES, Joana, Direito Administrativo da Água, in Tratado de Direito
Administrativo Especial, Volume II, Paulo Otero e Pedro Gonçalves
(coordenadores), Editora Almedina, 2009, páginas 12 a 131.
80. MILARÉ, Édis, Direito do Ambiente, 4ª edição, São Paulo, Editora Revista dos
Tribunais, 2005.
81. MOURA, Rosa e CARDOSO, Nelson Ari, Mobilidade Transfronteiriça: Entre
o Diverso e o Efêmero, in Cidade e Movimento: mobilidades e interações no
desenvolvimento urbano, Renato Balbim, Cleandro Krause e Clarisse Cunha
Linke (organizadores), Brasília, 2016, páginas 205 e seguintes, disponível em
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id
=28489, acesso em 27/04/2017.
82. NEVES SANTOS, Sinval, Águas Transfronteiriças Superficiais: o caso da
bacia do Rio Danúbio, São Paulo, 2005.
83. NEVES SANTOS, Sinval, O compartilhamento das águas transfronteiriças
superficiais: um subsistema da ordem ambiental internacional, Trabalho
apresentado no II Encontro da ANPPAS, Indaiatuba/SP, 2004, disponível em
http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT13/sinval_neves.pdf
, acesso em 01/11/2016.
84. NOBREGA, Renata da Silva, Os Atingidos por Barragem: Refugiados de uma
Guerra Desconhecida, Revista Inter. Mob. Hum., Ano XIX, Nº 36, Brasília,
2011, páginas 125-143.
85. NOSCHANG, Patrícia Grazziotin, e SCHONARDIE, Elenise Felzke, Soberania
Sobre os Recursos Naturais Transfronteiriços, Revista Jurídica Luso-
Brasiliera, Ano 1, 2015, nº 4, disponível em
http://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/rjlb/2015/4/2015_04_1237_1267.pdf,
acesso em 05/01/2016.
86. NUNES CORREIA, Francisco, Closing Remarks, Water as a Catalyst for
Change, in Making the Passage through the 21st Century, Water as a Catalyst for
Change, Charles Buchanan, Paula Vincente e Evan Vlachos (editores), Lisboa,
2009, páginas 375 e seguintes.
87. OLIVEIRA, Celso Maran de, A Política Brasileira de Recursos Hídricos e as
Agências de Água, Temas de Intergeração, Editora Almedina, Coimbra, 2008,
páginas 135 e seguintes.
88. O’RIORDAN, Timothy e JORDAN, Andrew, The Precautionary Principle,
Science, Politics and Ethics, 1995, páginas 1 a 26.
89. OSTROM, Elinor, Governing the commons. The evolution of institutions for
collective action, Cambridge, Cambridge University Press, 1990.
90. PEEL, Jacqueline, Risk Regulation Under The WTO SPS Agreement: Science
as an International Normative Yardstick?, Nova Iorque, 2004.
91. PEREIRA DA SILVA, Vasco, The Aahrus Convention: a “bridge” to a better
environment, Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, nº 18-19, Dez-Jun
2003, páginas 133 a 140.
92. PEREIRA DA SILVA, Vasco, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do
Ambiente, Editora Almedina, Coimbra, 2005, 2ª impressão, páginas 65 a 73.
93. PONTES, Vitória, O princípio da utilização equitativa e razoável e a sua
aplicação na gestão dos cursos de água internacionais, in Temas de Direito da
Água, João Cunha Miranda, Rui Cunha Marques, Ana Luísa Guimarães e Mark
Kirkby (coordenadores), Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, Lisboa, 2017,
páginas 182 e seguintes.
94. PUREZA, José Manuel e LOPES, Paula Duarte, A Água, entre a Soberania e o
interesse comum, in Nação e Defesa, Instituto da Defesa Nacional, nº 86, 1998,
2ª série, páginas 85 e seguintes.
95. RAMOS, Érika Pires, Refugiados ambientais: em busca de reconhecimento
pelo Direito Internacional, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
96. RIBEIRO, Wagner Costa. Desenvolvimento sustentável e segurança ambiental
global. Biblio 3W - Revista Bibliográfica de Geografia y Ciencias Sociales. [On
line]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 14 de septiembre de 2001(b), nº 312.
<http\\www.ub.es/geocrit/b3w-312.htm>. [20 de setembro de 2002].
97. RICCI, Paolo F, COX JR, Louis A e MACDONALD, Thomas R, Precautionary
principles: a jurisdiction-free framework for decision-making under risk,
Human & Experimental Toxicology, Volume 23, 2004, páginas 579-600.
98. SANDS, Philippe, O Princípio da Precaução, in Princípio da Precaução,
Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores), Belo
Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União,
2004, páginas 40 e seguintes.
99. SANDS, Philippe e PEEL, Jacqueline, Principles of International
Environmental Law, 3.ª edição, Cambridge, Cambridge University Press, 2012,
disponível em
https://books.google.pt/books?id=uHzFRub4KrAC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false, acesso em
17/02/2016.
100. SARAIVA, Maria da Graça, Gestão ambiental de sistemas fluviais,
aplicação à bacia hidrográfica do Rio Sado, Ilídio Moreira, Maria da Graça
Saraiva e Francisco Nunes Correia (editores), ISAPress, 2004, páginas 23-40.
101. SARAIVA, Rute e ALEIXO, Nuno, Energia e desenvolvimento
sustentado. O caso das energias renováveis e da eólica em especial em
Portugal, in Cadernos O Direito, nº 3, 2008, páginas 215-277.
102. SERENO ROSADO, Amparo, O Regime Jurídico das Águas
Internacionais. O Caso das Regiões Hidrográficas Luso-Espanholas,
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012.
103. SERRA, Pedro Cunha e MENDONÇA, Carlos, Water Legislation and
Institutional Models, in Implementing Transboundary River Conventions,
Rodrigo Maia e Evan Vlachos (editores), Luso-American Foundation, Lisboa,
2003, páginas 407 e seguintes.
104. SMITH, Mark e CLAUSEN, Torkil Jonch, Integrated Water Resource
Management, A discussion Paper of the World Water Council Task Force on
IWRM, World Water Council, Abril de 2015, página 16, disponível em
http://www.worldwatercouncil.org/fileadmin/world_water_council/documents/p
ublications/forum_documents/WWC_IWRM_DiscussionPaper.pdf, acesso em
23/02/2016.
105. SOLIMAN, Ghada, SOUSSA, Hoda e EL-SAYED, Sherif, Assessment of
Grand Ethiopian Renaissance Dam impacts using Decision Support System,
Journal of Computer Engineering, Volume 18, Issue 5, 2016, páginas 08-18.
106. SOUZA, Matilde de, VELOSO, Franciely Torrente, SANTOS, Letícia
Britto dos e CAEIRO, Rebeca Bernardo da Silva, Governança de recursos
comuns: bacias hidrográficas transfronteiriças, in Rev. Bras. Polít. Int. 57 (2),
2014, páginas 152-175.
107. STIGLITZ, Joseph E., SEN, Amartya e FITOUSSI, Jean-Paul, Report by
the Commission on the Measurement of Economic Performance and Social
Progress, 2009, disponível em: www.stiglitz-sen-fitoussi.fr, acesso em
15/11/2017.
108. SUBRAMANIAN A., Ashok, BROWNB, Bridget e WOLF, Aaron T.,
Understanding and overcoming risks to cooperation along transboundary
rivers, Water Policy, N.o16, 2014, páginas 824-843.
109. SWANSON, Aurora, The Grand Ethiopian Renaissance Dam:
Sustainable Development or Not?, Arlington, 2014, disponível em
www.cligs.vt.edu, acesso em 27/04/2017.
110. TANZI, Attila, The Economic Commission for Europe, Water
Convention and the United Nations, Watercourses Convention: An analysis
of their harmonized contribution to international water Law, Water Series, nº
6, 2015.
111. TONELLO, Marilaine e LIMA VIANA, Romilda de Souza, Projeto
hidrelétrico Salto Grande – PR impactos sobre a população local, in Revista
Faz Ciência, Volume 12, Nº 15, 2010, páginas 161-184.
112. URUENA, Reni, The Boundaries of the Law of International
Watercourses, 2008.
113. VARELLA, Marcelo Dias, Variações sobre um mesmo tema: O
exemplo da implementação do princípio da precaução pela CIJ, OMC, CJCE
e EUA, in Princípio da Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros
Platiau (organizadores), Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do
Ministério Público da União, 2004, páginas 268 e seguintes.
114. VAN RIJSWICK, H. F. M. W., Moving Water and the Law on the
Distribution of Water Rights and Water Duties within River Basins in
European and Dutch Water Law, Europa Law Publishing, Groningen, 2008.
115. VINOKUROV, YU. I., ZHERELINA, I.V. e ZANOSOVA, V.I.,
Transboundary Water Problems in the Basin of the Irtysh River, in
Transboundary Water Resources: Strategies for Regional Security and
Ecological Stability, Hartmut Vogtmann e Nikolai Dobrestov (editores), Earth
and Environment Science, Volume 46, Rússia, 2003, páginas 83 a 92.
116. WEISS, Edith Brown, In Fairness to Future Generations and
Sustainable Development, American University International Law Review,
Volume 8, Issue 1, Article 2, 1992, páginas 19-26.
117. WIENER, Jonathan B., Precaution, in The Oxford Handbook of
International Environmental Law, Daniel Bodansky, Jutta Brunnée e Ellen Hey
(editores), 2008, páginas 598 e seguintes.
118. WOLF, Aaron T., Conflict and cooperation along international
waterways, Water Policy, Volume 1, Elsevier, 1998, páginas 251-265.
119. WOLF, Aaron T., NATHARIUS, Jeffrey A. , DANIELSON, Jeffrey J.,
WARD, Brian S. e PENDER, Jan K., International River Basins of the World,
Water Resources Development, Vol. 15, N.o 4, 1999, páginas 387-427.
120. WOLFRUM, Rüdiger, O Princípio da Precaução, in Princípio da
Precaução, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau (organizadores),
Belo Horizonte, Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da
União, 2004, páginas 24 e seguintes.
DOCUMENTOS DE DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO
1. Agenda 21, disponível em http://bd.camara.gov.br.
2. Convenção sobre Acesso à Informação, Participação do Público no Processo de
Tomada de Decisão e Acesso à Justiça em Matéria de Ambiente, assinada em
Aarhus, na Dinamarca, em 25 de Junho de 1998.
1. Convenção sobre a Avaliação dos Impactes Ambientais num Contexto
Transfronteiriço, assinada em Espoo, na Finlândia, em 25 de Fevereiro de 1991.
2. Convenção sobre a Instalação de Forças Hidráulicas de Interesse de Vários
Estados, de 1923.
3. Convenção do Rio Danúbio, de 1994.
1. Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente, de 1972.
2. Declaração de Wingspread, de 1998.
3. Declaration of Policy on Prevention and Control of Water Pollution, including
Transboundary Pollution, Genebra, 1980, disponível em
http://www.fao.org/docrep/005/w9549e/w9549e05.htm, acesso em 21/10/2016.
4. Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, 1992.
5. Convenção da Diversidade Biológica, 1992.
1. Protocolo de Proteção do Tratado da Antártica, de 1991.
2. Regimento de Seul sobre águas subterrâneas internacionais, de 1986.
3. Regras de Berlim, de 1994.
4. Regras de Helsinque sobre a utilização das águas dos rios, de 1966.
5. Resolução de Atenas sobre a Poluição de Rios e Lagos e Direito Internacional, de
1979.
6. Resolução de Drubovnik, de 1956.
7. Resolução de Madri de 1911, sobre a Regulamentação Internacional quanto a
Utilização de Cursos de Água Internacionais.
8. Resolução de Salzburg de 1961, sobre o Uso de Águas Internacionais Não-
Marítimas.
9. Tratado de Bayona, de 1866.
10. Tratado de Versalhes, de 1919.
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
1. Diretiva 2000/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro.
JURISPRUDÊNCIA
CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA
1. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso do Rio Mosa, Holanda versus
Bélgica, 28 de junho de 1937, disponível em http://www.icj-
cij.org/pcij/serie_AB/AB_70/01_Meuse_Arret.pdf, acesso em 05/01/2016.
2. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso do Canal Corfu, Reino Unido
versus Albânia, 1949, disponível em http://www.icj-
cij.org/docket/files/1/1645.pdf, acesso em 26/02/2017.
3. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso dos Testes Nucleares, Nova
Zelândia versus França, 20 de Dezembro de 1974, disponível em:
http://www.icjcij.org, acesso em 29/08/2017.
4. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso Gabčíkovo-Nagymaros,
Hungria versus Eslováquia, 25 de setembro de 1997, disponível em:
http://www.icjcij.org, acesso em 29/08/2017.
5. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso Pulp Mills, Argentina versus
Uruguai, 20 de Abril de 2010, disponível em: http://www.icjcij.org, acesso em
27/08/2017.
6. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Caso da Pulverização Aérea de
Herbicidas, Equador versus Colômbia, 13 de setembro de 2013, disponível em
http://www.icj-cij.org/en/case/138, acesso em 03/12/2017.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
1. UNIÃO EUROPEIA, TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Processo C-36/98, disponível
em
http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=46018&pageIndex=0&do
clang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=261637, acesso em
19/02/2017
2. UNIÃO EUROPEIA, TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Processo C-180/96,
disponível em
http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?text=&docid=43818&pageIndex=0&do
clang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=62390, acesso em
23/04/2017.
TRIBUNAL INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR
1. TRIBUNAL INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR, Southern
Bluefin Tuna Cases, Nova Zelândia versus Japão e Austrália versus Japão,
27 de Agosto de 1999, disponível em
https://www.itlos.org/fileadmin/itlos/documents/cases/case_no_3_4/Order.27
.08.99.E.pdf, acesso em 21/04/2017.
2. TRIBUNAL INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR, Caso n.o 17,
Advisory Opinion, 14, 1 de Fevereiro de 2011, disponível em
https://www.itlos.org/en/cases/list-of-cases/case-no-17/, acesso em
20/04/2017.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO
1. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO, Caso Austrália-Salmão,
WT/DS18/AB/R, Canadá versus Austrália, 20 de Outubro de 1998, disponível
em https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds18_e.htm,
acesso em 25/04/2017.
2. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO, Caso Japão,
WT/DS76/AB/R, Japão versus Estados Unidos da América, 22 de Fevereiro
de 1999, disponível em
https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/542d.pdf, acesso em
25/04/2017.
SITES CONSULTADOS
1. AFRICAN DEVELOPMENT BANK GROUP, Environmental and Social
Impact Assessment, GIBE III Hydroelectric Power Project, Ethiopia, 2009.
2. http://www.iksr.org/fileadmin/user_upload/Dokumente_en/convention_on_tthe_
protection_of__the_rhine.pdf, acesso em 01/08/2016.
3. GLOBAL WATER PARTNERSHIP, http://www.gwp.org/Global/GWP-
SAm_Files/Publicaciones/Sobre%20GIRH/Manual-Cap-Net-en-portugues-
Marzo-2008.pdf e http://www.gwp.org/en/ToolBox/ABOUT/IWRM-Plans/,
acesso em 21/07/2016;
4. Catalyzing Change: Handbook for Developing IWRM and Water Efficiency
Strategies, nº 1, 2004, disponível em
http://www.gwp.org/Global/ToolBox/Publications/Catalyzing%20Change%20H
andbook/01%20Catalyzing%20Change.%20Handbook%20for%20developing%
20IWRM%20and%20water%20efficiency%20strategies%20(2004)%20English.
pdf, acesso em 22/07/2016.
5. International Comission for the Protection of the Danube River,
https://www.icpdr.org/main/icpdr/danube-river-protection-convention, acesso
em 25/07/2016.
6. INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION, Fourth Report, Berlin Conference,
2004.
7. https://www.apambiente.pt/_zdata/Politicas/Assuntos%20Internacionais/Conven
o%20de%20Espoo_lm.pdf, acesso em 01/08/2017.
8. NAÇÕES UNIDAS, Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa,
Transboundary Water Cooperation in the Newly Independent States,
Moscou-Genebra, 2003.
9. NAÇÕES UNIDAS, Protection Of The Quality And Supply Of Freshwater
Resources: Application Of Integrated Approaches To The Development,
Management And Use Of Water Resources.
10. NAÇÕES UNIDAS, United Nations World Water Assessment Programme,
Relatório mundial das Nações Unidas sobre desenvolvimento dos recursos
hídricos 2018: soluções baseadas na natureza para a gestão da água, Paris,
2018.
11. ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO
ECONÔMICO, Princípios OCDE para a Governança da Água, disponível em
http://www.oecd.org/governance/regional-policy/OECD-Principles-Water-
Governance-PT.pdf, acesso em 11/01/2016.
12. UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL
ORGANIZATION, Water for people, water for life: UN World Water
Development Report, Paris, 2003.
13. https://www.geopoliticalmonitor.com/water-conflict-egypt-and-the-great-
ethiopian-renaissance-dam/, acesso em 24/09/2017.