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IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 MATERIALIDADES VISUAIS E VERBAIS NO ENSINO DE LÍNGUAS: O PERÍODO DA DITADURA NAS CAPAS DA REVISTA VEJA. Aline Gonçalves De LIMA (UEM) 1 Luciana C. F. Dias Di RAIMO (UEM) 2 Introdução As Revistas, enquanto veículos jornalísticos têm um papel significativo em nossa sociedade, sob um efeito de evidência, tais como as de nos manter informados ou ainda trazer à tona a verdade dos fatos. Também, há no funcionamento do discurso jornalístico a produção de uma verdade: os veículos da comunicação afirmam que buscam relatar acontecimentos sem favorecer ou desfavorecer algum dos lados. No caso particular desta investigação, partimos de um interesse no ensino da leitura a partir do texto jornalístico, levando em conta as implicações da abordagem da materialidade verbal e visual constitutiva de capas e de reportagens sobre o regime militar no Brasil (1964-1985), publicadas no acervo online da Revista Veja. Pensar a leitura de capas e reportagens nos exigiu delinear encaminhamentos para uma abordagem discursiva da textualidade de tais textos. Em termos de condições de produção, partimos da conjuntura sócio-histórica relativa ao Regime Militar, considerando, de um lado o fato de tal período ser caracterizado como muito autoritário, do ponto de vista da liberdade de imprensa. Com efeito, é preciso considerar a relação linguagem e história na produção de sentidos, visto que havia, neste período, um controle da informação. Assim, a censura tinha poderes de vetar publicações 1 Graduando (bolsista CNPq) em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). 2 Professora Doutora do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá (UEM) - Orientadora.

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IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares

05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

MATERIALIDADES VISUAIS E VERBAIS NO ENSINO DE LÍNGUAS:

O PERÍODO DA DITADURA NAS CAPAS DA REVISTA VEJA.

Aline Gonçalves De LIMA (UEM)1

Luciana C. F. Dias Di RAIMO (UEM)2

Introdução

As Revistas, enquanto veículos jornalísticos têm um papel significativo em nossa

sociedade, sob um efeito de evidência, tais como as de nos manter informados ou ainda

trazer à tona a verdade dos fatos. Também, há no funcionamento do discurso jornalístico a

produção de uma verdade: os veículos da comunicação afirmam que buscam relatar

acontecimentos sem favorecer ou desfavorecer algum dos lados.

No caso particular desta investigação, partimos de um interesse no ensino da leitura

a partir do texto jornalístico, levando em conta as implicações da abordagem da

materialidade verbal e visual constitutiva de capas e de reportagens sobre o regime militar

no Brasil (1964-1985), publicadas no acervo online da Revista Veja. Pensar a leitura de

capas e reportagens nos exigiu delinear encaminhamentos para uma abordagem discursiva

da textualidade de tais textos.

Em termos de condições de produção, partimos da conjuntura sócio-histórica

relativa ao Regime Militar, considerando, de um lado o fato de tal período ser caracterizado

como muito autoritário, do ponto de vista da liberdade de imprensa. Com efeito, é preciso

considerar a relação linguagem e história na produção de sentidos, visto que havia, neste

período, um controle da informação. Assim, a censura tinha poderes de vetar publicações

1 Graduando (bolsista CNPq) em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).

2 Professora Doutora do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá (UEM) -

Orientadora.

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ou artigos que falavam algo contra o regime, deixando ser publicado somente o que os

favoreciam. Há que se pensar também que a Revista Veja, por sua vez, foi vetada várias

vezes, tendo que mudar seus artigos para publicação nas bancas.

De outro lado, a conjuntura da ditadura nos leva a pensar na problemática da

censura (da imposição de um sentido e não outro), dentro dos estudos da Análise do

discurso. Se no discurso sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo, tendo-se em vista

a imposição da censura, na ditadura, era proibido que o sujeito-jornalista ocupasse certos

lugares, certas posições contrárias ao governo vigente. Entendida por Orlandi como

“silêncio imposto por um grupo dominante”, a censura intervém nos sentidos que devem

ser produzidos em detrimento de outros, de modo que onde aparece a censura, passa a

trabalhar a resistência. Este movimento entre silenciar e dizer, na discursividade das capas

da revista Veja, nos chama fortemente a atenção.

Diante do exposto, vale destacarmos os objetivos desta pesquisa que contempla: a

apresentação de encaminhamentos para uma proposta discursiva de textos jornalísticos

(capas e reportagens de capa) sobre o período ditatorial no Brasil (1964-1985),

disponibilizados no acervo digital da Revista Veja. Diante da especificidade do material

linguístico, notamos a necessidade de evidenciar o jogo entre verbal e visual, contribuindo

para a constituição de um aluno sensível a outras linguagens por conta de duas razões

principais: primeiro, por permitir ampliarmos, em práticas de leitura, as possibilidades de

abordagem de diferentes formas de linguagem em sala de aula, na medida em que é

possível trabalhar a convivência da linguagem verbal com a música, com a imagem, além

disso, relacionar a língua com a história e com as condições de produção mais amplas.

Para a formulação da proposta de leitura de textos jornalísticos, estamos apoiados na

proposta multidimensional-discursiva, levando-se em conta os três componentes inter-

relacionados (intercultural, língua/discurso e práticas verbais (SERRANI, 2005, p. 29-37),

além de princípios teóricos referentes à analise de discurso de linha francesa (PÊCHEUX,

1988; ORLANDI, 1999).

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A fim de refletir sobre as condições históricas que determinam um sentido e não

outro em um dado momento da história de nosso país como a ditadura, é preciso pensar a

conjugação da problemática da cultura e da memória no que se refere à construção de

sentidos num dado texto. Vale destacar também que focalizamos, com base nesta referida

proposta, o elemento cultural, que deve ser trabalhado não como elemento acessório, mas

como constitutivo da história e da memória do país.

Por fim, será também pertinente compreender certos efeitos causados sobre os

leitores da revista justamente a partir da integração da materialidade visual e verbal destas

capas e reportagens da Veja.

Tendo-se em vista a seleção de capas e reportagens da Revista Veja, dentro das

condições de produção da ditadura militar brasileira, foi possível observar que a cultura e a

história brasileira aliada à estrutura da língua podem ser trabalhadas de maneira integrada.

Podemos concluir que a articulação do componente sociocultural ao língua-discurso nos

fornece uma chance de compreender o funcionamento discursivo de textos que se

constituem na integração verbal e visual e que materializam uma memória do país. Vamos

aos componentes estruturantes da referida proposta:

Componente intercultural: diz respeito ao desenvolvimento e à inclusão da

diversidade nos conteúdos para uma maior compreensão da dimensão heterogênea de uma

língua, incluindo uma reflexão sobre os seguintes elementos: territórios e espaços;

populações, grupos sociais e dados históricos; realizações artísticas cientificas, ecológicas e

legados culturais.

Componente língua/discurso: neste componente, o texto deve ser visto não como

soma de frases, mas como uma totalidade lingüístico-histórica que não se restringe à

dimensão linear do dizer (textualidade), mas também em relação ao interdiscurso, isto é, ao

eixo vertical do dizer, da constituição dos sentidos ou do eixo da memória.

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Componente de práticas verbais: concretização que deve ser interdependente dos

componentes anteriores em práticas de escrita e leitura.

Vale destacar que a pesquisa está ancorada em uma visão de ensino da linguagem que não

pode estar limitado só à análise descontextualizada de elementos formais ou estruturais.

Para tanto, é necessário considerar a dimensão do texto tanto na parte verbal quanto na

visual, compreendendo como cada materialidade em sua especificidade produz efeitos de

sentidos. Assim, destacamos a relevância de compreender o texto além de sua dimensão

conteudística, na medida em que a linguagem é um objeto simbólico marcado pela

incompletude e pelo equívoco.

1. A Análise de discurso de linha francesa

Em termos teóricos e metodológicos, o estudo está filiado a Analise de Discurso de

linha francesa (PÊCHEUX, 1988; ORLANDI,1999) que procura compreender a linguagem

e seu sentido, partindo do trabalho social geral, constitutivo do homem e da história

(ORLANDI,1999, p. 15).

Ao especificarmos uma análise enquanto discursiva faz-se necessário pensar as

implicações desta escolha para o trabalho de pesquisa e para nosso olhar para a linguagem.

Neste caso, compreender a construção dos sentidos em capas e reportagens da Revista

Veja, produzidas durante a ditadura exige um olhar diferenciado para o texto.

Tomando-se como base a constituição da Análise do discurso, Pêcheux e Fuchs

(1975, p. 163-164) preconizam um quadro epistemológico geral deste domínio que engloba

três regiões do conhecimento: (i) a presença do materialismo histórico como teoria das

formações sociais e suas transformações; (ii) a Lingüística como teoria dos mecanismos

sintáticos e processos de enunciação e (iii) a Psicanálise (teoria de subjetividade) e uma

concepção de sujeito descentrado, dividido, marcado pela ilusão da unidade e da

completude.

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A Análise do discurso, ao pressupor o legado do Materialismo histórico, sustenta a

premissa de que há um real da língua de tal forma o homem faz a história, mas essa não é

lhe transparente (ORLANDI, 1999, p. 19). Mas quando se fala em ideologia, para a Análise

do discurso, não a consideramos como representação do mundo ou como ocultação da

realidade. Segundo Orlandi (1999, p. 48), “não há realidade sem ideologia”. Ou seja, a

ideologia aparece como efeito da relação necessária entre língua e história para que haja

sentido.

Para Pêcheux (1990), não podemos pensar em transmissão de informação. No

funcionamento da linguagem, temos sujeitos e produção de sentidos, isto é, há presentes um

sujeito A e um destinatário B que se encontram em lugares determinados na estrutura de

uma formação social. Daí um discurso não implicar necessariamente uma mera troca de

informações entre A e B, mas sim um jogo de “efeitos de sentido” entre os sujeitos e

processos de identificação, relações de poder, produção de efeitos variados.

Assim, temos que pensar: quais os tipos de leitores que a Revista Veja projeta e de

que maneira os textos se apresentam como unidade com começo, meio, fim, isto é,

formulam sentidos para a ditadura brasileira Se existe uma condição histórica para a

emergência de um sentido e não outro, ainda, salientamos a necessidade de um exame da

dimensão do texto (materialidade verbal) com base na função-autoria, isto é, como

princípio que garante coerência, não contradição, direção argumentativa ao texto, sem

perder de vista a relevância do efeito-leitor, ou seja, é preciso contemplar os possíveis

leitores que um texto prevê e por quais mecanismos ele os antecipa. Citemos Orlandi para

quem:

“Não se pode falar do lugar do outro; no entanto, pelo mecanismo de

antecipação, o sujeito-autor projeta-se imaginariamente no lugar em que o

outro o espera com sua escuta e, assim, “guiado” por esse imaginário,

constitui, na textualidade, um leitor virtual que lhe corresponde, como seu

duplo”. (ORLANDI, 2001, p. 61).

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1.1. O silêncio no discurso pós 19643

O silêncio neste caso da Revista significa a censura do significado na medida em

que a censura tem sua materialidade linguística e histórica, segundo Orlandi. (1995). Como

o sujeito não pode ocupar certas posições e produzir certos sentidos, a censura leva à

produção de sentidos silenciados. Mas mesmo no silêncio, há a possibilidade da

significação. Segundo a autora:

“O homem está “condenado” a significar. Com ou sem palavras, diante do

mundo, há uma injunção à “interpretação”: tudo tem de fazer sentido

(qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela

sua relação com o simbólico” (ORLANDI, 2007. p. 29).

Orlandi apresenta um estudo pioneiro sobre o papel do silêncio no discurso e define

formas do silêncio: (i) silêncio fundador, “aquele que existe nas palavras, que significa o

não-dito e que dá espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar”

(ORLANDI, 2007, p. 24) isto é, aquele que é necessário aos sentidos, visto que sem

silêncio, não há sentido; (ii) a política do silêncio, que se divide em silêncio constitutivo

(esse indica que para dizer, é preciso não dizer, ou seja, todo dizer apaga outras

possibilidades de dizer e silêncio local; (que nos remete à censura e à interdição)- aquilo

que é proibido dizer em uma dada conjuntura.

Orlandi analisa a censura e submissão a ela, como o ocorrido na Ditadura Militar,

concluindo que a censura imposta por um grupo dominante leva a uma produção maior de

sentidos silenciados. Este processo mexe com o dizer e o que não se pode se dito, de tal

forma que impede o sujeito discursivo de adotar algumas posições sobre tal assunto. Vale

citar Orlandi para quem:

Ao amenizar o que realmente queria ser dito, o sentido irá mudar, deslocando-se.

Para Orlandi, “O silêncio não fala, ele significa. Se você fizer o silêncio falar, ele vai

3Fonte: Resenha de: CELY BERTOLUCCI, para: Cadernos de Linguagem e Sociedade, 1997. Resenha do

livro: Orlandi, EniPulcinelli.As formas do silêncio -no movimento dos sentidos. Campinas, S. R:Editora da Unicamp, 1995, 189 págs.

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significar diferente. Ele significa por ele mesmo, ele faz sentido, e isto é muito importante.”

(Eni Orlandi, em entrevista ao Globo Universidade em: 05/11/2012).4

A “língua-espuma” é um termo que descreve a censura. Os sentidos são re-

significados justamente nos pontos nos quais se dá a resistência. Os artistas simulavam o

senso comum para dizer o que era proibido. Por exemplo, após o golpe dos militares 1964,

período no qual os artistas, músicos, redatores reagem à censura, disfarçando os termos

proibidos em discursos comuns e bem pensados. Surgiram várias formas de linguagem, de

fazer o deslocamento de sentido. As formas mais usadas foram: repetição, jogo com

significantes, substituição, jogo de palavras, entre outras.

1.2. Processos de constituição, formulação e circulação dos sentidos:

As capas da Veja enquanto sítios de significação levam-nos a pensar na confluência

texto (ordem da formulação), a memória (o interdiscurso) e a circulação dos sentidos. De

uma perspectiva discursiva, esses três processos são inseparáveis e igualmente relevantes,

nas palavras de Orlandi (2001, p. 9-10).

Assim, é preciso considerar de que o discurso ocorre “a partir da memória do dizer,

fazendo intervir o contexto histórico-ideológico mais amplo”, a formulação que, por sua

vez, é realizada em “condições de produção e circunstâncias de enunciação específicas” e a

circulação que corresponde aos trajetos dos dizeres feitos em certa conjuntura e segundo

condições. Neste sentido, as escolhas temáticas das reportagens e das capas (textos) e sua

circulação- a partir da revista, chama-nos fortemente a atenção.

Ademais, a formulação de uma capa de revista está relacionada ao processo no qual os

leitores são projetados no texto. Na configuração da textualidade, também, podemos pensar

na materialização de um já-dito que produz um efeito de evidência para a prática produzida

pela Revista Veja dentro da imagem que a sociedade faz deste veículo: uma vez que a

4Entrevista completa em:<http://redeglobo.globo.com/globouniversidade/noticia/2012/11/eni-orlandi-fala-sobre-

analise-do-discurso-e-linguagem-em-entrevista.html> Acesso em: 20 fev. 2013.

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Revista Veja é vista como produto ligado à direita (posição política) e à classe média, o

próprio funcionamento da Revista já é afetado pela imagem que a sociedade espera dela.

Em termos de condições imediatas, a produção da Revista Veja, está necessariamente

atrelada ao contexto sócio-histórico mais amplo, que por sua vez, relaciona-se ao período

ditatorial brasileiro. Também, na medida em que tal contexto sócio-histórico é marcado

pela censura e controle dos sentidos, a revista sofre as pressões deste período.

Neste sentido, concordo com Orlandi (2001, p. 12) para quem “os sentidos são como se

constituem, como se formulam e como circulam (em que meios e de que maneira: escritos

em uma faixa, sussurrados como boato, documento, carta, música etc)”.

2. Análise da revista Veja:

Figura 1- Capa da Revista Veja. Ed.12. 27 nov. 1968

2.1. Contexto histórico: Destacam-se as condições de produção da chamada música

popular brasileira na década de 60.

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É importante recuperar a memória relativa aos efeitos produzidos pelo AI-5 que

suprimiu os direitos políticos e intensificou a censura em relação aos meios de

comunicação e aos artistas ligados à expressão artística.

Neste sentido, é possível trabalhar com os alunos a dimensão da produção artística

permeada pela censura e considerar o papel dos artistas a partir de três ingredientes: crítica

ao governo, sentidos de esperança de novos tempos e interlocução com o povo a partir da

canção.

2.2. Gênero discursivo: capa de revista e letras de canções representativas.

2.3. Componente: intercultural

Neste componente, nossa opção foi mobilizar a temática dos legados culturais. É

relevante que, no trabalho em sala de aula, o professor coloque em evidência a diversidade

cultural e trabalhe com questões de identidade sócio-cultural, o que pode envolver uma

relação com os chamados legados sócio-históricos tais como músicas, movimentos

musicais, peças de teatros, filmes, obras de artes. No caso desta capa, é possível que o

professor explore a música de protesto produzida no contexto da ditadura e os cantores

representativos do período citado.

2.4. Componente: língua/discurso

É válido ao professor trabalhar com elementos linguísticos ligados ao texto da capa

da revista

Elemento da língua: pontuação (considerando a materialidade verbal).

Ao selecionar alguns trechos da capa e da reportagem da revista, buscamos salientar

que a pontuação, conforme Orlandi (2001, p. 111) é um “fato de discurso‟, ou seja, „um

elemento de organização do texto”.

Considerando o papel dos dois pontos, é preciso considerar a dimensão da

pontuação como marca ligada ao acréscimo no dizer:

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“Música popular: o protesto de ontem e hoje”

O título “Música popular” construção que se articula à subsequente que vem após os

dois pontos serve como elemento mais generalizante. Os dois pontos permitem a expansão

da significação e atestam a presença de um conectivo implícito, nesta pausa produzida

pelos dois pontos. Nas palavras de Pachi (2008, p. 74), há construções que “aparecem

justapostas e também se configuram como incidência de um outro discurso, aparentemente

regulado pelo sujeito que as insere como explicação para as orações antecedentes”. Neste

caso, este tipo de oração justaposta, no eixo da sintaxe, produz a possibilidade, que segundo

Haroche, seria a de "dizer-mais" do que o necessário para a compreensão de alguma coisa,

o que se relaciona à saturação do dizer. A música popular é significada, ampliada, como

aquela ligada ao protesto ontem e de hoje, em um movimento de temporalização do dizer.

A expressão que segue após os dois pontos não funciona somente como subtítulo,

mas também pode ser tomada aqui como uma forma de aposto, atestando o gesto de

pontuar compreendido como marca de divisões. Os dois pontos, além de produzir um efeito

de quebra da linearidade do texto, permitem a instauração da posição revista Veja: a

produção musical da MPB no contexto da ditadura é representação do protesto. Mas um

protesto colorido e alegre.

2.5. Materialidade visual da propaganda: na relação com o verbal.

Cantores representativos da MPB estão materializados na capa da revista na forma

de um desenho (caricatural): Gilberto Gil, Caetano Veloso, Elis Regina e Geraldo Vandré.

Vale destacar a oposição entre os semblantes dos artistas: Gilberto Gil e Elis Regina estão

sorrindo e configuram em primeiro plano ao passo que Geraldo Vandré e Caetano Veloso já

apresentam tom mais sério e estão em segundo plano.

As cores que compõem a capa são fortes e alegres: vermelho, laranja, verde, azul

escuro e produzem uma contraposição em relação à palavra “protesto” que está presente no

enunciado verbal: “Música popular: o protesto de ontem e hoje”. Este enunciado liga a

atividade musical à prática do protesto, mas, em termos de imagem, produz a contradição

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em relação à capa, na medida em que a Revista Veja traz sentidos positivos, associando os

cantores à memória de “música popular” enquanto a palavra “protesto” que evoca sentidos

ligados a descontentamento e à insatisfação, neste caso, da classe dos artistas parece

apagada e silenciada em termos de efeitos de sentidos.

O protesto, neste sentido, fica silenciado como prática de resistência e

questionamento. A capa dá ênfase para a alegria dos artistas ou até mesmo a atmosfera

positiva da produção musical (shows, festivais, contato com o público), contudo a

perspectiva do protesto como lugar de inquietação não parece ser o foco da revista, nesta

capa.

2.6. Componente: práticas verbais

Propor a leitura de uma letra de música protesto representativa do período. Como

exemplo, vamos propor a análise deste trecho:

Cálice - Chico Buarque 5

Compositores: Gilberto Gil/Chico Buarque,

(refrão)

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue.

Como beber dessa bebida amarga

Tragar a dor e engolir a labuta?

Mesmo calada a boca resta o peito

Silêncio na cidade não se escuta

De que me vale ser filho da santa?

Melhor seria ser filho da outra

Outra realidade menos morta

Tanta mentira, tanta força bruta.

5 Fonte: Vagalume – letras de músicas. <http://www.vagalume.com.br/chico-buarque/calice.html> Acesso em: 03 mar. 2013.

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A música de Chico Buarque é uma das mais representativas deste período de

censura, escrita (em 1973) dentro dessa atmosfera de perseguição à liberdade de expressão,

de modo que as letras eram difundidas e camufladas com assuntos banais ou cotidianos (por

uso de metáforas), para se dizer nas entrelinhas o real significado da canção de protesto.

A música Cálice, em especial, mistura a censura do período da ditadura, mesclada

com a religião católica. Esta canção conversa diretamente com o governo Médici, fazendo

críticas ao seu governo.

A música só foi liberada para ser gravada e apresentada em festivais em 1978.

É valido notar a polissemia da palavra “Cálice”, presente no refrão: cálice tanto

representa o recipiente, onde na bíblia é colocado o sangue de Cristo, quanto pode

representar a forma verbal no imperativo “cale-se”, significando o silêncio imposto pelo

período ditatorial. Vale também destacar que foneticamente os sons dessas expressões são

os mesmos (cálice/cale-se). As referências à paixão de Cristo podem ser associadas, na

transferência de sentidos, ao sofrimento do povo diante da repressão política imposta na

época.

Os versos: “Pai! Afasta de mim esse cálice/De vinho tinto de sangue.” mostra uma

súplica religiosa, a partir da qual se pede a Deus para afastar algo indesejado que é este

vinho tinto, significando o sangue decorrente da tortura imposta aqueles que não eram a

favor do governo.

A 1° estrofe da música, a qual selecionei para analisar, mostra a revolta progressiva

do autor, diante da tortura e censura impostas, em cada um dos versos. Nos versos: “Como

beber dessa bebida amarga/Tragar a dor e engolir a labuta?” remete a como aceitar a

realidade de submissão ao governo, referindo-se à falta de liberdade de expressão dos

artistas, “engolindo” a dor das torturas do dia a dia.

Os versos seguintes: “Mesmo calada a boca resta o peito/Silêncio na cidade não se

escuta” com a liberdade de expressão proibida, no peito está o sentimento de se livrar

daquela repressão; com toda aquela repressão a “classe pensante” está por dentro de tudo o

que se passava naquela época, por isso se refere ao silêncio que não se ouvia na

cidade. “De que me vale ser filho da santa?/Melhor seria ser filho da outra” o termo

implícito neste verso é “puta” no lugar de “outra” tendo então uma oposição de “santa” e

“puta”, neste contexto podendo significar a disposição a enfrentar a ditadura sem medir as

conseqüências. Nos últimos versos: “Outra realidade menos morta/Tanta mentira, tanta

força bruta”, são construídos sentidos nos quais a realidade é posta como morta, sem vida e

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sem reflexão/questionamento, bem como envolvida em mentiras e permeada por muita

força bruta (torturas), tudo isso para vir à tona a verdade do que constatava na época.

Esta música foi apenas umas das presentes configurações de insatisfação usadas

pelos artistas contra o governo para traduzir o sentimento dos cidadãos brasileiros que

estavam fartos deste tipo de repressão.

Temas a serem alvos de debate dentro do trabalho com a canção.

2.7. Militares x Liberdade de expressão6

De acordo com os dicionários, censurar significa: criticar, reprovar, condenar.

Neste caso, a arma utilizada pelo governo militar foi exatamente esta, ou seja, a intenção

era a de avaliar os trabalhos artísticos e informativos, com intenção de aprovar ou não que

fossem liberados para o público. A censura foi usada, dessa maneira, para impedir que os

cidadãos contrários ao governo divulgassem qualquer tipo de protesto.

Para censurar o governo fazia-se uso de critérios políticos, estes que eram aplicados

a jornais, e morais, das quais eram aplicados em espetáculos, e peças de artes. Os critérios

não se valiam só de esconder e punir quem se fazia contra o regime (sendo o critério

político), mas também se expandia para comportamentos e costumes (critério moral).

Durante este período a censura passou por três etapas: a primeira de 1964 a 1968

passando pelo AI-5 da qual foi intenso nos meses de antecedência ao período; a segunda

temporada deu-se após o Ato Constitucional n°5 (AI-5) de 1968, sendo um dos mais duros

momentos de uma censura intensa, até 1975; e por fim os governos Geisel e Figueiredo,

que a censura foi amenizada.

2.8. A Censura Prévia

Vale enfatizar que na primeira etapa, citada acima, a censura não atuava de uma

maneira oficial, com uma lei a equiparando, contudo vários jornais que denunciavam e

ameaçavam o governo foram depredados.

A liberdade de expressão de nossa imprensa havia sendo censurada pela lei 5.250,

desde fevereiro de 1967. No entanto, a situação se tornou mais complicada com a edição do

AI-5. A partir de janeiro de 1970, foi decretada a lei n° 1.077, praticada de duas maneiras

contra o meio impresso: instalavam-se uma equipe nas redações dos jornais e revistas, para

6 Fonte: Antonio Carlos Olivieri, título: Censura: O regime militar e a liberdade de expressão, para o

site: UOL – educação. <http://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/censura-o-regime-militar-e-a-

liberdade-de-expressao.htm> Acesso em: 04 mar. 2013.

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censurar e liberar o que poderia ser publicado; ou os meios de informação enviavam suas

matérias antecipadamente a Policia Federal, para que pudesse ser avaliado.

Na televisão as práticas de censura eram evidentes, problemas sociais e econômicos

que depredavam a imagem do país, eram simplesmente cortados da programação. As

novelas eram vítimas, seus capítulos tinham cenas cortadas e reescritas com trechos

alterados, muitas vezes fugindo do real significado que o autor desta, lhes tinha atribuído.

Assim como a imprensa e programação de televisão, as peças teatrais e as músicas

também eram obrigadas a mudar a grafia, e os significados das mesmas.

A pressão sobre os meios de comunicação passou a ser amenizada em 1975 com o

final da censura prévia, mas esta precaução do governo com o que era publicado, só teve

um fim com o restabelecimento do governo democrático.

Considerações finais

É válido ressaltar que nossa proposta de leitura a partir de capas da Revista Veja nos

permitiu considerar o papel do texto, da cultura e da memória no que se referem à produção

de sentidos no texto, na relação entre o verbal e não verbal.

Acreditamos que os alunos necessitam ler a partir de diferentes linguagens em sala

de aula e também precisam compreender as condições de produção que perfazem os textos.

No caso do contexto da ditadura, ler é um gesto que liga a língua à história.

Além disso, a proposta multidimensional-discursiva nos oferece contextos nos quais

os textos trabalhados são problematizados a partir de três componentes inter-relacionados:

os componentes intercultural, de língua-discurso e de práticas verbais, o que não reduz o

trabalho de linguagem a uma abordagem estrutural ou somente uma discussão sobre o

conteúdo do texto. Sendo assim, os textos foram problematizados de modo que não se

dissociou a análise dos sentidos construídos no texto da abordagem dos recursos

linguísticos.

Referências

IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares

05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

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