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    A GUERRILHA SEMIOLOGICAArtur Matuck, O Potencial Dialgico da Televiso

    Ao analisarmos o processo de comunicao de massa da perspectiva do receptor, aproposio semiolgica de uma decodificao crtica da mensagem, elaborada por UmbertoEco em 1967, merece especial ateno.

    Comunicao de massa, define Umberto Eco, ocorre quando a fonte nica,centralizada e estruturada de modo industrial; o canal um artefato tecnolgico que influisobre a prpria forma do sinal; e os destinatrios so a totalidade (ou um nmero muitogrande) dos seres humanos, em diferentes partes do globo.(1)

    Neste processo, as idnticas mensagens irradiadas a partir da fonte "... chegam asituaes sociolgicas diferenciadas, onde agem cdigos diferentes".(2) Estes cdigos "...estabelecem diferentes regies de correlao entre dados significantes e dados significados".Portanto, a mesma forma significante da mensagem "... pode ser preenchida com diversossignificados".(3) Neste sentido que Eco conclui: "A variedade das interpretaes a leiconstante das comunicaes de massa".(4)

    Ainda assim, algumas decodificaes que estejam em desacordo com o cdigoinstitudo tm sido chamadas de "aberrantes"; Umberto Eco contudo afirma que "aberrante"no quer absolutamente dizer errneo, mas sim "aberrante" em relao s intenes doemitente, assumindo nesta questo, terica e terminolgica, a perspectiva do receptor.(5) Defato, o semilogo italiano reitera que "... os fenmenos chamados de "aberrncia" no tmsido julgados como um obstculo para a compreenso, mas como a ltima chance deliberdade oferecida s massas indefesas e, por isto, seria conveniente, tanto poltica comopedagogicamente, estimul-las ao invs de reprim-las..."(6) Por esta razo, Umberto Ecoadvoga a "... institucionalizao da recusa e da reinterpretao sectria da mensagem...",propondo uma recepo crtica ou mesmo uma forma semiolgica de guerrilha.(7)

    Freqentemente, observa Eco, acredita-se que para controlar o poder meditico sejanecessrio dominar dois elementos da cadeia comunicativa: a fonte de informao e o canaltransmissor. Mas, deste modo, adverte Eco, "... controla-se a mensagem como forma vaziaque chegada Destinao, cada um preencher com os significados que lhe sero sugeridospela prpria situao antropolgica, pelo modelo de cultura".(8)

    Por esta razo, Eco prope que a guerrilha semiolgica seja uma batalha contra ocdigo do poder emitente, uma confrontao que ocorra no momento da recepo: "Noslugares mesmos onde parece impossvel alterarem-se as modalidades da emisso ou a formadas mensagens, continua possvel modificarem-se as circunstancias luz das quais os

    destinatrios escolhero os seus prprios cdigos de leitura".(9)A interveno "revolucionria" da conscincia semiolgica torna-se necessria porque

    "... as comunicaes de massa se apresentam como a manifestao de um domnio querefora o controle social atravs da planificao da transmisso de mensagens".(10) Dianteda ampliao do poder irradiador do emissor, os cientistas e tcnicos de comunicao sevem diante de um desafio: imaginar sistemas complementares de comunicao que possamatingir cada grupo isolado, cada indivduo do pblico para "... discutir a mensagem quechega, luz dos cdigos de chegada, confrontando-os com os de partida".(11)

    O propsito desta guerrilha semiolgica seria no apenas demonstrar que a mensagem

    pode ter seu significado invertido, mas, sobretudo, mostrar os diversos modos de interpret-la, ainda que a forma significante permanea inalterada.(12)

    Para alcanar estes objetivos, Eco prope que o universo da comunicao sejaatravessado por "... grupos de guerrilheiros da comunicao que reintroduziriam uma

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    A guerrilha poderia provavelmente tomar a forma de um combate intermeditico, demodo que um determinado veculo emitisse uma srie de juzos sobre outro veculo decomunicao, desafiando o suposto significado unvoco das mensagens emitidas pelo veculocriticado.(14)

    O semilogo italiano Paolo Fabri compartilha desta viso militarizada do processo de

    comunicao. Fabri relata que diversas experincias demonstram que o pblico resiste manipulao dos "mass media": "Portanto, a interpretao da mensagem no uma leitura,mas uma batalha sobre o texto, uma guerra contra a interpretao, cada leitura umconflito".(15)

    Os americanos Barnlund e Thayer reconhecem o mesmo fenmeno de resistncia doreceptor s mensagens, mas o definem de uma perspectiva scio-cultural, isolando-a deeventuais conotaes ou conseqncias polticas. Para Barnlund, a comunicao seria umatransao "... na qual o homem inventa e atribui significaes para realizar seus projetos".(16) Por sua vez, Thayer considera que as capacidades internas de interpretao do receptordeterminam a captao de significados.(17)

    Na perspectiva da moderna teoria americana, o destinatrio no mais a vtima de umprocesso orientado pelo poder institudo, mas um participante ativo que recebe dados eprocura negociar com eles interativamente, segundo seus interesses e viso do mundo.

    Katz e Liebes, tambm pesquisadores americanos, sublinharam ainda mais aimportncia dos fatores scio-culturais ao pesquisarem a influncia do seriado Dallas econclurem que mesmo aquilo que no est em cena ou aquilo que desmentido pela cena relatado por telespectadores.(18)

    Esta pesquisa - destinada a orientar as estratgias do emissor - considera

    "disfuncional" e incmoda esta participao do receptor, que no receberia os contedos a eledirigidos com os significados previstos.

    Porm a insero de significados inexistentes no revela, necessariamente, umadecodificao crtica do espectador. Pode, ao contrrio, indicar um tipo de recepo passivalevada ao extremo do relaxamento, num processo que favorece a emergncia de contedosinconscientes, que so estimulados pela mensagem televisiva e que tendem a preench-la ea reformul-la, num momento em que se atenua a diviso entre o consciente e oinconsciente.

    Fenmenos desta modalidade de "aberrncia" interpretativa so tambm discutidos por

    Hadley Cantril, em seu estudo "The invasion from Mars". O pesquisador americano analisa osefeitos da transmisso radiofnica comandada por Orson Welles, teledifundida nos EstadosUnidos na noite de 30 de outubro de 1938. Cantril procura respostas para a seguintepergunta: "Como algum que havia sintonizado a emisso desde o incio pode ter confundidoa representao, claramente anunciada, com um noticirio?"(19) Neste episdio, relataCantril, diversos fatores contriburam para criar no pblico americano um estado propcio sugestionabilidade: a ameaa de guerra e invaso, a prolongada crise econmica da poca ea conseqente insegurana pessoal. Sua anlise demonstra que determinadas predisposiesdo pblico influenciam o modo pelo qual as transmisses so compreendidas.(20)

    Por outro lado, quando Armand Mattellart refere-se questo da re-significao das

    mensagens - "O significado de uma mensagem no est limitado ao seu estgio detransmisso. A audincia pode tambm produzir seu prprio significado"(21) - , estdiscutindo uma questo bem diferente, porquanto considera que a recepo crtica insere-senum processo de confrontao sgnica e poltica no interior da luta de classes.

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    O modelo dominante "de produzir cultura e falsa conscincia" assenta-se, paraMattellart, sobre uma relao de poder que se distribui por todos os nveis da comunicao.Na vinculao unidimensional entre emissor e receptor, Mattellart identifica uma relao entreprodutor e consumidor, atravs da qual a classe dominante, como proprietria dos veculos"... se apropria do produto das foras sociais e se erige no nico poder criador de sentido darealidade cotidiana".(22)

    Nesta relao vertical, as classes dominadas so usurpadas de seus atos e de suas

    vozes. Como protagonistas da histria, os povos esto sempre atuando em movimentos decarter social, mas no tm a possibilidade de dar um sentido prprio s notcias veiculadasque descrevem estes movimentos. Os veculos de comunicao de massa reinterpretam arealidade social, moldando-a segundo seus interesses de classe e difundindo uma versodistorcida que favorece a perspectiva do poder estabelecido.

    Os receptores no entanto resistem ao processo e se engajam num confrontoideolgico: "A audincia no aceita necessariamente ler as mensagens enviadas para ela pelaclasse dominante com o cdigo prescrito por esta classe e sua cultura. A conscincia declasse e a prtica social do ouvinte-leitor-espectador permite-lhe aceitar ou rejeitar o efeitoinexorvel da mensagem, sua fascinao Mcluhaniana".(23)

    Michel de Certeau, conceituado antroplogo-historiador francs, discute o que osconsumidores ou dominados fazem com as mensagens receptadas, citando o exemplo dacolonizao espanhola sobre os ndios na Amrica: "Subjugados e mesmo consentindo, estesndios freqentemente convertem as liturgias, representaes ou leis s quais so forados aaceitarem,em alguma outra coisa diferente daquilo que o conquistador esperava obteratravs de sua imposio ... a fora de sua diferena residia em seus procedimentos de'consumo' ... Eles escapavam do sistema sem deix-lo".(24)

    O mesmo fenmeno ocorre em nossa poca, segundo Umberto Eco, na confrontaoentre a cultura dos pobres e marginalizados e os meios de comunicao de massa: "... a

    cultura subalterna no pura, desde que nasce de uma adaptao incompleta entre ascomposies da cultura hegemnica atravs dos 'mass media' e o conjunto dasinterpretaes que a cultura subalterna oferece, ao produzir comportamentos, sentimentos esistemas de opinies".(25)

    As idias de Mattellart e Eco convergem para a constatao de que uma recepocrtica pode efetivamente proporcionar ao receptor um papel ativo e deliberante no processode comunicao. Eco ressalta a "energia pragmtica da conscincia semiolgica", salientandoque at mesmo "uma disciplina descritiva pode traduzir-se em projeto ativo".(26) Mattellart,por sua vez, argumenta que a conscincia poltica de classe dos receptores que lhespermite refutar e resignificar as mensagens, especialmente aquelas que lhes so dirigidas

    com fins persuasivos.A divergncia entre suas proposies estaria, portanto, nos objetivos de uma recepo

    crtica, no sentido poltico da reinterpretao da mensagem.

    Umberto Eco reconhece que "... uma ttica de decodificao que institua circunstnciasdiferentes para decodificaes diferentes..." pode ser til para se combater "... umaengenharia da comunicao que se esfora por redundar as mensagens a fim de assegurar-lhes a recepo segundo os planos estabelecidos".(27) Ele mesmo, porm, adverte que esteaspecto "revolucionrio" da conscincia semiolgica no deve nos induzir ao otimismo, pois"... o mesmo procedimento serve tanto para a contestao quanto para o restabelecimento

    de um domnio".(28)Armand Mattellart, contudo, reconhece claramente, na comunicao de massa, um

    instrumento de controle ideolgico e, portanto, inclui a recepo crtica num processo polticomais amplo. A resistncia ao poder da mensagem representa "uma estratgia poltica de

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    criao comunitria do poder popular" e est inserida num processo efetivo de luta de classe:"Esta forma de resistncia defensiva garante, prepara e apoia certas respostas culturahegemnica, que constituem uma resistncia ofensiva".(29)

    Poderamos aventar uma terceira via: as duas concepes no seriam excludentes,mas complementares; a perspectiva semiolgica e a poltica seriam ambas necessrias nesteprocesso de se instituir o receptor autnomo. Talvez se deva mesmo afirmar que aconscincia poltica requer uma conscincia semiolgica, uma capacidade crtica de

    decodificar, por trs da ideologia dos discursos, a desigualdade das classes sociais.

    Por outro lado, a guerrilha semiolgica efetiva deve ser politicamente orientada,determinando um projeto de leitura especfico que resulte em objetivos estratgicos. Cadaclasse social, cada etnia, cada sexo, cada minoria ou mesmo cada indivduo tmnaturalmente interesses prprios que se refletem na decodificao. Dispem de arsenaisparticulares que utilizam neste processo de confrontao com a comunicao instrumental.

    No entanto, projetos de leitura especficos podem e devem ser articulados de tal modoque os objetivos polticos de indivduos, minorias, grupos ou classes sociais possam serconjugados a processos de decodificao, interpretao e resignificao. Nesta tarefa de re-

    leitura objetivada, o conhecimento terico e prtico da comunicao e da semiologia serocertamente necessrios para que diversos e novos significados possam emergir.

    2.2 - CRITICA E POLTICA NA RECEPO: A GUERRILHA SEMIOLOGICA

    01 - Umberto Eco. A guerrilha semiolgica. In: Viagem na Irrealidade Cotidiana. Ed. NovaFronteira, Rio de Janeiro, 1984, p. 171.02 - Eco. Viagem na Irrealidade Cotidiana. p. 171.03 - Eco. El pblico perjudica la Television ?. In: Sociologia de la comunicacin de masas. M. deMoragas, ed. Vol. II, Barcelona, Ed. Gustavo Gilli, 1985, p. 177.04 - Eco. Viagem na Irrealidade Cotidiana, p. 171.05 - Eco. Sociologia de la comunicacin de masas. Vol. II, p. 180.06 - Eco. Sociologia de la comunicacin de masas. Vol. II, p. 179.07 - Eco. Sociologia de la comunicacin de masas. Vol. II, p. 192.08 - Eco. Viagem na Irrealidade Cotidiana, p. 173.09 - Eco. A Estrutura Ausente. Ed. Perspectiva, So Paulo, 1976, p. 418.10 - Eco. A Estrutura Ausente. p. 418.11 - Eco. Viagem na Irrealidade Cotidiana, p. 173.12 - Eco. Viagem na Irrealidade Cotidiana, p. 174.13 - Eco. Viagem na Irrealidade Cotidiana, p. 175.14 - Eco. Viagem na Irrealidade Cotidiana, p. 174.15 - Paolo Fabri. Citado por Fontecoberta e Mompart. Alternativas en comunicacin, p. 52-3.

    16 - Barnlund. Citado por Lucien Sfez. Traverses 44-45, p. 41.17 - Thayer. Citado por Lucien Sfez. Traverses 44-45, p. 41.18 - Katz e Liebes. Citados por Lucien Sfez. Traverses 44-45, p. 41.19 - Hadley Cantril. La invasin desde Marte. In: Sociologia de la comunicacin de masas. Vol. II,p. 99.20 - Cantril. Sociologia de la comunicacin de masas. Vol. II, p. 106.21 - Armand Mattellart. Introduction: for a class analysis of communication. In: Communicationand class struggle. Mattellart e Siegelaub. International General, New York, 1979, p. 27.22 - Mattellart. La comunicacin massiva no processo de liberacin. Siglo Vertiuno Ed. Mxico,1973, p. 19.23 - Mattellart. Communication and class struggle. p. 27.24 - Michel de Certeau. Citado por Mattellart. In: Communication and class struggle. p. 28.

    25 - Eco. Sociologia de la comunicacin de masas. Vol. II, p. 189.26 - Eco. A Estrutura Ausente, p. 419.27 - Eco. A Estrutura Ausente, p. 419.28 - Eco. A Estrutura Ausente, p. 419.29 - Mattellart. Communication and class struggle. p. 28.