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Mavutsinim e o Kuarup Rosana Rios Ilustrações Rubens Matuck Temas Diversidade cultural • Meio ambiente e natureza • Mitos fundadores • Relação entre mortos e vivos • Rituais indígenas. Superação da morte • Xingu GUIA DE LEITURA PARA O PROFESSOR A AUTORA Rosana Rios nasceu em São Paulo, em 1955. Formada em Artes Plásticas e Educação Artística pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo, é uma escritora premiada de literatura infantil e juvenil, arte-educadora e ilustradora. Também faz roteiros para programas de televisão e escreve peças de teatro para crianças e jovens. Especialista em mitologia, folclore e RPG, Rosana é uma fonte inesgotável de histórias, com mais de 80 títulos publicados. O ILUSTRADOR Rubens Matuck nasceu em São Paulo, em 1952. Formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP), ele faz gravuras, desenhos e telas. Já ilustrou diversas obras de literatura para crianças e, em 1993, recebeu o prêmio Jabuti de Melhor Ilustração pelo livro A sumaumeira. 2008996309396 48 páginas A IMPORTÂNCIA DESTE LIVRO Mavutsinim e o Kuarup reproduz em lingua- gem escrita um dos inúmeros relatos orais presentes nas culturas indígenas do Alto Xin- gu, situadas em terras do Pará e coração do atual Estado do Mato Grosso. A autora inicia o relato utilizando-se de recursos narrativos como “Segundo se acredita...”, “Dizem que...”, explicitando ao leitor que aquilo que ele lê é o ponto de vista de uma ouvinte que recon- ta uma história já narrada por muitos. É este justamente o artifício da tradição oral: aquele que conta uma história parte de uma versão anterior à do relato, adicionando ingredientes pessoais para prender a atenção do ouvinte.

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Mavutsinim e o KuarupRosana Rios

Ilustrações Rubens MatuckTemas Diversidade cultural • Meio ambiente e natureza

• Mitos fundadores • Relação entre mortos e vivos• Rituais indígenas. Superação da morte • Xingu

GUIA DE LEITURA

PARA O PROFESSOR

A AutorA Rosana Rios nasceu em São Paulo,

em 1955. Formada em Artes Plásticas e

Educação Artística pela Faculdade de Belas

Artes de São Paulo, é uma escritora premiada

de literatura infantil e juvenil, arte-educadora

e ilustradora. Também faz roteiros para

programas de televisão e escreve peças de

teatro para crianças e jovens. Especialista

em mitologia, folclore e RPG, Rosana é uma

fonte inesgotável de histórias, com mais de

80 títulos publicados.

o ilustrAdor Rubens Matuck nasceu em

São Paulo, em 1952. Formado pela

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da

USP (FAU-USP), ele faz gravuras, desenhos

e telas. Já ilustrou diversas obras de

literatura para crianças e, em 1993, recebeu

o prêmio Jabuti de Melhor Ilustração pelo

livro A sumaumeira.2008996309396

48 páginas

A IMPORTÂNCIA DESTE LIVRO

Mavutsinim e o Kuarup reproduz em lingua-gem escrita um dos inúmeros relatos orais presentes nas culturas indígenas do Alto Xin-gu, situadas em terras do Pará e coração do atual Estado do Mato Grosso. A autora inicia o relato utilizando-se de recursos narrativoscomo “Segundo se acredita...”, “Dizem que...”,explicitando ao leitor que aquilo que ele lê éo ponto de vista de uma ouvinte que recon-ta uma história já narrada por muitos. É estejustamente o artifício da tradição oral: aqueleque conta uma história parte de uma versãoanterior à do relato, adicionando ingredientespessoais para prender a atenção do ouvinte.

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Mavutsinim e o Kuarup Rosana Rios

RESUMO

Mavutsinim e o Kuarup conta a origem da humanidade, se-gundo a tradição dos Kamayurá, tomando por referência o sur-gimento de seu povo aqui, que nós, não-índios, chamamos Terra.

Mavutsinim é o herói fundador que, “cansado de viver sozi-nho”, faz surgir a humanidade a partir de toras de madeira enfei-tadas por ele e fincadas no chão. Conhecedor do comportamento da natureza e dono das práticas rituais, Mavutsinim ensinou tudo aos novos seres para que eles pudessem adquirir sua condição hu-mana específica. Mavutsinim é, portanto, o civilizador primordial que, ao oferecer aos seres da natureza a condição humana, os ensi-na a se comportar em sociedade.

Ele também criou o principal ritual funerário, o Kuarup, nome dado aos troncos de árvores que representavam os mor-tos que Mavutsinim desejava fazer reviver. A cerimônia do encantamento do primeiro Kuarup durou alguns dias e ti-nha seus preceitos. Na fase final, nenhum homem que tivesse passado a noite com a mulher poderia presenciar a transfor-mação dos troncos. Porém, levado pela curiosidade, um dos índios nessa situação quebrou a regra e a magia não pôde se concretizar. Mavutsinim determinou, então, que a partir da-quele momento os mortos não voltariam a viver e o Kuarup – que acontece até os dias de hoje – deveria ser celebrado emhomenagem a eles.

REPERTÓRIOS E TEMAS

• O fogo é elemento central para transformar as toras em serescom vida. Em muitas outras culturas, inclusive nos mitos deorigem europeia, o fogo tem o mesmo peso e é quase reitera-damente associado à condição de humanidade. Conseguir co-zinhar para comer significa transpor o estado da natureza parao de humanidade.

• As pessoas importantes são as que derivaram diretamente dastoras; as pessoas comuns vieram dos peixes, seres fartos na na-tureza; e os povos vizinhos originaram-se das “onças”, guerrei-ras e valentes. É possível compreender, a partir dessas origens,a atitude de um ser humano em relação ao “outro”, ao “desco-nhecido”. Aquele “que mora ao lado”, o não-eu, é uma ameaçacontra a qual é necessário estar atento e se defender pela guerra.

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O RIO XINGUXingu é o nome de um rio que nasce

no Estado do Mato Grosso, na junção

da Serra do Roncador com a Serra

Formosa, e deságua no rio Amazonas,

após percorrer 2.045 quilômetros,

segundo informações do Ministério

do Turismo. Ele foi assim designado

antes do importante trabalho de três

sertanistas, os irmãos Villas Bôas, ter

se consagrado nacionalmente, ou seja,

antes de saber quantos e quais povos

indígenas viviam a suas margens. A

criação do Parque Indígena do Xingu

em 1961 e o acompanhamento que a

mídia da época fazia do trabalho dos

três sertanistas acabaram por colocar

luz sobre a existência de povos até

então desconhecidos.

Foi a expansão da fronteira econômica

brasileira – restrita à costa brasileira

até aquela época – para o interior

que expôs essa evidência. E serviu de

mola propulsora para uma política

indigenista estrategicamente desenhada

para liberar novos territórios e salvar,

dentro de uma reserva, aqueles povos

que representavam o que havia de mais

puro em relação a resquícios de um

passado indígena prestes a desaparecer

diante do avanço do progresso.

Hoje, por terem sido respeitados e

protegidos com essa visão humanitária,

vários povos que habitam a área

delimitada pelo Parque do Xingu

são identificados como os mais

autênticos e puros índios brasileiros, a

tal ponto de o topônimo Xingu ter se

transformado, no senso comum, em

sinônimo de índio.

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Conhecê-lo significa dispêndio de energia, aquela que é preci-so guardar para a própria sobrevivência. Talvez isso explique a existência de preconceito em todas as sociedades humanas. O preconceito parece, antes de tudo, guiado pelo medo e acaba por justificá-lo, o que pode ser uma arma perigosa nas mãos dos que apenas enxergam ameaça no desconhecido.

• Para os Kamayurá, os não-índios (chamados de brancos,como mostra a história) passaram a existir concomitante-mente à criação dos demais povos. Foi Mavutsinim quem noscriou. A diferença de poder de cada um se deu pela escolhadas armas oferecidas pelo criador. Os índios escolheram as“armas brancas” e os brancos, a espingarda. Portanto, as his-tórias de poder e dominação de um povo sobre o outro estãoprevistas desde as origens do mundo.

• A figura dos gêmeos é outro elemento mitológico universal, pre-sente desde os gregos (Castor e Pólux), os romanos (Rômulo eRemo), os vodum na África (Mawu e Lissa), os Ticuna do alto rioSolimões brasileiro (Djo’i e Ypi) e mais uma infinidade de casos.Esses duplos têm papéis opostos que resultam na formação e naorganização dos diferentes atributos e características que expli-cam desigualdades e assimetrias entre os seres humanos.

• O desafio da imortalidade faz parte das mais diversas culturas.Mavutsinim não queria que seus parentes morressem, criandoo ritual do Kuarup para garantir a imortalidade dos homens. Setivesse se privado de estar com a mulher, o contraventor teriafestejado com todos o ganho da imortalidade. A ganância deum único indivíduo pôs a perder uma dádiva do criador. Esseselementos da narrativa têm a função de impor as regras norma-tivas e os códigos de ética para a conduta social, os quais estãotambém presentes em nossa cultura, seja pelas religiões, sejapelas leis civis.

OS ÍNDIOS NO BRASIL

Os índios compõem 0,2% da população brasileira. Ou seja, ainda que minoritários, sabe-se que há no Brasil, hoje, início do século XXI, 227 povos com população estimada em 600 mil pessoas, que habitam das aldeias mais isoladas aos perímetros urbanos de grandes cidades como São Paulo, Campo Grande ou Manaus. Esses dados permitem aferir que são povos com bai-xa densidade populacional, organizados em microssociedades

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espalhadas, sobretudo, no Nordeste e no Sudeste, e as maiores situadas no Centro-Oeste e na Amazônia, em razão da ocupa-ção mais tardia dessas regiões. Isso propiciou maior isolamento e proteção populacional dos índios que ali já viviam ou para lá se refugiaram, empurrados pelas sucessivas fases da colonização do interior brasileiro.

O destaque para esse quadro é a realidade linguística. Os li-vros didáticos mais difundidos fazem acreditar que “índio fala tupi”; essa é uma falsa informação consolidada pelo senso co-mum. No Brasil há mais de 180 línguas e dialetos falados pelas populações indígenas, sem considerar o português, que grande parte fala como segunda língua.

Por que destacar a língua como um dado relevante? Por-que sua manutenção e uso expressam a vitalidade cultural de cada povo. Além disso, é por meio das línguas faladas que se extravasam explicitamente as marcas culturais mais sutis de um povo. É pela linguagem que se revelam, por exemplo, uma visão de mundo, a classificação dos seres, e se estabelecem e explicitam as diferenças entre os povos. Um exemplo disso é o orgulho que tem o brasileiro de ressaltar que a língua portu-guesa é uniforme em todo o país, justificando nossa integração e cordial comunicação. Em contrapartida, as piadas que fazem o paulista do carioca, o carioca do mineiro, o candango dogoiano, o baiano do pernambucano, o amazonense do paraense, eassim por diante, são geralmente chacotas carregadas de sota-ques caricaturais e jargões peculiares que servem para delimi-tar a superioridade de uma origem sobre a outra. Ao contráriodo julgamento precipitado de que chistes expressam apenaspreconceito (o que também pode ser verdade, dependendo daaplicação), a valorização ou não de determinados traços de umpovo tem nas diversas formas de utilização da língua sua prin-cipal ferramenta de luta.

Esse fator permite compreender por que a Igreja teve papel importante para integrar povos indígenas às culturas dominantes, traduzindo a Bíblia para a língua do conquistado. E, por outro lado, por que os jesuítas foram expulsos do Brasil em determi-nada fase da colonização. Marquês de Pombal percebeu que o trabalho dos padres, fundado na tradução da Bíblia para a língua indígena mais conhecida na época, o tupi dos litorâneos Tupi-nambá (língua geral ou nheengatu), representava um risco à so-berania portuguesa no Brasil, sendo os jesuítas uma ordem de Inácio de Loyola, de origem espanhola.

DIVERSIDADE LINGUÍSTICAAs 180 línguas faladas no Brasil podem

ser agrupadas em troncos e famílias.

Há dois grandes troncos linguísticos

indígenas, o Tupi-Guarani e o Macro-Jê,

e várias famílias a eles associadas,

além de línguas isoladas dessas

ramificações.

É o mesmo que acontece com o

português, o espanhol, o romeno etc.

Essas línguas fazem parte de uma

família, o latim, que pertence ao

tronco indo-europeu, que, por sua vez,

abriga outras famílias de línguas, como

a germânica (da qual fazem parte as

línguas inglesa, alemã e outras) ou a

eslava (da qual fazem parte o polonês,

o russo e outras).

Em Mavutsinim e o Kuarup, a autora

conta que existem na região em que a

história foi recolhida – que corresponde

apenas à porção sul do Parque Indígena

do Xingu – dez diferentes povos com

línguas das famílias Aruak (povos

Yawalapiti, Waurá e Mehinako) e Karib

(povos Kuikuro, Kalapalo, Nahukuá

e Matipu) e outras do tronco Tupi (os

povos Kamayurá e Aweti). Dá para

imaginar então a riqueza cultural que

se concentra nesse lugar e a variedade

de histórias sobre o surgimento dos

povos ali existentes que poderiam ser

recolhidas para aumentar a visão sobre

cada um deles.

Certamente, os Aweti, por conta de seu

parentesco linguístico, narrariam uma

história semelhante à dos Kamayurá em

relação ao herói criador Mavutsinim,

pois esse pertencimento é que

delimita um conjunto de inter-relações

nos sistemas sociais – como as de

parentesco e de organização política.

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ÍNDIOS DO BRASIL OU ÍNDIOS NO BRASIL?

Até agora falamos de “índios no Brasil” e não “índios do Bra-sil”. É possível compreender a dimensão territorial e política que existe por trás da utilização de uma e não de outra prepo-sição. Isso tem a ver com a história do Brasil. De um lado, a visão desenvolvimentista estratégica do governo do presiden-te Juscelino Kubitschek (1902-1976), inaugurada com Getúlio Vargas (1882-1954), ampliando as fronteiras econômicas para o Centro-Oeste; de outro, não menos desenvolvimentista, masreforçada por questões de soberania geopolítica, o regime mi-litar, que vigorou de 1964 a 1985, apregoando a ocupação es-tratégica da Amazônia brasileira, vista como um grande vaziodemográfico. Nesse período, foi incentivada a transferência delevas de migrantes do Sul para transformar a floresta em pas-to e lavoura de grãos. Havia uma cegueira deliberada sobre apresença de povos que ali residiam ancestralmente – ou que seabrigaram lá desde os tempos de colônia, fugindo da ocupaçãocosteira e das províncias minerais estabelecidas em Minas Ge-rais e Goiás ou da cultura pastoril do Piauí.

A população brasileira, nos anos 1970, acreditava na versão do índio como um povo do passado, da época das caravelas, que falava “tupi”, que vivia na “taba” e tinha como chefe um “mo-rubixaba”. Era um índio representado e narrado com verbos no tempo pretérito.

As informações atuais que permitem ampliar nossos conhe-cimentos só foram possíveis de obter graças a intensa mobi-lização de estudiosos, religiosos, professores universitários, pesquisadores e indigenistas. Ao constatar o impacto dos gran-des projetos desenvolvimentistas na Amazônia, eles se empe-nharam para fazer um raio X do Brasil, demonstrando que o “vazio demográfico” era ocupado por povos que estavam no Brasil muito antes de o país ser batizado pelos colonizadores portugueses.

MITO OU HISTÓRIA?

Rosana Rios informa que “é quase sempre nos mitos, as an-tigas histórias de cada povo, que moram esses conhecimentos”. Esse pressuposto merece ainda um pouco mais de reflexão.

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Nossa cultura tem uma tendência a associar a palavra “mito” com “mentira”. Fatos distorcidos, assim como histórias incom-preensíveis e surpreendentes, são em geral classificados como mitos. Aliado a isso, costuma-se, na tradição de nosso ensino, apresentar a realidade indígena brasileira por intermédio de “lendas” adaptadas de forma a reforçar a visão de que os índios fa-zem parte de um estágio infantil da humanidade. Essa concepção é sustentada, ainda, por suas narrativas fantásticas, irreais e fan-tasiosas, dignos exemplos dessa fase primitiva na qual ainda se encontrariam hoje.

É um falso pressuposto. Talvez seja até mesmo uma cilada para encobrir certo preconceito. Ao qualificar os índios como crianças ingênuas e puras, substituem-se incompreensão e des-conhecimento por complacência romântica ou humanismo ge-neroso. Como não cair nessa cilada?

Uma das grandes contribuições da antropologia contempo-rânea foi assumir a tarefa de demonstrar a racionalidade exis-tente por trás das religiões e dos mitos, colocando-os como linguagens tão legítimas para a explicação do mundo como as da ciência ou da filosofia. E, da perspectiva evolucionista, pa-radigma confortável para encaixarmos numa linha do tempo a convivência de diferentes povos e culturas, ficou fácil declarar “com ciência” que há povos mais adiantados e povos mais atra-sados, em estágios menos avançados de racionalidade. A razão vista dessa forma passa a ser sinônimo de verdade. A não-lógi-ca aparente de um mito, portanto, coloca-o no nível da “men-tirinha”, dos contos e das lendas. A antropologia veio alertar que a humanidade, ao tentar entender a natureza (Posso ou não comer essa raiz? Como se comporta dado animal para que eu possa abatê-lo para me alimentar? Por que aquela estrela apa-rece no céu apenas em determinados períodos?), oferece um conjunto de explicações que expressam os mesmos conteúdos de maneira diferenciada; os recursos pedagógicos (de lingua-gem) utilizados para repassar esse conhecimento determinam a percepção que se tem desse ou de outro evento.

Foi por meio da interpretação dos mitos que os especialistas puderam demonstrar que a compreensão do mundo pelo ser hu-mano responde a uma curiosidade imposta pela necessidade de sobrevivência, e que os diferentes estilos de linguagem utilizados para repassar esses conhecimentos dão origem ao conjunto de explicações que fundamentam a ciência e a história de todos os povos do mundo.

O MITO NO INCONSCIENTE COLETIVOO psicanalista suíço Carl Jung

(1875-1961) contribuiu de maneira

decisiva e relevante para a importância

do mito. De acordo com Jung, há

na mente humana um substrato

desconhecido, responsável pelo lado

obscuro da psique, denominado por

ele de inconsciente coletivo, que

contém o aprendizado resultante da

experiência humana em todos os

tempos. Os mitos, dessa perspectiva,

“podem ser entendidos como

narrativas que trabalham com

arquétipos (modelos ou padrões)

presentes no inconsciente coletivo e

que permitem o contato com emoções

e imagens simbólicas constitutivas

da própria condição humana”, como

explica a professora Aracy Lopes da

Silva no artigo “Mito, razão, história e

sociedade”. Segundo ela, o contato (da

criança, do jovem ou do adulto) com

mitos indígenas traz a oportunidade

de perceber “a igualdade básica da

condição humana no mundo”, embora

as pessoas sejam tão diferentes umas

das outras.

Portanto, ao trabalhar narrativas

indígenas, é importantíssimo

respaldar-se em conhecimentos

mais amplos que contextualizem a

proveniência daquele repertório de

informações.

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POVOS, NAÇÕES OU TRIBOS?

Em Mavutsinim e o Kuarup, Rosana Rios fala em “povo in-dígena” ou em “nação indígena”, mas nunca em “tribo”. Assim como ela só usa os termos “mito” e “história”, mas nunca “estória” – palavra que caiu em desuso depois de longos embates filológi-cos, pelos motivos discutidos no item “Mito ou história?”.

O termo “tribo” deve ser evitado, a não ser em análises mui-to particulares da ciência antropológica. A antropologia colonial cunhou na noção de “tribo” todo grupo social com alguma ho-mogeneidade linguística e cultural, que compartilha um território comum, mantém relações econômicas e religiosas e é comandado por uma autoridade central baseada em dada estrutura familiar. O aprofundamento dessa ciência permitiu perceber a imprecisão do termo, que tendia a generalizar diferenças insuficientemente estudadas, as quais serviram para justificar ações homogeneiza-doras e etnocêntricas. A antropologia atual rejeita essa designação para identificar povos indígenas.

O caso do Parque Indígena do Xingu é emblemático. Ali há um conjunto de povos que partilham território, cerimônias e mantêm relações políticas por meio de casamentos e rituais. Mas falam línguas totalmente diferentes, têm regras de parentesco in-compatíveis e assim por diante. Por isso, são povos diferentes e não “tribos” genéricas.

O conceito de nação, por sua vez, traz uma precisão adequada para delimitar a diferença e a autonomia desses povos em relação aos outros. No entanto, razões políticas mais uma vez fundadas na história do Brasil conduziram a atual antropologia brasileira a ter cautela na aplicação do termo “nação” para designar os grupos indígenas no caso brasileiro. A explicação para isso está na intensa luta pelo reconhecimento dos territórios indígenas nos idos dos anos 1970. Por ocasião da abertura de estradas e hidrelétricas na Amazônia, a meta da política indigenista era reunir “o que restava” dos grupos então contatados dentro do Parque Indígena do Xingu. Assumia-se que não havia mais nenhum em estado “puro” e que, portanto, os já “aculturados” seriam inexoravelmente assimilados pela sociedade majoritária em pouco tempo.

Nessa época, o regime militar associava com a designação “na-ção indígena” um movimento separatista dos povos indígenas, apoiados por interesses internacionais que visavam as riquezas minerais da Amazônia. Dessa perspectiva da segurança nacio-nal, os militares viam os índios como algozes de uma disputa ter-

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ritorial internacional que ameaçava a soberania do país. Como eram os antropólogos – do Brasil e do exterior – os grandes aliados dos índios a serem colocados no mapa do país com teses e estudos demonstrativos, a Associação Brasileira de Antropo-logia, para não pôr a perder os direitos indígenas discutidos na Assembleia Constituinte reunida entre 1987 e 1988, decidiu que seria estratégico chamar essas “nações” de “povos”. Afinal, não fazia parte da expectativa dos índios tornarem-se não-brasilei-ros, mas o contrário: lutavam para ser reconhecidos como cida-dãos da nação Brasil, com direitos especiais. Foi o retrato de uma menina Yanomami embrulhada por uma bandeira brasileira, fla-grada pela fotógrafa Claudia Andoujar, que ilustrou o principal mote da campanha pró-indígena da Assembleia Constituinte.

Utilizar, portanto, a denominação “nação indígena” não é in-correto; mas “povo indígena” assegura uma interpretação não equivocada da ideologia mais nacionalista do pensamento diplo-mático e militar brasileiro, que ainda prevalece.

COMO USAR O LIVRO NA SALA DE AULA

Como diz o ditado popular, “quem conta um conto aumenta um ponto”. Com as narrativas orais, esse é um fato bastante im-portante. O pontinho a mais faz sempre a diferença. Meu relato nunca será igual ao seu. • Uma forma de valorizar essas diferenças é pedir aos alunos

que se reúnam em grupos e contem, a sua maneira, a his-tória que acabaram de ler. Cada grupo apresentará, depois, umaversão própria. O professor poderá compará-las, notando quaisforam as diferenças, mas sempre valorizando a recriação feitapelos alunos. Com isso, será possível mostrar aos estudanteso funcionamento da narrativa oral, na qual entram o enredoem si (uma estrutura básica) e a criatividade dos grupos aorecontar e recordar a história.

Os alunos trabalharam reunidos, conversaram sobre um mesmo assunto e cada grupo obteve uma versão diferente de algo cujo pon-to de partida foi um só. Se cada grupo “contou um conto” e a “cada conto foi adicionado um ponto”, pode-se dizer que essa é uma ca-racterística dos seres humanos, o que ajuda o aluno a se posicionar como cidadão que respeita e acata diferenças.

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• Uma segunda possibilidade é pedir aos alunos que busquemem casa, com seus familiares e em livros, histórias sobre o sur-gimento do mundo e do homem. Eles poderão em classe, como auxílio do professor, perceber os pontos em comum e as di-ferenças dessas narrativas. A diversidade de mitos e o respeitoque se deve ter para com cada uma das explicações mágicasdo mundo será o tema em pauta.

• Também é possível explorar, com base no livro, a história ea geografia dos índios no Brasil. Para isso, em primeiro lugar,pode-se pedir aos estudantes que tragam de casa notícias dejornal relacionadas ao assunto: problemas de demarcaçãode terras, descobertas sobre o modo de vida de determina-dos povos indígenas etc. A partir dessa conversa, o professorpoderá falar sobre a presença dos índios no Brasil antes dacolonização portuguesa, o que se passou quando foram cate-quizados pelos padres portugueses, em seguida escravizadospelos dominadores, e qual a situação hoje.

• A leitura de Mavutsinim e o Kuarup pode despertar o interessedos alunos pelas tradições dos índios atualmente. O professorpoderá pedir que façam uma pesquisa na internet, em casa ouna biblioteca, a respeito da festa do Kuarup, enquanto ele seresponsabilizará por apresentar à sala notícias de jornal sobreesse ritual que ainda existe. Com isso, ficará mais claro quealgo aparentemente considerado “coisa do passado” – tendên-cia da leitura de uma história dessa natureza – pode ser, naverdade, “coisa de hoje em dia”.

SUGESTÕES DE LEITURA PARA O PROFESSOR

• Lopes da silva, Aracy. Índios. São Paulo: Ática, 1988. (Cole-ção Ponto-por-ponto.)

• Lopes da silva, Aracy. Mito, razão, história e sociedade. In:A temática indígena na escola. Brasília: MEC/Mari/Unesco,1995, p. 317-335.

• Lopes da silva, Aracy; Grupioni, Luís Donisete Benzi (orgs.).A temática indígena na escola: novos subsídios para professoresde 1º e 2º graus. Brasília: MEC/Mari/Unesco, 1995.

• Melatti, Julio Cezar. Índios do Brasil. 48. ed. São Paulo:Hucitec, 1983.

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Mavutsinim e o Kuarup Rosana Rios

• Ramos, Alcida. Sociedades indígenas. São Paulo: Ática,1986. (Coleção Princípios.)

• Ricardo, Carlos Alberto (ed.). Coleção Povos indígenas noBrasil. São Paulo: Instituto Socioambiental, 1996.

• Rodrigues, Ayron dall’Igna. Línguas brasileiras: para o co-nhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Loyola, 1986.

• Santilli, Márcio. Os brasileiros e os índios. São Paulo: Se-nac, 2000.

SUGESTÃO DE LEITURA PARA O ALUNO

• Fittipaldi, Ciça. Mitos de índios de várias tribos. São Pau-lo: Melhoramentos, 1986. (Série Morena.)

SUGESTÃO DE SITE PARA O ALUNO E PROFESSOR

• Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil:www.isa.org.br/pib/index.html

OUTROS TÍTULOS DA COLEÇÃO CANTOS DO MUNDO

• Asare, Meshack. O chamado de Sosu. São Paulo: SM, 2005.• Badoe, Adwoa. Histórias de Ananse. São Paulo: SM, 2006.• Barbosa, Rogério Andrade. Os amantes do lago Rotorua.

São Paulo: SM, 2005.• Chamberlim, Mary e Rich. As panquecas de Mama Panya.

São Paulo: SM, 2005.• Hiratsuka, Lúcia. Contos da montanha. São Paulo: SM, 2005.• Homme, Eric. Contos de um reino perdido. São Paulo: SM, 2006.• Krebs, Laurie. Um safári na Tanzânia. São Paulo: SM, 2007.• Rios, Rosana. A história de Gilgamesh, rei de Uruk. São

Paulo: SM, 2007.• Vieira, Alice. Contos e lendas de Macau. São Paulo: SM, 2006.

Elaboração do guia Marina Kahn (antropóloga); PrEParação heitor Ferraz; rEvisão Márcia Menin e carla Mello Moreira.