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99 Cristiana Bastos* Análise Social, vol. XLII (182), 2007, 99-122 Medicina, império e processos locais em Goa, século XIX** MEDICINA E IMPÉRIO Estudando a implantação e consolidação da medicina tropical em contex- tos da colonização europeia nos séculos XIX e XX, a linha de análise «Medicina e Império» (Arnold, 1988; Macleod e Lewis, 1988) marcou uma inflexão crítica na história da medicina. A instrumentalização da medicina para pro- pósitos imperiais, impondo medidas sanitárias destinadas a ordenar, discipli- nar e domesticar os comportamentos e crenças das populações subjugadas, acrescentou-se, quando não se sobrepôs, às narrativas de feitos redentores e descobertas médicas, às biografias heróicas de pioneiros e enumeração dos efeitos da expansão europeia no controle ou na difusão de doenças. Mais que enumerar os antecedentes desta linha — em que sobressai Tools of Empire, de Headrick (1981), e se pressente o efeito indirecto da formulação de «biopoder» por Foucault (1976) — interessa-nos sublinhar que esta inflexão pode constituir uma abertura para uma agenda comum e um objecto partilhado entre estudos históricos e estudos antropológicos. Tradicionalmente, a história ocupava-se da administração colonial e da institucionalização da medicina europeia, enquanto a antropologia se dedicava aos povos colonizados e práticas médicas nativas, excluídas, e de tradição * Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. ** Os dados em análise resultam dos projectos de investigação «Medicina Tropical e Administração Colonial: Um Estudo do Império a partir da Escola Médico-Cirúrgica de Nova Goa» (PLUS/1999/ANT/15157), 2001-2003, e «Medicina Colonial, Estruturas do Império e Vidas Pós-Coloniais em Português» (POCTI/41075/ANT/2001), 2003-2005, parcialmente financiado com fundos FEDER.

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Cristiana Bastos* Análise Social, vol. XLII (182), 2007, 99-122

Medicina, império e processos locais em Goa,século XIX**

MEDICINA E IMPÉRIO

Estudando a implantação e consolidação da medicina tropical em contex-tos da colonização europeia nos séculos XIX e XX, a linha de análise «Medicinae Império» (Arnold, 1988; Macleod e Lewis, 1988) marcou uma inflexãocrítica na história da medicina. A instrumentalização da medicina para pro-pósitos imperiais, impondo medidas sanitárias destinadas a ordenar, discipli-nar e domesticar os comportamentos e crenças das populações subjugadas,acrescentou-se, quando não se sobrepôs, às narrativas de feitos redentorese descobertas médicas, às biografias heróicas de pioneiros e enumeração dosefeitos da expansão europeia no controle ou na difusão de doenças.

Mais que enumerar os antecedentes desta linha — em que sobressaiTools of Empire, de Headrick (1981), e se pressente o efeito indirecto daformulação de «biopoder» por Foucault (1976) — interessa-nos sublinharque esta inflexão pode constituir uma abertura para uma agenda comum eum objecto partilhado entre estudos históricos e estudos antropológicos.Tradicionalmente, a história ocupava-se da administração colonial e dainstitucionalização da medicina europeia, enquanto a antropologia se dedicavaaos povos colonizados e práticas médicas nativas, excluídas, e de tradição

* Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.** Os dados em análise resultam dos projectos de investigação «Medicina Tropical e

Administração Colonial: Um Estudo do Império a partir da Escola Médico-Cirúrgica de NovaGoa» (PLUS/1999/ANT/15157), 2001-2003, e «Medicina Colonial, Estruturas do Império eVidas Pós-Coloniais em Português» (POCTI/41075/ANT/2001), 2003-2005, parcialmentefinanciado com fundos FEDER.

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oral; a linha de «Medicina e Império» veio obrigar a que se olhasse para osdois lados do binómio, algo que a antropologia vinha também a promovercom a abordagem aos arquivos coloniais (e. g., Comaroff e Comaroff, 1991,Stoler, 1995 e 2003, e Vaughan, 1991).

Uma agenda comum implica ir além de pequenas incursões ao territóriovizinho, traduzidas numa história com mais atenção ao lado colonizado e aosenredos apagados pela narrativa dominante, ou numa antropologia que tomeem conta os processos de dominação imperial. O estudo da implantação damedicina tropical no contexto do império convida a combinar história eantropologia de forma mais sistemática e requer estudos empíricos detalha-dos influenciados por ambas, tal como tem vindo a ser almejado em algunsdos estudos recentes (e. g., Bado, 1996, Bala, 1991, Cranefield, 1991,Cunningham e Andrews, 1997, Curtin, 1998, Farley, 1991, Harrison, 1994,Lyons, 1992, Manderson, 1996, Michaels, 2003, e Monnais-Rousselout,1999) que procuram caracterizar as particularidades de cada «encontro»entre a medicina ocidental e as práticas e saberes indígenas. Esses «encon-tros» têm assumido formas múltiplas: por vezes de esmagamento, exclusãoe perseguição, outras vezes de integração, hibridação, empréstimo mútuo,quase sempre combinação de várias modalidades. Na Índia britânica, porexemplo, a historiografia contemporânea tem-nos mostrado que a atitudeimperial relativamente às práticas médicas locais variou entre um momentoestratégico de promoção da diversidade, com escolas de práticas terapêuticasnativas nos anos 1820, e um momento de apogeu imperial com imposiçãomonolítica da medicina europeia (Arnold, 2000). Mas nem esse quadro éperene: obras ainda mais recentes (Batthacharya, Harrison e Worboys,2005), ampliando e diversificando as fontes de referência, têm mostrado anecessidade de questionar o pressuposto de homogeneidade na administraçãoimperial e sugerido que variavam, não só no tempo como no espaço, asrelações de força dos actores sociais envolvidos.

A ÍNDIA COLONIAL PORTUGUESA

Impõe-se agora perguntar o que sabemos sobre esses processos e par-ticularidades no contexto da colonização portuguesa, sobretudo na Índia, quese destaca não apenas por convidar à comparação e contraste com o Raj,mas também porque ali sobressai uma instituição tão importante e poucoconhecida como a Escola Médico-Cirúrgica de Nova Goa.

O facto é que sabemos pouquíssimo, para além de notas e memóriasmuitas vezes desenvolvidas no contexto imperial-apologético (Correia, 1917e 1947; Costa, 1943; Escola, 1955; Figueiredo, 1960; Gracias, 1914) ou nocontexto anticolonial e com um espectro temporal demasiado amplo(Gracias, 1994). A literatura crítica sobre Medicina e Império, na senda das

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obras citadas, é maioritariamente anglófona1 e não contempla estudos decaso relativos às situações coloniais portuguesas; para estabelecer pontes háque passar pelo duplo esforço de identificar e caracterizar o material relativoàs situações de administração portuguesa e orientá-lo de forma a ampliar oquadro de referência das discussões teóricas.

Foi nesse âmbito que me propus estudar o exercício da medicina nocontexto colonial português, começando pela Índia do século XIX. Partindoda antropologia e recorrendo à etnografia como método, isto é, observandoo pormenor e o imponderável do quotidiano transpostos para a intimidadesilenciosa do arquivo, queria observar como, na rotina dos serviços de saúdeda Índia, nos seus relatórios oficiais, memoranda, cartas, ofícios confiden-ciais, anotações de margem, se detectavam os modos de interacção entre amedicina europeia associada à administração portuguesa e as medicinas in-dianas que continuaram a praticar-se por todo o subcontinente. Como secomportou a administração portuguesa perante as práticas concorrentes àmedicina oficial? Quando, e como, as tentou perceber e incorporar, quandoe como as rejeitou e perseguiu?

Ao levantar estas questões, almejava duas finalidades: por um lado, alar-gar o universo de referência dos estudos de Medicina e Império e diversificaras suas questões com a introdução da experiência portuguesa; por outrolado, contribuir, através do prisma do exercício da medicina e controlesanitário, para uma caracterização mais detalhada do colonialismo portuguêsdo século XIX. Sublinhe-se a escassez historiográfica para Goa oitocentista:demasiadamente específica para se retratar na narrativa historiográfica depujança imperial da Índia britânica, e longe das glórias da Goa dourada e doapogeu dos interesses comerciais portugueses no tráfico do Oriente, ficou forados interesses dos historiadores contemporâneos, que se dedicaram aos sécu-los XVI-XVII (e. g., Boxer, 1967, Curto, 1998, Pearson, 1987, Subrahmanyam,1997, e Thomaz, 1994), quando muito ao XVIII (Lopes, 1996; Walker, 2002e 2003) e só excepcionalmente ao XIX (Carreira, 1998). Os autores da época,ou de início do século XIX, produziram algumas obras importantes de carizetnográfico (Mendes, 1886; Pereira, 1921) ou, no caso de Cunha Rivara, decompilação e reinterpretação do passado com algumas referências ao entãopresente (e. g., Rivara, 1857-1877 e 1870)2.

1 Embora se refira a um contexto de construção da nação e não de administração colonial,devemos sublinhar a importância de uma literatura paralela relativa à consolidação da medicinatropical no Brasil (e. g., Ferreira, Fonseca e Edler, 2001, e Pimenta, 2004, para o ensinoda medicina, e Benchimol, 1999, Chaloub, 1996, e Fernandes, 1999, para as epidemias).

2 Algumas obras recentes da Índia anglófona (e. g., Pinto, 2005) e esforços coordenadosa partir do Xavier Centre for Historical Research têm ajudado a colmatar essas lacunas, masfalta ainda completar uma caracterização do século XIX goês que permita uma análise articuladacom os restantes contextos de administração portuguesa.

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O estudo do exercício do poder médico na Índia sob administração britânicae portuguesa parece confirmar que, enquanto para Londres o subcontinente erada máxima importância, os territórios da Índia portuguesa eram quase negli-genciados por Lisboa. Quanto mais nos confrontamos com a energiainterventiva e regulatória sobre o ensino e a prática da medicina na Índiabritânica, mais nos damos conta do descaso a que aquele é votado na Índiaportuguesa. Se na Índia britânica o recorte entre colonizadores e colonizadosparece agudo e estruturante das relações de poder, em Goa esta aparência dálugar a uma esbatida e sedimentada interacção onde se cruzam as vontades einteresses dos grupos que constituem o tecido local. A nossa interpretaçãopara a criação da Escola de Goa, bem como para as particularidades damedicina imperial na Índia portuguesa, passa pelo conhecimento e explicitaçãodaquele contexto de interesses locais que, como tentaremos mostrar, pesammais que o mando de uma metrópole distante.

A ESCOLA MÉDICO-CIRÚRGICA DE NOVA GOA

A Escola Médico-Cirúrgica de Nova Goa, fundada em 1842, oficializadapelo governo português em 1847, e funcionando continuamente até 1961(ano em que Goa deixou a tutela portuguesa para integrar a União Indiana),tornar-se-ia um importante ícone da Índia portuguesa; nas memórias de queé objecto é retratada como uma obra de império, feita para suprir os serviçosde saúde nas diferentes colónias3.

Embora pouco conhecida fora dos meios coloniais e médicos, onde éevocada como uma instituição que obteve algum prestígio no século XX, aEscola Médica de Goa foi alvo de diversas memórias publicadas por profes-sores e antigos alunos. Foi também o lugar de edição dos Anais da EscolaMédico Cirúrgica de Nova Goa entre 1927 e 1961 (antecedida pelo Anuáriodesde pelo menos 1910-1911), com artigos de investigação médica e comtemas históricos e de antropologia física e biológica.

Segundo os retratos traçados para a Escola de Goa pelos seus principaiscronistas, os professores Germano Correia (1917 e 1947) e João Pacheco deFigueiredo (1960), aquela seria fruto de um culminar de esforços, por partedos portugueses, para promover o ensino médico na Índia. Concomitante com

3 Paralelamente ao estudo da Escola Médica procedi à análise do controle das epidemiasem Goa (Bastos, 2003); preliminarmente, os dados indicam que o exercício efectivo docontrole sanitário sobre as populações da Índia portuguesa só se instala no século XX, precedidode momentos em que várias lógicas e práticas concorriam entre si. Tal como Arnold (1993)aponta para a Índia britânica, o caso da varíola exemplifica em Goa (v. Saavedra, 2004) acoexistência de uma pluralidade de práticas. A partir de alguns manuscritos pudemos ver queexistiram esforços, por parte das autoridades, em aceitar práticas híbridas com vista a umamelhor aceitação popular (v. Bastos, 2004b).

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a noção de pioneirismo português em quase tudo e sobretudo em temasligados à expansão, criou-se a ideia de que a Escola de Goa seria a maisantiga da Ásia — ideia repetida até hoje, apesar de antecedida pelas escolasda Índia britânica4.

É precisamente com o título de «mais antiga escola medica colonial domundo» que a revista Ilustração Portuguesa lhe dedica, em 1914, um artigode primeira página. Indissociável da própria existência da Escola estaria arota dos seus licenciados pelo serviço de saúde africano, conta ainda o artigoda Ilustração:

Em tempos que já lá vão, quando os sertões da Africa eram ocemiterio dos europeus, foram os medicos por Goa [sic] o mais pode-roso elemento de propaganda do glorioso nome portuguez, e ainda hojeas Africas portugueza e alemã e o vasto imperio da India Britanica abremos seus braços aos filhos d’aquela escola, a decana das escolas medicascoloniaes [Ilustração Portuguesa, 1914, p. 180].

Ao longo do século XX consolida-se a imagem de uma instituição queformou várias gerações de clínicos vocacionados para servir nas colóniasafricanas e asiáticas. Esse tema é levado ao expoente máximo aquando dascelebrações centenárias ocorridas no 1.º de Dezembro de 1942, conjugandoo tricentenário da Restauração (diferido de dois anos) e o centenário dafundação da Escola; os festejos incluíram a exibição de exercícios da Mo-cidade Portuguesa e louvores à paz portuguesa, contrastante com o envol-vimento das nações europeias numa guerra generalizada; afinava-se a retóricado nacionalismo ultramarino que veio a marcar a maior parte do século XXportuguês e de que o regime salazarista é o melhor expoente. A lógica danação e a do império confundiam-se num projecto civilizador de matriz lusa;a passagem por África era um dos seus momentos, um rito que ajudava adar sentido e valor à Escola Médica de Goa5. Ao dissertar sobre o papel

4 Em Calcutá e Bombaim existiam, desde respectivamente 1824 e 1826, «instituiçõesmédicas nativas» destinadas a dar formação adequada a alunos locais e torná-los assistentesdos médicos e cirurgiões ingleses; estas instituições, por vezes vistas como resultado depolíticas orientalistas de integração e consideração pelas práticas médicas locais (as aulasde medicina ayurvédica eram dadas em sânscrito e as de medicina unani eram dadas namadrassa), podem também ser vistas como uma forma de recrutamento de auxiliares demedicina a baixo custo entre os práticos locais (v. Arnold, 2000, pp. 62-63). Estasinstituições foram extintas e substituídas por escolas médicas convencionais nos anos 1835--1845 (Arnold, 2000, p. 63).

5 Não passou à escrita a existência de sentimentos nacionalistas indianos ou ambiguidadespartilhadas pelos médicos envolvidos nessas comemorações que, à excepção de pormenoresdecorativos locais, como a ornamentação mural de saris e pitamboras, eram de amplo fervorpelo império colonial português. Para uma discussão mais detalhada, v. Bastos (2004 e 2006).

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cultural e simbólico da Escola Médica na cultura goesa, por exemplo, oorador Francisco Barreto sublinha as campanhas sanitárias de África:

Filhos desta Escola vão daqui à metrópole, como nossos embaixadoresintelectuais, enriquecidos com a cultura que aqui beberam e que com afaísca do seu génio honram e honraram o nome goês fora das fronteiras.Filhos desta Escola implantam, em sólidos alicerces, o padrão portuguêsem terras de Africa, desbravando matas, saneando zonas inóspitas, orga-nizando campanhas sanitárias, criando institutos médico-sociais e, quantasvezes selando com o seu próprio sangue a nobre aliança indo-lusa, quecimenta o império africano! [Escola Médico-Cirúrgica, 1955, p. 7].

Também Froilano de Melo, um dos mais notáveis directores da escola,se refere à sua experiência em África:

Em toda a parte por onde passei, nas Ilhas Negras e no ContinenteNegro, fui encontrar na tradição oral, cantada de mães e a filhos, umculto de ternura por esses médicos de Goa, que, seja em palácios demagnates seja em cubatas de gente humilde, tiveram em cada lar umamigo e fizeram de cada doente um irmão! [Escola Médico-Cirúrgica,1955, p. 14].

Uma interpretação literal destes testemunhos, vastos no género, sobre feitosmédicos em África levar-nos-ia directamente à literatura sobre Medicina e Im-pério: a Escola de Goa seria um instrumento da administração colonial portugue-sa, um «pivot do império» que formava e distribuía técnicos de saúde pelasdiferentes colónias, uma plataforma intermédia, ou «centro subalterno», da hie-rarquia escalonada que sustentaria o sistema colonial português (Bastos, 2002).

Mas a antropologia tem-nos ensinado a ler através da letra: em uníssono,e em excesso, o discurso sobre o papel fundamental da Escola de Goa nacolonização de África convida a uma outra interpretação, como se a retóricainflamada servisse para preencher lacunas de significado, como se, numdado momento, todos se tivessem empenhado em simultaneamente escutare reproduzir um mito de identidade que se sobrepunha a tudo o mais,incluindo as apreciações menos positivas sobre a instituição.

E, de facto, os testemunhos que vinham de trás eram marcados porreferências à degradação pedagógica e falta de condições da Escola, margina-lizada e em permanente ameaça de extinção6. A missão e vocação ultramarinasnão aparecem tematizadas senão mais tarde, conferindo novos significados acarreiras médicas que, se eram feitas em África, assim acontecia menos comoefeito programado de uma política imperial que em resultado de circunstân-cias da vida política local.

6 Arquivo Histórico Ultramarino (doravante AHU), Relatório da Inspecção, 1897.

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Vistos de perto, os percursos goeses em África no século XIX aparecemdesprovidos do sentido colectivo que lhes é atribuído mais tarde; os relató-rios de Moçambique não só não vêem neles heróis da colonização, como nãoos poupam a críticas7; os relatórios da Índia referem as suas dificuldades emexercer medicina na sua própria província, dada a grande concorrência deoutros práticos8.

Menos que de uma política imperial centralizada, mobilizando recursoshumanos para exercer o poder, a deslocação de médicos indianos para oserviço de saúde nas outras colónias dá-se nos interstícios de uma poucoconsistente política imperial. Na nossa interpretação, não era nos tentáculosda ordem colonial, mas nas suas lacunas, que os facultativos se moviam.

NOS TENTÁCULOS OU NAS LACUNAS DO IMPÉRIO?MÉDICOS INDIANOS EM ÁFRICA

Como viviam os médicos indo-portugueses a experiência do serviço desaúde africano e como eram apercebidos nesse contexto? Dos seus testemu-nhos, traçamos um quadro geral em que se apercebem a si mesmos comorepresentantes da cultura europeia e usam diversas estratégias simbólicas parase distanciar dos africanos9. Mas o «nós» com que se aproximam e identifi-cam aos portugueses nem sempre é partilhado por estes. Veja-se o relatóriodo serviço de saúde de Moçambique para 1893, assinado pelo português Joséd’Oliveira Serrão d’Azevedo, chefe interino, pejado de críticas aos médicose enfermeiros goeses que ali exerciam. Da Escola de Goa diz que, «a avaliarpelos seus filhos, não está de modo algum à altura do que deve ser umaEscola de Medicina»10. Concedendo que nem sempre das escolas do reinosaem bons médicos, acrescenta que «nunca me constou tambem, que ellastivessem lançado na circulação exemplares tão extraordinarios como algunsque eu conheço, oriundos da Escola indiana»11. Por isso mesmo, sugere queou a escola deveria ser efectivamente sujeita a reformas ou mais valeriafechá-la, argumento também usado pelo inspector César Barbosa12. ParaSerrão, o motivo era «que desapparecesse este phenomeno singular de havermédicos que podem tratar de doentes em Africa e são prohibidos de o fazerem circunstancias identicas na Metrópole»13 — uma conhecida e frequen-temente contestada limitação imposta aos médicos formados em Goa (Costa,

7 AHU, Relatório..., 1893.8 AHU, Relatório..., Julho 1853.9 Para uma análise deste discurso, v. Bastos (2004a e 2005).10 AHU, Relatório…, 1893.11 Ibid.12 AHU, Relatório da Inspecção…, 1897.13 AHU, Relatório…, 1893.

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1880). Mas, enquanto os médicos goeses contestavam esta discriminaçãoalmejando o direito de exercer em qualquer lado, Serrão sugeria o contrário:baixar-lhes o estatuto e retirar-lhes direitos, de forma a não poderem exercersequer nas colónias, «como se os doentes por cá fossem affectados depadecimentos para debellar os quaes seria bastante a assistência d’um me-dico de segunda ordem!»14.

Nas suas palavras, a origem desta distorção nos serviços de saúde devia--se à falta de visão da administração colonial portuguesa, patente nos fracossalários auferidos pelos médicos coloniais, insuficientes para atrair profissio-nais do reino: «Todos estes factos interessantes resultam da parcimóniaexagerada com que são remunerados os facultativos europeus que vêemexercer n’este clima péssimo a sua delicadissima profissão15.» Se a críticade Serrão parece dirigir-se aos médicos indianos, cedo se vê que o principalalvo é, afinal, a administração portuguesa. Esta, tendo criado o serviço desaúde, pouco ou nada fazia para o tornar eficaz, limitando-se a «preencheros logares», sem «trabalhar e lançar mão dos meios indispensáveis para queos resultados não sejam nullos ou contraproducentes». O cerne da questãoestava na inexistência de um incentivo para o serviço em África, onde asremunerações eram iguais às de qualquer outro lugar do reino isento dosperigos destas paragens, descritos como mortais, como «perderem d’umpara outro momento a sua vida com qualquer accesso de febre perniciosa»,ou de, «pelo menos», erosão física, «alterarem a sua saude por uma longapermanencia n’estas regiões impaludadas»16. Uma compensação para estesriscos através de aumentos salariais seria, para Serrão, um aconselhávelinstrumento de governação colonial.

É nesse contexto argumentativo que devem ser lidas e relativizadas asdiatribes do chefe de serviço de Moçambique contra os goeses. Mas as suasescolhas de linguagem não podem deixar de apontar para a existência de umconsenso cúmplice sobre a Escola de Goa que a põe nos antípodas daimagem que mais tarde viria a desenvolver-se. Em fins do século XIX, estainstituição estava longe de ser um instrumento conscientemente utilizado pelaadministração colonial para um melhor desempenho do governo do império.Embora, na prática, tenha servido para a sobrevivência dos serviços de saúdeem África, não só não gozava de grande prestígio como era alvo de críticase por vezes chacota literária17.

14 Ibid.15 Ibid.16 Ibid.17 Dos avaliadores remetemos para o já citado Relatório de Inspecção, de César Gomes

Barbosa, em 1879, e das crónicas jocosas lembremos As Farpas, de Eça e Ortigão, quecontemplaram a Índia e a Escola Médica.

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A VOCAÇÃO ULTRAMARINA E A IDEOLOGIA DE MEDIAÇÃO

A teorização da vocação ultramarina dos médicos de Goa e das suasqualidades para intermediar colonizadores e colonizados em África apareceem finais da década de 1880, ou seja, já a Escola Médica ia na sua quartadécada de vida. Quem a formula é Rafael António Pereira, o primeiro goêsa chefiar os serviços de saúde da Índia oitocentista. Achando que «é intuitivaa necessidade de garantir às províncias ultramarinas de assistência medica,base fundamental da sua conservação, bem-estar e progredimento»18, RafaelPereira lembrava que, «não podendo para esse fim contar-se com as escolasdo reino», impunha-se a existência de uma outra escola «pela qual se apurenas colónias um pessoal que preveja de pronto e sem interrupção a taisnecessidades». Sugeria que «a sede desta escola não pode deixar de ser aÍndia», uma vez que «não há outra possessão portuguesa em que a perspi-cácia da inteligência, a sagacidade do espírito, a tendência dos seus habitan-tes, possuam melhor colheita de elementos susceptíveis de aproveitamentonas ciências». Elaborando ainda mais sobre a vocação indiana para o efeito,Rafael Pereira notava que a «indole paciente destes povos dá esperança dodesprendimento necessário para o exercicio da profissao medica nas coló-nias», pois aí «o índio leva a vantagem das resistencias às influencias daque-les inóspitos climas a que se adapta muito melhor que o europeu»19.

Mas, continuava Rafael Pereira, estes argumentos eram conhecidos detodos, pelo que ele acrescentava um outro, de ordem superior. No programacivilizatório contido na proposta colonial — que de outra forma não passariade conquista egoísta e irracional — estaria o movimento para trazer o indí-gena africano ao convívio do europeu. Algo que pedia a intervenção de«intermediários», alguém que se situasse entre uns e outros, entre europeuse africanos. Nas suas palavras, essa elevação do africano impõe a irmanaçãoque o europeu não pode alimentar directamente pela absoluta oposição do seucarácter e costumes, mas sim por intermediários que sirvam de elos para osextremos da cadeia. Esses intermediários, Portugal só os encontra na Índia,onde se podem recrutar todos os elementos precisos nas diversas esferas daactividade humana: ciências, arte e religião, instrumentos primários, se nãoos únicos da verdadeira civilização20.

O argumento de Rafael Pereira — que poderia alimentar intermináveisdiscussões contemporâneas sobre consciência e colonialidade, dominação ehegemonia — foi incorporado pela Escola como estratégia de autojustificaçãoe acabaria por se oficializar com os esforços do médico e deputado português

18 AHU, Relatório…, 30-10-1889.19 Ibid.20 Ibid.

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Miguel Bombarda. Este defendeu perante o parlamento que os médicos goesesseriam o intermediário ideal para a colonização portuguesa em África, razãopela qual a Escola de Goa deveria continuar. No mesmo acto condenou aEscola do Funchal, que, como a de Goa, tinha um estatuto problemático esecundário relativamente às do reino (Bombarda, 1902). E assim se sustentou,século XX afora, a retórica identitária dos médicos goeses — enquadrados porum regime que crescentemente foi avivando uma vocação para o exercício dopoder em África e reescrevendo, em retrospectiva, a história da colonizaçãoportuguesa. Não é de admirar, portanto, que nas comemorações centenáriasda Escola de Goa, em 1942, a alusão aos feitos heróicos de África fosse temaobrigatório. É que nesse preciso momento se jogavam as direcções possíveisda identidade nacional e, como um caminho pretensamente original e criativo,se fazia mão da ideia de um império moderno — radicado no passado, viradopara o futuro, sustentado numa idealizada vocação da alma lusa.

RETOMANDO OS FACTOS: MEDICINA E SOCIEDADEEM GOA NO SÉCULO XIX

Se o perfil de vocação colonial e africana da Escola de Goa se articulaem finais do século XIX e consolida no XX, importa averiguar que outrasrazões, afinal, presidiram à sua criação na década de 1840. Que semelhançasteve este processo com os da Índia britânica, que levaram ao desenvolvimen-to de instituições de ensino médico em Calcutá e Bombaim? Recuemos atéinícios do século XIX, que abre com a tentativa de instaurar um curso demedicina pelo recém-chegado Miranda e Almeida.

MIRANDA E ALMEIDA, O PROJECTO INTERROMPIDO

António José de Miranda e Almeida, antigo lente na Universidade deCoimbra, chega à Índia em 1801. Goa não recebia um físico tão distintodesde Garcia de Orta, cuja rota asiática tem sido vista como resposta ante-cipada às perseguições da Inquisição. Miranda e Almeida tinha outros mo-tivos para uma mudança de continente: fugia a escândalos de natureza pes-soal em Coimbra (Gracias, 1914; Pita, 1996). A sua chegada à Índia foicalorosamente apreciada, iniciou de imediato os seus trabalhos, e os primei-ros resultados positivos saldaram-se na redução do número de mortos e dedespesas do hospital; pouco depois tinha estruturado um curriculum para oensino formal da medicina. Foi neste curriculum que se formou BernardoPeres da Silva, mais tarde prefeito e deputado no parlamento de Lisboa —onde viria a exercer pressão para a criação de uma Escola Médica na Índia21.

21 Uma tese recente sobre parlamentares goeses em Lisboa (Pinho, 2005) fornece novoselementos sobre este pouquíssimo conhecido processo.

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Os cronistas da Escola de Goa situam o trabalho de Miranda e Almeidacomo um entre vários episódios de um continuum de tentativas, por partedos portugueses, para estabelecer o ensino médico na Índia portuguesa eformar médicos nas colónias (Figueiredo, 1960). Outros episódios incluíama missiva de Cristovam da Costa ao rei em 1687 pedindo «dois ou trêsfísicos capazes de ensinar aos locais» e a abertura da aula de CiprianoValadares em 1703, sem consequências. Como sem consequências teria sidoo curriculum de Miranda e Almeida, também ele extinto após o seu regressoao reino, esgotado após quinze anos de trabalho e esforços.

A nossa leitura aponta noutra direcção. O apoio dado por Lisboa a estasiniciativas parece mínimo, e a corte está com outras preocupações e mesmooutra localização durante o primeiro quartel do século XIX22. Os esparsosepisódios de intervenção no ensino médico em Goa podem antes ser vistoscomo parte de um outro continuum em que nada parece passar-se, e por issomesmo é irrelevante para os cronistas. Mas é aí que o mais importante vaiacontecendo, sem visibilidade ou notícia, porém de longo alcance: o trânsitoquotidiano de saberes e práticas entre as diversas tradições médico-farma-cêuticas, que teria consolidado, em Goa, uma medicina hibridizada e tribu-tária das vertentes europeias e asiáticas23.

INSTABILIDADE PROLONGADA

Com a saída de Miranda e Almeida, em 1815, a Índia voltou a ficar semfísico-mor. Em 1919 foi nomeado para o cargo o polémico António José deLima de Leitão, formado em Paris, cuja paixão política tinha por vezesatropelado a reputação clínica. Tendo servido nas tropas de Napoleão, forapreso, depois perdoado, e viria a tornar-se médico pessoal de D. João VI noBrasil. O seu plano para o ensino da medicina na Índia ficou pelo caminho,«afogou-se na revolução» (Figueiredo, 1961, p. 264). Liberal convicto, LimaLeitão representou a Índia no parlamento sem que para tal tivesse cumpridoos sete anos de residência local requeridos. Imparável, a sua carreira médicacontinuaria em glórias e reveses, tendo, entre outras coisas, sido professor

22 Enquanto a Corte se desloca para o Rio para evitar as tropas napoleónicas, a presençada «ajuda» britânica em Portugal não deixou de levantar o espectro de também Goa serengolida pelo poder inglês — algo que, merecendo uma mais ampla discussão, nos interessapela sua relação com o desgoverno de Goa na primeira metade do século XIX.

23 Se a historiografia aponta sobretudo para a tradição de se ensinar as artes médicaseuropeias na prática hospitalar (Thomaz, 1994), existe também evidência que nos hospitaisse fazia uso de receitas e plantas de origem local (Walker, 2002 e 2003). O interesse pelossegredos das plantas locais encontra-se explícito em muitas ocasiões na documentação por-tuguesa, a ponto de em 1832 suscitar o pedido ao reino de um farmacêutico capaz de asanalisar (Gracias, 1914, p. 264); para uma discussão de caso, v. também Roque (2004).

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da Escola Médica de Lisboa, impulsionador da homeopatia em Portugal eclínico pessoal do estadista Passos Manuel.

Entretanto, na Índia seguem-se duas décadas sem transformações de notana institucionalização do ensino médico. Em 1825 Lisboa nomeia um novofarmacêutico-mor, António José Cardoso, um cirurgião-mor, Thomaz daSilva Correa24, e, um ano depois, o físico-mor Manoel José Ribeiro — maisum destinado a envolver-se na política local e a deixar para outros a medi-cina. Ele mesmo fazia parte, poucos anos depois, da junta política local quepedia novo físico-mor. O seu sucessor, Victorino Pinheiro de Lacerda,desembarca em 1939 para o malogrado destino de em poucos meses sucum-bir às febres25.

Tudo indica que durante esses anos pouco controle havia sobre o que sepassava no hospital e na assistência às tropas. A população indo-portuguesarecorreria maioritariamente a práticos das tradições locais, e os relatóriosimediatamente posteriores, relativos aos anos 40 e 50, assim o confirmam,indicando que a popularidade dessas práticas dava séria concorrência aosmédicos oficialmente credenciados26.

MATEUS MOACHO, O FUNDADOR

Nos anos 1840 há sintomas de uma viragem na administração da saúdena Índia. Aliás, existe nessa década um surto de legislação regulamentadora,de que se destacam os decretos que reestruturam os serviços de saúde nascolónias e contemplam o ensino da medicina (Conselho Ultramarino, 1867,pp. 382-385; Silva, 1843). Peregrino da Costa (1943) vê nesta legislaçãouma tentativa de criar escolas médicas em todas as grandes colónias (CaboVerde, Angola, Moçambique e Índia). Simultaneamente são nomeados trêsrepresentantes de Goa para o parlamento português: o português Lima Lei-tão, apesar da sua curta passagem por Goa, e os goeses Constâncio Roqueda Costa e Bernardo Peres da Silva.

À mudança de atmosfera política corresponde também um novo físico--mor, Matheus Cezario Rodrigues Moacho, nomeado em 1841. Formado emLisboa e Lovaina, chega à Índia com uma energia transformadora que bem

24 Silva Correa teve a prolongada rivalidade de António Carvalho (Gracias, 1914, p. 265),que tinha vindo como degredado para a Índia em 1805 e exercia agora as funções de cirurgãono hospital sem habilitações. Essa ascensão deveu-se a ter sido nomeado director interino— por falta de outros com maior qualificação — aquando da morte do anterior cirurgião-mor,Barroso.

25 A morte inglória de Victorino Lacerda deu-se por sufocar num guardanapo durante umdestes acessos de febre (Gracias, 1914, p. 270).

26 Assim o testemunham os ofícios de 1846, 1849, 1851 e 1853 de Francisco Torres ede José António de Oliveira.

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se coaduna com a do então governador, conde de Antas. Mudam o hospitaldos casebres de Panelim para melhores instalações em Pangim (Nova Goa);regulamentam a titulação para o exercício da medicina, em que reinava osistema de licença por carta assinada pelo físico-mor; finalmente, em con-junto com médicos goeses, tornam viável a institucionalização de uma EscolaMédica em Nova Goa (Pangim). Serão para sempre lembrados como os seusfundadores, muito embora um e outro tenham regressado a Portugal quasede imediato por motivos políticos.

Quando Portugal, finalmente, reconhece a existência da Escola, em 1847(Conselho Ultramarino, 1867, pp. 551-558; Silva, 1844, pp. 128-135), já estase encontrava em funcionamento e tinha formado oito médicos goeses: Agos-tinho Vicente Lourenço, Felizardo Quadros, Gonzaga de Melo, Joaquim Lou-renço de Araújo, Francisco Xavier Lourenço, Fremiot da Conceição, LuísMoreira e Bernardo Wolfango da Silva; formara-se ainda em Farmácia CosmeDamião Peres (Figueiredo, 1960, p. 19). O ensino fora assegurado por MateusMoacho, pelos cirurgiões do exército José Frederico Teixeira Pinho e AntónioJosé da Gama27 e ainda pelo físico do hospital António Caetano do RosárioAfonso Dantas, também goês. A partir de então a Escola de Goa não páramais de funcionar, muito embora com um desempenho pedagógico variável.

Tudo indica, portanto, que os processos locais, a energia local e a massacrítica local deram vida à Escola Médica; a administração portuguesa adaptou--se a estes processos e, quando pôde, suscitou adaptações. Onde os cronistasdo século XX vêem uma continuidade de projecto de ensino da medicina soba administração colonial, afigura-se-nos um conjunto de interesses e estratégiaslocais que ora se aliam ao propósito colonial ora colidem com este, ora estãoorientados para o ensino da medicina ora não passam de um modo de criarcredenciais académicas para ocupar lugares de influência.

Como se articularam os físicos-mores nomeados por Portugal com taisprocessos? Voltemos aos seus testemunhos.

FRANCISCO TORRES, O REFORMADOR

Francisco Maria da Silva Torres é o sucessor de Mateus Moacho nocargo de físico-mor. Chega à Índia em 1844, junto do irmão, o arcebispoJosé Maria da Silva Torres (Gracias, 1914, p. 276). De imediato reorganizao serviço de saúde e a descrição das mudanças que promove permite alcan-çar alguns aspectos da vida material e social de Goa à época. Uma dasprioridades que o guiaram, por exemplo, foi a de reorganizar as enfermariasatendendo aos preceitos rituais e de higiene das diferentes castas. Segundo

27 Este fora dos primeiros goeses a estudar medicina e cirurgia na metrópole com umabolsa do senado das ilhas e câmaras agrárias (Figueiredo, 1960, p. 17).

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o próprio, teria alcançado aquilo que os seus antecessores nunca pensaramser possível na Índia: ter os «gentios» ao cuidado do hospital, atraídos pelorespeito aos seus ritos28.

Em certa medida, Francisco Torres parece representar a tradição iluminis-ta, convicto da possibilidade de tudo redimir pelo conhecimento, interessadoem tudo o que o rodeia, incluindo os ritos, cultura e conhecimentos, ondedetecta densidade e grande importância. Sublinhe-se o interesse nos conhe-cimentos de natureza fitoterápica, algo que o leva à acção: não apenas enviaao reino diversos espécimes para estudo, como ele próprio desenvolve ex-periências clínicas com os doentes do hospital. Fá-lo em segredo, «com todaa prudencia e circunspecção», por temer as reacções negativas — dosnativos, que achava plenos de preconceitos, e dos militares, «que depressafugiriam espavoridos»29.

A sua energia criativa e orientação para a acção estendiam-se às medidasconducentes a estruturar o ensino da medicina. Empenhava-se em tudomelhorar. Pedia ao reino livros e material escolar, instrumentos cirúrgicos,termómetros, barómetros. Mostrava-se chocado com a inexistência de taisinstrumentos num serviço de saúde que precisaria, no mínimo, de acompa-nhar as variações de temperatura e humidade. Curiosamente, pede estampase modelos anatómicos entre o material pedagógico, justificando os pedidoscom a escassez local de cadáveres para o ensino prático da anatomia.

Que o comentário à escassez de cadáveres passe sem exame merece seranotado, já que entre os médicos ingleses da Companhia das Índias tinhaflorescido o estudo da patologia mórbida precisamente à custa da abundânciadaqueles30. E, quando as Native Medical Institutions de Bombaim e Calcutáse tornam Medical Colleges ao estilo europeu, o ensino da anatomia é oficial-mente promovido — a ponto de McCauley prometer uma salva de canhãode cinquenta tiros para celebrar a primeira dissecação anatómica por umaluno indiano nos novos colleges (Arnold, 2000). Tal braço de ferro pareceausente de Goa, onde a repugnância pela manipulação de cadáveres, agrava-da pela ofensa que constituía aos princípios de pureza ritual, fez protelar pormuitos anos a prática de dissecação anatómica, usando como justificação apouco credível desculpa da escassez de cadáveres. Ou seja, o projecto doensino da medicina europeia em Goa de alguma forma negociava e atendiaaos interesses locais, não fazendo tábua rasa das suas tradições, costumese vontades — e, se quisermos, denotando alguma força política de sua parte.Na nossa interpretação, portanto, Francisco Torres teria alguma cumplicida-de com as forças e sensibilidades locais, não interferindo nesta área, man-

28 AHU, Ofício…, 21-4-1846.29 Ibid.30 Mark Harrison, comunicação pessoal.

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tendo o enredo de meias verdades em que assentava a governação portugue-sa da Índia no século XIX.

NOVO INTERREGNO

Em 1849 é a vez de Francisco Torres partir, também ele exausto, e ocargo é ocupado interinamente pelo cirurgião-mor José António de Oliveira.Nos seus detalhados relatórios nota a proliferação de curandeiros e boticasclandestinas31 e disserta sobre a impunidade gozada por tais boticários.Acusa-os de pertencerem a redes de parentesco e teias de obrigações que osuniam precisamente a quem os devia perseguir — os quais, na melhor dashipóteses, instauravam processos destinados a não passar de instância.O escândalo era tanto maior quanto tudo isto ocorria no cerne cristianizadode Goa, as Velhas Conquistas (Ilhas, Salcete e Bardez); das Novas Conquis-tas, os territórios do interior só incorporados no século XVIII, esperava-se queprevalecessem os costumes «gentios».

Apesar destes comentários, José António Oliveira parece objectivo naenumeração dos vários tipos de práticos nas artes de curar e dá-nos umaestatística dos mesmos para o ano de 1853. Pelas suas contas, haveria 135médicos em Goa, dos quais 59 formados pela nova escola, mais 6 cirurgiõese 5 farmacêuticos também formados pela escola (mais 14 práticos ignoran-tes do mais básico na profissão), 11 sangradores, 21 parteiras e, para alémdestes, os «médicos dos gentios». Destes não nos fornece um número, masrefere que detêm «os seus próprios segredos, quase sempre compostos deplantas indígenas e exóticas»32.

Tal como muitos que o antecederam, Oliveira é ambivalente em relaçãoaos remédios locais. Por um lado, critica os médicos que, adoptando prá-ticas locais, tinham dado em «mezinheiros»; por outro, reconhece a impor-tância das plantas nativas e enumera as que pode, sugerindo à administraçãocolonial que mais se estudem os seus poderes curativos33.

FREITAS E ALMEIDA, O CRÍTICO

A Índia volta a ter um físico-mor de nomeada com a designação para ocargo de Eduardo de Freitas e Almeida em 1853 e a sua chegada no anoseguinte34. Oriundo de famílias notáveis da região de Condeixa, formado emCoimbra com prémios e distinções, clínico ao serviço da câmara de Soure

31 Relatório…, Julho 1853.32 Ibid.33 Ibid.34 É, também o último físico-mor da Índia, uma vez que o cargo é extinto em 1868 e

subsituído pelo de chefe dos serviços de saúde.

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durante uma década, conhecedor da sua época e imbuído de um espírito dereflexão que imprime aos seus comentários críticos, Freitas e Almeida éautor de relatórios devastadores e plenos de observações.

Não poupa as instituições locais, mas interessa-se pelo que pode aprenderdas práticas e costumes indianos. Não é um preconceito atávico que seencontra nos seus textos, mas antes a indignação perante o desgoverno comque se depara. Começando pela Escola Médica, descreve como «ridículas»as suas instalações e crê ser duvidosa a qualidade do ensino aí praticado. Vêmotivos religiosos por trás da repulsa dos alunos pela prática de examesanatómicos — o que, mesmo que óbvio para os seus antecessores, não eraregistado nos relatórios, contentando-se todos com a desculpa da falta decadáveres35.

Com o avançar do tempo o seu estilo crítico adensa-se; reporta uma escoladébil, com apenas três professores esmagados e absortos em múltiplas tare-fas, com alunos ignorantes e incompetentes a quem prevê um futuro deimpunidade encartada36. A Escola Médica e a medicina europeia mais pareci-am uma ficção37. A maioria da população recorria a curandeiros e herbalistas,os quais, como apontara o cirurgião-mor José António Oliveira, gozavam deimpunidade pelo seu entrosamento familiar com as autoridades locais.

A seguirmos os testemunhos de Freitas e Almeida, Goa era ingovernável ea Escola uma perda de tempo e recursos. Aqueles que formava mais não faziamque achar-se no direito de pedir empregos públicos38, e o hospital militar maisnão era que um lugar a saque para tráficos e roubos…39.

FONSECA TORRIE, CHEFE PARA TODO O SERVIÇO

Nas décadas seguintes a situação viria a piorar. Se Freitas reclamava porhaver apenas três professores, tempo chegou em que um apenas — o chefedo serviço de saúde, João Stuart Fonseca Torrie — tinha de desempenhartodos os cargos.

Torrie, um luso-britânico nascido e formado no Porto, vem a ancorar naÍndia a sua carreira médico-militar. Começando como cirurgião da 1.ª classeem 186240, assumiria posteriormente os mais altos cargos. Em 1863 era jáprofessor na Escola Médica; não só foi lente de diversas cadeiras curricu-

35 AHU, Ofício…, 11-7-1854.36 AHU, Ofício…, 8-2-1856.37 Pearson (1987) descreve o poderio português na Índia na sua fase posterior como opera

buffa; no relatório secreto ao governo de Salazar após a sua missão de 1956, também OrlandoRibeiro (1999) descreve a fragilidade da implantação portuguesa em Goa.

38 AHU, Ofício…, 8-2-1856.39 AHU, Ofício…, 6-4-1861.40 Os elementos biográficos de Torrie foram compilados a partir da documentação

existente na pasta de Informações Anuais 1856-1907, AHU, 12, maço 2070.

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lares — matéria médica, farmácia, física, química e princípios de histórianatural, e, mais tarde, medicina legal e higiene pública — como ensinavapelos colegas ausentes. Secretário da Escola desde 1866, em 1871 (já comomajor) substituiu Eduardo Freitas e Almeida na direcção e na chefia doServiço de Saúde do Estado da Índia.

Em teoria, Torrie encarnava o poder médico colonial em Goa: foi daJunta de Saúde, da Junta Geral da Província, do Conselho Inspector daInstrução Pública, da Santa Casa da Misericórdia, do Conselho da ÍndiaPortuguesa, da comissão para reunir produtos para a Exposição Internacionalde Paris; tenente-coronel desde 1877, assinou os mais importantes documen-tos da administração sanitária: além dos relatórios anuais e estatísticas desaúde que assinava de 1870 a 1880, foi autor do regulamento de sanidademarítima (1878), do censo geral da população (1879), do código de higienepública, do regulamento de prostituição, do regulamento de partidos médicose da proposta geral de reforma do ensino da medicina em Goa (1879).

Na prática, porém, Torrie enfrentava toda a espécie de dificuldades eausência de meios para exercer tal poder. Parecia que o Estado da Índia sedesmantelava perante a indiferença do governo português, que em brevedissolvia o próprio exército da Índia. Os apoios eram mínimos, o ambientesanitário só podia ser de negociação e eram questionáveis os critérios pe-dagógicos para o ensino da medicina. É de acreditar que os então formadostivessem preparação insuficiente, alimentando comentários como os do jácitado Serrão de Azevedo em Moçambique, província a que eram levadospor contingências da carreira e da procura de trabalho.

É interessante notar que, menos que os antecessores, Torrie não pareceobcecado em distanciar-se, enquanto governante, dos governados e dosingovernáveis. Pautando-se pela perícia técnica, acomoda-se à realidade queexiste e trabalha com ela. É, também, o último dos chefes de saúde da Índianascido no reino. Doravante o cargo seria ocupado por goeses.

RAFAEL ANTÓNIO PEREIRA, O PRIMEIRO CHEFE DE SERVIÇO GOÊS

Rafael António Pereira deve ser destacado como o primeiro goês a che-fiar oficialmente os serviços de saúde na Índia e a dirigir a Escola Médica.Nascido em Benaulim, Salcete, nas elites bramânicas cristãs, Rafael Pereiraestuda medicina em Lisboa e forma-se em 1874 com louvor41. Ingressa nacarreira médico-naval e no ano seguinte é nomeado facultativo do quadro desaúde do Estado da Índia, com uma breve nomeação para a chefia do Serviçode Saúde de Cabo Verde e Guiné. Na Índia integra a comissão que colecta

41 Os elementos biográficos de Rafael António Pereira foram compilados a partir dadocumentação existente na pasta de Informações Anuais 1856-1907, AHU, 12, maço 2070.

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os produtos para a Exposição de Paris (1877), a comissão de saneamentode Pangim (1877), a comissão encarregada de examinar os professoresprimários, a inspecção e polícia sanitária de Mapuçá (1879), a Junta Geralda Província (1880), a commissão parlamentar encarregada da reforma doultramar (1882), o Conselho Inspector de Instrução Pública.

Alguns destes cargos são desempenhados sob a supervisão de Torrie,que do jovem colega afirma em 1880: «Desempenha o seu serviço com todaa intelligencia e proficiencia. É assiduo apesar dos seus incomodos febris»,sugerindo que pode chefiar o serviço42 — o que vem a acontecer com ofalecimento de Torrie em 1884.

É nesses anos que Rafael Pereira desenvolve a tese sobre a particularvocação dos médicos indianos para intermediar europeus e africanos. A teseserá usada posteriormente como ideia central para defesa da continuidade daEscola Médica de Goa, que em finais do século XIX continua a degradar-see a desacreditar-se como instituição colonial. Mas essa defesa caberá aoparlamentar continental Miguel Bombarda, já no novo século; a Rafael Pe-reira, a última década de XIX reserva tempos inglórios. Promovido a tenente--coronel em 1892, é exonerado de membro efectivo do Conselho Inspectorde Instrução Pública em 1893 e a seu pedido; o mesmo acontece relativa-mente ao cargo de director do Hospital Militar em 1895. Apesar de promo-vido a coronel em 1897, pairava sobre ele um conjunto de más apreciações:em 1898 é referido como «official pouco escrupuloso no desempenho dosseus deveres militares, parcial, carecendo de condições pª exercer comdistincção o importante cargo de chefe do serviço de saúde»; em 1900reporta-se que «não tem as qualidades indispensaveis para o exercicio do altocargo que lhe está confiado», mostrando-se renitente a fazer aplicar a lei eregulamentos de serviço; é ainda acusado de parcialidade e falta de sentimen-to de justiça para com os seus subordinados.

Rafael Pereira está num insterstício entre duas eras: por um lado, o finalde um tempo de declínio institucional, de coexistência de poderes contradi-tórios, de conflitos que a ordem colonial não consegue aplanar para umpropósito unificado a impor à população por força ou meios persuasivos. Poroutro, o início de uma liderança local assumida, em que goeses ocupamcargos de chefia e em que os serviços de saúde passam a assegurar as suasfunções de disciplina e autoridade.

Os sucessores de Rafael Pereira vieram também a ser naturais da terra,todos eles com elevado perfil de liderança e prestígio: Miguel Caetano Dias,Costa Álvares, Wolfango da Silva, Froilano de Melo, Germano Correia, JoãoPacheco de Figueiredo. O século XX trouxe uma radical transformação nasinstituições médicas goesas: o contínuo declínio pedagógico da Escola Mé-

42 AHU, Informação…, 1880.

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dica deu lugar a positivas reformas, passando a integrar um corpo docentemais amplo e capacitado, dispondo de mais meios e, sobretudo, passando auma sintonia com a lógica da administração portuguesa. No século XX rees-creve-se a história colonial portuguesa e com ela a história do ensino médicoem Goa. Mas o que vimos para o século XIX escapa ao modelo de gover-nação do império através de instrumentos locais. Tais «instrumentos» ti-nham uma lógica própria, que não correspondia necessariamente aos inte-resses de Lisboa.

CONCLUSÃO: GOA, SÉCULO XIX, OU OS EQUÍVOCOSDA GOVERNAÇÃO COLONIAL

O que encontrámos na Índia que visitámos através dos manuscritos,relatórios, jornais e publicações ligados à administração portuguesa foi umasociedade de facetas múltiplas em que os jogos de poder se entrecruzavame sobrepunham e em que a fronteira entre nativos e agentes coloniais sedesdobrava em muitos matizes, efeito de uma longa ocupação e apropriaçãomútua de símbolos do poder e instrumentos do seu exercício. A prática localda medicina europeia e imposição da sua lógica sanitária deve ser interpretadanesse contexto; nem estamos numa sociedade de fronteira, de «colonização»no sentido clássico, de ocupação de território, nem tão-pouco de clara sub-jugação de um povo a outro, mas antes de um conjunto de formas entre-laçadas de exercício do poder e hierarquias sobrepostas e nem sempre coe-rentes. Mais: a profissionalização da carreira médica, definida nos termosocidentais, deve ser entendida como parte de um jogo de poderes em queestão em causa o acesso a cargos públicos, a legitimação de autoridade, aascensão social ou manutenção de status quo, e não apenas como a facetalegal do exercício das artes de curar.

Mais que uma sociedade marcada por um projecto colonial que distinguecolonizadores e colonizados — como se encontra nos manuscritos do ser-viço de saúde em África para a mesma época, por vezes produzidos pelosmesmos agentes da administração colonial —, o que encontramos na Índiaportuguesa oitocentista é essa justaposição de camadas, com recortes quenem sempre são claros, sugerindo fronteiras identitárias móveis e flexíveis,fazendo os seus agentes recurso dos meios simbólicos necessários para cadasituação, agrupando-se e repartindo-se por linhas que não correspondem deforma unívoca às oposições analiticamente relevantes, mas empiricamentefrouxas, entre ocupantes e nativos, portugueses e indianos, ou colonizadorese colonizados. As distinções são outras, e inúmeras.

Os periódicos do século XIX mostram-nos uma profusão de querelas epequenas guerras entre facções, ecoando algumas das que animavam os

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portugueses no continente (então ocupados nas guerras do liberalismo), eacirradas por distinções de religião, de pertença, de nascimento, de casta,enfim, das muitas componentes das estratégias identitárias locais (Pinto,2005). A consulta aos manuscritos mostra-nos uma administração tensa, porvezes à beira do desespero e da incapacidade de acção, lamentando-se dafalta de meios, da falta de interesse da administração central, de um certodescaso, aqui e ali narrando façanhas de heroísmo médico, elaborando mi-nuciosamente os relatórios protocolares sobre as condições sanitárias, masversando, quase unicamente, sobre a população mais próxima dos portugue-ses — os soldados, os cristãos, os descendentes —, fazendo referênciasescassas e esparsas aos «gentios» que o sistema de saúde mal conseguecaptar, deixando um grande silêncio sobre as estratégias seguidas por estespara a sua própria manutenção de saúde e fazendo-nos pressentir a existênciade um sistema de pluralismo médico não reconhecido oficialmente mastolerado pela correlação de forças políticas vigente.

Retomando as questões iniciais, em que contribuem estes dados para asdiscussões na área de estudos de Medicina e Império e que nos ensinamsobre o colonialismo português?

Como em qualquer outro processo de alargamento e diversificação douniverso de referência, a primeira conclusão aponta para a necessidade dematizar e complexificar a análise, podendo mesmo sugerir algumas explora-ções conceptuais para as modalidades do exercício do biopoder nas colónias.A avaliarmos pelo caso de Goa, este nem sempre é uma clara imposição degovernantes europeus sobre governados locais, mas muitas vezes um resul-tado de negociações inconscientes, de processos de troca e encontro queresultam em hibridações e em práticas e símbolos compósitos e de sedimen-tação das relações de forças que traçam os grupos locais. E a respeito destes,diga-se, há que manter uma interpretação dinâmica e de permanente cons-trução, evitando a reificação de categorias cognitivas («tribo», «etnia», «cas-ta») que estudos recentes demonstram estarem associadas a operações ad-ministrativas da governação colonial (Baily, 1999; Dirks, 2001).

Nessa medida, o estudo das particularidades e enredos goeses contribuipara desafiar alguns dos consensos dos estudos de Medicina e Império,nomeadamente ao mostrar que em certas situações a governação colonial sóse veiculava através de continuadas negociações com vontades locais, porvezes, mas nem sempre, cristalizadas em costumes e tradições (como acon-tece com as referências explícitas ou veladas a casta) e certamente assentesnum poder político local ao qual só se chega através de uma análise críticada documentação. E, no que toca à caracterização do colonialismo portu-guês, todo um conjunto de novas perspectivas se antecipa: a descontinuidadedos ciclos imperiais apesar da celebrada continuidade de glória e missão; apouca consistência administrativa do século XIX, abafada pela narrativa de

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império multissecular; a importância das elites locais de múltipla pertençacultural e percursos políticos entrosados; a circulação nos espaços do im-pério, reinventando papéis sociais, etnicizando, segregando e distribuindoparcelas do poder numa dinâmica de negociação que, mobilizando recursosmateriais e simbólicos, cria e re-cria identidades.

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